Assistência estudantil como política de proteção social: uma possibilidade de seguridade social ampliada e intersetorial

Cassia Engres Mocelin
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil

Assistência estudantil como política de proteção social: uma possibilidade de seguridade social ampliada e intersetorial

O Social em Questão, vol. 22, núm. 45, pp. 239-260, 2019

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo: Este artigo, de revisão teórica e bibliográfica, discute a política de assistência estudantil como forma de proteção social, ancorada à noção de seguridade social ampliada e intersetorial. Para tanto, questiona: Em que medida a política de assistência estudantil pode ser considerada uma forma de proteção social? Como ela articula o direito à assistência social e o direito à educação? Compreende-se a assistência estudantil como a dimensão assistencial da política de educação. Na conformação atual, apresenta-se focalizada, mínima, exigindo condicionalidades e contrapartidas. Por isso, a necessidade da defesa do seu caráter universal vinculado à perspectiva da garantia de direto

Palavras-chave: Assistência estudantil, Assistência social, Ensino superior, Proteção social, Seguridade social.

Assistência estudantil como política de proteção social: uma possibilidade de seguridade social ampliada e intersetorial

Cassia Engres Mocelin1

Resumo

Este artigo, de revisão teórica e bibliográfica, discute a política de assistência estudantil como forma de proteção social, ancorada à noção de seguridade social ampliada e intersetorial. Para tanto, questiona: Em que medida a política de assistência estudantil pode ser considerada uma forma de proteção social? Como ela articula o direito à assistência social e o direito à educação? Compreende-se a assistência estudantil como a dimensão assistencial da política de educação. Na conformação atual, apresenta-se focalizada, mínima, exigindo condicionalidades e contrapartidas. Por isso, a necessidade da defesa do seu caráter universal vinculado à perspectiva da garantia de direto.

Palavras-chave

Assistência estudantil; Assistência social; Ensino superior; Proteção social; Seguridade social.

Student assistance as a social protection policy: An extended and intersectoral social security possibility

Abstract

This article, considered as a theoretical and bibliographical review, discusses the student assistance policy as a form of social protection, anchored in the concept of extended and intersectoral social security. For this, it questions: To what extent can the student assistance policy be considered a form of social protection? How does it articulate the right to social assistance and the right to education? Student assistance is understood as the assistance dimension of education policy. In the current conformation, it is focused, minimal, and it requires conditionalities and counterparts. Therefore, there is the need to defend its universal character with the prospect of right guarantee.

Keywords

Student Assistance; Social Assistance; Higher Education; Social Protection; Social Security.

Artigo recebido: maio de 2019

Artigo aceito: julho de 2019

Introdução

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/1988) trouxe uma nova concepção de proteção social, ampliando-a para além da vinculação com o mercado de trabalho formal. Introduz a perspectiva de Seguridade Social abarcando as políticas sociais de saúde, previdência social e assistência social, instituindo-as como direitos sociais e dever do Estado (COUTO, 2010). No tocante à saúde, o seu acesso é universal, a previdência social restringe-se aos indivíduos que realizam suas contribuições e, por sua vez, a assistência social destina-se a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social.

Do mesmo modo, a CF/1988 colocou a educação também como um direito social. No entanto, especifica o dever do Estado principalmente no referente ao seguinte: à educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade; à educação infantil, em creche e pré-escola às crianças de até 5 (cinco) anos; ao atendimento ao educando em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (BRASIL, 1988).

Dessa forma, o ensino superior no Brasil não figura como um dever do Estado, portanto não é tido como um direito do cidadão. Isso ajuda a explicar os baixos índices de acesso da população a esse nível de ensino, caracterizando-o historicamente como elitizado. Por isso, o acesso ao ensino superior público e gratuito neste país deve ser bandeira de luta de diversos movimentos sociais, pois, embora as recentes políticas de democratização do seu acesso (Reuni, Prouni, política de cotas), o Brasil possui 87,9% de participação privada no ensino superior2. Ou seja, há uma privatização da educação superior aliada a um processo de mercantilização desse nível de ensino, ancorados num processo de contrarreforma (LIMA, 2007).

