A (des)proteção social aos soropositivos na África do Sul Pós-apartheid: da segregação racial ao minimalismo neoliberal

Evandro Alves Barbosa Filho
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil
Ana Cristina Souza Vieira
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil

A (des)proteção social aos soropositivos na África do Sul Pós-apartheid: da segregação racial ao minimalismo neoliberal

O Social em Questão, vol. 22, núm. 45, pp. 35-56, 2019

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo: Este artigo analisa como as políticas e programas sociais da África da Sul Pós-apartheid têm respondido às necessidades sociais da população soropositiva. O trabalho tem natureza qualitativa e se fundamenta na sociologia crítica sul-africana. Foi identificado que a proteção social na África do Sul Pós-apartheid tem se orientado por um modelo residual de bem-estar social, com centralidade de programas de transferência de renda focalizados na extrema pobreza e em serviços sociais básicos. Mesmo tendo a maior epidemia de HIV do mundo, a desproteção social das pessoas que vivem com HIV/Aids é um dos principais hiatos no sistema de proteção social.

Palavras-chave: África do Sul, HIV, Aids, proteção social, Apartheid.

A (des)proteção social aos soropositivos na África do Sul Pós-apartheid: da segregação racial ao minimalismo neoliberal

Evandro Alves Barbosa Filho1

Ana Cristina de Souza Vieira2

Resumo

Este artigo analisa como as políticas e programas sociais da África da Sul Pós-apartheid têm respondido às necessidades sociais da população soropositiva. O trabalho tem natureza qualitativa e se fundamenta na sociologia crítica sul-africana. Foi identificado que a proteção social na África do Sul Pós-apartheid tem se orientado por um modelo residual de bem-estar social, com centralidade de programas de transferência de renda focalizados na extrema pobreza e em serviços sociais básicos. Mesmo tendo a maior epidemia de HIV do mundo, a desproteção social das pessoas que vivem com HIV/Aids é um dos principais hiatos no sistema de proteção social.

Palavras-chave

África do Sul; HIV/Aids; proteção social; Apartheid.

Social (dis)protection for seropositive in Post-apartheid South Africa: from racial segregation to neoliberal minimalism

Abstract

This paper analyzes how Post-apartheid South Africa’s social policies and programs have adressed the social needs of the seropositive population. It has a qualitative approach and it’s based on South African critical sociology. This work identified that social protection in the Post-apartheid South Africa is based on a residual model of social welfare, with centrality of income transfer programs focused on extreme poverty and basic social services delivery. Even with the world's largest HIV epidemic, the social deprotection of people living with HIV/SIDA is one of the main gaps in the country’s system of social protection.

Keywords

South Africa; HIV/AIDS; Social Protection; Apartheid.

Séculos de (des)proteção social racializada na África do Sul

Desde o início da epidemia global de HIV/Aids (HIV - Vírus da Imunodeficiência Humana / Aids - síndrome da imunodeficiência adquirida), a África do Sul vem se configurando como o epicentro da morbimortalidade ocasionada por esta pandemia. A rápida transformação da Aids na principal causa de adoecimentos e mortes foi co-determinada pela crise política, econômica e social que o país atravessava no final dos anos 1980. Crise decorrente da luta, inclusive armada, entre a minoria branca de defensores do regime de segregação racial, o Apartheid, e a ampla maioria da população negra que lutava pela abolição desse sistema social, econômico e político baseado na ultra exploração e desproteção social das populações negras, coloured e asiática. O Apartheid, palavra que significa “desenvolvimento em separado”, hierarquizava todas as dimensões da vida dos sul-africanos do nascimento até a morte, a partir da ideia de supremacia da minoria branca e do projeto de criação de um país europeu no sul do continente africano.

O objetivo deste artigo é analisar como as políticas e programas sociais da África da Sul Pós-apartheid têm respondido (ou não) às necessidades sociais da população soropositiva do país.

A pesquisa que deu origem ao artigo tem natureza qualitativa e suas análises se fundamentam na produção teórica da sociologia crítica sul-africana, em especial na obra de pesquisadores como Sampie Terreblanche, Leila Patel e Grace Davie e de outros autores que abordam a reprodução social e o processo de organização do sistema de bem-estar social da África do Sul Pós-apartheid. Para o levantamento dos corpora foram realizadas revisão narrativa da literatura e análise de documentos oficiais coletados durante pesquisa de campo realizada na África do Sul. Foram selecionados e analisados documentos oficiais e as leis nacionais que versam sobre as políticas de bem-estar e proteção social, as national acts, de acesso público, produzidos pelo Estado sul-africano que evidenciam a constituição do sistema pigmentocrático de bem-estar social, antes e durante o Apartheid, e as políticas sociais da África do Sul Pós-apartheid, voltadas à proteção social estatal disponível para os homens e mulheres que vivem com HIV/Aids.

