Negligência na Infância: Uma Reflexão sobre a (Des)proteção de Crianças e Famílias

Natália Teixeira Mata
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil

Negligência na Infância: Uma Reflexão sobre a (Des)proteção de Crianças e Famílias

O Social em Questão, vol. 22, núm. 45, pp. 223-238, 2019

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo: O objetivo do artigo é contribuir para o debate a respeito da negligência familiar na infância. Com base nas dimensões de classe e gênero, reflete sobre a interpretação do fenômeno nas famílias. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, a partir do estado da arte de uma pesquisa prévia sobre a negligência na infância e relações familiares. Realizar uma análise acerca deste tema requer um olhar mais amplo, que inclua o espectro da (des)proteção, evitando as nomeações, ou os rótulos sintéticos que recaem sobre certos tipos de família e, no interior dela, sobre a mulher. No entanto, é imperativo considerar que a vivência de negligências, especialmente na infância, pode desencadear graves consequências para a saúde e para o desenvolvimento psicossocial das crianças.

Palavras-chave: Negligência na infância, proteção, violência, negligência.

Negligência na Infância: Uma Reflexão sobre a (Des)proteção de Crianças e Famílias

Natália Teixeira Mata1

Resumo

O objetivo do artigo é contribuir para o debate a respeito da negligência familiar na infância. Com base nas dimensões de classe e gênero, reflete sobre a interpretação do fenômeno nas famílias. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, a partir do estado da arte de uma pesquisa prévia sobre a negligência na infância e relações familiares. Realizar uma análise acerca deste tema requer um olhar mais amplo, que inclua o espectro da (des)proteção, evitando as nomeações, ou os rótulos sintéticos que recaem sobre certos tipos de família e, no interior dela, sobre a mulher. No entanto, é imperativo considerar que a vivência de negligências, especialmente na infância, pode desencadear graves consequências para a saúde e para o desenvolvimento psicossocial das crianças.

Palavras-chave

Negligência na infância; proteção; violência; negligência.

Neglect in Childhood: A Reflection on the (Dis)protection of Children and Families.

Abstract

The objective of this article is to contribute to the debate about family neglect in childhood. Based on the dimensions of class and gender, it reflects on the interpretation of the phenomenon in families. It is a bibliographical research, from the state of the art of a previous research about neglect in childhood and family relations. Carrying out an analysis on this topic requires a broader look, including the specter of (dis)protection, avoiding appointments, or the synthetic labels that fall on certain types of family and, within it, on women. However, it is imperative to consider that negligence, especially in childhood, can have serious consequences for the health and psychosocial development of children.

Keywords

Neglect in childhood; protection; violence; neglect.

Artigo recebido:

Artigo aceito:

Introdução

O presente artigo busca refletir sobre a negligência na infância, problematizando as questões de gênero e classe social que podem interferir na interpretação do fenômeno nas famílias. A negligência acomete diversas crianças no Brasil e no mundo, considerada um dos tipos de violência mais recorrentes, é um tema muito presente no que diz respeito a proteção integral na infância.

As situações nomeadas como negligência são diversas e sujeitas a diferentes caracterizações, por vezes controversas, por se basearem em juízos subjetivos e frequentemente condenatórios em relação a certos perfis de famílias. No lugar de considerar uma visão estreita e acusatória, consideramos, conforme Mata (2016), que “ora a família é negligente, ora é negligenciada”, em muitos casos, vivencia as duas condições.

As prescrições legais acerca da proteção integral durante o período da infância e adolescência reforçam a responsabilização do Estado, da sociedade e da família perante as crianças e adolescentes, todavia é sobre as famílias, principalmente à figura materna, que recaem as expectativas de cuidado e os olhares judicativos acerca do que ocorre com estas pessoas consideradas “vulneráveis”. “E muitas das famílias negligenciadas pelo Estado são as culpabilizadas como negligentes com seus filhos. Neste contexto são as mulheres pobres e suas famílias as mais criminalizadas” (BARROS et al., 2014, p.166).

Nas áreas de saúde e de proteção aos direitos de crianças e adolescentes, a negligência é um tema muito presente, principalmente no período da primeira infância, em função dos cuidados que demandam. A legislação nacional também dispõe de normativas que proíbem e punem práticas de falta ou omissão de cuidados que, em geral, se traduzem como negligência e são entendidas como uma violência e /ou violação de direitos. Assim a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) enfatizam que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, art. 227º).

Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. (BRASIL, 1990, art. 4º).

