Resumo: A intersetorialidade é um tema pouco compreendido na agenda das políticas sociais bra- sileiras. No caso da Política de Assistência Social e da consolidação do trabalho no Siste- ma Único de Assistência Social, essa abordagem requer ampliar a produção de pesquisas temáticas. Este artigo explana inicialmente a análise das mudanças na esfera produtiva e da nova configuração do Estado brasileiro na prestação dos serviços sociais. Em seguida, situa-se a intersetorialidade e a Assistência Social enquanto proposta de gestão na política social. E finalmente, analisa-se a intersetorialidade enquanto processo prático no trabalho no SUAS em Fortaleza-Ceará, para o acesso aos direitos sociais.
Palavras-chave:EstadoEstado,Política de Assistência SocialPolítica de Assistência Social,Sistema Único de Assistência SocialSistema Único de Assistência Social,Intersetoriali- dadeIntersetoriali- dade,Direitos sociaisDireitos sociais.
Artigos
Estado e direitos sociais: a intersetorialidade e a consolidação do trabalho na Política de Assistência Social
Estado e direitos sociais: a intersetorialidade e a consolidação do trabalho na Política de Assistência Social
Francisca Rejane Bezerra Andrade1 Maria das Graças Rodrigues Mendes2
Resumo
A intersetorialidade é um tema pouco compreendido na agenda das políticas sociais bra- sileiras. No caso da Política de Assistência Social e da consolidação do trabalho no Siste- ma Único de Assistência Social, essa abordagem requer ampliar a produção de pesquisas temáticas. Este artigo explana inicialmente a análise das mudanças na esfera produtiva e da nova configuração do Estado brasileiro na prestação dos serviços sociais. Em seguida, situa-se a intersetorialidade e a Assistência Social enquanto proposta de gestão na política social. E finalmente, analisa-se a intersetorialidade enquanto processo prático no trabalho no SUAS em Fortaleza-Ceará, para o acesso aos direitos sociais.
Palavras-chave
Estado; Política de Assistência Social; Sistema Único de Assistência Social; Intersetoriali- dade; Direitos sociais.
State and Social Rights: the Intersectoral and the consolidation of the Work on the Social Assistance Policy
Abstract
Intersectoriality is a subject little understood in the agenda of Brazilian social policies. In the case of Social Welfare Policy and the work of consolidation in the Unified Social As- sistance, this approach requires expand production of thematic research.This article first explains the analysis of changes in the productive sphere and the new configuration of the Brazilian state in the provision of social services. Then lies intersectoral and social assis- tance as a proposal for management in social policy. Finally, it analyzes the intersectiona- lity as a practical process at work in SUAS in Fortaleza, Ceará, for access to social rights.
Keywords
State; Social Welfare Policy; Unified Social Assistance; Intersectionality; Social rights
Introdução – Mundo do Trabalho, Estado e Políticas Sociais
As mudanças impostas pelo capital à esfera produtiva e os ajustes neolibe- rais reconfiguram o mundo do trabalho e a relação entre o Estado e as Políticas Sociais, desde o final do século XX. Neste contexto, os processos de trabalho e os sujeitos são afetados, assim como o Estado, que demanda novos formatos de gestão em redes nas políticas sociais. Este fenômeno resulta de duas mudanças políticas nas sociedades latino-americanas e consequentemente no Brasil: a des- centralização e a democratização política (TEIXEIRA, 2002). Entendemos que a Política de Assistência Social e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) são expressões dessa reconfiguração na ação estatal. A questão é compreender como isso ocorre, e que consequências podem ser identificadas nessa ação.
O contexto de reestruturação produtiva, iniciado em 1970 nos países centrais, em resposta à crise do fordismo como padrão de desenvolvimento capitalista, e a globalização, são movimentos estruturais no plano da produção e do trabalho, que realizam transformações indispensáveis a esta fase histórica do capitalismo.
Dentre os objetivos principais da reestruturação produtiva, destaque-se a redução de custos, a produtividade e a competitividade, com foco na flexibi- lização do trabalho em suas mais variadas formas, para servir como base de sustentação e ajuste às novas exigências do mercado. A obtenção destes re- sultados requer a neutralização dos conflitos capital/trabalho através de um discurso patronal de negociação e parceria com os trabalhadores, da valoriza- ção/motivação do trabalho e das políticas de qualificação e treinamento em nome da Qualidade Total. Porém, a busca dessa hegemonia também se com- bina a uma gestão despótica, que impõe a ameaça e a prática do desemprego e da terceirização, fatores estes que indicam uma crescente precarização do trabalho (DRUCK, 1996).