As clivagens raciais, radicalmente implementadas pelo Apartheid em 1948 e que só tiveram fim em 1994, além de oficializarem o racismo, determinavam o tipo, o modelo, a cobertura e o nível de mercantilização da proteção social que cada grupo racial deveria receber. A orientação pigmentocrática, do sistema de bem-estar social instituída pelos supremacistas brancos do National Party (NP), Partido Nacional, partido de extrema direita que governou o país de 1948 a 1994, radicalizava e aprofundava todas as formas de racismo e segregação a que a maioria negra da população e as minorias coloured (mestiça) e asiática estavam submetidas desde o início da colonização holandesa (1652-1815) e da colonização britânica (1815-1910). Grande parte da legislação racista dos dois períodos coloniais também foi absorvida pelo país quando conquistou sua independência em 1910.

Antes mesmo do National Party chegar ao poder, o regime da União Africana unificou as quatro províncias do país e instituiu vários National Acts, leis de abrangência nacional, que diminuíram drasticamente os direitos civis, políticos e sociais das populações não brancas na África do Sul, mesmo que estas representassem ao longo do século XX nunca menos do que 60% do total de habitantes do país. A independência foi seguida por uma rápida proletarização, inclusive da população branca de origem holandesa, francesa e alemã, os chamados afrikaners. A crise capitalista internacional de 1929 ocasionou uma grave crise de exportações de minerais, a principal indústria nacional, aumentando o desemprego e a pobreza entre os trabalhadores de origem europeia e resultando na constituição de uma das principais bandeiras das políticas racistas do NP: o Poor White Problem, a questão do rápido crescimento da pobreza entre os sul-africanos brancos. Esta questão, tratada de maneira residual, segundo a tradição liberal da elite política de origem britânica que governava o país, assumiu centralidade na agenda política do NP sobre bem-estar social.

O Partido supremacista defendia que o capitalismo liberal, o comunismo soviético e a maioria absoluta de negros na população representavam riscos à minoria branca, e que a livre concorrência no mercado de trabalho entre trabalhadores brancos, segundo as diretrizes do capitalismo concorrencial, ocasionava o rápido empobrecimento das famílias brancas, especialmente da comunidade afrikaner.

O Partido ultra racista, abertamente contrário ao liberalismo britânico que orientava a economia e os padrões de intervenção nas situações de pobreza, propôs uma ampla, gratuita e universal rede de proteção social aos sul-africanos de origem europeia, objetivando a proteção total aos brancos das classes trabalhadoras frente aos efeitos sociais deletérios da lei geral de acumulação capitalista e garantindo amplas estruturas políticas e legislativas para que as elites econômicas e políticas brancas submetessem os trabalhadores/as negros/as aos maiores níveis de exploração e destituição observados em todo o século XX (CHINWEIZU, 2011, p.38). O discurso político de proteção social universal e desmercantilizada, segundo os padrões de branquitude, foi amplamente apoiado pela maior e mais pobre comunidade branca do país, a afrikaner, que nas eleições nacionais de 1948 levaram o NP à vitória, resultando na implantação do Apartheid.

Durante os quase 50 anos que governou o país, o NP instituiu um sistema de bem-estar social que reproduzia a histórica pigmentocracia do país, ofertando serviços de proteção social universal aos brancos, uma proteção social residual aos coloureds e asiáticos e deixava os negros totalmente desassistidos por qualquer proteção social formal do Estado. A eliminação das formas elementares de proteção social à população negra era parte fundamental do projeto racista de criação de um país do povo afrikaner. Segundo essa utopia racista, engendrada desde os primeiros anos da colonização holandesa, o compartilhamento do cotidiano entre grupos raciais levaria às comunidades brancas à degeneração moral e à decadência civilizatória; preservar o Volk (o povo branco) sul-africano demandaria segregar os diferentes grupos raciais (TERREBLANCHE, 2005, p. 271).

A expressão mais latente desse projeto foi a criação das homelands ou bantustões, pelo regime do Apartheid, em 1951. Foram constituídas dez unidades político-territoriais com base no Native Land Act (Lei de Terras Nativas), de 1913, e no Native Trust and Land Act (Lei Nacional das Terras Nativas), de 1936, eram frações do território destinadas aos negros e negras e, segundo o Partido Nacional, deveriam se tornar países independentes. As homelands foram criadas nas áreas mais pobres do país e equivaliam a apenas 13% do território nacional. Esses “Estados fantoches” criados pelo Governo supremacista racial serviam como reservas de retribalização artificial e compulsória para diminuir a presença dos negros no país. Depois de instituídas as homelands, negros e negras perderam a cidadania sul-africana e passavam a ser reconhecidos como cidadãos da área reservada a seu grupo étnico-linguístico, pelo regime do Apartheid. Além de confinar grande parte da população negra em espaços segregados e fragmentados, para evitar a organização política dos mesmos, os bantustões serviam para desobrigar o Estado Racista de qualquer nível de proteção social aos negros que morassem ou trabalhassem no território sul-africano. Os sul-africanos negros se tornaram estrangeiros em seu próprio país e precisavam portar um passaporte interno, o dompas. A permissão para circular no país era condicionada à condição de trabalhador assalariado imigrante. Em caso de adoecimento, perda de trabalho, não observação das leis de separação total entre os grupos raciais em todos os espaços (filas, bancos, áreas de lazer, escolas, unidades de saúde, lojas, etc.) os trabalhadores imigrantes eram presos ou deportados para a homeland destinada ao seu grupo étnico-linguístico.

