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Precarização no "mundo do trabalho": a experiência dos ambulantes dos trens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Ana Paula Ferreira Jordão
PUC-Rio, Brasil
Inez Stampa
PUC-Rio, Brasil

Precarização no "mundo do trabalho": a experiência dos ambulantes dos trens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

O Social em Questão, vol. 18, núm. 34, pp. 315-338, 2015

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo: O artigo aborda de que forma a condição de precariedade tornou-se uma dimensão pró- pria ao processo de mercantilização do trabalho, bem como a informalidade contínua sen- do a alternativa de muitos para o pertencimento ao “mundo do trabalho”. Apresentamos a experiência laboral dos sujeitos que trabalham como vendedores ambulantes nos trens urbanos de passageiros que circulam na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Tais sujeitos, em algum momento de suas vidas, não conseguiram se alocar no mercado de trabalho considerado “formal” e, para obter os meios para garantir a própria sobrevivência e de sua família, foram trabalhar como ambulantes na ferrovia.

Palavras-chave: Trabalho, Trabalhadores, Precarização, Ferrovia, Ambulantes.

Precarização no “mundo do trabalho”: a experiência dos ambulantes dos trens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Ana Paula Ferreira Jordão1 Inez Stampa2

Resumo

O artigo aborda de que forma a condição de precariedade tornou-se uma dimensão pró- pria ao processo de mercantilização do trabalho, bem como a informalidade contínua sen- do a alternativa de muitos para o pertencimento ao “mundo do trabalho”. Apresentamos a experiência laboral dos sujeitos que trabalham como vendedores ambulantes nos trens urbanos de passageiros que circulam na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Tais sujeitos, em algum momento de suas vidas, não conseguiram se alocar no mercado de trabalho considerado “formal” e, para obter os meios para garantir a própria sobrevivência e de sua família, foram trabalhar como ambulantes na ferrovia.

Palavras-chave

Trabalho; Trabalhadores; Precarização; Ferrovia; Ambulantes.

Precariousness “world of work”: the hawkers’ experience of the trains of the Rio de Janeiro Metropolitan Region

Abstract

The article discusses how the condition of precariousness has become its own commo- dification of labor to the process dimension as well as the informality remains the alter- native of many belonging to the “world of work”.We present the labor experience of the subjects who work as hawkers at the urban trains used in the Rio de Janeiro Metropolitan Region (RJMR). At some point of their lives such subjects could not allocate themselves in the “formal” work market and, therefore, to provide ways of assuring their own family survival. For this reason, they went to work as hawkers at the railroad.

Keywords

Work;Workers; Precariousness; Railroad; Hawkers.

Introdução

Este trabalho trata sobre a questão da precariedade no “mundo do trabalho3”. Para tanto, discorremos sobre como a condição de precariedade se tornou uma dimensão própria ao processo de mercantilização do trabalho, assim como a in- formalidade continua sendo a alternativa de muitos sujeitos para o pertencimento ao “mundo do trabalho”, constituindo-se em regra e não mais em exceção. Além disso, enfatizamos a centralidade do trabalho, resgatando sua importância na re- produção das relações sociais.

Procuramos abordar, portanto, a relação entre precarização do trabalho e da vida social na contemporaneidade. Exploramos as diversas dimensões da vida afe- tadas pelo trabalho precário, tendo em vista a falta de “trabalho decente”. Apon- tamos aspectos considerados relevantes quanto ao processo de precarização do trabalho (e, por conseguinte, da vida) experimentados, sobretudo, pelos sujeitos que possuem uma suposta autonomia no exercício do seu trabalho, como os am- bulantes que trabalham nas grandes cidades.

Assim, nossa atenção esteve voltada para a compreensão tanto dos processos econômicos e políticos como dos demais que têm marcado a questão da precari- zação do trabalho no Brasil, como totalidades que se articulam, ou melhor, que se determinam mutuamente, com graus de complexidades variados.