Cabe ressaltar que, se por um lado foram adquiridos e legalizados diversos direitos anteriormente não reconhecidos, por outro a garantia desses direitos permitiu uma grande participação do judiciário na vida social. Fato que favorece muitas intervenções estatais nas famílias diante os casos de suspeita de negligência na infância. Sobre o processo de judicialização das relações sociais Oliveira (2014) colabora:

Neste contexto, atualmente se constata que a sociedade tem buscado, no Judiciário, respostas e solução para problemas cada vez mais cotidianos. Configura-se, assim, uma tendência a tornar grande parte dos processos de acesso e garantia a direitos excessivamente legalistas e remetidos a autoridades diversas, que sobre eles deverão se pronunciar e decidir, através de procedimentos adstritos à burocracia estatal, embora não exclusivamente no âmbito da prestação jurisdicional. A insuficiência do Estado na implementação de políticas públicas que atuem na origem dos conflitos e na oferta de acesso universal a outras formas para sua resolução e agenciamento, em muito tem contribuído para o processo de judicialização das relações sociais. (OLIVEIRA, 2014, p.9).

As mudanças sociais também se refletem nas famílias como instituições sociais, impactadas com as relações de poder e dominação presentes nos processos de judicialização de suas vidas. E aqui se inserem as transformações legais que, muitas vezes, avançam de um lado e regridem de outro, na medida em que “a família pobre ganha um novo status: ‘Família negligente’, já que o discurso claro de pobreza não mais é permitido legalmente, podemos perceber no cotidiano dessas crianças e adolescentes, a culpabilização das famílias” (TUMA; PEREIRA, 2013, p. 3).

A negligência é difícil de ser identificada e mensurada, tendo em vista que é atravessada por questões socioeconômicas, estruturais, culturais e outras que impactam na sua ocorrência. O ambiente familiar geralmente é colocado como lócus de responsabilização perante esses casos. Garcia e Oliveira (2017, p.10) afirmam que “a família é chamada a proteger em decorrência da visão naturalizada de que esta é a sua função primeira. Quando a família não corresponde a esta visão, é considerada disfuncional e responsável pela vulnerabilidade dos seus membros”. Assim, atribuída como negligente, diante da definição em geral utilizada:

A negligência é a ação e omissão de responsáveis quanto aos cuidados básicos na atenção, como a falta de alimentação, escola, cuidados médicos, roupas, recursos materiais e/ou estímulos emocionais, necessários à integridade física e psicossocial da criança e do adolescente, ocasionando prejuízos ao desenvolvimento. Isto caracteriza o abandono, que pode ser parcial ou total. No parcial coloca a criança e adolescente em situação de risco; no total elas ficam desamparadas e ocorre o afastamento total da família. (MORESCHI, 2018, p. 15).

De fato, há uma preocupação com os danos físicos, sociais e psicológicos das negligências vivenciadas na infância, como uma das modalidades de violência doméstica. Todavia, as questões familiares, atravessadas por determinantes de gênero e classe social precisam ser debatidas ao tratarmos da proteção social das crianças.

Procedimentos Metodológicos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, o levantamento bibliográfico foi realizado na Scielo (Scientific Eletronic Library Online). Realizamos as primeiras buscas com palavras-chaves: negligência (454 artigos), negligência infantil (81 artigos), negligência e criança (87 artigos), negligência e proteção (25 artigos). Deste modo, foi possível identificar, de modo exploratório, o estado da arte sobre o tema, a quantidade de publicações dos últimos anos, as revistas e áreas que publicam mais acerca da negligência, bem como o seu maior público.

Todavia, na busca bibliográfica mais específica em que utilizamos as palavras-chaves negligência e proteção, encontramos 25 artigos, nos quais retiramos os repetidos e ficou com um total de 21 publicações que analisamos no presente estudo. Os casos de suspeita de negligência na infância são os que apresentam maiores frequência em relação a outras violações. Cabe ressaltar que, para uma análise mais criteriosa das incidências é relevante considerar a frequência e aumento real das denúncias. Os dados de violência chamam atenção para o fenômeno, apesar de apresentar um panorama complexo e crítico. Cumpre registrar que a subnotificação ainda oculta parte significativa de distintas formas de violência nos territórios.

Consideramos, a partir das contribuições de Minayo (2014) ao discutir a pesquisa social em saúde, que a metodologia de abordagem qualitativa permite inserir a questão da intencionalidade e do significado como parte das ações, das relações e das estruturas sociais. Desta forma, esse tipo de estudo permite compreender os significados de fenômenos sociais que não podem ser apenas quantificados

Aproximações teóricas sobre a negligência na infância.

