Manifestações das desproteções sociais: relações entre o neoliberalismo e a (des)proteção social
Manifestações das desproteções sociais: relações entre o neoliberalismo e a (des)proteção social
O Social em Questão, vol. 22, núm. 45, pp. 261-278, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo: O contexto neoliberal que a sociedade capitalista se insere no contemporâneo possui fortes implicações no campo da Proteção Social. A partir disto, é fundamental discutir e dar visibilidade as manifestações das desproteções sociais geradas por este sistema no campo da Assistência Social. Desta forma, através de um levantamento bibliográfico a respeito da temática, este artigo busca dialogar com o conceito de desproteção social e discutir as suas manifestações no cotidiano dos serviços do Sistema Único de Assistência Social, no intuito de proporcionar uma reflexão sobre o assunto e também um olhar para a responsabilidade do Estado frente a estas situações.
Palavras-chave: Desproteção social, Assistência social, Neoliberalismo, Proteção social, Inseguranças socioassistenciais.
Manifestações das desproteções sociais: relações entre o neoliberalismo e a (des)proteção social
Luiza Maria Escardovelli Alcântara1
Fabiana Giannetti Duarte2
Resumo
O contexto neoliberal que a sociedade capitalista se insere no contemporâneo possui fortes implicações no campo da Proteção Social. A partir disto, é fundamental discutir e dar visibilidade as manifestações das desproteções sociais geradas por este sistema no campo da Assistência Social. Desta forma, através de um levantamento bibliográfico a respeito da temática, este artigo busca dialogar com o conceito de desproteção social e discutir as suas manifestações no cotidiano dos serviços do Sistema Único de Assistência Social, no intuito de proporcionar uma reflexão sobre o assunto e também um olhar para a responsabilidade do Estado frente a estas situações.
Palavras-chave
Desproteção social; Assistência social; Neoliberalismo; Proteção social; Inseguranças socioassistenciais.
Manifestations of social unprotections: relations between neoliberalism and (dis) social protection
Abstract
The neoliberal context that capitalist society is inserted in the contemporary has strong implications in the field of Social Protection. From this, it is fundamental to discuss and give visibility to the manifestations of the social unprotections generated by this system in the field of Social Assistance. Thus, through a bibliographical survey on the subject, this article seeks to dialogue with the concept of social deprotection and discuss their manifestations in the daily life of the services of the Single System of Social Assistance, in order to provide a reflection on the subject and also understand the State's responsibility in these situations.
Keywords
Social deprotection; Social assistance; Neoliberalism; Aocial protection; Social-welfare insecurities.
Artigo recebido: maio de 2019
Artigo aceito: julho de 2019
Introdução
A partir da Constituição Federal de 1988 ficou estabelecida que as políticas de saúde, assistência social e previdência social integrariam a composição da política de Seguridade Social no Brasil. Este representa um marco legal importantíssimo para os cidadãos tendo em vista que a proteção social foi ampliada para além do âmbito pessoal ou individual, e independentemente da questão do assalariamento, reconhecendo, desta forma, que o Estado tem responsabilidade de promover a proteção social para todas as pessoas (ALMEIDA, 2016; BRASIL, 1988; SPOSATI, 2009).
Neste caminho, entende-se que as políticas que compõem a Seguridade Social são consideradas legalmente como uma certeza de proteção social, ou seja, uma segurança social e, portanto, devem promover a garantia de direitos e de condições de vida dignas para a população brasileira por meio das políticas sociais públicas.
Embora este artigo se destine a tratar a proteção social no âmbito da Política Nacional de Assistência Social, é importante esclarecer que estando a proteção social localizada no campo da Seguridade Social, ela não se limita a apenas uma política social pública ou a política de assistência social. Demarcar isto é indispensável tendo em vista que há um senso comum que conecta imediatamente a questão da proteção social à política de assistência social, como se somente uma política fosse capaz de proteger e garantir todos os direitos sociais básicos e fundamentais da população (BRASIL, 2013; SPOSATI, 2018).
Partindo deste pressuposto, é importante contextualizar e elucidar o que vem a ser denominado ou considerado proteção social, tendo em vista que há um conjunto de políticas destinada a esta tarefa e exatamente por isto, faz se necessário que a ideia da proteção social possa se transversalizar por entre estas políticas para que de fato haja um papel protetivo por parte do Estado.