Neste artigo buscamos apresentar a experiência laboral dos sujeitos que tra- balham como vendedores ambulantes nos trens urbanos de passageiros que cir- culam na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), tendo como foco as ferrovias da cidade do Rio de Janeiro e tomando como base as transformações contemporâneas no “mundo do trabalho”. Dessa forma, empregaremos o termo “uma vida de andanças”, em referência às condições de trabalho e de vida dos ambulantes que vendem produtos no espaço ferroviário da RMRJ, atualmente administrado pela concessionária SuperVia4.

Para isso, torna-se fundamental contextualizar quem são os sujeitos que atu- almente trabalham na ferrovia. São tanto os servidores públicos, empregados da iniciativa privada, terceirizados, subcontratados e aposentados, quanto os desempregados e informais, que vendem produtos nos trens, pois todos depen- dem da ferrovia para o seu sustento (STAMPA, 2011). Como exemplo, citamos alguns ambulantes entrevistados no desenvolvimento da pesquisa de campo re- alizada no ano de 20135.

A SuperVia, empresa concessionária que administra, atualmente, 102 esta- ções, distribuídas em oito ramais, que abrangem 270 quilômetros de via férrea

na RMRJ, não permite a prática da venda de produtos nos trens, com algumas exceções, como era o caso de ambulantes devidamente autorizados que vendem produtos da Nestlé, Pepsi-Cola e jornais populares. Inicialmente, nossa intenção era priorizar o estudo em relação aos ambulantes que trabalham no espaço da ferrovia de forma irregular, ou seja, os não autorizados, porque estes constituem a maioria.Todavia, decidimos englobar também os autorizados, por entendermos que ambos, tanto os que possuem autorização quanto os que não possuem, expe- rimentam a precariedade no seu processo de trabalho.

Nesse sentido, procuramos conhecer a realidade dos ambulantes que traba- lham nos trens urbanos de passageiros da RMRJ. Em tal processo, é de suma rele- vância refletir sobre as condições de trabalho experimentadas por esses sujeitos.

Trabalho e precarização

Na atual fase do capitalismo há uma crescente tendência à precarização das condições de trabalho, ocasionando a deterioração das condições de vida e traba- lho para a classe trabalhadora. A condição de precariedade da classe trabalhadora manifesta-se, cada vez mais, em escala global. Por essa razão, este texto se propõe a tecer reflexões sobre o processo de precarização do trabalho e da vida de forma ampla, uma vez que as repercussões no “mundo do trabalho” afetam internacio- nalmente todos os âmbitos da vida social.

O termo precariedade tem sido utilizado para designar perdas nos direitos trabalhistas ocorridas no contexto das transformações do “mundo do trabalho” e de retorno aos ideais liberais de defesa do Estado mínimo. Em termos gerais, refere-se a um conjunto amplo e variado de mudanças em relação ao “mundo do trabalho”, condições de trabalho, qualificação dos trabalhadores e direitos traba- lhistas. Refere-se, portanto, à redução de salário e proteção social, ou seja, à piora nas condições gerais de trabalho e desmobilização, o que, consequentemente, au- menta o risco de acidentes de trabalho e de problemas de saúde, de forma geral. Para desenvolvermos nossa proposta, leva-se em conta a questão estrutural pre- sente no sistema capitalista.A despeito dos altos patamares tecnológicos alcançados, o âmbito da produção permanece, de modo dominante, estruturado e se movimen- tando em prol da acumulação do capital e do lucro. A lógica produtivista continua aprofundando a apropriação privada da riqueza socialmente produzida e dos recur- sos naturais, consolidando o mercado como eixo da sociedade. Tal lógica restringe “as possibilidades do trabalho se constituir em um meio de desenvolver a dignidade, a solidariedade e as potencialidades do ser humano” (FRANCO, et al., 2010, p.230).