Embora o sistema de proteção social seja, a priori, compreendido por meio das políticas de seguridade social, principalmente da assistência social, existe também um entendimento de seguridade social ampliada e intersetorial, o que inclui outras políticas sociais como educação, habitação, cultura, esporte e lazer. Tal perspectiva pressupõe um olhar ampliado acerca dos sujeitos em suas múltiplas dimensões, a superação da segmentação das políticas sociais, pois compreende os limites e as potencialidades de atuação de cada política social e uma articulação ora intersetorial, ora interinstitucional.

Com base nesses pressupostos iniciais, o presente artigo, a partir de uma revisão teórica e bibliográfica, discute a política de assistência estudantil como uma forma de proteção social, ancorada à noção de seguridade social ampliada e intersetorial. Nesse sentido, algumas questões se fazem necessárias a fim de guiar a reflexão. São elas: Em que medida a política de assistência estudantil pode ser considerada uma forma de proteção social? Como ela articula o direito à assistência social e o direito à educação?

Para dar conta dessa abordagem, o texto está organizado em três partes. Na primeira, discute-se a proteção social no capitalismo; na segunda, a discussão centra-se na política de assistência estudantil em sua trajetória socio-histórica e conformação atual; por fim, tensiona-se a assistência estudantil como política de assistência social, logo, como seguridade social ampliada e intersetorial.

Breves apontamentos acerca da trajetória da Proteção social

De acordo com Di Giovanni (2008), a literatura demonstra que todas as sociedades, sejam elas antigas, sejam modernas ou contemporâneas, desenvolveram e continuam a desenvolver algum sistema de proteção social, que pode ser extremamente rústico ou com altos níveis de sofisticação organizacional. Tal proteção tem sido exercida inicialmente pelas famílias, mas também por instituições mais complexas e que orbitam na esfera do Estado. O autor define como sistemas de proteção social as formas mais ou menos institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger seus membros das vicissitudes da vida natural ou social, como a velhice, a doença, assim como as privações.

No entendimento de Yazbek (2018), os mecanismos de proteção social dos indivíduos (desenvolvidos pelas famílias, igrejas e comunidades) são profundamente modificados quando a questão social3 irrompe a cena política no início do processo de industrialização, em virtude do crescente pauperismo dos trabalhadores. Tal situação favoreceu a consciência proletária da classe trabalhadora, que passou a lutar e reivindicar por melhores condições de trabalho e proteção social, requerendo a intervenção e a responsabilidade do Estado por meio de respostas institucionalizadas, configurando o nascimento da política social. Assim, a existência de políticas sociais tem relação com o surgimento e a consolidação da sociedade burguesa, ainda que não em seus primórdios, mas quando se reconhece a questão social inerente a esse sistema (BEHRING, 2006).

No Brasil, por muito tempo a proteção social teve sua expressão e seu desenvolvimento nas instituições religiosas, como as Santas Casas de Misericórdia, mas também por meio das famílias e das comunidades, como os quilombos que foram importantes na proteção aos escravos. Com o fim do Brasil colonial e a constituição de um Estado-nação com a República, a proteção social sofre modificações, pois o movimento operário se constitui no país pondo a questão social em cena na década de 1930.

Desse período em diante, emerge um sistema de proteção social “seletivo e distante de um padrão universalista”4 (YAZBEK, 2018, p. 96), com um caráter de dualidade, destinado, por um lado, aos trabalhadores e, por outro, aos pobres sem vínculo com o mercado formal de trabalho. Com isso, o mesmo sistema privilegiou os trabalhadores formais em decorrência do desenvolvimento do processo de industrialização por substituição de importações que estava em curso no Brasil na década de 1930, modificando o modelo agrário-exportador para o urbano-industrial. Quanto aos pobres, a eles sempre foram destinadas legislações punitivas e/ou com um forte apelo religioso, estando sempre “ligado a práticas clientelistas, assistemáticas, de caráter focalista e com traços conservadores, sendo impossível articulá-lo com a noção de direito social” (COUTO, 2010, p. 168).

É somente com a CF/1988 que novas bases para o sistema de proteção social brasileiro são colocadas, por meio do reconhecimento dos direitos sociais no Brasil, os quais “são fundamentados pela ideia de igualdade, uma vez que decorrem do reconhecimento das desigualdades sociais gestadas na sociedade capitalista” (COUTO, 2010, p. 48), além disso, “possuem um caráter redistributivo” (COUTO, 2010, p. 48) e “sua materialidade dá-se por meio de políticas sociais públicas executadas na órbita do Estado” (COUTO, 2010, p. 48).