A partir do levantamento bibliográfico podemos observar que grande parte das publicações sobre a negligência na infância corresponde às revistas da área da saúde. Na leitura mais detalhada dos artigos, percebe-se que a negligência aparece bastante associada aos agravos na saúde e desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes (CRUZ; ALBUQUERQUE, 2013; MALTA et al., 2016; RATES et al., 2015; MORALES et al., 2014).

Além disso, outras pesquisas se referem à frequência da negligência como uma das formas de violências mais preponderantes no ambiente familiar. Acrescenta-se ainda diálogos recorrentes sobre a proteção dos direitos de crianças e adolescentes, reflexões sobre as condições financeiras, sociais e estruturais das famílias que se encontram em situações de suposta negligência (MATA et al., 2017; PFEIFFER et al., 2011; MAGALHÃES et al., 2017; MASSONI et al., 2010).

A família tem sido enaltecida e apresentada como o melhor lugar para as crianças crescerem; em consequência, a instituição familiar tem centralidade e deve ser o foco das atenções das ações públicas. Essa nova posição em que a família se encontra, ao mesmo tempo que a privilegia, também a culpabiliza por não dar conta da tarefa de cuidar dos filhos. (CÓRDOVA; BONAMIGO, 2012, p.141).

Um estudo realizado com adolescentes de uma escola em Salvador buscou, através da história oral, refletir sobre vivências de violências intrafamiliares (MAGALHÃES et al., 2017). A pesquisa revela expressões de violências vividas durante a infância e adolescência no ambiente familiar, salientando as lógicas punitivas e agressivas que ocorrem no local que teoricamente deveria ser de proteção. Os autores também trazem a negligência e o abandono como uma das categorias de análise do referido estudo, mencionam a importância da atenção e cuidado para o crescimento e desenvolvimento sadio. Observam que “é preciso uma avaliação prévia do contexto familiar, visto que alguns casos podem tratar-se de carência de recursos econômicos, evitando assim uma classificação equivocada da negligência” (MAGALHÃES et al., 2017, p. 5).

Os discursos presentes nos textos também sugerem uma preocupação com a tipificação dos casos como negligência, sinalizando a dificuldade de sua identificação e conceituação. Problematizam-se, inclusive, as próprias condições sociais, estruturais, culturais e principalmente econômicas que impactam na oferta e manutenção do que é atribuído como cuidado. É questionada se a falta ou omissão dos mesmos, normalmente considerada como negligência familiar, não seria reflexo dos escassos investimentos nas políticas de proteção aos direitos da criança, do adolescente e de suas famílias. Mata et al. (2017) reforçam:

Salienta-se que frente à realidade brasileira, indicar intenções nos casos de negligências dos pais e responsáveis, também é evidenciar as desigualdades, na medida em que os recursos necessários para um “cuidado integral” das crianças não estão disponíveis para todas as camadas sociais. Não são poucas as famílias que vivem em situações de pobreza e miséria, por exemplo – que de forma intencional não levam os filhos à escola, pois conseguiram a vaga somente em um local longe de sua residência e perigoso; ou de maneira não intencional, não levam as crianças à escola em função de transporte escasso decorrente de ausência ou ineficiência de políticas públicas. (MATA et al., 2017, p.2885).

Muitas publicações mencionam dados de suas pesquisas que reforçam a frequência de denúncias de negligências, grande parte se refere aos órgãos de proteção como o Conselho Tutelar. Garcia e Oliveira (2017) ao analisarem aspectos de (des)proteção de crianças e adolescentes no Brasil, através dos registros da Base Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia) de 2016, encontram a negligência familiar e violação da dignidade entre as formas mais recorrentes, representaram 78% das violações. O cenário de intensidade das denúncias de negligências permanece no ano de 2017, quando ela corresponde mais de 70% dos registros do disque 100.

Embora, importantes e recorrentes, muitos debates teóricos que incluem os casos de negligências enfatizam a família, não privilegiando a sociedade e o Estado como atores indissociáveis na análise da proteção social. Outra questão preocupante também é a judicialização das práticas que envolvem a temática, tal como a suspensão ou destituição do poder familiar.

