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Institucionalidade das políticas de transferência condicionada de renda argentinas do século 21: uma proposta avaliativa
Institucionalidade das políticas de transferência condicionada de renda argentinas do século 21: uma proposta avaliativa
O Social em Questão, vol. 19, núm. 36, pp. 197-214, 2016
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo: O trabalho propõe avaliar o grau de institucionalidade dos três principais programas de transferência condicionada de renda instituídos na Argentina do século XXI, por meio de indicadores especialmente construídos para essa finalidade. Entende-se que aspectos relativos ao desenho e à inserção institucional desses programas influenciam o alcance de sua eficácia, efetividade e legitimidade. A metodologia de pesquisa incluiu análise docu- mental e consulta a outras fontes secundárias. Os resultados sugerem a importância de articular o acesso contributivo e o não contributivo da população aos mesmos serviços como estratégia para fortalecer a institucionalidade das políticas de combate à pobreza, geralmente não contributivas.
Palavras-chave: Política Social, Programas de transferência condicionada de renda, Institucionalidade, Asignación Universal por Hijo.
Institucionalidade das políticas de transferência condicionada de renda argentinas do século 21: uma proposta avaliativa
Valentina Suárez Baldo1 Mônica de Castro Maia Senna2
Resumo
O trabalho propõe avaliar o grau de institucionalidade dos três principais programas de transferência condicionada de renda instituídos na Argentina do século XXI, por meio de indicadores especialmente construídos para essa finalidade. Entende-se que aspectos relativos ao desenho e à inserção institucional desses programas influenciam o alcance de sua eficácia, efetividade e legitimidade. A metodologia de pesquisa incluiu análise docu- mental e consulta a outras fontes secundárias. Os resultados sugerem a importância de articular o acesso contributivo e o não contributivo da população aos mesmos serviços como estratégia para fortalecer a institucionalidade das políticas de combate à pobreza, geralmente não contributivas.
Palavras-chave
Política Social; Programas de transferência condicionada de renda; Institucionalidade; Asignación Universal por Hijo.
Institutionality of conditional cash transfers policies in Argentina of XXI century: an evaluation essay
Abstract
This paper proposes someindicators to assess the institutionalization degree of social policies, and latter applies them to comparatively and historically analyze the three main programs anti-poverty in Argentina in last fifteen years. Itemphasizes the importance of social policies institutional analysis, due to the influence of design and institutional inte- gration aspects on the policies’ effectiveness and legitimacy. The research methodology included documentary analysis and bibliography review. The results suggest the impor- tance of articulating contributory and non-contributory access of population to the same services as a viable option to strengthen the institutional framework of anti-poverty poli- cies, usually non-contributories.
Keywords
Social Policy; Conditional cash transfers programs; Institucionality; Asignación Universal por Hijo.
Introdução
Programas de transferência condicionada de renda (PTCR) passaram a ocupar lugar de destaque na agenda pública de diferentes países latino-
-americanos desde o final do século XX. Impulsionados por um duplo e con- traditório movimento, que buscou compatibilizar severas restrições fiscais e demandas por redemocratização e justiça social, esses programas modelam-
-se pela associação entre transferência monetária direta a famílias pobres e o cumprimento de um conjunto de contrapartidas por parte dos beneficiários, em geral nas áreas de educação, saúde e nutrição.
Para Villatoro (2010), a emergência dos PTCR representa um novo enfoque de proteção social na região, tradicionalmente marcada pela cobertura quase ex- clusiva daqueles inseridos no mercado formal de trabalho. O autor argumenta que apesar das diferenças em termos de desenho institucional e mecanismos de operação dos PTCR em cada país, eles compartilham os objetivos centrais de redução dos níveis de pobreza e de indigência e ruptura do ciclo intergeracional da pobreza, por meio do fomento ao acúmulo de capital humano.