Com isso, constitui-se um modelo de proteção social não contributivo, ou seja, em que não se exige pagamento para a oferta do serviço, alicerçado na CF/1988 por meio da seguridade social que alcança o campo de políticas de Estado. Uma política de proteção social busca a segurança, a preservação, o respeito e a dignidade de todos os cidadãos e contém o conjunto de direitos civilizatórios de uma sociedade para com seus membros (SPOSATI, 2009). Por isso, a proteção social:

[...] supõe, antes de tudo, tomar a defesa de algo, impedir sua destruição, sua alteração. A ideia de proteção contém um caráter preservacionista – não da precariedade, mas da vida –, supõe apoio, guarda, socorro e amparo. Esse sentido preservacionista é que exige tanto a noção de segurança social como a de direitos sociais. (SPOSATI, 2009, p. 21).

Nesse sentido, é necessário levar em conta que, ao longo da vida diferentes tipos de proteções sociais serão requeridas, assim como diferentes sujeitos a demandarão, como crianças, adolescentes, gestantes, nutrizes, idosos, mulheres, negros, indígenas, quilombolas, ciganos, povos ribeirinhos, pessoas em situação de rua, desempregados/as.

Embora constitucionalmente tenha-se definido um sistema de proteção social, o termo proteção social pode abrigar distintas significações, motivo pelo qual necessita sempre estar adjetivado (PEREIRA, 2016). Em seu estudo, Pereira (2016) agrupa, como recurso didático, as teorias e ideologias que influenciam os estudos e as práticas da proteção social no capitalismo. Faz isto sob três diferentes matrizes: a matriz residual, a matriz social-democrata e matriz socialista.

Na matriz residual, a proteção social deve ser focalizada, ínfima, utilizar de contrapartidas e condicionalidades, além de estar apartada da noção de direito. Ademais, ela nunca cobrirá o mesmo que o trabalho cobriria, pois, para essa matriz, a proteção social só é necessária aos indivíduos que não obtiveram por conta própria e por seus méritos o sucesso na obtenção dos bens necessários à sua reprodução. Com isso, também, ocorre uma individualização e responsabilização dos indivíduos pelas suas condições de vida e de trabalho e pelo acesso ou não a elas. A existência de uma proteção social emanada do Estado pode contribuir para a dependência dos beneficiários, haja vista que só o trabalho possibilita o status de cidadão. Tal forma de proteção social desenvolve-se nos países onde a ideologia burguesa constitui-se nos principais lócus de sua reprodução e podem ser agrupas nesta matriz as correntes da Teoria Funcionalista e a Ideologia da Nova Direita (PEREIRA, 2016).

Em relação à matriz social-democrata ou institucional, a autora abarca como componentes desta matriz a Teoria da Cidadania, a Ideologia da Via Média e a Administração Social. Uma de suas principais características é a convicção na compatibilidade entre amplas medidas de proteção social e a existência do sistema capitalista de produção. Os defensores dessa matriz reconhecem a essencialidade da proteção social assim como reconhecem o Estado como seu principal provedor. Como exemplo dessa matriz a autora aponta que os países nórdicos desenvolveram esse tipo de proteção social alicerçada no Estado de bem-estar social. “A legitimidade estatal na oferta desse tipo de proteção aos cidadãos nórdicos é resultado de sua habilidade de atender à sociedade como um todo, satisfazendo universalmente demandas variadas” (PEREIRA, 2016, p. 261). Com isso, a universalização gera o consenso, categoria-chave na matriz social-democrata. Nesse sentido, o papel da proteção social na Europa do norte é garantir a segurança social, em contraposição às situações de insegurança social, e não de desproteção social. A proteção social possui como principais pilares o pragmatismo, o suposto humanismo, o individualismo exacerbado e o apreço pela liberdade negativa.