Os objetivos da reestruturação produtiva incidem, portanto, sobre o Estado e as políticas sociais, os quais tiveram seus formatos e o alcance de sua intervenção reconfigurados. Dessa forma, o Estado enfrenta mais do que uma crise fiscal, que segundo Costa (2006, p. 139):
[...] decorre, em larga medida, da sua incapacidade de regular a vida social diante da emergência de novas tecnologias e, consequentemente, de uma nova orga- nização produtiva e de um novo padrão de acumulação. Nesse raciocínio, foi o mercado livre que se tornou disfuncional à sociedade pós-industrial, pois não é mais capaz de gerar empregos e financiar o welfare state, inaugurando aquilo que
Pierre Rosanvallon e Jean-Paul Fitoussi chamam de nova era das desigualdades. Trata-se de uma crise de largo espectro, que põe em causa as relações entre eco- nomia e sociedade (crise do trabalho), que desfigura as instituições encarregadas de promover a solidariedade social (crise do welfare state) e que esvazia a cidada- nia e as identidades individuais e coletivas (crise da democracia).
Minhoto e Martins (2001) explicam que em resposta a esse processo, o Estado se reorganiza para efetivar um elenco de prioridades que lidem com o retrocesso financeiro e fiscal dos países capitalistas. Para isto, reduz a eficácia e a eficiência de sua ação estatal através do desmonte nos sistemas de prote- ção social, do abandono de posturas protecionistas e da institucionalização de processos de flexibilização no trabalho. Esta manobra favorece a expansão da globalização com políticas macroeconômicas monetaristas, para financeirizar a economia e esvaziar os investimentos na produção de bens e recursos que formam o fundo público.
Neste mundo globalizado, as questões anteriormente resolvidas na esfera dos Estados nacionais, agora atingem uma escala planetária, ou seja, existem tantos estilos de vida e visões de mundo, que os Estados já não conseguem atender as demandas a eles impostas, com os mesmos níveis de eficácia e eficiência com os quais suas questões eram tradicionalmente solucionadas3, caracterizando a cha- mada crise do Estado (HABERMAS, 2004).
As refrações desta crise incidem sobre as políticas sociais com condiciona- mentos de regulação econômica, social e política, onde são apresentadas as de- mandas da sociedade e também é estabelecido o âmbito das responsabilidades no provimento destas necessidades de reprodução social. Importa relembrar ainda que as demandas por proteção social pressupõem que o cidadão esteja engajado no processo produtivo e no modo de reprodução da sociedade:
Os indivíduos considerados improdutivos para o capital inserem suas necessida- des no âmbito da proteção social. A lógica da sociedade do capital é antagônica à proteção social, por considerá-la expressão de dependência, e atribui às suas ações o contorno de manifestação de tutela e assistencialismo, em contraponto à liberdade e autonomia que, pelos valores da sociedade do capital, devem ser exercidas pelo “indivíduo” estimulando sua competição e desafio empreende- dor. Nesse ambiente, a proteção social é estigmatizada no conjunto da ação estatal e, por consequência, esse estigma se espraia àqueles que usam de suas
atenções e, até mesmo, a quem nela trabalha e os demandatários de proteção social são nominados por inválidos, uma vez que, para o capital não são con- táveis e seu autossustento não é mantido pelo salário advindo da ocupação, emprego ou trabalho (SPOSATI, 2013, p. 656).
É preciso relacionar as políticas sociais e sua funcionalidade estratégica ao sistema do capital que obtiveram uma expansão no pós Segunda Guerra. Observa-se uma operação do fundo público4 na redistribuição da riqueza pro- duzida, sob a forma de serviços e benefícios, até a instauração de novas bases na relação entre o Estado e a sociedade civil, ao final do século XX e início do século XXI. Behring indica alguns pontos sobre esta reflexão para compreender o campo das políticas sociais neste cenário:
As políticas sociais são concessões/conquistas mais ou menos elásticas, a de- pender da correlação de forças na luta política entre os interesses das classes sociais e seus segmentos envolvidos na questão. No período de expansão, a margem de negociação se amplia; na recessão, ela se restringe. Portanto, os ciclos econômicos, que não se definem por qualquer movimento natural da economia, mas pela interação de um conjunto de decisões ético-políticas e eco- nômicas de homens (reais) que balizam as possibilidades e limites da política social (BEHRING, 2009, p. 315-316).