Historicamente, ocorreram avanços nas sociedades capitalistas, por intermé- dio da luta da classe trabalhadora, que suscitaram direitos sociais fundamentais. Contudo, pautando a nossa análise na contemporaneidade, verificamos retroces- sos sociais significativos em relação às décadas precedentes, manifestados na ex- pansão da precarização do trabalho. A precarização tornou-se uma propriedade do trabalho na atualidade, apresentando múltiplas expressões e dimensões, afe- tando, dentro e fora do trabalho, todos os sujeitos que vivem do trabalho (op. cit.). No Brasil, assim como em outros países de capitalismo periférico, o reco- nhecimento da precariedade se tornou fundamental porque se configura como parte de um processo acelerado de desenvolvimento, no curso do qual a pobre- za se elevaria ao salário decente e à cidadania, e o país alcançaria nova posição internacional. De tal modo, por um lado, a precariedade na vida da maioria da população era conferida à dinâmica nova do capitalismo, e não à herança arcaica que arrastamos. Por outro lado, essa mesma precariedade era essencial à acu-

mulação econômica (OLIVEIRA, 2003).

A precarização está presente desde as origens do capitalismo, porém, com o decorrer do desenvolvimento histórico do capitalismo, ela foi se transforman- do. Nas últimas três décadas, de forma mais acentuada, adquiriu novos contor- nos, expandindo-se. Instaurou-se, assim, um processo mundial de precarização vivido também pelos países desenvolvidos. A questão basilar é que a precariza- ção se tornou central nessa fase do desenvolvimento capitalista, generalizando-

-se por “toda parte” (DRUCK, 2013).

De acordo com Druck (2012), pode-se dizer que, no Brasil, a precarização do trabalho se conjuga em um fenômeno ao mesmo tempo velho e novo, cujas funda- mentais características, modalidades e dimensões assinalam para um processo de precarização social novo que se ampliou nas décadas de 1990 e 2000. A nova pre- carização social do trabalho estabelece-se econômica, social e politicamente atra- vés de um artifício que institucionaliza a flexibilização e a precarização modernas do trabalho, restaurando e reconfigurando a precarização histórica e estrutural do Brasil, que está se ampliando de modo cada vez mais drástico.

A precarização do trabalho no Brasil é abrangente, generalizada e central, estando presente nas regiões mais desenvolvidas do país, como São Paulo, e tam- bém nas mais tradicionalmente distinguidas pela precariedade, como a Bahia; nos domínios mais dinâmicos e modernos do país, nas indústrias de ponta e nos mo- dos mais habituais de trabalho informal, autônomo e rural; e na vida dos trabalha- dores mais qualificados, assim como na dos menos qualificados. Tal precarização

instaura-se como um processo social que desestabiliza as relações de trabalho e, logo, afeta todos os sujeitos que vivem do trabalho, ocasionando perdas quanto aos direitos, à saúde, e à própria vida.

O trabalho flexível e precário tornou-se uma exigência do processo de finan- ceirização da economia na era da acumulação flexível. A hegemonia da “lógica financeira” invade todos os âmbitos da vida social, dando teor a um novo modo de trabalho e de vida. Porém, a precarização como tática de preponderância do capi- talismo flexível e globalizado parece já apresentar sua exaustão (DRUCK, 2012). A Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou, em 2008, um pa- norama mundial do trabalho desde 1990 e sinalizou a fragilidade e a precariedade do trabalho no globo. Destacou o insuficiente crescimento do emprego perante as necessidades de incorporação no mercado de trabalho; a ampliação das de- sigualdades de renda em 2/3 dos países; o endividamento dos trabalhadores e suas famílias em países com mercado financeiro sem regulamentação, como os Estados Unidos; além do crescimento do trabalho atípico (DRUCK, 2013). “Os ‘sem emprego’, grupo constituído pelos desempregados e pelos trabalhadores

informais, são hoje a maioria dos trabalhadores brasileiros” (op. cit., p. 65).

O panorama em diversos países do mundo é da existência abundante de mão de obra de grande parte da classe trabalhadora e, diante da privação de alternativas, múltiplos sujeitos vendem a baixo custo sua força de trabalho, isso quando conseguem vendê-la. Essa dinâmica reflete um aspecto dos tempos difíceis enfrentados pela “classe que vive do trabalho”, esvaindo-se a esperança de melhorar as condições de vida através do trabalho. Outros sujeitos já não se submetem a tal flexibilidade, como o Movimento “Precários Inflexíveis”6 de trabalhadores precarizados em Portugal, que se definem como precários no emprego e na vida, porém inflexíveis.