A partir desse estudo, a proteção social é entendida no seu caráter contraditório. Se na matriz social-democrata a proteção social permite as primeiras possibilidades de atendimento às necessidades sociais da classe trabalhadora de forma integral, gratuita e universalizada, mediadas com a intervenção do Estado, ao tomar como seu fim último a preservação e a manutenção do sistema capitalista, ela assemelha-se, ainda que com muitas diferenças, à matriz residual. Nas palavras da autora, “apesar da possibilidade de atender demandas e necessidades sociais, graças à sua natureza contraditória, a proteção social capitalista é estruturalmente limitada” (PEREIRA, 2016, p. 315).

Em movimento antagônico, a matriz socialista persegue a superação do capitalismo e uma nova ordem societária. Ao analisar essa matriz, Pereira (2016) opta pelas abordagens do Socialismo Democrático e do Marxismo, embora diga que não se possa falar em socialismo, mas sim em socialismos. Nesta abordagem, a proteção social é vista de maneira obrigatória, universal, pública, gratuita e, principalmente, que seja compatível com a emancipação humana. Esta, por sua vez, só será alcançada em seu pleno sentido em uma sociedade pós-capitalista, com a supressão de todas as formas de opressão inerentes à lógica do capital, bem como a perspectiva marxiana aponta.

Daí a incompatibilidade substancial do pensamento marxiano e marxista com a defesa de formas residuais de proteção social; com a focalização; com rígidos e excludentes critérios de elegibilidade; com programas, serviços e benefícios estigmatizantes; com condicionalidades ou contrapartidas que infantilizam ou humilham o beneficiário; com políticas de ativação para a simples inserção no mercado de trabalho assalariado capitalista; com programas de geração de renda ou educacionais alienantes; enfim, com programas integrativos, funcionais ao capitalismo e o mercado, baseados em seus valores individualistas, coercitivos e competitivos. (PEREIRA, 2016, p. 324).

Na atualidade, as políticas de proteção social estão cada vez mais condicionadas e focalizadas, adstritas à lógica do workfare e das contrapartidas dos beneficiários. Tais pressupostos estão alicerçados nas mudanças no mundo do trabalho e na esfera da produção advindas da hegemonia liberal-financeira, se traduzindo em um desmonte dos direitos civis, políticos e sociais e alterando os sistemas de proteção social (YAZBEK, 2018).

Essas modificações societárias decorrem do avanço do capital sobre as políticas sociais. Para Marques (2018), o capital financeiro além de romper com a relação capital/trabalho construída no chamado Welfare State, não possui interesse em manter políticas sociais organizadas e financiadas pelo Estado, pois sua rentabilidade não advém do trabalho.

Tal conjuntura possui rebatimentos também na política de educação, sobretudo a partir da sua inserção na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), demonstrando a concepção de educação como mercadoria. Aliada a isso, a assistência estudantil igualmente apresenta-se em sua atual conformação na lógica do workfare, o que será discutido a seguir.

Trajetória histórica da política de assistência estudantil e sua conformação atual

Terão sido as “repúblicas” da Imperial Cidade de Ouro Preto, antiga Vila Rica e capital das Minas Gerais, que, no início do séc. XIX abrigavam os estudantes da Escola de Farmácia e da Escola de Minas? Ou, na década de [19]30, a criação dos primeiros programas de alimentação e moradia universitária, efetivados como política somente nos anos 1970, com a criação do Departamento de Assistência Estudantil (DAE) do Ministério da Educação? Ou foram as casas-comunidades, lugar de refúgio e resistência na fase da ditadura militar, que acabaram por desaguar na fundação, em 1987, da SENCE – Secretaria Nacional de Casas de Estudantes? (ANDRÉS, 2011, p. 3).

Estas questões apontam que não se sabe ao certo qual foi a experiência pioneira na trajetória histórica da política de assistência estudantil no Brasil. No entanto, suas iniciativas caminharam pari passu com a institucionalização do ensino superior público no país, que ocorreu oficialmente com a chegada da família real ao Brasil em 1808. No entanto, as primeiras universidades brasileiras foram criadas somente no início do século XX.

Para Imperatori (2017), a primeira ação de assistência estudantil foi a inauguração da Casa do Estudante Brasileiro em 1928, localizada em Paris, durante o governo de Washington Luís. Destinava-se a auxiliar os estudantes brasileiros, filhos de famílias da elite brasileira, que estudavam na capital francesa. Com isso, identifica-se uma assistência estudantil voltada para a elite/burguesia.