Por outro lado, a pequena população branca do país, amplamente protegida pelas ações afirmativas do Apartheid era uma força de trabalho extremamente cara, além de escassa, o que fazia a economia ser extremamente dependente da força de trabalho migrante dos negros e negras. Além disso, os impostos cobrados aos trabalhadores negros financiavam as políticas sociais de proteção e promoção social que fizeram a pobreza ser superada entre os brancos, ainda na década de 1960, resolvendo o white poor problem às custas da ultra exploração e destituição da proteção social da maioria negra (PATEL, 2013, p. 178).

Os governos e a administração dos bantustões, além de corruptos e cooptados pelo regime de Pretória (capital do país), não utilizavam os recursos gerados dentro e fora das homelands para criar estruturas de bem-estar e proteção social. Afinal, o compromisso firmado entre as lideranças políticas dos bantustões e o NP era manter a maioria da população negra, tendo a venda da sua força de trabalho na África do Sul por baixíssimos salários como única opção para responder às suas necessidades básicas (DAVIE, 2015, p. 39). Para negros e negras permanecerem no território sul-africano, fora dos bantustões, precisavam ter emprego fixo há pelo menos 10 anos, ou viver em cidades por 15 anos ou mais. Essa população era destituída de direitos básicos de cidadania e vivia confinada em townships – favelas de lata – e sofriam constantemente com a violência da polícia e das forças armadas, tendo qualquer tipo de proteção social formal atrelada ao bantustão atribuído ao seu grupo étnico.

O lançamento, em 1950, do Group Areas Act, Lei Nacional de Divisão das áreas por Grupos, que segregava área distintas de moradia, comércio e trabalho para brancos, asiáticos, coloured e negros tornou mais rigorosa e violenta a segregação dentro das cidades sul-africanas. Durante as décadas de 1960 e 1970, a comunidade coloured, que sempre se concentrou na província do Cabo, foi vítima do branqueamento das cidades e áreas urbanas, sendo confinada em conjuntos habitacionais precários, localizados em áreas periféricas, os cape flats. A população classificada como asiática formada, sobretudo, por sul-africanos de origem indiana, além de segregada, era ameaçada por propostas de deportação em massa e proibida de residir na antiga província de Orange Free State. Contando com serviços de proteção social pública ofertados por governos provinciais e municipais, sobretudo nas políticas de saúde, educação, habitação e assistência social, os coloured e indianos tinham possibilidades de proteção social proibidas aos negros, como o de serem funcionários públicos em alguma funções e cargos subalternos e terem, consequentemente, acesso a certos serviços sociais de nível semelhante ao usufruído pela população de origem europeia. Enquanto os sul-africanos brancos de todas as classes sociais tinham acesso à educação formal de alto padrão de desde as séries iniciais até a formação universitária, os sul-africanos asiáticos e coloureds tinham acesso restrito a escolas subfinanciadas, existentes nas áreas que o Group Areas Act autorizava, ou deveriam pagar por escolas privadas.

A partir do Extension of University Education Act, Número 45 de 1959, Lei Nacional de Extensão da Educação Universitária, as instituições eram segregadas por grupos raciais, inclusive no ensino superior, sendo totalmente gratuitas ou subsidiadas pelo Estado para estudantes brancos; enquanto que nas universidades destinadas aos coloured e indianos, os estudantes e suas famílias tinham que arcar com o pagamento de mensalidades, muitas vezes superior aos rendimentos médios das famílias desses grupos étnicos.

O sistema educacional ofertado para a maioria negra da população, tanto dentro da África do Sul como nas homelands, The Black Education Act (Lei Nacional de Educação para Negros), foi reestruturado a partir de 1953. Esta lei visava preparar por meio do modelo educacional, conhecido como sistema bantu, os estudantes negros apenas para exercer as funções ultra subalternas. A educação, especialmente a universitária, era inacessível à maioria dos negros, especialmente às mulheres negras (TERREBLANCHE, 2005).

As estruturas salariais, previdenciárias e de assistência social também eram racialmente hierarquizadas. Desde 1930, o salário mínimo pago a um trabalhador branco deveria ser o suficiente para sustentar sozinho todo o grupo familiar e ainda manter uma empregada doméstica, enquanto os salários dos trabalhadores negros, coloured e indianos foram rapidamente se desvalorizando ao longo das décadas do século passado, aprofundando as desigualdades sociais entre as classes sociais e grupos raciais (PATEL, 2013).

Além do acesso universal ao amplo sistema de bem-estar social criado para os brancos, financiado pelos sul-africanos que não apresentavam os padrões fenotípicos de branquitude estabelecidos pelo NP, os sul-africanos brancos contavam com ampla proteção no mercado de trabalho. Leis nacionais como a de The Colour Bar Act (Lei Nacional da Barreira de Cor) de 1925, foram aperfeiçoadas durante os Governos do Apartheid para reservar as funções de chefia, de maior status e remuneração aos trabalhadores sul-africanos brancos, considerados pelo Apartheid civilised labour, trabalhadores civilizados.