Embora a proteção social esteja constantemente sendo reduzida na contemporaneidade a mera condição de acesso a renda e, portanto, um objeto de compra e venda (SPOSATI, 2010 apud TORRES, 2016); é importante destacar nos primeiros parágrafos deste artigo que a proteção social humana, não é consequência apenas da habilidade individual de conseguir superar as próprias dificuldades e de garantir a sua sobrevivência, mas sim, “de um conjunto de relações e acessos aos bens coletivos que constroem a superação da desproteção por meio de múltiplas formas” (TORRES, 2016, p. 20). A autora ainda coloca que a proteção social tem uma esfera coletiva, na qual se considera necessário “um pacto para garantir medidas de prevenção e apoio baseado na solidariedade social e no processo de reconhecimento da dignidade do outro e da preservação da dignidade humana” (TORRES, 2016, p. 20).
Os estudos e discussões a respeito da proteção social ainda são recentes, contudo, pode ser encontrado nos trabalhos desenvolvidos por Sposati (2009) que a proteção social deve incluir um caráter principal de preservação da vida. Neste sentido, a autora aponta que a proteção social constantemente coloca-se em defesa de algo, impedindo que alguma destruição venha ocorrer, legitimando o seu caráter preventivo e vigilante.
Mas, Sposati (2009) nos alerta que nas práticas rotineiras e frequentes da realidade dos serviços tem-se percebido que em muitas ocasiões as ações de proteção social vêm somente após o acontecimento de uma desproteção social, não cumprindo, portanto, o seu papel de assegurar e afiançar as seguranças sociais (segurança de sobrevivência – rendimento e autonomia, de acolhida, e de convívio –, convivência familiar e comunitária) dos cidadãos na qual ela se propõe.
Neste caminho, considera-se que a concepção de proteção social e o seu exercício exige uma transformação na organização das atenções dos serviços à população para que não ocorram a assistência e atenção somente após o encontro com algumas vivências de desproteção social. Contudo, o desconhecimento a respeito das desproteções sociais e das suas manifestações, associado à invisibilidade das mesmas, pode ocasionar ainda mais dificuldades para garantir ações protetivas e a garantia dos direitos sociais da população.
A partir disto, entendemos que sinalizar algumas das muitas desproteções sociais que uma grande parcela da população brasileira pode vir a se deparar ao longo da vida se faz extremamente necessário. Tem-se verificado que tanto na literatura acadêmica, quanto na prática dos serviços há um desconhecimento acerca das condições de desproteções sociais de modo geral, ocasionando certa invisibilidade das situações que precisam ser enfrentadas, banalizando as mesmas e/ou culpabilizando as pessoas ou as famílias que enfrentam alguma situação de desproteção, gerando ainda mais sofrimento e dificuldade no acesso a direitos.
Em relação a isto, Pereira (2013) nos indica ainda que no contemporâneo, a tendência da política social tem promovido um intenso processo de desproteção social e de descidadanização, referenciada na meritocracia e intrinsicamente relacionada ao poder de consumo das pessoas. Neste sentido, pode-se observar que o Estado tem a função de garantidor de direito, porém, atualmente acaba por promover um conjunto de desproteções sociais ao não efetivar sua responsabilidade pública e instituída constitucionalmente.
Desta forma, considerando a importância de um maior aprofundamento sobre a temática da desproteção social, o presente artigo visa explanar a compreensão do conceito, o qual vem ganhando espaço na política de assistência social e traz consigo um olhar para a responsabilidade do Estado, proporcionando uma maior reflexão sobre a realidade vivenciada e/ou negligenciada pelo sujeito de direitos que busca algum serviço, benefício ou programa na área da política de assistência social.
Consiste, portanto, em uma síntese de leituras realizadas sobre algumas concepções de desproteção social, apresentando-se como um tema de relevância ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e ao exercício profissional dos assistentes sociais e demais trabalhadores da política. Embasa-se essa análise principalmente nas publicações de Sposati (2009; 2018); Brasil (2013a; 2013b); Pereira (2013), Almeida (2016) e Viana e Silva (2018).