Um resultado deste reordenamento do Estado e das políticas sociais imple- mentado pelo modelo neoliberal de gestão ocorre paralelo à reposição dos lucros da acumulação, e as desigualdades social e econômica, que se acentuam amplian- do as refrações da “questão social”5, que se projeta no cenário atual e passa a ser trabalhada na esfera estatal sob a concepção liberal, que Iamamoto denomina como ‘sociedade do risco’, onde o risco não é resultado das crises do capitalismo, porque este último no máximo apresenta contradições naturais e impasses pró- prios do seu desenvolvimento. A ‘sociedade do risco’ é consequência da financei- rização e do livre mercado na globalização, que levados aos extremos acabariam com qualquer tipo de controle.
A crise do capital é fetichizada como meros riscos inerentes ao sucesso do capital, passíveis de serem administrados. Daí a proteção social passa a ser tratada como “gestão do risco”. Como a dinâmica da sociedade de risco ocorre mais além de po-
sições e classes, a análise prescinde de diferenças de classe e iguala artificialmente a todos diante do risco. Os pobres, os mais vulneráveis, reclamariam apoio para manejar os riscos com que se defrontam. E assim, emerge uma nova maneira de encarar a política de proteção social como: estratégia de manejo ou administração de risco. A proteção envolve estratégias voltadas à “redução de riscos”, à “atenua- ção de riscos”, ao “enfrentamento dos riscos”; o “manejo dos riscos” e incorpora as questões de vulnerabilidade no debate sobre a pobreza. Uma dupla dimensão no alívio da pobreza extrema afirma-se na “sociedade de risco”: a criação de redes de segurança social para a proteção da subsistência básica e a promoção de aceita- ção do risco. (IAMAMOTO, 2013, pp. 338-339).
É nesta perspectiva de intervenção que as políticas públicas na atualidade ad- ministram o risco social dos diversos segmentos sociais em situação de vulnera- bilidade. Os riscos sociais possuem um caráter político, ensejando medidas de enfrentamento que se expressam em projetos para a sociedade. Assim, as pessoas ou grupos categorizados no modelo citado têm sua condição de classe social su- primida, o que contribui para a invisibilidade dos efeitos das crises do capital, e também significa responsabilizar unicamente os indivíduos por não evoluírem com o sistema. Sobre esta questão, Murillo (2007, p. 64) infere que:
O novo pacto social passa a considerar que certo grau de desigualdade é inevitável em toda sociedade, pois ele é um incentivo ao trabalho. A desigualdade é definida como inevitável parte da condição humana, pois [segundo o Banco Mundial] “a maioria das pessoas estaria de acordo com que uma sociedade necessita certo ní- vel de desigualdade para proporcionar inventivos ao trabalho e ao investimento”.
Neste contexto, onde incidem a crise política e econômica, a descentra- lização significa em um primeiro momento transferir poder e funções admi- nistrativas como sinônimo de democratização política do poder, despontan- do nos países latino-americanos da periferia capitalista sob esta expectativa, contanto não seria aplicada com tal uniformidade, pois seu conceito varia en- faticamente conforme a concepção do papel do Estado adotada (JUNQUEI- RA; INOJOSA; KOMATSU, 1997).
Segundo Rocha (2006), os possíveis benefícios da descentralização foram pauta dos setores políticos da direita, em especial os neoliberais, que relacio- navam a descentralização a uma maior eficiência e eficácia na ação pública. No
Brasil, a proposta representou para os segmentos políticos, inclusive de esquerda, um caminho para democratizar politicamente o país, com incentivo à participa- ção da sociedade civil nos processos decisórios de uma forma institucionalizada, como se instituiu na Constituição Brasileira de 1988.
Importa destacar que, mesmo com a soberania estatal enfraquecida pelo con- texto neoliberal desenhado na América latina, o Estado ainda é um agente de intervenção estratégico na economia e na sociedade, ou seja, embora com seu foco de intervenção redirecionado para o crescimento da globalização, ele passa a reconfigurar sua atuação, conjugando-a com a sociedade civil, e para isso evoca a concepção de trabalhar as políticas sociais em redes, com parcerias construídas nos níveis municipal, estadual e federal.