A feminização da negligência na Infância

A caracterização da negligência na infância em grande parte responsabiliza a família, mas tal direcionamento não ocorre de forma generalizada, incluindo todos os membros do grupo familiar: as situações de negligência em geral são atribuídas às mulheres. Barros et al. (2014, p 164) ressaltam que “a negligência imputada frequentemente às mulheres pobres tem um viés perverso e sexista, que muitas vezes, confirma discriminações e exclusões”. Sendo assim, algumas publicações incluem a categoria gênero em estudos de negligência no ambiente familiar. Egry et al. (2015) afirmam que:

Historicamente, as mulheres são responsáveis pelo espaço privado. Além de gerar e gestar filhos, a maternagem inclui o cuidado integral à criança durante seus primeiros anos de vida. Ainda que na atualidade possam ser constatadas mudanças que gradativamente vêm se dando nos padrões de masculinidade, os homens pouco se responsabilizam pelos filhos, especialmente, em relação a cuidados como alimentação, higiene, segurança, acompanhamento escolar e de saúde, dentre outros. A eles continua cabendo, ao menos ideologicamente, a manutenção financeira da casa e da família. (EGRY et al., 2015, p.558).

Algumas pesquisas apontam que “quanto menor a criança, mais a mulher é responsabilizada” e isso ocorre em todos os tipos de negligência (EGRY et al,, 2015, p.559), outras sinalizam que a mãe aparece como a principal violadora de direitos (GARCIA; OLIVEIRA, 2017). Mata et al. (2017, p. 2887) reforçam tal visão ao afirmarem que “na maioria dos casos, a responsabilidade de zelar e cuidar dos filhos recai sobre as ‘mães’. Aqui, muitas vezes, vemos o deslocamento da acusação de família negligente para mãe negligente”.

Dito isto, refletir sobre negligência na infância como uma forma de violência e violação de direitos requer também problematizar esses parâmetros socialmente construídos de família como provedora do cuidado e também da figura da mulher como agente principal destes cuidados. Estes modos de vida historicamente criados e perpetuados também sofrem modificações, e tais mudanças interferem na concepção do que é considerado como negligência.

Atualmente há muitas mães-chefes de família que possuem não somente a responsabilidade do cuidado com os filhos e com a casa, mas também com o próprio sustento material da família. Sendo assim, realizam jornadas duplas, triplas de trabalho e muitas vezes não possuem o apoio necessário para melhor cuidar de si e dos seus filhos.

Se por um lado as conquistas do público feminino permitiram um grande avanço para a independência e igualdade entre homens e mulheres, por outro lado, as mulheres também passaram a ter responsabilidades maiores que ainda não recebem o devido suporte e reconhecimento. E neste quadro, percebemos que se inserem algumas situações que rotulam a “mãe negligente”, aqui enquadramos a feminização da negligência na infância. Assis et at. (2009) exemplificam:

Como exemplo da importância de uma análise mais apurada, imaginemos o caso em que uma mãe não possui condições materiais para garantir a alimentação de um filho recém-nascido e, mesmo não apresentando indicativos de negligência e maus-tratos, tenha seu filho afastado do convívio familiar por decisão do colegiado do Conselho Tutelar. O registro de um fato com tal leitura irá indicar a mãe como agente violador do direito à convivência familiar e comunitária com base na argumentação da falta de condições materiais. A aplicação desta medida não atende ao preceito determinado no ECA, uma vez que, nesse contexto, caberia uma medida de encaminhamento da família aos serviços de assistência do município. No caso, a falta de condições materiais é uma questão estrutural da sociedade em que vivemos e seria incorreto indicar a mãe como agente violador. (ASSIS et al., 2009, p.187).

As pesquisas (GOMIDE et al., 2003; MATA et al., 2017) também apontam uma referência aos modelos de família burguesa, que percebem de forma diferente os papéis de homens e mulheres, o que acaba também divergindo do que é entendido como negligência materna ou paterna. Desta forma, em relação à figura paterna há uma expectativa em relação ao suporte financeiro e à figura materna todos os demais cuidados, como: vestimenta, higiene, alimentação, entre outros. Nascimento e Morgado (2015) ressaltam um fato importante, ao afirmarem que:

Quando culpabilizamos a mãe pela falta de cuidado ou por cuidados inadequados, esquecemos que a criança possui um pai também e que este é tão responsável pelo cuidado quanto à mãe e acabamos por reproduzir um preconceito de gênero que estabelece que o lugar do homem é na rua e o da mulher em casa, além disso que o cuidado é característico da mulher enquanto ao homem caberia a manutenção/sustento da casa. Entretanto, vivemos uma época em que esses padrões se inverteram e hoje é natural que homens cuidem de seus filhos e mulheres chefiem famílias. Logo, todo cuidado em abordar as famílias se faz necessário. (NASCIMENTO; MORGADO, 2015, p. 209).