O artigo está estruturado em três partes. Na primeira parte, buscamos compreender e refletir a respeito das relações e as implicações que o neoliberalismo tem com a questão da proteção social e as imbricações relativas às desproteções sociais que advém desta nova ordem econômica. Esta reflexão tem sua base nos estudos recentes publicados a respeito do neoliberalismo e suas relações com a proteção social e as indicações de retirada de direitos sociais ocasionada pelo mesmo.
Na segunda parte do artigo, elencamos as principais manifestações das desproteções sociais presente na Política de Assistência Social e o olhar que alguns autores têm sobre o tema. Por fim, trazemos uma breve conclusão a respeito da temática e suas interlocuções.
O neoliberalismo e as suas implicações na proteção social
De acordo com Viana e Silva (2018), o fenômeno do neoliberalismo não envolve apenas uma nova ideologia e/ou política econômica, mas sim uma nova racionalidade que compreende a uma atualização do capitalismo através de um novo tipo de imperialismo. Este novo modo de funcionar do capitalismo é caracterizado pela intensa apropriação do estado pelas forças do mercado e das finanças, e indica que há uma priorização pelos mercados em relação aos governos, pelos incentivos econômicos em relação as normas sociais ou culturais e pelo empreendedorismo individual em relação a ação coletiva ou comunitária.
Neste caminho, chavões como “desregulação, privatização, liberalização financeira e empreendedorismo individual” constantemente fazem parte deste contexto neoliberal, que mostra as suas inferências de uma maneira forte e direta ao atingir o sistema público de provisão de serviços sociais, tendo em vista que por conta do desemprego, gerado pela alta desindustrialização e/ou trabalhos precários, ocasiona uma grande quantidade de pessoas em situação vulnerável e há uma maior pressão para que se aumente a cobertura dos serviços (VIANA; SILVA, 2018).
Segundo Pereira (2013, p.15), o contexto da crise capitalista atual supera as crises do capitalismo do final do século XIX (1929-1945 e na década de 1970), considerando como diferencial sua forma sistêmica (total), global (planetária) e permanente (sem ciclos). A autora considera que o capital se empenhou em encontrar saídas da última crise, através de ajuda dos governos de países centrais e periféricos, os quais “transferiram vultosos recursos públicos a instituições financeiras e a empresas transnacionais endividadas, a política social tornou-se muito mais útil ao capital do que ao trabalho” (PEREIRA, 2013, p.15).
De acordo com a autora, grandes especuladores foram protegidos pelos governos enquanto os trabalhadores foram castigados. Segundo a mesma vivemos “Robin Hood às avessas”, isto é, sob a regência de uma gritante regressividade na distribuição da riqueza (entre indivíduos, classes e nações) já que são os despossuídos de bens materiais e financeiros que sustentam os possuidores desses bens (PEREIRA, 2013, p.16).
Neste caminho, Viana e Silva (2018) apontam que esta realidade tem levado o governo a questionar os investimentos na área social e coloca em risco a proteção social, porque:
Desta forma, não é apenas o movimento de queda na provisão pública de serviços sociais, mas sim uma grande imbricação dos sistemas de proteção social com a economia, com a reestruturação neoliberal do capitalismo, o que distancia a proteção social do direito e da oferta pública para uma proteção mercantilizada de provisão privada e paga pelo cidadão. O resultado final é uma hibridação neoliberal entre o público e o privado, isto é, as fronteiras entre o público e o privado são borradas e há um processo de mercadorização da esfera pública, obrigada a funcionar conforme as regras tradicionalmente empregadas no setor privado, onde a lógica da competição e do lucro é predominante (VIANA; SILVA, 2018, p. 2110).
Segundo Almeida (2016, p.13) o Banco Mundial defende que “cabe ao indivíduo, a partir de sua capacidade e potencialidade, enfrentar as manifestações da questão social”, o que distancia da necessária reflexão “sobre a estrutura social capitalista como provedora dos fatores que violam o princípio da dignidade humana”. Assim sendo, a autora enfatiza que se individualizam as situações vivenciadas e se culpabiliza os sujeitos, atribuindo a eles a responsabilidade de ação, mesmo não havendo a necessária proteção social coberta pelo Estado.
A partir disto, podem-se observar diversas implicações do neoliberalismo para a sociedade, a economia, a política, a proteção social e as condições de saúde. No âmbito da proteção social pode ser notada uma defasagem na atenção as crianças, adultos e idosos de modo geral, gerando situações ainda maiores de vulnerabilidade social (VIANA; SILVA, 2018).