Nesse formato, o atendimento setorizado nas políticas sociais ficaria sub- sumido e invalidado como formato de gestão. Abrem-se novos espaços para a participação da sociedade nas esferas decisórias, e isto implica em uma maior horizontalidade nas relações entre a sociedade e o Estado. A Política de Assis- tência Social operacionalizada através dos trabalhadores/as nos espaços ocupa- cionais do Sistema Único de Assistência Social - SUAS vivencia esse contexto e suas inflexões na atualidade.
A intersetorialidade e a Assistência Social: caminhos e descaminhos de uma proposta de gestão na política social
Compreender a gestão da Política de Assistência Social na atualidade pres- supõe entendermos que a descentralização é a categoria precursora da interse- torialidade, pois sua função de delegar poderes nos níveis de gestão também se constitui como estratégia de gestão integrada no atendimento das refrações da questão social. Neste caso, cabe ao Estado operacionalizar o desenvolvimento de ações intersetoriais no âmbito da gestão das políticas sociais.
Na ciência moderna, a compartimentalização e a divisão de especialidades se tornaram elementos fundamentais para buscar o conhecimento. Isto é evidencia- do pela configuração das disciplinas e modelos da Administração Pública, organi- zados para funcionar setorialmente. Porém, os novos desafios da realidade estão demonstrando a impossibilidade de se atender às demandas da população dentro dos muros fechados das políticas setoriais (GONÇALVES; GUARÁ, 2010).
A confluência entre a diversidade de demandas na sociedade contemporânea e a inviabilidade no trabalho isolado por áreas sinalizam a necessidade de rever este atendimento fragmentado e setorizado das demandas sociais, que não res-
ponde à complexidade do real. O trabalho de redes intersetoriais se configura como uma nova abordagem para as demandas da população, baseada na troca de saberes e de práticas entre os atores públicos ou entes governamentais envolvidos. A incorporação da intersetorialidade na implementação de políticas seto- riais se tornou uma exigência, na medida em que não se atingiam os níveis de eficácia e eficiência esperados para atender as demandas da população. Dessa forma, a intersetorialidade obteve validade nas políticas setoriais, visando a sua efetividade por meio da articulação de saberes técnicos, “já que os especialistas em determinada área passaram a integrar agendas coletivas e a compartilhar
objetivos comuns” (NASCIMENTO, 2010, p. 96).
Inojosa (2001, p. 105) afirma que a intersetorialidade pode ser entendida como uma “articulação de saberes e experiências com vistas ao planejamento, para a realização e avaliação de políticas, programas e projetos, com o objetivo de alcançar resultados sinérgicos em situações complexas”. A concepção de interse- torialidade é vinculada ao conceito de rede, e nela os saberes são compartilhados e articulados, e não sobrepostos por hierarquia.
Essa nova lógica de gestão pública busca superar a fragmentação das políticas ao compreender o indivíduo como um todo. Porém, o processo de construção da intersetorialidade não pode ser entendido apenas do ponto de vista operacional, pois as instituições apresentam relações de poder e grupos de interesses, e o pro- cesso em si implica em mudanças na cultura organizacional das políticas sociais e nas práticas de seus agentes públicos (JUNQUEIRA, 2000).
De forma geral, podemos inferir que a intersetorialidade detém como processo a capacidade de ampliar o alcance das políticas sociais através da complementarida- de de ações entre os atores envolvidos. Este é o horizonte que se espera alcançar em relação à Política de Assistência Social, a qual em sua lógica de concepção e forma- ção como política setorial necessita superar o legado histórico de fragmentação dos atendimentos e esvaziamento do seu significado enquanto direito social.
Integrante da tríade de políticas de seguridade social brasileira, a Política de Assistência Social vem se destacando em sua função protetiva, através de sua configuração com as proteções básica e especial, esta última escalonada em dois níveis (média complexidade e alta complexidade) e também na vigilância socio- assistencial. É válido pontuar que a intersetorialidade é um dos princípios organi- zativos das ações na Política de Assistência Social6.