Já no entendimento de Silveira (2012, p. 52), a primeira ação de assistência estudantil ocorre em 1930, tendo como marco a construção da Casa do Estudante do Brasil, no Rio de Janeiro. “Era um casarão com três andares que possuía um restaurante popular frequentado por estudantes ‘carentes’ e membros da comunidade que se faziam passar por alunos, para poderem realizar as refeições na casa”.

Ainda na década de 1930, a Reforma Francisco Campos instituiu a Lei Orgânica do Ensino Superior que previa medidas de providência e beneficência como bolsas de estudos aos estudantes reconhecidamente pobres. Constituindo-se a primeira ação regulamentada pelo Estado da política de assistência estudantil brasileira. (SILVEIRA, 2012; IMPERATORI, 2017).

Tal concepção de assistência aos estudantes foi incorporada na Constituição da República de 1934 em seu artigo 157, onde se lê: “§ 2º - Parte dos mesmos fundos se aplicará em auxílios a alunos necessitados, mediante fornecimento gratuito de material escolar, bolsas de estudo, assistência alimentar, dentária e médica, e para vilegiaturas” (BRASIL, 1934). Também as Constituições de 1946 e 1967, por meio dos artigos 172 e 169, respectivamente mantiveram o texto: “Cada sistema de ensino terá obrigatoriamente serviços de assistência educacional que assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência escolar” (BRASIL, 1946 e 1967).

A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), criada em 1961, trouxe, em seu Capítulo XI “Da Assistência Social Escolar”, significando que a assistência estudantil, então assistência social escolar, passava a inserir-se na política de educação. Assim se lê na respectiva lei:

Art. 90. Em cooperação com outros órgãos ou não, incumbe aos sistemas de ensino, técnica e administrativamente, prover, bem como orientar, fiscalizar e estimular os serviços de assistência social, médico-odontológico e de enfermagem aos alunos.

Art. 91. A assistência social escolar será prestada nas escolas, sob a orientação dos respectivos diretores, através de serviços que atendam ao tratamento dos casos individuais, à aplicação de técnicas de grupo e à organização social da comunidade. (BRASIL, 1961).

Por sua vez, a LDBEN de 1971, em um contexto de ditadura militar, que enfrentava a questão social por meio do binômio assistência-repressão, dispõe, em seu Artigo 62, que:

§ 1º Os serviços de assistência educacional de que trata este artigo destinar-se-ão, de preferência, a garantir o cumprimento da obrigatoriedade escolar e incluirão auxílios para a aquisição de material escolar, transporte, vestuário, alimentação, tratamento médico e dentário e outras formas de assistência familiar. (BRASIL, 1971).

Na década de 1970 também houve a criação do Departamento de Assistência ao Estudante (DAE), vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, implantando programas de assistência aos estudantes como Bolsas de Trabalho e Bolsas de Estudo. “No fim dos anos 1980, o DAE foi extinto, e as ações de assistência ao estudante ficaram fragmentadas em cada instituição de ensino. A assistência passou a ser composta por ações escassas e pulverizadas” (IMPERATORI, 2017, p. 4).

Como é possível observar, a falta de mecanismos regulatórios e institucionais em relação à assistência estudantil não impossibilitou que tais ações fossem executadas desde os primórdios do século XX em grande parte das instituições públicas de ensino superior no Brasil. Entretanto, a preocupação, por parte dos gestores, com as políticas de promoção e apoio aos estudantes e a necessidade de definição de políticas de ação por parte do Ministério da Educação impuseram a necessidade de criação em 1987 do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis, o Fonaprace.

Na sequência, a CF/1988, no Artigo 206, dispõe que o ensino será ministrado com base em alguns princípios, dentre eles o da “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (BRASIL, 1988). Esse mesmo princípio foi corroborado no Artigo 3.o da LDBEN de 1996. Contudo, a institucionalização de uma política de assistência estudantil pelo Estado ainda permaneceria a ser demandada no período posterior a CF/1988.

A fim de propor uma política de Estado de assistência estudantil, o Fonaprace deparou-se com a insuficiência de dados acerca da realidade social e concreta dos estudantes das instituições federais de ensino superior (IFES). Diante disso, entre 1996 e 1997 foi realizada a primeira pesquisa do perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de graduação das IFES.