O desemprego se converteu em um dos fenômenos mais dramáticos de nosso tempo, com características cada vez menos conjunturais, assumindo fortes co- notações estruturais. A nova organização capitalista do trabalho caracteriza-se, progressivamente, com a explosão da precariedade, da flexibilidade, da não re- gulamentação; um retrocesso sem precedentes para os assalariados em atividade, além da existência real do medo de perder o emprego, entre outras questões. Tudo isto suscita a precariedade da vida social (VASAPOLLO, 2008).

Buscando esmiuçar o que é a precariedade da vida social, podemos destacar que abrange a precariedade do direito, pois a maioria dos sujeitos não consegue ter acesso aos direitos que lhe foram garantidos constitucionalmente, como o

direito ao trabalho e aos equipamentos coletivos. Considerando a nossa realidade nacional brasileira, é possível constatar a precariedade das instituições que pres- tam serviços de saúde e de educação, e que grande parte da população não tem alternativa que não a de utilizá-las.

Ainda em relação à precariedade da vida social, podemos afirmar que muitos trabalhadores se tornam reféns das péssimas condições de trabalho e dos salários baixíssimos. De tal modo, a precariedade pode influir no sistema de valores, no relacionamento familiar, enfim, no modo de vida dos sujeitos, tornando as rela- ções mais desgastantes e a vida mais difícil, além de gerar adoecimentos oriundos do âmbito laboral. Com isso, trabalho e adoecimento devem ser pensados “não como um problema individual, mas como um problema de saúde pública que atinge indivíduos em escala crescente” (FRANCO, et al., 2010, p.230).

O aumento da precariedade do trabalho ainda traz consigo uma ampliação da inconstância dos rendimentos, e a isso se sobrepõe o fracasso gradual do Estado Social, especialmente quanto à seguridade social7. Tudo isso também agrava a situação do trabalhador e gera uma situação permanente de precariedade das formas de vida (VASAPOLLO, 2006).

Diversos aspectos da questão social convergem no fenômeno do desemprego, o que provoca o adensamento das expressões da questão social e dos conflitos que a compõem (IANNI, 1994). Em decorrência disso, verificam-se, com tenacidade, processos de criminalização da pobreza.

Na disputa por sentidos, a sociedade brasileira, de forma geral, posiciona-se de maneira superficial frente às manifestações da questão social e tende a naturalizar situações como discriminação social, violência urbana e criminalização da pobreza, que atingem principalmente sujeitos que moram em periferias urbanas, como os ambulantes. Nesse contexto, o Estado tem se mostrado ausente nas diferentes áreas das políticas públicas, bem como dá respostas coercitivas a estas expressões da questão social, muitas vezes reatualizando antigos discursos e práticas.

Observando o contexto brasileiro, percebemos que a desigualdade social gri- tante produz também espaços extremamente desiguais, do ponto de vista dos equipamentos e das localizações. Sendo a segregação socioespacial o processo de luta pela apropriação diferenciada do equipamento e/ou localização, enquan- to valor de uso do espaço produzido, podemos enfatizar que os equipamentos coletivos estão localizados nas áreas mais abastadas. Apesar disso, há, também, equipamentos em áreas periféricas, porém a maioria encontra-se em estado de- plorável de conservação, o que inviabiliza a sua utilização.

Nesse sentido, cabe aludir que os trabalhadores que moram em periferias urbanas, localizações historicamente ocupadas por estratos mais empobrecidos da classe trabalhadora, deparam-se no cotidiano com uma série de problemas devido ao descaso do poder público com os cidadãos que residem nessas regiões.

Contudo, embora o Estado tenha a obrigação de investir em serviços sociais que atendam às necessidades da população e esta tenha todo o direito de cobrar quando percebe que não está sendo atendida, é fato que as melhorias nas condi- ções de vida da classe trabalhadora, através da expansão necessária dos serviços sociais, não alteram a essência exploradora do capitalismo.