Diferentes estudos avaliativos têm apontado efeitos positivos dos PTCR em termos de melhoria dos níveis de educação e de saúde das famílias beneficiárias, redução do trabalho infantil e das desigualdades de renda na maior parte dos países (CECCHINI, 2013; SOARES et al, 2007; HANDAeDAVIES, 2006). A
despeito de sua importância, tais programas são, com frequência, caracteriza- dos por uma institucionalidade frágil e instável, condição que acaba interferin- do no cumprimento dos seus objetivos.
Diante desse quadro, o presente artigo apresenta uma proposta avaliativa do grau de institucionalidade dos programas de transferência condicionada de ren- da no interior dos sistemas de proteção social ao qual se vinculam. Considera-
-se que políticas sociais mais institucionalizadas podem dar sustentação à ten- dências mais inclusivas, estáveis e legítimas de proteção social, o que justifica a importância do estudo da questão.
Tendo como referência a literatura disponível sobre a temática e o cam- po de análise de políticas públicas, o trabalho se estrutura com base em duas
perguntas centrais: (i)de que forma é possível avaliar o grau de institucionali- dade de uma política social? (ii) qual o grau de institucionalidade das políticas de transferência condicionada de renda implementadas na Argentina no século XXI? Buscando responder a tais inquietações, é proposta uma série de indica- dores possíveis para avaliar o grau de institucionalidade de uma política social, que logo é aplicada ao exame das três principais políticas de combate à pobreza argentinas dos últimos quinze anos: o Programa Jefes de Hogar Desocupados (chefes de lar desempregados), O Programa Familias por la Inclusión Social e a Asignación Universal por Hijo (prestação universal por filho).
Profundamente marcadas pela prevalência de esquemas protetivos vincula- dos ao mercado formal de trabalho, as políticas sociais argentinas, a exemplo de grande parte dos países da América Latina, passaram por vigorosas reformas ao longo dos anos 1990, que resultaram em ampla privatização da provisão social. Desde o final da crise de 2001, contudo, ganha espaço o que Repetto & Dal Ma- setto (2012: 7) denominam de uma “segunda matriz de proteção social”, cujas características centrais repousam na recuperação do controle estatal sobre a previdência, saúde e educação, na unificação das políticas de combate à pobreza à seguridade social e na combinação de esquemas contributivos e não contri- butivos de proteção social. É no contexto de desenvolvimento dessa segunda matriz que são introduzidos os programas aqui examinados.
Para o desenvolvimento do estudo foi criada uma base de dados referida às três políticas analisadas, que forneceu informações para estabelecer com- parações segundo os indicadores do grau de institucionalidade propostos. A base de dados foi construída a partir de análise documental das normas de criação e modificação das políticas (leis, decretos, resoluções) e da consulta de fontes secundárias de informação, como referências bibliográficas, maté- rias de jornal e sites oficiais de ministérios.
O grau de institucionalidade das políticas sociais
Não é novidade afirmar que o conjunto de reformas introduzidas nos sis- temas de proteção social latino-americanos nas últimas décadas pretendeu moldar uma nova institucionalidade para as políticas sociais. Ainda que guar- dadas as devidas especificidades históricas e sociais de cada país, é sabido que a trajetória de montagem desses sistemas é marcada por seu caráter contribu- tivo e excludente, restrita àqueles inseridos no mercado formal de trabalho (SPOSATI, 2011).
A grave crise econômica decorrente dos processos de reestruturação produti- va que se abateu nas sociedades capitalistas a partir do final dos anos 1970 reper- cutiu de forma intensa nos frágeis sistemas de proteção social latino-americanos, que se tornaram alvo central do pacote de medidas de ajuste estrutural da econo- mia e estabilização monetária, levadas a cabo por políticas de orientação neolibe- ral, sobretudo na década de 1990. Ao mesmo tempo, a transição democrática pela qual passou parte dos países da região introduziu as temáticas de justiça social e ampliação da cidadania na agenda pública dos diferentes governos. Afetados por esse contexto contraditório, os PTCR ganharam destaque como estratégia central das intervenções públicas a partir de então, introduzindo um conjunto de inflexões na institucionalidade das políticas sociais.