Nesta configuração, ao introduzir a intersetorialidade como um eixo estrutu- rante, a Política de Assistência Social se depara com formatos de trabalho histo-
ricamente setoriais, derivados do modelo cartesiano de intervenção estatal, e da cultura política marcada por ações clientelistas, paternalistas e assistencialistas. Este quadro impõe ao SUAS o enfrentamento de uma série de barreiras que difi- cultam a materialização da intersetorialidade na prática.
De acordo com Pereira (2004), essa relação da assistência social com as de- mais políticas públicas demanda uma revisão sobre os elementos que particu- larizam essa política pública, e o desafio que ela tem de concretizar os direitos de cidadania, em um período em que a ordem capitalista vigente é contrária a esse processo, ou seja, a assistência social precisa ser analisada considerando sua histórica vinculação com a pobreza absoluta, uma noção imposta pelas classes dominantes. É preciso avaliar também sua inserção no atual contexto capitalista neoliberal, que trata a assistência social como uma medida residual, emergencial, paliativa e desconectada das demais políticas públicas.
Sabemos que o cenário brasileiro é um espaço que congrega diversidades e adversidades desde a sua formação até a atualidade. Assim, o lugar ocupado pela Política de Assistência Social no atual contexto neodesenvolvimentista brasileiro7 reflete para além da base legal que ancora os princípios e diretrizes desta política setorial, a centralidade a ela delegada na proteção social brasileira, onde a pree- minência de programas de transferência de renda, em detrimento da ampliação dos serviços socioassistenciais, compromete uma integração do SUAS, para que este último garanta o acesso aos direitos socioassistenciais a todos aqueles que deles necessitarem, para além da condição da pobreza extrema.
Segundo Bronzo e Veiga (2007), a gestão de um arranjo intersetorial gira em torno dos seguintes desafios: no campo da decisão política, requer dos gestores da política pública a capacidade de redirecionar a ação pública local por meio de acordos políticos e da construção de pactos e consensos entre os atores envolvi- dos, considerando os interesses em jogo. No que se refere aos arranjos institu- cionais, é preciso avaliar a necessidade de criar uma estrutura e instrumentos de gestão necessários para a viabilização da nova realidade de gestão. E na esfera dos processos de trabalho, são necessárias alterações na lógica de operação das ações que devem ser efetuadas, para destacar a importância do trabalho dos técnicos responsáveis pela operacionalização da ação intersetorial.
Bronzo e Veiga (2007) apontam ainda que a intersetorialidade está em uma perspectiva muito mais ampla do que um conjunto de relações entre as políticas sociais, ela envolve o planejamento coletivo com alterações na dinâmica dos pro- cessos e no conteúdo das políticas. Uma dessas mudanças é compreender os pro-
blemas a partir de uma visão interdisciplinar e integral, cujo enfrentamento deve ser articulado, envolvendo as várias políticas públicas. Mas, apesar dos prenúncios de intersetorialidade entre os entes federativos, ou entre as políticas setoriais, os quais estão nos documentos oficiais da política de assistência social, estas referências não são claras e diretas, o que dificulta a sua interpretação por parte dos gestores.
Dessa forma, é grande o desafio para a materialização da intersetorialidade como possibilidade de novo arranjo na gestão da política de assistência social. O que aqui se propõe não é a superação da setorialidade e do conhecimento disci- plinar, pelo contrário, é fundamental a valorização do saber de cada política, des- tacando a importância de cada disciplina, e estes indicativos teóricos favorecem novas reflexões, quando comparados ao trabalho desenvolvido nas secretarias e órgãos responsáveis pela Política de Assistência Social.
A Intersetorialidade na Prática do Trabalho no SUAS: reflexões sobre a Política de Assistência Social em Fortaleza-Ceará
As reflexões ora apresentadas são resultado de uma pesquisa qualitativa realizada em dezembro de 2014 sobre o trabalho dos assistentes sociais no SUAS em Fortaleza-Ceará. A intersetorialidade foi um dos pontos em desta- que neste trabalho, por ser uma perspectiva de fortalecimento das ações, pro- gramas e projetos nos territórios, e principalmente na capital cearense, mas também por evidenciar os entraves enfrentados pelas equipes de profissionais nos serviços de proteção social básica e especial no alcance dos objetivos da Política de Assistência Social.