Com base nos resultados dessa pesquisa, o Fonaprace elaborou a minuta do Plano Nacional de Assistência Estudantil e, ao final de 1999, solicitou a sua inclusão junto ao Plano Nacional de Educação (PNE), tendo em vista que, na proposta original do governo federal, nada constava relacionada à assistência estudantil (FONAPRACE, 2012; VASCONCELOS, 2010). A solicitação foi atendida, possibilitando a inserção da assistência estudantil no PNE de 2001, por meio da meta 34 que objetivava “estimular a adoção, pelas instituições públicas, de programas de assistência estudantil, tais como bolsa-trabalho ou outros destinados a apoiar os estudantes carentes que demonstrem bom desempenho acadêmico” (BRASIL, 2001, p. 79). Ou seja, retoma-se o velho discurso da assistência social do pobre bom e merecedor do auxílio, neste caso o estudante carente e com boas notas.

Entre 2003 e 2004, buscando atualizar os dados, o Fonaprace realizou a II Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das IFES brasileiras, o que subsidiou o II Plano Nacional de Assistência Estudantil lançado e adotado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) em agosto de 2007.

No rastro desse movimento, em dezembro daquele ano foi publicada a Portaria Normativa n.º 39, instituindo o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), que posteriormente foi regulamentado por meio do Decreto n.º 7.234, de 19 de julho de 2010, representando um marco histórico e de importância fundamental para essa política social.

O PNAES tem como objetivos ampliar as condições de permanência dos discentes na educação superior pública federal, democratizar o ensino, minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão da educação superior, reduzir as taxas de retenção e evasão e contribuir para a promoção da inclusão social pela educação (BRASIL, 2010). No Artigo 3o, prevê que as ações de assistência estudantil sejam desenvolvidas nas áreas:

I - moradia estudantil; II - alimentação; III - transporte; IV - atenção à saúde; V - inclusão digital; VI - cultura; VII - esporte; VIII - creche; IX - apoio pedagógico; e X - acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação. (BRASIL, 2010, p. 1).

Em relação ao público-alvo da assistência estudantil, o Artigo 5o estabelece que “serão atendidos no âmbito do PNAES prioritariamente estudantes oriundos da rede pública de educação básica ou com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio, sem prejuízo de demais requisitos fixados pelas instituições federais de ensino superior” (BRASIL, 2010, p. 1).

Dessa forma, a assistência estudantil já nasce focalizada e residual, destinada aos estudantes pertencentes à classe trabalhadora e, por essa condição, enfrentando, nas suas condições objetivas de vida, dificuldades para a permanência no ensino superior – características herdadas do processo de institucionalização da assistência social como um direito na sociedade brasileira. Ademais, importa destacar que o decreto citado possibilita às IFES instituírem outros critérios de elegibilidade além do recorte de renda per capita já definido, o que na prática se traduz como mais impeditivos de acesso por parte dos/as estudantes e uma maior focalização.

Ao mesmo tempo em que a assistência estudantil institucionalizava-se como política, o processo de reforma universitária a conta-gotas estava em curso no Brasil, levando em conta as recomendações dos organismos multilaterais, principalmente as do Banco Mundial e da OCDE, desaguando na reestruturação do ensino superior público e privado brasileiro. Cislaghi e Silva (2012) apontam que as reformas neoliberais, a partir das formulações do Banco Mundial para as universidades brasileiras, possuem implicações para a assistência estudantil. Isto porque tal organismo preconiza a redução dos altos gastos com serviços não educacionais como alojamento, alimentação e outros serviços subvencionados pelo Estado para os/as estudantes.

Neste sentido, faz-se necessário compreender que a implementação da assistência estudantil nas IFES, orientada pelo discurso neodesenvolvimentista, baseia-se na lógica dos mínimos sociais, onde o Estado a enxerga como via necessária para dar respostas aos interesses do grande capital, aumentando os índices de escolaridade dos países periféricos (NASCIMENTO, 2012). Com isso, está posta a contradição inerente à política de assistência estudantil, que, assim como todas as outras, tem seu fim último beneficiar o capital, mas também possibilitar a proteção social dos/as estudantes.