Na verdade, desde 1941, com o The Factories Machinery and Building Works Act, Lei Nacional de Trabalho com Maquinário Fabril e de Construção, o Estado tinha o poder e a obrigação de priorizar os trabalhadores brancos em detrimento trabalhadores dos demais grupos raciais, reservando melhores salários e proteção social privada e pública superior aos trabalhadores brancos, mesmo quando esses realizavam as mesmas funções dos trabalhadores asiáticos ou coloureds.

Essa estrutura racista de estratificação social começou a ser desmantelada apenas na segunda metade da década de 1980, por meio de reformas sociais minimalistas que, progressivamente, expandiram direitos civis, políticos e sociais dos coloureds e indianos e aumentaram o investimento na provisão de serviços sociais básicos nas homelands e townships. Estas respostas políticas do NP eram tentativas de responder aos crescentes levantes da classe trabalhadora negra e de movimentos políticos como o United Democratic Front (UDF) e do mais antigo movimento de libertação nacional do continente africano, o African National Congress (ANC, Congresso Nacional Africano), criado em 1912. Porém, a população negra estava ciente de que a emancipação política e a desracialização das estruturas de trabalho e de bem-estar só viriam com o fim do Apartheid, e a ação política desses movimentos não cedeu à proposta reformista e tornou o país ingovernável, levando o NP a iniciar as negociações em torno do fim do regime de autocracia racista (TERREBLANCHE, 2012, p.84).

O Apartheid só foi totalmente desconstruído em 1994 com a realização das primeiras eleições livres em que negros, coloureds e asiáticos tiveram direito ao voto. Estas eleições resultaram na esperada vitória do ANC, que se tornou partido político para participar do primeiro pleito democrático à presidência do país. Dois anos depois, em 1996, foi promulgada a atual Constituição Nacional. Esta, sobretudo a partir de sua Seção 27, que trata do sistema de bem-estar social, evidencia o compromisso do Estado Pós-apartheid com a garantia e a provisão de direitos sociais, entendidos como direitos humanos fundamentais à superação da herança social do regime do Apartheid. No entanto, a Carta Constitucional também condiciona a efetivação desses direitos por meio de políticas públicas e políticas sociais à existência de recursos financeiros e estabelece que a decisão sobre a existência desses recursos é do partido no poder, inexistindo indexação entre riqueza nacional e investimento em bem-estar e proteção social.

Como se vê, junto com a democracia vieram opções políticas que aprofundaram as desigualdades sociais, e estas foram implantadas pelo African National Congress implicando no transformismo do mesmo em direção ao neoliberalismo (DAVIE, 2015, p. 228).

Estas escolhas conservadoras tiveram impactos não somente nas formas como o Estado sul-africano, desde 1994, enfrenta a epidemia de HIV/Aids, mas também nas modalidades e níveis de cobertura da proteção social às mulheres e homens soropositivos que têm que lidar com uma doença que, além do acesso de longa duração a medicamentos antirretrovirais, demanda o enfrentamento de estigmas, preconceitos e discriminação e a oferta de uma ampla rede de proteção social pública para manutenção material, financeira e de cuidados socioassistenciais e de saúde. Sem surpresas, as historicamente desprotegidas, pauperizadas e exploradas comunidades negras, asiáticas e mestiças do país, sobretudo a maioria negra, estavam mais vulneráveis à epidemia de HIV/Aids, à morbimortalidade e ao empobrecimento decorrente desta que, rápida e silenciosamente, cresceu e se tornou uma epidemia silenciosa, ainda nos últimos anos da autocracia do Apartheid.

Uma epidemia que reflete e refrata as desigualdades sociais: HIV/Aids na África do Sul Pós-apartheid.

Desde 1982 foram registrados os primeiros casos de Aids na África do Sul. Estes se concentravam na comunidade gay branca e na população negra. O Immorality Act, Lei Nacional sobre Imoralidade, publicada em 1957, ainda em vigor, proibia e criminalizava relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo e de grupos raciais distintos, sexo fora do casamento e qualquer tipo de comportamento considerado moralmente ofensivo. A percepção de que o HIV só atingia homossexuais, um grupo subalternizado e estigmatizado dentro da ordem conservadora cristã protestante e supremacista do Apartheid, legitimou o silêncio e a omissão do governo em relação ao crescimento e à vulnerabilidade estrutural do país à epidemia.

No contexto em que a África do Sul enfrentava desemprego em massa e de longa duração, levantes das classes trabalhadoras negras, coloured e asiática, ignorar e estigmatizar a Aids como uma doença que só atingiria homossexuais e negros seguia a regra de oportunismo político do regime racista. A opção pela desresponsabilização do Estado em prevenir novos casos e em ofertar tratamento médico e proteção social aos soropositivos engendrou uma catástrofe social e sanitária (BARBOSA FILHO, ROCHA, 2018, p. 125).