Dentro do campo da proteção social, Viana e Silva (2018) indicam que este cenário neoliberal rompe com a ideia e o momento de que o Estado possuía uma grande atuação na área social por conta de determinantes comuns e também singulares que inspiraram todos os sistemas públicos de provisão de serviços sociais, tendo em vista que as práticas neoliberais geram um autofinanciamento do acesso aos serviços, atividades com ênfase na população mais pobre e vulnerável, descentralização da oferta, gestão dos serviços e competição entre os diferentes prestadores de serviços.
A partir desta breve discussão a respeito do cenário neoliberal, é possível observar que uma consequência direta do mesmo é a desproteção social e, como visto acima, a desproteção social está intimamente relacionada à questão social, a insuficiência do acesso a bens e serviços, violação de direitos e as compreensões e vivências neste contexto desprotetivo, o que conduz ao debate sobre a proteção social pública enquanto direito e a responsabilidade do Estado – o direito à proteção e a responsabilidade pública sobre essa garantia.
De acordo com Almeida (2016) o tema da desproteção está inserido na lógica multidimensional da pobreza, e traz luz a responsabilidade estatal em proteger; promovendo a incorporação do direito tanto nos operadores da política de assistência social, como de seus beneficiários.
A desproteção social possui associação intrínseca com a responsabilidade estatal, visto que as condições de vulnerabilidade têm sua leitura relacionada à insuficiência de garantias protetivas do Estado, pois ao eximir-se de garantir a proteção, “promove um rol de violações de direitos básicos que fere o princípio da cidadania, devido à sua ineficácia em face das situações de precarização da vida social” (ALMEIDA, 2016, p.12) vivenciadas, sobretudo pela classe trabalhadora.
Como a autora ressalta o Estado ao não garantir a proteção promove violações de direitos, sendo, portanto, importante que a Política de Assistência Social ao abordar a vulnerabilidade social, inclua também as manifestações das desproteções sociais. Possibilitando um novo olhar para o desvelamento da realidade social em que se inserem os sujeitos e famílias usuárias de seus serviços, ampliando assim a compreensão do conceito de vulnerabilidade social, que faz parte do conjunto de novos elementos trazidos pelo SUAS: “é preciso se apropriar dos conceitos que indicam as realidades vividas pelas pessoas, para qualificar o direcionamento dos serviços, programas, projetos e benefícios a elas ofertados como proteção” (ALMEIDA, 2016, p.12).
Logo, a discussão sobre desproteção social é fundamental, visto que retira do sujeito a culpa por estar inserido em uma situação de vulnerabilidade e risco social, chamando a atenção para a responsabilidade do Estado em promover um nível de proteção social condizente com as desproteções sociais vivenciadas pelos sujeitos e famílias. Sobretudo no contexto brasileiro, que traz consigo um conjunto de desproteções sociais adotado durante sua história através do seu projeto ideológico, político e econômico “que afeta, em particular, a vida de indivíduos, famílias e grupos que, justamente por não contarem com a proteção social pública, não têm acesso a direitos básicos” (ALMEIDA, 2016, p.14).
Tal projeto desconstrói a lógica do direito social e, consequentemente, da cidadania, reduzindo a responsabilidade do Estado na oferta protetiva para fazer frente às diversas mazelas da questão social, provenientes de uma sociedade de classes e sustentada nos pilares da desigualdade e da injustiça social (ALMEIDA, 2016, p.14).
Segundo Sposati (2009, p.25) “a assistência social se coloca no campo da defesa da vida relacional” e expõe que as principais agressões à vida relacional estão nos campos do isolamento, representadas pelas expressões de ruptura de vínculos, desfiliação, solidão, apartação, exclusão, abandono; da resistência à subordinação, representada pelas expressões de coerção, medo, violência, ausência de liberdade, ausência de autonomia, restrições à dignidade e da resistência à exclusão social, demonstrada em suas expressões de apartação, discriminação, estigma, todos distintos modos ofensivos à dignidade humana, aos princípios da igualdade e da equidade.