Que inflexões são essas? Quais os sentidos das mudanças em curso? Como os PTCR afetam a institucionalidade das políticas sociais? Entende-se que as res- postas a essas questões exigem a construção de um quadro referencial capaz de avaliar diferentes dimensões da institucionalidade introduzida por tais programas. Nessa direção, interessa examinar a engenharia institucional e os traços cons- titutivos desses programas, dando ênfase a como as instituições – histórica e so- cialmente construídas – afetam as estratégias, as metas dos atores, a distribuição
de poder entre eles e os resultados em termos de decisões políticas.
De modo geral, teóricos do neoinstitucionalismo histórico definem institui- ções como “os procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais e ine- rentes à estrutura organizacional da comunidade política ou da economia política” (HALL e TAYLOR apud PINHEIRO, 2012, p.291). North (1993), por exemplo, as caracteriza como as “regras de jogo, formais e informais, que estruturam as relações entre grupos, indivíduos, governos, enquadrando as possibilidades de vinculação e intercâmbio dos diferentes setores” (apud FRANCO e SZÉKELY, 2010, p.154).
Repetto (in op cit, p.154) refere-se à institucionalidade social como
o conjunto de regras de jogo formais e informais (incluindo as rotinas e costumes organizacionais) que se põem em funcionamento para processar e priorizar os problemas sociais, à vez que enquadram o conteúdo e a dinâmica política e admi- nistrativa das políticas sociais.
Considerando as definições anteriores, podemos pensar o grau de institu- cionalidade de uma política social como o nível de participação nas regras de
jogo, formais e informais, que estabelecem mediações entre os problemas so- ciais e as políticas sociais – participação que pode ser em termos econômicos, políticos ou simbólicos3.
A abstração do atributo “grau de institucionalidade” pode ser operacionali- zada por meio de indicadores observáveis nas características das políticas. Nesse sentido, todo indicador é uma reunião de dados empíricos agrupados com base em uma matriz teórica. Neste trabalho, os indicadores iluminam a comparação entre políticas sociais desde um ponto de vista histórico-institucional e geográfi- co. Evidentemente, a lista é aberta, podendo ser composta por quaisquer grupos de dados empíricos que cumpram a tarefa de procurar entender as intervenções estatais no tempo e no espaço. Em seguida são apresentados os indicadores do grau de institucionalidade propostos, acompanhados de uma breve descrição e alguns critérios para orientar sua observação:
1. Existência de regras formais. Refere-se ao marco jurídico, ao am- paro na legislação, à presença de normas claras e estáveis para a imple- mentação da política. É preciso se perguntar qual tipo de regras/normas (lei, decreto, resolução, programa) explicitam os objetivos da política e qual é sua sustentabilidade legal. É um indicador relacionado à segurança jurídica dos direitos sociais.
2. Exigibilidade. Refere-se à existência de mecanismos de partici- pação cidadã e recepção de reclamações; etambém à possibilidade de recorrer à justiça em caso de irregularidades. Na avaliação, são impor- tantes os dados sobre a existência de denúncias de fraude ou negligência na gestão da política. Este indicador está relacionado ao reconhecimen- to de direitos sociais, que implicam obrigações de garantia por parte das instituições do Estado.
3. Financiamento. Procura saber se existem fontes específicas de re- cursos, estabilidade no financiamento, porcentagens fixas do orçamento e continuidade como parcela do gasto público social.
4. Abrangência. Aqui é preciso saber se a política atinge a todos os que cumprem os requisitos de inclusão, se existem barreiras de acesso ou per- manência, se há informação disponível suficiente acerca dos serviços que a política oferece e as formas de acessá-los.
5. Distribuição territorial. Refere-se à capilaridade, à capacidade ad- ministrativa dos organismos de implementação para que a política seja
aplicada na totalidade do território e não apenas nas áreas urbanas, que em geral têm melhor provisão de serviços de proteção social.
6. Estabilidade da garantia do benefício. Este indicador se per- gunta pela vigência da política ao longo do tempo, pela questão da continuidade. A regularidade dos serviços contribui com sua previsi- bilidade. Políticas sociais instáveis geram direitos sociais intermiten- tes. A continuidade é importante para a consolidação da política e o sucesso dos objetivos de longo prazo.