Desde o começo da década de 1990, o país se tornou o mais atingido mundialmente pelo HIV. O principal meio de transmissão passou a ser as relações heterossexuais desprotegidas, forma de infecção prevalente em cerca de 80% dos novos casos observados desde 1991. Assim, a epidemia deixou de ser concentrada em alguns grupos sociais mais vulneráveis, como trabalhadoras do sexo, homens que fazem sexo com homens, mulheres trans e se generalizou, atingindo mais de 5% da população nacional (HEAD, 2011, p.37).

No primeiro governo Pós-Apartheid, sob a direção de Nelson Mandela, o HIV não recebeu a necessária importância, o discurso das principais lideranças do ANC era de que existiam questões sociais e sanitárias mais sérias do que o HIV/Aids e que o enfrentamento da epidemia era caro demais para um país que tinha que sanar demandas consideradas mais emergenciais, como a reorganização e unificação das estruturas de Estado e integrar no país as pauperizadas populações e territórios dos bantustões. Nelson Mandela não negou abertamente a necessidade de responder à epidemia, mas marginalizou essa questão na agenda da saúde e diante das pressões da indústria farmacêutica produtora de antirretrovirais, interessada no grande mercado sul-africano, responsabilizou o Estado apenas por ações educativas de prevenção, negando investimentos materiais e humanos em tratamento ou proteção social aos soropositivos. Nelson Mandela deu ampla legitimidade à implementação da agenda neoliberal. Quando criticado pelo South African Communist Party, o Partido Comunista Sul-africano e pelo Congress of South African Trade Unions, União Nacional dos Sindicatos Sul-africanos, por causa das grandes concessões feitas ao grande capital, Nelson Mandela comparou esses sujeitos coletivos da esquerda, que por décadas foram aliados do ANC na luta contra o Apartheid, aos brancos do NP, acusando eles de radicalismo e defendeu a orientação neoliberal como alternativa para o desenvolvimento da África do Sul.

Já o segundo presidente da África do Sul Pós-apartheid, Thabo Mbeki, é um exemplo de como opções políticas que combinam neoliberalismo e conservadorismo podem resultar em maiores níveis de desproteção social e morbimortalidade. Os pronunciamentos do Presidente Mbeki questionavam, contra todas as evidências e consensos científicos, se a infecção por HIV causava a Aids. O posicionamento do presidente foi legitimado pela Ministra da Saúde do país, a médica Mantombazana Edmie Tshabalala-Msimang. A ministra chegou mesmo a receitar suco de limão, alho, beterraba e algumas raízes para o tratamento da Aids. A partir dessa postura negacionista, Mbeki deixou parcela significativa da população sem acesso a medicamentos antirretrovirais até 2008, quando abandonou a presidência em decorrência da pressão política nacional e internacional e a Ministra Tshabalala-Msimang foi substituída por Barbara Hoogan. A Ministra Hoogan atribuiu centralidade ao enfrentamento da epidemia por meio do acesso aos antirretrovirais, posicionamento defendido pelo novo Presidente Kgalema Montlante. Estima-se que o negacionismo de Thabo Mbeki, que implantou uma severa reforma neoliberal no país tenha ocasionado mais de 300.000 mortes evitáveis. Essas mortes teriam sido evitadas, caso as mulheres, homens e crianças com HIV/Aids não tivessem o fornecimento governamental de antirretrovirais suspenso pelo Departamento Nacional de Saúde e deixado para auto regulação da oferta e distribuição por meio do mercado. No período do Governo Mbeki, a África do Sul tinha entre 44 e 48 milhões de habitantes. Destes, em 2008 aproximadamente 5,5 milhões viviam com HIV/Aids.

Na atualidade, 19% dos cerca de 56 milhões de habitantes são soropositivos para HIV. Em 2018, foram registradas mais de 110.000 mortes ocasionadas pela Aids e foram registrados 270.000 novos casos de HIV. Entre profissionais do sexo, uma das populações mais vulneráveis à epidemia e que até 2017 não tinham nenhum programa governamental específico de prevenção e tratamento, a prevalência nacional é de 57,7%. Entre homens que fazem sexo com homens e gays, a prevalência é de 26,8%; na população que usa drogas injetáveis, a prevalência é de 17%. Garotas adolescentes e mulheres jovens, com idades entre 15 e 24 anos são 37% dos novos casos de HIV. A Aids também tem impactos significativos entre as crianças, desde o início da epidemia mais de 2 milhões de crianças ficaram órfãs, tendo perdido seus país ou as famílias inteiras para a Aids (UNAIDS, 2018).