A proteção social sempre foi um desafio a ser garantido; caminhou muito desde a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), e muito tem a caminhar. Contudo, na atual conjuntura, com resquícios do Golpe de 2016 – Impeachment da presidenta Dilma, e um futuro incerto dos direitos conquistados e fortemente ameaçados devido às propostas da Reforma da Previdência, a aprovação da PEC 55/2016 em que se congelaram por 20 anos os investimentos públicos; a Reforma do Ensino Médio; a Reforma Trabalhista (desmonte da Consolidação das Leis do Trabalho); implantação do Programa Criança Feliz, a nova Política de Saúde Mental, entre outros, as desproteções sociais tendem a se agravarem visto tantas ameaças à garantia dos direitos sociais e ao exercício da cidadania. Portanto, observar, discutir, levantar reflexões e resistência sobre as manifestações das desproteções sociais se torna fundamental aos trabalhadores sociais.
Manifestações das desproteções sociais
Apesar da proteção social se mostrar integrada em forma de lei e por meio dos documentos das políticas públicas, principalmente no campo da Assistência Social, existem muitos desafios para a sua concretude. O Caderno 2 do Programa Nacional de Capacitação do SUAS - CapacitaSUAS, lançado em 2013 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome para promover uma reflexão a respeito dos serviços e benefícios socioassistenciais a partir do cenário atual da política de assistência social, aponta que ainda há um estreito vínculo entre o conteúdo das políticas de proteção social com o que a sociedade entende por proteção social, responsabilidade estatal de proteção social pública e ainda, sobre o alcance dessa proteção social perante o cidadão e suas desproteções.
No Caderno 2 é considerado que o horizonte da universalidade da proteção social supõe o conhecimento e o reconhecimento de desproteções sociais que incidem sobre a coletividade, independentemente da posição ocupacional e dos rendimentos dos sujeitos, embora considerando que suas demandas possuem intrínseca relação com os níveis de privação e desigualdade socioeconômica (BRASIL, 2013).
A partir disto, considera-se aqui a desproteção social como um elemento que expande a discussão da vulnerabilidade social e permite uma aproximação com a realidade social das famílias e sujeitos atendidos pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), compreendendo o sujeito inserido em um contexto frequentemente marcado pela ausência ou ineficácia da proteção social advinda do Estado, onde se faz presente o binômio da desproteção/proteção pública e seu risco a garantia e o acesso a direitos sociais, como aponta Almeida (2016).
Observa-se que o uso do conceito de desproteção se faz fundamental para atuação no Sistema Único de Assistência Social não apenas para adensar o conhecimento da complexidade do cotidiano desprotegido das famílias em relação às ofertas dos serviços socioassistenciais, mas, sobretudo, pela potencialidade nele inerente de aproximar o campo da assistência social ao da política de direitos (ALMEIDA, 2016, p.11).
Neste sentido, ao direcionarmos nosso olhar para o campo da Assistência Social, entende-se que uma das formas de se analisar as respostas que devem estar contidas na proteção social de assistência social supõe elencar as expressões que as desproteções assumem. Além das desproteções que são manifestadas por privações socioeconômicas, raça, gênero, etnia, cultura, entre outras, são encontradas situações que demandam na maioria das vezes, a intervenção Estatal pela responsabilidade com a preservação da vida e a dignidade humana (BRASIL, 2013).
O Caderno 2 - CapacitaSUAS traz um quadro muito importante que oferece indícios de como podem se manifestar as desproteções sociais na área da Assistência Social. Eles procuram identificar as expressões de desproteções sociais a partir da sua relação com um conjunto de inseguranças, agrupadas nas categorias de Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, divididas a partir de três grandes eixos: o ciclo de vida, a dignidade humana (sobrevivência) e a convivência familiar (BRASIL, 2013, p. 31-35).
O material pode ser considerado apenas um indicativo para introduzir o tema das manifestações das desproteções sociais, mas ele enumera vinte e três inseguranças que podem se apresentar nos serviços de assistência social e que facilitam o reconhecimento e uma reflexão a respeito das desproteções vivenciadas por uma pessoa ao longo de sua vida ou por uma família.