Apesar do modo de produção capitalista utilizar-se da mistificação para o encobrimento de relações desiguais, a expansão do capital supõe a intensifi- cação da exploração, que é bem clara, e isso pode viabilizar a tomada de cons- ciência da classe trabalhadora, devido às contradições inerentes ao próprio sistema capitalista. Do mesmo modo, como as condições de trabalho, em sua maioria, são alienadas, as condições de vida das frações da classe trabalhadora são precárias (BRAGA, 2012).

A questão é que a realidade apresenta uma unidade de contrários, onde o “moderno” se expande e se sustenta por meio da existência do “arcaico”. Por- tanto, as crianças e os adolescentes, por exemplo, que vendem os mais diversos tipos de produtos nas ruas das cidades brasileiras, são a prova do modo cruel de modernização do país, e não do seu atraso. Com isso, as degradantes condições de vida da maioria da população são reproduzidas (OLIVEIRA, 2003).

Nessa mesma direção, Alves (2013) ressalta um aspecto da precarização do tra- balho que é a do “homem-que-trabalha”, referindo-se a uma nova dimensão de dete- rioração do homem como ser humano genérico nas condições da crise estrutural do capital. A nova forma de precarização do trabalho refere-se à estrutura da própria práxis humana, perpassando as experiências vividas de trabalhadores e trabalha- doras na sua vida cotidiana. A precarização do trabalho é uma condição histórico-

-estrutural de desenvolvimento do próprio capitalismo global, e este se distingue pela inconstância sistêmica do ciclo da economia capitalista em escala global.

Informalidade e desemprego

Desde a década de 1980 até os dias atuais, presenciamos uma crise crônica do capitalismo mundial, incapaz de assegurar desenvolvimento sustentável e resguardar os direitos sociais do “mundo do trabalho”, ainda que tenha ocorri- do, nesse período, o acúmulo de capital devido ao crescimento da extração da

mais-valia em escala global. Na crise estrutural do capital, o problema não está na formação do valor, mas sim na realização efetiva do valor acumulado. Isso esclarece a financeirização do acúmulo de capital e a aspiração por novos mer- cados através da produção destrutiva, além do movimento de tornar obsoleto, de modo arquitetado, os “produtos-mercadorias”. Ou seja, o anseio do capital é por vender (ALVES, 2013).

Diante do capitalismo global, expandiu-se a condição de “proletariedade” dos sujeitos que necessitam vender sua força de trabalho, por questão de so- brevivência, submetendo-se à exploração capitalista; ampliou-se, portanto, o contingente de trabalhadores serviçais, formais ou informais, externos à pro- dução do capital, que sobrevivem à custa da massa de mais-valia social. Pode- mos afirmar que “para homens e mulheres imersos na condição de proletarie- dade8, trabalho é vida e vida é trabalho” (op. cit., p.66). Trabalho e vida estão extremamente entranhados para esses sujeitos que dependem tanto do trabalho a ponto de utilizar o tempo que deveria ser dedicado para outras questões da vida, como o descanso e o lazer, para dar continuidade ao trabalho ou realizar um serviço paralelo visando complementar a renda.

A informalidade, em seus distintos modos de ser, supõe sempre a ruptura com os laços de contratação e regulação da força de trabalho, tal como se estru- turou a relação capital e trabalho especialmente ao longo do século XX, sob a vigência taylorista-fordista, quando o trabalho regulamentado tinha prevalência sobre o desregulamentado (ANTUNES, 2012).

Com base no referido autor, que trata sobre os modos de ser da infor- malidade e demonstra a ampliação acentuada de trabalhos submetidos a su- cessivos contratos temporários, sem estabilidade, sem registro em carteira, dentro ou fora do espaço produtivo das empresas, quer em atividades mais instáveis ou temporárias, quando não na condição de desempregado, elenca- mos as várias modalidades de informalidade observadas na realidade brasilei- ra, embora não sejam exclusivas da mesma.