O trabalho com o SUAS em Fortaleza tem como referência institucional a Secretaria Municipal de Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome (Setra). A secretaria tem como missão assegurar à população a assistência social integral, a segurança alimentar e nutricional, a segurança de renda e participação na vida produtiva, contribuindo para o desenvolvimento da autonomia cultural, social, política e econômica e viabilizando o pleno exercício da cidadania8 aos usuários da Política de Assistência Social. Para efetivar este trabalho, a Setra está configurada através de uma Coordenadoria de Gestão Integrada da Assistência Social (COIAS), que possui quatro eixos estruturantes: a Célula de Gestão e for- talecimento do SUAS, a Célula de Proteção Social Básica, a Célula de Gestão de Benefícios, e a Célula de Proteção Social Especial.
A Gestão do Sistema Único de Assistência Social oferta subsídios às ins- tâncias de decisão da secretaria para planejamento, implantação, estruturação,
execução e fortalecimento do SUAS no Município de Fortaleza, desenvolvidos em quatro linhas: a Vigilância Socioassistencial, a Gestão do Trabalho, a Rede Privada e o Cadastro Único.
A Célula de Proteção Social Básica que se desenvolve através dos CRAS, e seus serviços, envolvem o Serviço de Proteção e Atendimento integral à Famí- lia (PAIF), o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), os Benefícios Eventuais e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Existe ainda uma célula de gestão para os benefícios eventuais com uma equipe específica para trabalhar os eixos de proteção básica e especial, no sentido de monitorar, qua- lificar os profissionais e repassar dados à gestão do SUAS, ou seja, os benefícios eventuais e o BPC são solicitados pela população usuária e repassados nos CRAS e Creas, mas a gestão de toda a informação e andamento dos processos é monito- rada pela Célula de Benefícios.
A Célula de Proteção Social Especial organiza seus serviços9 em Média Com- plexidade e Alta Complexidade, além dos convênios com entidades que prestam serviços socioassistenciais, complementando as ações de Proteção Básica e Especial. No ano de 2015, as ações do SUAS, sob gestão da Setra, são desenvolvidas em 38 equipamentos de rede direta, compostos por 26 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), 07 Centros de Referência Especializados da Assistên- cia Social (Creas), 02 Centros Pop e 03 unidades de acolhimento institucional na Alta Complexidade . Toda esta estrutura demanda um quantitativo de recursos humanos composto por um quadro funcional com 754 profissionais distribuídos, entre 08 cargos comissionados, 26 servidores efetivos, 381 empregados tercei- rizados e 342 servidores temporários contratados após processo seletivo pelo período máximo de dois anos. Este último quantitativo de profissionais atua na
rede direta, à qual nos referimos anteriormente.
Observa-se ainda que, historicamente, a forma de contratação de profissio- nais nas gestões do Município de Fortaleza ocorre via terceirizações, cargos co- missionados, e atualmente, também no formato de seleções simplificadas, uma sistemática contrária à orientação da Norma Operacional Básica dos Recursos Humanos (NOB-RH), sobre a realização de concursos públicos para ingresso na Política de Assistência.
Devido à adoção destes formatos de ingresso para profissionais na secretaria, inferimos que os vínculos temporários e precários de trabalho aumentam a rotativi- dade nas equipes dos serviços, com prejuízos à execução da política, pois estes tra- balhadores em exercício no SUAS em Fortaleza têm o desafio de afirmar e expandir
a assistência social como um direito, em um contexto de metrópole permeado por contradições e desigualdades de origem neoliberal, que expressam a questão social e marcam a Política de Assistência Social e àqueles/as que a operam.
O SUAS tem como principais pressupostos a territorialidade, a descentraliza- ção e a intersetorialidade, e o objetivo é promover a inclusão social ou melhorar a qualidade de vida, resolvendo os problemas concretos que incidem sobre a po- pulação de um dado território (MONNERAT e SOUZA, 2011).
Segundo os relatos das profissionais entrevistadas , a intersetorialidade é um processo necessário, não somente para a execução da política social, mas por sua compreensão e alcance nas articulações institucionais. Paralelamente, este mes- mo processo de intersetorialidade evidencia as dificuldades na materialização do acesso aos direitos sociais e socioassistenciais, e isto foi identificado pelas profis- sionais no âmbito institucional e interdisciplinar.