Somente a partir de 2006 a incidência do HIV e a mortalidade vêm diminuindo, o que não significa uma queda acentuada da prevalência, porque as pessoas em tratamento com antirretrovirais estão vivendo mais, portanto, reduzindo a mortalidade relacionada à Aids. Essa importante conquista para o direito à saúde dos sul-africanos soropositivos é resultado da expansão da cobertura do tratamento de HIV/Aids promovido pelo Estado, diante das pressões internacionais e de organizações não governamentais (ONGs) nacionais combativas como a Treatment Action Campaign (TAC), através do uso de antirretrovirais para todas as pessoas, desde a detecção da infecção pelo vírus HIV. Isso implicará um expressivo desafio às políticas sociais, pois o país terá que lidar com uma epidemia generalizada por décadas, o que acontecerá mesmo se as taxas de incidência continuarem a declinar. Essas projeções sinalizam a importância das medidas de prevenção e proteção social para o país da África Austral, no intuito de evitar novas infecções e planejar programas e serviços de provisão de cuidados em saúde e assistência social com o intuito de minimizar o impacto social familiar, comunitário e coletivo do adoecimento e morte por HIV/Aids na África do Sul, um tipo de intervenção do Estado sobre a dívida social que a agenda neoliberal do ANC nega sistematicamente.

No entanto, a mudança no enfrentamento do HIV tornou-se realidade diante do agravamento das refrações da questão social e na queda da legitimidade do ANC entre as classes trabalhadoras, o quarto presidente da África do Sul Pós-apartheid, Jacob Zuma, iniciou um maior investimento em políticas e serviços sociais básicos voltados para os principais problemas sociais do país, entre eles a epidemia de HIV/Aids. Essa mudança significativa na forma como o Governo sul-africano passou a intervir junto às populações soropositivas resultou na criação do maior programa de tratamento com antirretrovirais do mundo.

Dados de 2017 apontam que, da população de 7.2 milhões de sul-africanos soropositivos, 61% dos adultos e 58% das crianças e adolescentes estavam em tratamento com antirretrovirais. 20% dos soropositivos em tratamento no mundo estão na África do Sul e 80% da oferta dos antirretrovirais é financiada pelo Estado (UNAIDS, 2018). Desde a década de 2010, a expansão do acesso ao Programa Nacional de Antirretrovirais vem sendo construída por meio de uma série de medidas e intervenções no campo da saúde, destacando-se a descentralização do tratamento dos hospitais às unidades primárias de saúde. Como resultado da descentralização, em 2014, o tratamento com os antirretrovirais estava disponível em todas as mais de 3.500 unidades primárias de saúde; apenas cinco anos antes, em 2009, somente 550 unidades primárias de saúde estavam creditadas pelo Estado para ofertar o tratamento. O número de novos pacientes incluídos mensalmente no programa público de antirretrovirais é de cerca 50 mil por mês. A efetividade do Programa Sul-Africano de HIV/Aids pode ser evidenciada pelo crescimento na expectativa de vida. Esta cresceu de 61,2 anos em 2010 para 67,7 anos em 2015.

Entretanto, tanto os novos como os antigos usuários do Programa Nacional de Antirretrovirais irão demandar um tratamento de longa duração e a pressão desse Programa em termos de medicamentos, recursos humanos, informação e aconselhamento, recursos financeiros e gestão são enormes e tende a crescer. Novas formas de organização, gestão e financiamento terão de ser desenvolvidas até o ano de 2020 ou o mesmo poderá se tornar insustentável ao Sistema Nacional de Saúde, que mesmo com o crescimento do orçamento iniciado no Governo de Jacob Zuma, sofre as implicações do subfinanciamento crônico (PILLAY; BARRON, ZUNGU, 2015, p.224).

Mesmo com os avanços no controle do avanço da epidemia e na expansão da oferta e cobertura do tratamento em 2012, a concentração do HIV nos grupos populacionais é inversamente proporcional à participação destes na riqueza nacional: a prevalência nos negros é de 22,7%, entre os coloured é de 4,6%, entre os indianos é de 1% e entre os brancos é de 0,6% (GUMEDE, 2015, p.102).

Além de se concentrar nos grupos raciais historicamente mais vulneráveis na África do Sul, o impacto do HIV entre as frações mais empobrecidas das classes trabalhadoras indica que o pauperismo é um dos principais determinantes sociais sobre quem adoece e morre de Aids. Um estudo de alcance nacional apontou que, se a sociedade sul-africana for subdivida em três extratos socioeconômicos: pobres, classe média e ricos, a prevalência de HIV é maior entre os mais pobres com cerca de 20,8%, seguida pela classe média, com 15,9% e, por fim, entre ricos, a prevalência é de apenas 4,6%. O HIV também está concentrado entre mulheres, com uma prevalência de 19,7%, enquanto que entre homens é de 11,4%. Vale ressaltar que o mesmo estudo aponta que 57% das mulheres sul-africanas estão no grupo mais pobre (WABIRI, TAFFA, 2013, p.03).

Mesmo com a inegável correlação entre pobreza e soropositividade, não existem políticas ou programas sociais nacionais ou em escala provincial voltados ao suporte econômico e de provisão de serviços de assistência e/ou proteção social voltados aos homens e mulheres que vivem com HIV/Aids. Sendo assim, é necessário debater as formas como Estado sul-africano está organizado para prover proteção social e como, colateralmente, essas intervenções são usufruídas por pessoas soropositivas.