No ciclo da vida localizam-se as fragilidades e vulnerabilidades peculiares aos processos de crescimento, desenvolvimento e envelhecimento nas faixas etárias da infância, adolescência, juventude, adulta e idosa. Localizam-se na área da Proteção Social Básica: 1) razão de dependência (razão de dependência da família marcada por maior número de dependentes por provedor associada a baixa remuneração e inconstância do trabalho do provedor); 2) demanda de cuidados especiais de dependentes; 3) presença na família de um membro com deficiência ou doença crônica; 4) demandas de benefícios eventuais para superar uma situação familiar face a morte, nascimento de membros da família; 5) pessoas idosas na família com demanda de BPC sem aceitação pelo INSS; 6) demanda de apoio para complementação de renda familiar pelo número e idade e filhos" (BRASIL, 2013, p. 31-32).
Em relação ainda ao ciclo de vida, na Proteção Social Especial, elas se manifestam pelas vivências: 1) de abandono; 2) de violência física, psíquica e sexual; 3) de violação de direitos de pessoas idosas, mulheres e pessoas com deficiência; 4) de crianças e adolescentes em famílias com vulnerabilidade socioeconômica; 5) de crianças e adolescentes em instituições; 6) de ausência de trabalho socioeducativo para adolescentes e jovens em conflito com a lei, em cumprimento da medida socioeducativa em meio aberto; 7) de ausência de convívio familiar e comunitário a crianças, adolescentes e jovens em conflito com a lei; e 8) de pessoas idosas e pessoas com deficiência sem condições de prover seu próprio sustento e nem tê-lo provido pela sua família (BRASIL, 2013).
No que se refere à convivência familiar, as manifestações das desproteções na proteção Básica, estão relacionadas a: 1) ausência prolongada do provedor(s) na relação cotidiana com membros da família face a exigências de trabalho e locomoção; 2) localização isolada de moradia da família sem oferta de trabalho e demais recursos de apoio e proteção social; 3) famílias com um ou mais responsável desaparecido(s), falecido(s), interno(s) ou egresso(s) do sistema prisional, com especial atenção às gestantes e nutrizes; e 4) vivência de ruptura dos vínculos familiares pela ausência de condições do sustento e seus membros. Na Proteção Especial, elas se manifestam através de: 1) vivência em territórios degradados; e 2) exclusão sociocultural (BRASIL, 2013, p. 33-34).
O último item do quadro diz respeito a sobrevivência, em que é identificado somente a vivência em agregado familiar sem condição de educar os filhos na Proteção Social Básica; enquanto na Proteção Social Especial são encontradas duas manifestações: 1) construção de meios de sobrevivência para indivíduos egressos de processos de internação, prisão e outros que molestaram sua integridade física e psicológica; e 2) vivência de calamidade pública relacionada à agressões ambientais e climáticas (BRASIL, 2013, p. 35).
Apesar de toda esta lista que considera as diferentes desproteções sociais, Sposati (2018, p. 2318) aponta que “não se criou, mesmo após 30 anos, diálogo interinstitucional que pudesse permitir uma caracterização integrada das desproteções sociais dos brasileiros, a fazer parte de uma agenda comum, com atenções integradas e complementares”.
No Caderno 3 do CapacitaSUAS há uma identificação das desproteções sociais face as seguranças socioassistenciais de acolhida, convívio e renda, integrando a relação proteção/desproteção/provisão, as quais estão apresentadas em quatro itens, sendo: identificar a incidência territorial das desproteções, que significa realizar um trabalho de mapeamento e caracterização da demanda e estabelecer o diálogo com a oferta de serviços socioassistenciais a fim de verificar o grau de adequação em termos de capacidade instalada e a que falta por instalar; medir a gradualidade das ocorrências dessas desproteções que seria acompanhar a incidência/intensidade dessas desproteções ao longo do tempo, o que torna referência tanto para a previsão e estabelecimento de metas para a gestão dos serviços, programas e benefícios socioassistenciais, como para fortalecer a dimensão da prevenção na política de assistência social (BRASIL, 2013, p. 30).
Além destas, também é considerado importante identificar trajetórias e circulação dos usuários da Assistência Social na rede socioassistencial, ou seja, auxiliar na compreensão de como as necessidades operam no interior da rede e promove a definição de diretrizes de articulação dos serviços socioassistenciais, rompendo com o atendimento fragmentado e descontextualizado das situações de vulnerabilidade social vivenciadas; e por fim, identificar os entraves e barreiras de acesso à oferta de serviços, buscando compreender o que impede o acesso da população potencial usuária da Assistência Social à oferta de serviços da rede socioassistencial e/ou de outras políticas setoriais (BRASIL, 2013b, p. 30-31).