Trabalhadores informais tradicionais, “inseridos nas atividades que requerem baixa capitalização, buscando obter uma renda para consumo individual e fami- liar. Nessa atividade, vivem de sua força de trabalho, podendo se utilizar do auxí- lio de trabalho familiar ou de ajudantes temporários” (ALVES e TAVARES, 2006). Nesse universo encontramos “os menos instáveis”, que possuem um míni- mo de conhecimento profissional e os meios de trabalho e, na grande maioria dos casos, desenvolvem suas atividades no setor de prestação de serviços, de

que são exemplos as costureiras, pedreiros, jardineiros, vendedor ambulante de artigos de consumo mais imediato, como alimentos, vestuário, calçados e bens de consumo pessoal, camelôs, empregados domésticos, sapateiros e oficinas de reparos (ANTUNES, 2005).

Há também os informais mais “instáveis”, recrutados temporariamente e com frequência remunerados por peça ou por serviço realizado. Eles realizam trabalhos eventuais e contingenciais, pautados pela força física e pela realização de atividades dotadas de baixa qualificação, como carregadores, carroceiros e trabalhadores de rua e serviços em geral. Esses trabalhadores mais “instáveis” podem inclusive ser subempregados pelos trabalhadores informais mais “estáveis” (op. cit.).

Nesta primeira modalidade, quando tratamos sobre os trabalhadores infor- mais tradicionais, podemos incluir os trabalhadores “ocasionais” ou “temporá- rios”, que realizam atividades informais quando se encontram desempregados, mas que visam retornar ao trabalho assalariado. Segundo a caracterização de Alves e Tavares (2006, p.431),

são trabalhadores que ora estão desempregados, ora são absorvidos pelas for- mas de trabalho precário, vivendo uma situação que, inicialmente, era provisória e se transformou em permanente. Há casos que combinam o trabalho regular com o ocasional, praticando os chamados bicos. Nesses casos obtém-se um baixo rendimento com essas atividades, [como os] vendedores de diversos produtos (limpeza, cosméticos, roupas), digitador, salgadeiras, faxineiras e confecção de artesanato nas horas de folga.

Ainda neste espectro de atividades informais tradicionais, encontram-se as pequenas oficinas de reparação e concertos, estruturadas e mantidas pela cliente- la do bairro ou por relações pessoais (ALVES e TAVARES, 2006).

Inseridos na divisão social do trabalho capitalista, essa gama de trabalhadores informais contribui para que se efetive a circulação e o consumo das mercadorias produzidas pelas empresas capitalistas. A forma de inserção no trabalho informal é extremamente precária e se caracteriza por uma renda muito baixa, além de não garantir o acesso aos direitos sociais e trabalhistas básicos, como aposentado- ria, FGTS, auxílio-doença, licença-maternidade; se ficarem doentes são forçados a parar de trabalhar, perdendo integralmente sua fonte de renda.

Não há horário fixo de trabalho, e as jornadas de trabalho levam frequentemen- te ao uso das horas vagas para aumentar a renda oriunda da atividade. Acrescente-se

ainda o fato de que, no serviço por conta própria, além do uso de seu trabalho, pode haver uso da força de outros membros da família, com ou sem remuneração.

Uma segunda modalidade remete à figura dos trabalhadores informais assa- lariados sem registro, ao arrepio da legislação trabalhista, uma vez que perde- ram o estatuto de contratualidade e que passam da condição de assalariados com carteira assinada para a de assalariados sem carteira, excluindo-se do acesso das resoluções presentes nos acordos coletivos de sua categoria. A indústria de têxtil, de confecções e de calçados, por exemplo, entre tantas outras, têm acentuado essa tendência (ANTUNES, 2005).

Isto porque a racionalidade instrumental do capital impulsiona as empresas à flexibilização do trabalho, da jornada, da remuneração, aumentando a respon- sabilização e as competências, criando e recriando novas relações e formas de trabalho que frequentemente assumem feição informal. Nos exemplos de Alves e Tavares (2006, p.431-435), encontram-se

os casos de trabalho em domicílio que se especializam por áreas de ocupação, prestando serviços às grandes empresas, que também se utilizam da subcontrata- ção para a montagem de bens, produção de serviços, distribuição de bens através do comércio de rua ou ambulante.

Muitas vezes, este modo de trabalho se realiza também em galpões, como na indústria de calçados, onde a informalidade é a norma.