A assistência estudantil como política de proteção social a partir da seguridade social ampliada e intersetorial

Como é possível observar, pela primeira vez na história dos direitos sociais uma Constituição da República trouxe a assistência social como política social ancorada à noção de seguridade social (COUTO, 2010). A mesma Carta Magna definiu a educação também como direito social. Inaugurou um novo padrão de proteção social afirmativo de direitos superando as práticas assistencialistas e clientelistas até então vigentes.

Para Sposati (2009, p. 15), ao se “adotar a concepção de que a assistência social é uma política que atende determinadas necessidades de proteção social e é, portanto, o campo em que se efetivam as seguranças sociais como direitos”, é possível pensar a assistência estudantil articulando a política de assistência social e educação com o intuito de prover seguranças socioeducacionais para a permanência dos/as estudantes.

A proteção social na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) deve garantir as seguintes seguranças: de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida; e de convívio ou vivência familiar. Vê-se que tais seguranças também são inerentes ao contexto escolar e universitário.

Por segurança de rendimentos, a PNAS (2004) pressupõe a garantia que todos tenham condições básicas para a sua reprodução social por meio de uma forma monetária que garanta a sobrevivência. Essa perspectiva monetária – materializada por meio de auxílios financeiros e benefícios para estudantes em situação de vulnerabilidade – pode ser vista como uma das primeiras iniciativas de assistência estudantil: a bolsa trabalho.

Atualmente, muitas IFES transferem recursos financeiros aos estudantes em forma principalmente de bolsas, tornando-se alvo de críticas. A primeira delas se deve ao fato de estas instituições vincularem o pagamento da bolsa em contrapartida por horas de trabalho do/a estudante, denotando o que Pereira (2016, p. 37) define como workfare, ou seja, uma noção do ideário neoliberal que vincula o “bem-estar em troca de trabalho e de contrapartidas, regido pela meritocracia em contraposição ao direito”.

Outra destas críticas reside na transferência de recursos financeiros aos/as estudantes, pois, além de fomentar um processo de bolsificação da assistência estudantil, o Estado desresponsabiliza-se pelos serviços de caráter contínuo e permanente. Isso pode ser observado com a escolha da “bolsa moradia” que favorece o capital imobiliário em detrimento da construção de moradias estudantis ancoradas como um direito dos/as estudantes. Para Cislaghi e Silva (2012) quando as universidades optam pelas bolsas, elas atribuem um caráter eminentemente assistencial e focalizado, em contraposição à necessidade de a assistência estudantil ter princípios de atendimento universais.

No que se refere à segurança de acolhida, a PNAS (2004, p. 31) diz que ela “opera com a provisão de necessidades humanas que começa com os direitos à alimentação, ao vestuário e ao abrigo, próprios à vida humana em sociedade”. Ou seja, opera e incide sobre as condições materiais de vida da população5. No que tange às ações de assistência estudantil que vão ao encontro dessa segurança de acolhida, há o auxílio alimentação por meio dos restaurantes universitários, a moradia estudantil através de casas de estudantes, o auxílio transporte, o auxílio creche e auxílio material pedagógico.

Por fim, a segurança da vivência familiar ou a segurança do convívio para a PNAS (2004) supõe a não aceitação de situações de reclusão, de situações de perda das relações. Nesse sentido, os serviços de assistência estudantil desenvolvem espaços de escuta, plantões sociais, democratização de informações acerca de direitos e ofertas de serviços da rede de proteção social do território na qual à instituição está inserida. Junto disso, concretizam-se ações nas áreas da cultura, artes, esportes, lazer, pois inúmeros são os/as estudantes que necessitam sair de sua cidade de origem para poder cursar a universidade e, com isso, fragilizam os vínculos familiares e comunitários, requerendo do/a estudante um processo de (re)territorialização.

Ainda na perspectiva do direito ao convívio, a assistência estudantil deve fomentar o protagonismo político e o exercício de cidadania dos/as estudantes por meio do apoio à participação em eventos estudantis e/ou científicos, ao movimento estudantil e aos diversos coletivos criados nas universidades. Tais organizações coletivas estudantis constituem-se como mecanismos de enfrentamento e resistência às diversas violações de direitos e auxiliam na construção, restauração e no fortalecimento de laços de pertencimento, minimizando situações de ruptura e isolamento social.