7. Atualização do valor do benefício. No caso das políticas baseadas em transferências monetárias, significa aumentos periódicos em função de algum critério, que pode ser o índice de inflação ou a variação do salá- rio mínimo, por exemplo.
8. Transparência dos processos de gestão. Atributo desejável nos mecanismos de elegibilidade de novos destinatários e na distribuição dos benefícios. Bons indicadores de transparência, por exemplo, são a existên- cia de padrões de beneficiários nas políticas e de sistemas de cruzamento de dados, para detectar irregularidades. A transparência contribui à legi- timidade social da política. Afasta o “fantasma” do clientelismo político4, que, como aponta Appadurai (apud AUYERO, 2001, p.36),
tem sido uma das imagens mais fortes e recorrentes no estudo das práticas políti- cas dos pobres – urbanos ou rurais – na América Latina, chegando a se converter em uma sorte de “prisão metonímica” para esta parte do continente.
Caracterizando os principais programas de transferência de renda na argentina do século 21
As políticas de combate à pobreza na Argentina começaram a ter relevância no cenário das políticas sociais estatais só a partir da década de 1980, no pe- ríodo conhecido como “década perdida”. Naquele contexto, caracterizado pelo crescimento das taxas de pobreza, o governo argentino implementou a primeira política assistencial nacional e massiva da história do país, o Programa Alimentário Nacional – PAN, baseado na distribuição de cestas de alimentos a famílias pobres.
As transferências condicionadas de renda como política assistencial dirigida a combater a pobreza e mitigar os efeitos do desemprego – também crescente na época – começaram a ser implementadas a partir da década de 1990, incluí-
das em uma multiplicidade de programas de pouca abrangência, focalizados em populações específicas, muitos deles descentralizados nos níveis provinciais. A oferta de programas de atenção a famílias pobres foi aumentando ao longo da década, chegando a somar 69 programas nacionais focalizados no ano de 2000 (REPETTO apud FRANCO e SZÉKELY, 2010), constituindo experiências de escassa cobertura e que operavam simultaneamente em populações diferenciadas. O século XXI encontrou a Argentina imersa em um clima de emergência econômica e crise social, com altas taxas de pobreza, miséria e desigualdades. Nesse contexto, se observa uma mudança de rumo nas estratégias de combate à pobreza no país, “um câmbio na orientação da política social dirigida à po- pulação de menores recursos” (GOLBERT e GIACOMETTI, 2008, p.22). Se até então a assistência era caracterizada por ações focalizadas, superpostas e de baixa cobertura, a tendência posterior foi a de concentração das estratégias em poucos programas de maior abrangência. Repetto (apud FRANCO e SZÉKELY, 2010, p.152) aponta que os “planos de combate à pobreza deixaram de lado intervenções minúsculas e insignificantes do passado recente para se concentrar
em programas de alcance massivo”.
Logo após os sucessos conflitivos de dezembro de 2001, em abril de 2002, foi implementado o primeiro programa de transferência condicionada de renda mas- sivo e de administração centralizada no nível nacional, o Programa Jefes de Hogar Desocupados (chefes de lar desempregados), para dar resposta à grave situação de pobreza e indigência que se vivia no país5. Dois anos depois, em um contexto de recuperação econômica, o novo governo começou um processo gradual de migração dos beneficiários do Programa Jefes a outros dois programas de transfe- rências de renda: o setor de beneficiários considerado apto para se reinserir no mercado de trabalho passou a ser assistido pelo Seguro de Emprego e Capacita- ção, do Ministério de Trabalho; já o grupo de beneficiários em piores condições de empregabilidade [sic], em geral mães, ficaram na órbita do Ministério de De- senvolvimento Social, no Programa Famílias pela Inclusão Social.