Na esfera institucional existe o reconhecimento das profissionais entrevistadas quanto ao esforço da Setra para desenvolver uma articulação efetiva com as outras políticas sociais, mas, na prática, existem entraves que descaracterizam e fragili- zam esse processo, o qual é veiculado prioritariamente por relações pessoais, que substituem a relação institucional, além da pouca compreensão sobre o espaço setorial e o papel de cada política. Estes elementos evidenciam a inabilidade ainda existente no campo das políticas sociais em promover a complementaridade nas ações entre as áreas de atuação.
Outro ponto em destaque foi o desgaste emocional das profissionais ao abor- dar a questão da intersetorialidade, a qual, segundo elas, não evolui devido à pouca compreensão de gestores e profissionais das políticas sociais em relação ao assunto, e também pelo aspecto da pessoalidade, presente nos processos de arti- culação, ou seja, quando os profissionais são desligados de seus empregos, tudo precisa recomeçar novamente, exceto as demandas dos usuários que esperam, e que por isso se avolumam. Destas questões inferimos que os fatores citados incidem negativamente sobre a qualidade dos serviços prestados na Política de Assistência e na articulação desta com políticas sociais correlatas como a Saúde, Educação e Habitação.
Considerações finais
Na atualidade, a mundialização do capital e a reestruturação produtiva são a tônica para redimensionar o trabalho e a sociabilidade contemporânea, es- praiando o agravamento da questão social. Sob essa clivagem, a reconfiguração
do Estado, de acordo com a orientação neoliberal, não se limita a desregular, privatizar e tentar reduzir o seu tamanho. A questão é muito mais complexa e envolve mudanças no padrão de financiamento (fiscal, financeiro e patrimonial) para um formato redimensionado, onde a intervenção e a regulação estatal não desaparecem, mas se fortalecem e encaminham as reformas institucionais ne- cessárias para o Estado e para o mercado, garantindo a funcionalidade na nova etapa do capital (MÉSZÁROS, 2009).
No Brasil, esse processo se intensificou nos anos de 1990, como resulta- do da integração nacional ao mercado globalizado e sua lógica de acumulação flexível do capital. Nestes moldes, o ajuste estatal, sob a diretriz neoliberal, impactou as políticas sociais, consideradas um campo privilegiado de interven- ção, trazendo repercussões para todos nelas envolvidos, sejam profissionais em condições de trabalho precarizados, ou usuários dos serviços sociais, os quais nem sempre conseguem acessar o atendimento, e muito menos entender com clareza a finalidade das políticas sociais.
No caso da Política de Assistência Social, e da implementação do SUAS, estes se inscrevem em dois momentos. O primeiro foi demarcar o espaço de atuação da Assistência Social com objetivos, diretrizes e marcos regulatórios para uma inter- venção qualificada. E o segundo foi unificar, padronizar e racionalizar esta política social. O SUAS instaurou ainda a possibilidade de profissionalizar a Assistência Social. Isso não pode ser considerado um avanço menor, em um campo marca- do pela cultura da benemerência, e, sobretudo, pelo clientelismo, fisiologismo e primeiro-damismo (CFESS, 2011, p.101).
Porém, há um descompasso na consolidação do SUAS, que não é exclusivida- de da Assistência Social, mas atinge todas as políticas sociais com um contexto de retração, na medida em que os sistemas de proteção social são implementados, porém não recebem um suporte adequado para funcionarem. Isso é visível pela forma de tratamento dada aos recursos humanos, que são um fundamento do trabalho na Assistência Social.
No contexto de Fortaleza e da Setra, o cotidiano do trabalho das equipes nos serviços do SUAS evidencia a importância da intersetorialidade para a consolida- ção dos objetivos e diretrizes da Política de Assistência, fortalecendo o acesso aos direitos sociais e socioassistenciais. Assim, os entraves nas relações institucionais e interdisciplinares fragilizam a rede de proteção social nos territórios, na me- dida em que a intersetorialidade está presente no discurso, mas não se reflete significativamente na prática, onde a troca de conhecimentos e saberes, acrescida
da mediação, poderiam contribuir significativamente para um trabalho em rede intersetorial mais qualitativo, e com menos desperdício de tempo e recursos. Porém, os serviços sociais são prestados sob a lógica do trabalho setorizado, o que prejudica os usuários, que acabam também visualizados de forma fragmentada, assim como suas demandas de atendimento, contribuindo para o enfraquecimen- to da defesa e do acesso aos direitos dos cidadãos.