O entendimento de que há diferentes modelos familiares aos poucos ganham espaço na sociedade, apesar da expressiva assimetria em diferentes dimensões que o público feminino ainda precisa enfrentar dentro desse histórico sociocultural “machista”. No que cabe ao poder familiar, por exemplo, o ECA indica que deve ser exercido de forma igual pelo pai e mãe, anteriormente no antigo “pátrio poder”, era somente o pai o detentor do poder sobre os filhos.

O Código Civil do início do século XX (1916) designava o marido como chefe da sociedade conjugal e este contava com a ajuda da mulher para o interesse comum do casal e dos filhos (art. 233, incisos I, II, III, IV e art. 234). A mulher assumia a condição de companheira, consorte e colaboradora (art 240 e seguintes). Com o advento do novo Código Civil de 2002, no art. 1565 observa-se a significativa diferença no texto jurídico ao afirmar que homens e mulheres assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família, sendo a direção da sociedade conjugal exercida pelo homem e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos (art. 1567). (GOMIDE et al., 2003, p.42).

As situações de negligência na infância são justificativas utilizadas para a destituição do poder familiar. Não são raros os casos em que crianças se encontram em instituições de acolhimento ou com outros cuidadores em função de negligências direcionadas aos seus responsáveis. Por outro lado, muitas vezes nem a própria família possui essa possibilidade de cuidado, também é ou foi negligenciada. Gomide et al. (2003) afirmam que:

As famílias que abandonam seus filhos são certamente vítimas dos mesmos processos de abandono que agora perpetuam em sua prole. Foram também negligenciadas, abusadas física e psicologicamente, desassistidas pela família e pelo Estado. (GOMIDE et al., 2003, p.44).

O afastamento de crianças e adolescentes de suas famílias por alegação de suposta negligencia deve considerar fatores “como a ausência de uma rede de apoio social ou familiar e a factual falta de conhecimento prático de alguns pais sobre o desenvolvimento e as necessidades das crianças e sobre o comportamento infantil” (CÓRDOVA; BONAMIGO, 2012, p.145). Enfim, tanto a apropriação do conceito de negligência frente as ocorrências, quanto a sua prática e consequências precisam ser refletidas e problematizadas a fim de propor melhores estratégias para a proteção social.

Azevedo (2005), na pesquisa realizada com conselheiros tutelares de Fortaleza, constata a relação da negligência com a questão de gênero, além de seu entendimento como violação de direitos, enfatiza os papéis de masculino e feminino na construção histórica que determinam a classificação do pai e da mãe como negligente, destacando que:

Os dados obtidos na pesquisa apresentaram duas formas de negligência distintas: a paterna e a materna. A primeira relacionava-se na maioria das vezes à alegação de uma falta paterna em prover financeiramente a criança ou adolescente, reforçando o entendimento do homem/pai no seu “papel único” de provedor financeiro da família; a segunda comumente se referia à falta dos outros cuidados para com os/as filhos/as, tais como: providenciar (comprar) os alimentos, dar banho, levar ao médico, não deixar na rua etc, enfatizando a “função maior” da mulher/mãe de cuidar dos/as filhos/as e da casa. (AZEVEDO, 2005, s.p).

Contudo, é importante colocarmos em pauta na discussão de negligência na infância, o lugar dessa mulher/mãe. É necessário, assim como Barros et al. (2014) salientam, a desconstrução da mãe como a única responsável pelos cuidados com as famílias e filhos, cumprindo somente suas “obrigações”, bem como a visão de “super pai” quando o mesmo cuida dos filhos.

Considerações finais

A análise das publicações revela que há uma infinidade de contrapontos que circulam a problemática da negligência, no que diz a respeito à sua própria definição e condicionamento da responsabilidade. É necessário um olhar mais amplo sobre a negligência na infância, fenômeno cuja ocorrência é muito direcionada a um público específico – famílias de classe populares, principalmente mães – mulheres negras. A atribuição de casos como negligência é perpetrada por “uma lógica ambígua e confusa mais permeada de acusações do que visando – de fato – a proteção da criança que sofre negligência” (MATA, 2016, p.111).

Além disso, as discussões não privilegiam a criação ou efetivação de políticas públicas que poderiam auxiliar as famílias e seus filhos no sentido de enfrentar situações associadas à negligência, refletindo sobre ações que fortaleçam a autonomia, protagonismo e resiliência dos distintos arranjos familiares.

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