Mais recentemente, no ano de 2009, por iniciativa da então presidenta Cristi- na Kirchner, foi criada a Asignación Universal por Hijo – AUH (prestação universal por filho), que na prática significou a incorporação das transferências condiciona- das de renda dirigidas ao combate à pobreza na estrutura das Asignaciones Fami- liares, que são prestações monetárias contributivas que recebem os trabalhadores formais em função das denominadas cargas de família6. A AUH é a principal polí- tica de assistência na atualidade no país.
A escolha dos programas que são comparados obedece a um critério de im- portância e presença na agenda pública: o Jefes e o Famílias foram as principais transferências condicionadas de renda antes da AUH (PAUTASSI e ZIBECCHI, 2011), ambos se destacaram pela cobertura e pelos recursos recebidos (GOL- BERT e GIACOMETTI, 2008). Na análise não foram consideradas outras po- líticas de assistência existentes no período, por serem menos abrangentes em termos de número de beneficiários, ou por terem cobertura territorial limitada (no caso de programas de assistência dos estados provinciais, por exemplo).
Para uma visão mais ampla dos três programas, a Tabela 1 apresenta uma bre- ve e sucinta descrição geral dos mesmos:
Tabela 1. Principais programas de combate à pobreza na Argentina, 2002-2016
Fonte: Elaboração própria.Várias fontes.
Um dos objetivos deste trabalho é comparar histórica e institucionalmente as três políticas recém-descritas: o Programa Jefes, o Famílias e a AUH. Para tal fi- nalidade, são utilizados os indicadores do grau de institucionalidade apresentados na seção anterior.
A institucionalidade das políticas de combate à pobreza na argentina no século XX
Feita essa breve apresentação dos programas analisados nesse trabalho, essa seção se ocupa de apresentar os resultados da avaliação do grau de institucionali- dade das principais políticas argentinas de combate à pobreza dos últimos quinze anos. A informação está sintetizada na Tabela 2, que organiza suas características e as compara em função dos indicadores propostos na primeira parte do artigo.
Tabela 2. Transferências condicionadas de renda segundo critérios de institucionalidade
Fonte: Elaboração própria.Várias fontes.
Dos marcos legais das três políticas, o que parece mais frágil é o do Programa Famílias, por tratar-se de uma resolução ministerial. A forma decreto, que deu marco ao Jefes e às AUHs têm, na Argentina, força e valor de lei. O detalhe das AUHs é que os decretos que as criaram estavam, na verdade, modificando uma lei preexistente, a Lei de Asignaciones Familiares, que por esse ato passou a incorporá-
-las como benefícios. Se analisarmos a partir do texto atualizado da lei, as AUHs aparecem como mais um dos subsistemas (o não contributivo) na seção que trata da composição do regime (Art. 1). Desde o ponto de vista da seguridade social argentina9, a AUH é a única modalidade não contributiva de transferência de ren- da, dirigida a pessoas que, a priori, não formariam parte do sistema: desempre- gados e trabalhadores informais.
Em relação à exigibilidade das políticas analisadas, nenhum dos três pro- gramas parece ter previsto mecanismos formais e explícitos para denunciar irre- gularidades e exigir a garantia de direitos, embora existam dados sobre reclama- ções pelo funcionamento do Jefes.
A respeito do financiamento, podemos ver que todos os programas com- binaram fontes internas e externas de recursos, em diferentes proporcionalida- des. No caso do Programa Jefes, sua implantação inicial era custeada integralmen- te com recursos do Tesouro Nacional. Ao longo do tempo, contudo, o programa passou a receber aportes financeiros do Banco Mundial, embora mantendo a pre- dominância de recursos do orçamento nacional. O Programa Famílias inverte essa razão, na medida em que 70% dos recursos do programa eram provenientes de fontes externas, sobretudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Já o AUH tem seus recursos oriundos do regime previdenciário, o que aponta para uma perspectiva mais solidária entre os mecanismos contributivos e não contributivos. No entanto, são esperadas mudanças nessa configuração, haja vista que o novo presidente Maurício Macri anunciou, em março de 2016, um aporte financeiro considerável do Banco Mundial para financiamento do programa.