Segundo o Fonaprace (1997, p. 38), a assistência social “expressa-se na política educacional procurando equacionar um atendimento compatível com as peculiaridades das condições sociais dos estudantes, provendo-os de instrumentos mínimos para a fruição dos bens culturais e educacionais”. Além disso, a assistência estudantil se conecta a educação, pois incorpora o caráter assistencial da política de educação, haja vista que toda política social possui uma dimensão que é assistencial.

Além dessa característica assistencial, cada política social tem limites, o que requer a dimensão intersetorial. Esta se constitui juntamente com a territorialização e a descentralização nos principais pressupostos da PNAS. Nessa perspectiva, a intersetorialidade é substancial para a assistência social e para as demais políticas sociais, pois nenhuma possui resolutividade plena em si mesma. Por isso deve ser construída uma relação de complementaridade entre as políticas sociais (SPOSATI, 2009).

A intersetorialidade apresenta-se como uma ferramenta de articulação entre as políticas sociais que objetivam o desenvolvimento de ações conjuntas destinadas à proteção social, mas também ao enfrentamento das expressões da questão social. Por isso, torna-se imprescindível pensar a assistência estudantil como política de proteção social, como uma segurança para que as situações de retenção, evasão e abandono não venham a ocorrer em razão das condições concretas de vida dos/as estudantes.

Assim, como política de assistência, a assistência estudantil faz parte de um esforço intersetorial para minimizar as desigualdades sociais decorrentes do capitalismo, além de fortalecer os processos de ingresso e permanência das camadas subalternas da nossa sociedade nas universidades.

Tomar a assistência estudantil ancorada à assistência social, e com isso entendê-la como seguridade social ampliada e intersetorial é assumi-la como direto dos/as estudantes e como dever do Estado, requerendo a luta pelo seu caráter universal. Em um processo de contrarreforma universitária, ela se faz fundamental para a permanência dos/as estudantes, tendo em vista que em sua maioria advém da classe trabalhadora6.

Desse modo, o contexto atual de recrudescimento das desigualdades sociais e de retirada de direitos atravessa também os muros das universidades. Essas instituições não estão imunes a tal conjuntura, portanto seus/suas estudantes necessitarão de mecanismos de proteção social, donde a assistência estudantil apresenta-se como o de maior abrangência e cobertura.

Considerações finais

De acordo com o exposto até aqui, é preciso considerar que a proteção social existente nos marcos do sistema capitalista é sempre limitada e condicionada à manutenção e preservação deste sistema desigual. Uma proteção social plena que esteja ancorada na emancipação social dos indivíduos será construída e concretizada em uma sociedade para além da lógica do capital. Isto é reconhecer os limites da proteção social na realidade.

Muito embora existam tais limites, a proteção social também carrega em si não a responsabilidade de transformação da sociedade – esta é tarefa imutável da classe trabalhadora. Ela carrega, isto sim, as possibilidades de melhores condições de vida e de trabalho, de atendimento das necessidades sociais, ainda que de forma limitada, dentro da sociedade em que vivemos.

Por isso, a assistência estudantil, como proteção social ancorada à noção de seguridade social ampliada e intersetorial, possui um caráter contraditório como toda e qualquer política social e pública. Ela emana e está condicionada às políticas de assistência social e de educação principalmente. Esta, por sua vez, está destinada a ser uma educação instrumental, pragmática, formadora de mão de obra ao capital (homo faber), em vez de ser uma educação emancipadora e humanizante (homo sapiens).

Diante disso, compreendemos a assistência estudantil como política de proteção social relacionada à matriz social-democrata, que possui como uma de suas principais características o reconhecimento do Estado como provedor e a noção de segurança social, muito embora ela ainda não se constitua como política de Estado. Desta feita, opomo-nos à atual conformação da política de assistência estudantil focalizada, mínima e com a exigência de condicionalidade e contrapartidas, estando alinhado à matriz residual.

Por fim, defendemos uma assistência estudantil de caráter universal, tendo em vista, além da perspectiva da garantia do direito, o perfil e as necessidades sociais dos/as estudantes das IFES brasileiras, como bem apontaram as pesquisas do Fonaprace.

Referências

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