A proteção social às pessoas com HIV/Aids: um vazio na agenda do sistema de bem-estar social

O fato de o ANC ter assumido uma orientação neoliberal, rompendo com as promessas welfaristas realizadas enquanto ainda era um movimento social, de que universalizaria o sistema de bem-estar social, antes exclusivo aos brancos, ficou claro em 1996, quando iniciou a implementação do Growth, Employment and Redistribution (GEAR, Crescimento, Emprego e Redistribuição), o programa ultra ortodoxo de reforma neoliberal idealizado desde o fim da década de 1980 pela burguesia branca e por parte das lideranças do ANC (TERREBLANCHE, 2012, p.102).

O GEAR apresentou um discurso radicalmente orientado às necessidades das frações financeira e mineral exportadoras do capital, privilegiando a redução do déficit fiscal, mantendo a inflação e a taxa de câmbio sob controle, reduzindo barreiras ao livre comércio e ao fluxo de capitais e, por fim, liberalizando e financeirizando a economia. O GEAR teve um relativo sucesso para a economia, garantindo saúde fiscal ao Estado e crescimento econômico pouco expressivo, mas contínuo, relegando a histórica dívida social a segundo plano. O programa neoliberal resultou em uma maior precarização de todas as frações da classe trabalhadora, e na restrição aos investimentos em proteção social e saúde pública.

A partir do compromisso do ANC com o neoliberalismo, a democratização foi acompanhada pela criação de um sistema de bem-estar social mínimo ou residual, em que as incipientes intervenções do Estado na proteção social não criam significativas estruturas públicas de prevenção às vulnerabilidades sociais, responsabilidade relegada às famílias, às ONGs do campo socioassistencial e, sobretudo aos governos municipais. As municipalidades na África do Sul-Pós-apartheid são o principal nível do Estado responsável pela provisão de serviços de proteção social, segundo a Constituição de 1996. Porém, a divisão de recursos entre os níveis governamentais deixa uma parcela menor aos governos municipais para as políticas e programas de proteção social e para a indução do desenvolvimento (DAVIE, 2015, p. 324).

A aplicação do neoliberalismo vem frustrando, em uma das economias mais desenvolvidas do mundo, considerando o nível das forças produtivas, a possibilidade do fundo público ser aplicado na criação de uma rede de seguridade social que possa prevenir os impactos da pauperização sobre mais de 16 milhões de sul-africanos pobres e 10 milhões em condição de miséria, sem trabalho e sem acesso a nenhum tipo de proteção social pública. Além destes, há cerca de 27 milhões de pauperizados. Além dos já impactados pelo pauperismo, outros 5,5 milhões, que compõem o precariado sul-africano, correm o risco de se tornarem pobres nos próximos anos (BARBOSA FILHO, 2016, p.357).

O crescimento dos centros e equipes comunitárias de saúde vem servindo como medida básica de enfrentamento das expressões mais severas da questão social no campo da saúde. Além dessa ação, a expansão do acesso e permanência nos programas de transferência de renda, as social grants, bolsas dos programas de transferência de renda condicionada, são a única ou principal fonte de renda de cerca de 17 milhões de sul-africanos.

Os sete principais tipos de social grants pagas e gerenciadas pela South African Social Security Agency (SASSA), a Agência de Seguridade Social da África do Sul, a partir do Social Assistance Act (Lei de Assistência Social) de 2004 são: care dependency grant (bolsa de dependência de cuidados), bolsa paga para adultos classificados como pobres que sejam responsáveis por crianças que demandam cuidados intensivos; child support grant (bolsa de apoio à criança), destinada às famílias pobres responsáveis por crianças e jovens até 18 anos; foster child grant (bolsa para filho adotivo), bolsa destinada às famílias que acolhem órfãos, grande parte dos quais perderam suas famílias biológicas em decorrência da Aids; grant for older person (bolsa para idoso), destinada aos sul-africanos com mais de 60 anos e que comprovem pobreza; social relief of distress (auxílio para alívio de sofrimento), esta é uma bolsa de curta duração paga para famílias vítimas de desastres ou para famílias pobres que estejam temporariamente impossibilitadas de garantir a sua provisão material e que ainda não tenham recebido o resultado da aplicação de alguma das bolsas de longa permanência; war veteran’s grant (bolsa para veteranos de guerra), estas são destinadas aos homens pobres, com mais de 60 anos e incapacitados para o trabalho, que tenham lutado na Segunda Guerra Mundial ou na Guerra das Coreias. Por fim, existe a modalidade disability grant (subsídio para invalidez), bolsas por incapacidade de saúde, também voltadas aos indivíduos em condição de pobreza comprovada e condicionada por pareceres médicos recentes emitidos por unidades de saúde credenciadas à SASSA. Todas essas modalidades de bolsas, desde 1994 são focalizadas na pobreza, os seus beneficiários não podem receber simultaneamente mais de uma modalidade de social grant e caso o beneficiário receba cuidados contínuos ou seja institucionalizado em algum serviço de cuidados e proteção social de natureza pública, como hospitais, abrigos de idosos ou de crianças e adolescentes, perde automaticamente o direito à bolsa (SOUTH AFRICA, 2019, s/p.).