Como se pode observar, o termo desproteção social traz uma reflexão que vai contra a culpabilização do indivíduo/família e apresenta o Estado como o responsável pela proteção social, o qual quando falha em seu dever, pessoas ficam desprotegidas, vulneráveis e em situação de risco. Faz-se necessário olhar a partir de uma perspectiva mais ampla, sendo necessária uma análise de conjuntura da realidade vivenciada.
Considerações finais
Como podemos constatar no Brasil a garantia da proteção social é regulamentada por legislações, contudo, se torna um campo vulnerável em ser efetivado com qualidade visto as ameaças neoliberais, que como refletimos acima, enfatiza reduzir a atuação do Estado, negando a efetivação dos direitos sociais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. E na atual conjuntura, com o Golpe de 2016 – Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), podemos observar que a proteção social se encontra em situação de maior risco, considerando as propostas e as ações que vão contra os direitos sociais e civis.
A partir dos exemplos citados das possíveis manifestações das desproteções, é notório que elas exigem respostas articuladas do Estado através de suas diversas políticas. Mas – ao nos atentarmos as respostas da proteção social voltada à assistência social – é importante anunciar que é definido pelo Sistema Único da Assistência Social (SUAS) que esta proteção se constitui e deve ser consolidada mediante a corresponsabilidade dos três entes federativos em prover, articular e co-financiar benefícios e serviços socioassistenciais, em relação pactuada e colaborativa, respeitando-se a autonomia dos entes e o comando único em cada esfera (BRASIL, 2013).
Por fim, apesar de termos indícios para verificarmos as situações de desproteções não conseguiremos ir tão longe na atuação frente a elas. Sposati (2018) nos indica que a gestão fragmentada das três políticas sociais que compõem com o tripé da Seguridade Social, juntamente com a ausência de concepção unitária e gestão articulada do tripé, contribuem para distanciar a proteção social do seu sentido e destino universalista e que consequentemente não consegue se chegar a uma articulação de linguagem comum e unitária sobre as expressões de desproteção sociais e suas formas de superação. A autora afirma ainda que, somando-se ao caráter neoliberal que as políticas vêm adotando, tem-se produzido um “definhamento” da proteção social enquanto seguranças e certezas para uma vida digna.
Portanto, pode-se concluir que é importante aprofundar estudos de âmbito nacional com seus desdobramentos territoriais no que tange ao conhecimento das desproteções sociais e dos vazios de cobertura. Devem-se considerar as vulnerabilidades sociais presentes não só na capacidade da família como na relação de ausência/presença de acesso a infraestrutura, segurança de trabalho, condições adequadas de moradia, atenção em serviços sociais, garantia de mobilidade urbana e rural, é fundamental o Poder Público se antecipar à ocorrência da violação de direitos fortalecendo o caráter preventivo da proteção social.
É importante compreender os processos de desproteção dos sujeitos, o que colabora com a ideia de o Estado reconhecer suas responsabilidades como ente protetivo dos cidadãos em situação de vulnerabilidade social, que acessam a Política de Assistência Social, contudo, que percorrem um processo de desproteção que indica graves patamares de ausência do amparo à proteção estatal.
Por fim, pode-se observar que o Estado tem a função de garantidor de direito, porém, promove um conjunto de desproteções sociais ao não efetivar sua responsabilidade pública e instituída constitucionalmente, sendo, portanto, a desproteção social, como originária da ausência do Estado e intrínseca ao contexto capitalista que promove um conjunto de violações de direitos.
Referências
ALMEIDA, A. C. da S. Desproteção social no âmbito da dinâmica dos serviços do SUAS: estudo a partir da realidade cotidiana das famílias atendidas no CREAS. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social e Política Social), Universidade Estadual de Londrina, Paraná, 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Capacita SUAS: caderno 2: Proteção de assistência social: segurança de acesso a benefícios e serviços de qualidade. Brasília, 2013a.
______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Capacita SUAS: caderno 3: Vigilância socioassistencial: garantia do caráter público da política de assistência social. Brasília, 2013b.
TORRES, A. S. Convívio, conveniência e proteção social: entre relações, reconhecimentos e política pública. São Paulo: Veras Editora; Centro de Estudos, 2016.