Quanto à abrangência, as AUHs, como toda asignación familiar, têm vigência para todo aquele cidadão que cumpra os requisitos. No caso de rejeição ou exclusão, os motivos são explícitos e têm correspondência com as normas de acesso e permanência publicizadas. O Programa Jefes teve uma rápida e multi- tudinária incorporação de beneficiários, magnitude que provocou a suspensão das inscrições em forma abrupta antes da data prevista e a impossibilidade de inclusão de novos beneficiários. O Programa Famílias não permitiu a inscrição direta de novos beneficiários.
Desde o ponto de vista da distribuição territorial, no caso do Programa Jefes, a ativa participação de organizações sociais na “distribuição” dos benefícios teve a vantagem de aumentar a “capilaridade” do programa (BORGHINI et al, 2013). Já o Famílias teve uma distribuição territorial heterogênea, talvez vincu- lado ao fato das organizações sociais terem perdido participação na definição do programa. À diferença, a AUH pode ser tramitada em qualquer ponto de atenção da Administração Nacional da Seguridade Social (ANSES), que é um organismo com capacidade operativa e abrangência territorial, responsável pelo gerencia- mento das contribuições dos trabalhadores formais (destinadas a financiar a pre- vidência, os seguros de saúde dos trabalhadores e as prestações familiares).
Considerando a estabilidade da garantia do benefício – ou a vigência no tempo das políticas – o Programa Jefes começou estabelecendo um prazo de- terminado de implementação, em função da emergência ocupacional declarada naquele momento (ano de 2002). O Famílias e as AUHs não estabeleceram prazo de finalização. Uma transferência substituiu à outra durante o mesmo período
presidencial (Cristina Kirchner). As AUHs, da mesma forma que as asignaciones familiares, não têm prazo final de implementação.
Diferente das experiências anteriores, a AUH tem atualizado o valor do be- nefício regularmente, junto com o valor das asignaciones familiares, que desde a apro- vação da Lei 27.160 em 2015, são corrigidas automaticamente duas vezes por ano.
Finalmente, a respeito da transparência dos processos de gestão das políticas analisadas, os benefícios do Programa Jefes foram entregues de forma discricionária em relação às regiões e jurisdições, e sem nenhum tipo de controle (CELS, 2003). Neffa (2009) aponta que a massividade do Jefes se deveu, dentre outros fatores, à possibilidade que tinham algumas organizações sociais de fazer elas mesmas as inscrições de beneficiários, e à vigência de políticas clientelistas nos municípios10. No caso da AUH, a gestão é centralizada na ANSES, o que pos- sibilita a criação de um banco de dados unificado dos trabalhadores formais e be- neficiários de AUH (informais ou desempregados), permitindo o cruzamento de informações. A centralização dos dados diminui o risco de práticas discricionais ou clientelistas, contribuindo para a legitimidade da política entre a população.
Considerações finais
Neste trabalho procurou-se salientar a importância de políticas sociais institu- cionalmente fortes, tanto para viabilizar o cumprimento dos objetivos propostos, quanto para garantir os direitos que fundamentam sua existência. O ponto de partida foi o entendimento de que as características do desenho e a inserção insti- tucional das políticas têm o poder de determinar seu funcionamento, e com isso, sua legitimidade e a eficácia das suas ações.
Como vimos, a AUH é uma política institucionalmente mais forte que as transferências condicionadas de renda antecedentes. No entanto, os resultados de alguns indicadores revelam que a AUH também tem características que fragilizam essa institucionalidade, como a imprevisibilidade da sua fonte de financiamento e a inexistência de mecanismos de reclamação.
O maior grau de institucionalidade da AUH parece estar relacionado ao seu caráter de asignación familiar, ou seja, à articulação do acesso contributivo e o não contributivo da população aos mesmos serviços. Embora subsistam diferenças entre os dois tipos de asignación – contributiva e não contributiva, as prestações familiares acabam incluindo a AUH nos seus mecanismos altamente institucio- nalizados. Assim, o maior grau de institucionalidade da AUH explica-se pelo seu vínculo ao Sistema de Seguridade Social.
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Notas