Desde já, é válido pontuar que nenhuma das social grants atinge o valor necessário para a garantia de acesso às necessidades básicas de um agregado familiar de 5 pessoas, sendo a mais alta delas, a war veterans grant, de apenas 1.430 rands, o que equivale a cerca de US$ 99,00. Obviamente, diante da orientação neoliberal do sistema de bem-estar sul africano, os valores e a titulação das social grants são individuais, desconsiderando o desemprego estrutural e a realidade de os pensionistas serem, geralmente, os provedores de todo um agregado familiar, principalmente quando estes pensionistas são mulheres. Mesmo a mais difundida das bolsas de transferência de renda, a child support grant, que atende cerca de 12.440.748 crianças e adolescentes, semelhante à brasileira “Bolsa Família”, almeja garantir o acesso e permanência de crianças e adolescentes na escola e os cuidados primários por parte do grupo familiar, têm valores muito baixos, 330 rands mensais (cerca de US$23,00).

Mesmo com um quinto da população nacional vivendo com HIV/Aids, nem a SASSA nem nenhuma outra agência governamental elaborou um programa de aliviamento ou prevenção da pobreza entre a população soropositiva, mesmo sendo reconhecido que a incidência de pobreza, baixa renda e desemprego entre esses mais de sete milhões de sul-africanos são superiores às médias nacionais (PATEL, 2013, p. 49). Muitos dos 10 milhões de sul-africanos que vivem na extrema pobreza e que não são beneficiados por nenhum esquema público de proteção social ou de geração de renda são soropositivos. Mesmo a efetividade do tratamento sendo condicionada pelo acesso a mínimos sociais como alimentação, moradia, acesso à água potável e serviços de saúde para acompanhar a evolução do tratamento e responder aos efeitos colaterais dos antirretrovirais, o Governo Nacional e das nove províncias têm se recusado a criar políticas e programas que atendam a essas necessidades. Enquanto as províncias alegam falta de recursos financeiros e humanos, o Governo central alega que soropositivos em condição de pobreza ou pobreza extrema são elegíveis à disability grant.

Segundo o mais recente relatório da SASSA (2019), em dezembro de 2018, 1.058.263 pessoas recebiam essa modalidade de bolsa, mas o acesso a mesma é condicionado, além da pobreza comprovada, à incapacidade física permanente ou temporal para o trabalho. Sendo assim, só quando severamente adoecidos por doenças oportunistas, ocasionadas pela queda na imunidade causada pelo vírus HIV, as grants estariam acessíveis, condicionando o acesso aos mínimos sociais ao adoecimento extremo, o que o Programa Nacional de HIV/Aids almeja evitar.

Além disso, os inúmeros laudos e pareceres médicos que atestam a elegibilidade precisam ter menos de três meses e precisam ser emitidos por profissionais de saúde credenciados pelo SASSA. Estes profissionais, locados majoritariamente em unidades públicas de saúde, têm longas filas de espera para as consultas e são extremamente raros nas áreas rurais do país. Diante da pobreza observada entre a maioria dos soropositivos, mais de 72%, também não surpreende o fato de muitos não terem recursos para se deslocar até as unidades de saúde e/ou para realizar o co-pagamento das consultas médicas, que mesmo em unidades públicas de saúde demandam contrapartidas financeiras dos usuários, sendo gratuitos apenas os atendimentos de emergência.

Afora não terem a titularidade ou serem população-chave de nenhum programa social específico à sua condição de vulnerabilidade, as excessivas e inacessíveis condicionalidades postas aos soropositivos mais pauperizados fazem com que estes permaneçam socialmente desprotegidos, mesmo em um cenário nacional de expansão das social grants e de expansão do acesso aos serviços básicos de saúde e proteção social.

Considerações finais

O capitalismo tardio e sua necessidade de mercantilizar ao máximo o sistema e os serviços de bem-estar social, impondo claros limites políticos à criação de um sistema de proteção e de seguridade social como direito de cidadania, desmercantilizado e sob responsabilidade do Estado, se materializa de forma radical na África do Sul Pós-apartheid.

O neoliberalismo implantado pelo ANC suspendeu as promessas sociais da revolução democrática, antes defendidas pelo Partido que pôs fim à estrutura social pigmentocrática do Apartheid. Isso fez com que a maioria dos sul-africanos negros continuasse alijada do bem-estar social e da riqueza socialmente produzida. O minimalismo na oferta de serviços de proteção social e de saúde, observados desde 1994 deram continuidade ao negacionismo e à omissão com que o National Party respondeu às primeiras expressões da epidemia de HIV/Aids. Essa realidade só veio a mudar a partir dos Governos de Jacob Zuma, que iniciou o maior programa público de antirretrovirais do mundo, mas que reproduziu o silenciamento às vulnerabilidades sociais agudas dos milhões de soropositivos do país. O motivo desse silenciamento do Governo em relação ao pauperismo entre as pessoas que vivem com HIV/Aids não se sustenta sob o argumento da orientação neoliberal, já que os programas de transferência de renda e os serviços de proteção social básica para outros grupos têm sido desenvolvidos. Os motivos desse – não lugar – dos soropositivos na agenda social nos governos provinciais e nacional precisa ser objeto de novas pesquisas.

Referências

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