Uma terceira modalidade é encontrada nos trabalhadores informais por conta própria, que podem ser definidos como uma variante de produtores simples de mercadorias, contando com sua própria força de trabalho ou de familiares e que podem inclusive subcontratar força de trabalho assalariada (ANTUNES, 2005).

Ainda de acordo com Alves e Tavares (2006), as formas de inserção do traba- lhador por conta própria na economia informal não são práticas novas, mas foram recriadas pelas empresas capitalistas, como forma de possibilitar a extração da mais-valia relativa com a mais-valia absoluta. Lembramos que há diferentes for- mas de inserção do trabalho informal no modo de produção capitalista e, para sua análise, devemos considerar essa grande heterogeneidade, buscando desvendar quais os vínculos existentes entre esses trabalhadores e o acúmulo de capital.

Estamos vivenciando, portanto, a erosão do trabalho contratado e regulamentado, dominante no século XX, e vendo sua substituição pelas diversas formas de “empre- endedorismo”, “cooperativismo”, “trabalho voluntário” etc. (ANTUNES, 2012).

Nesse sentido, convém destacar que trabalhadores “por conta própria” e tra- balhadores “autônomos”, embora, aparentemente, sejam proprietários dos meios de produção, estão subordinados à ordem sociometabólica9 do capital e suas per- sonificações estranhadas, porque não possuem o controle da produção social. Portanto, de alguma forma, também estão imersos na condição de “proletarieda- de”, pois possuem uma relação de subalternidade com o grande capital, não tendo controle do mercado que os submete (ALVES, 2013).

Esse é o caso dos trabalhadores ambulantes, que são aparentemente pro- prietários dos seus meios de trabalho, por possuírem determinadas mercado- rias, assim como o equipamento para transportá-las. Ou seja, eles obtêm as mercadorias, comprando em algum depósito ou através de consignação, e o suporte, como o isopor, para assim trabalharem. Esses sujeitos estão comple- tamente subordinados ao mercado, tanto ao adquirir as mercadorias quanto ao vendê-las, contribuindo para o escoamento da produção capitalista. E a suposta autonomia que possuem no cotidiano do seu trabalho, por “não possuírem che- fes” e serem “donos” do seu negócio, mascara a exploração a que estão subme- tidos, ainda que a condição de proletariedade seja notória.

Voltando à questão da vida pessoal, múltiplos sujeitos acabam tendo a vida pessoal reduzida por conta do trabalho. A precarização do trabalho e a precari- zação do “homem-que-trabalha” provocam a abertura de crise da subjetividade humana: a crise da vida pessoal, a crise de sociabilidade e a crise da própria referência pessoal (op. cit.). Sem dúvida, tais crises podem afetar a saúde, física e mental, dos sujeitos que compõem a classe trabalhadora, impossibilitando-os, inclusive, de trabalhar e causando transtornos na vida desses sujeitos e de suas famílias. Na sociedade capitalista, o trabalho está, estrategicamente, associado à honra familiar e ao sentimento de amor próprio.

Inicialmente, fica clara a redução da vida ao trabalho. Podemos observar, tam- bém, a vinculação entre trabalho e honra, concluindo-se que não se tem como alcançar a felicidade sem o trabalho. Infelizmente, muitos sujeitos ficam sem tra- balho e se inserem em uma situação de total desalento. Alguns chegam a adoecer e perdem o sentido da própria vida, uma vez que o trabalho era a base para a sustentação da vida, tanto material, quanto simbólica.

Sobre esse aspecto, interessante notar a categoria do “desemprego oculto pelo desalento”. Na verdade, trata-se de uma subcategoria, empregada pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED)10, realizada em parceria entre a Fundação Sis- tema Estadual de Análise de Dados (Seade), do Estado de São Paulo, com o De-

partamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). A PED divulga seus dados discriminando o desemprego aberto e o oculto; o desem- prego oculto é dividido em duas subcategorias: “desemprego oculto pelo trabalho precário” e “desemprego oculto pelo desalento”. Isso porque há um interesse, por parte da PED, em identificar a precariedade e as dificuldades em relação ao trabalho, existentes num mercado de trabalho pouco estruturado como o nosso. Neste ponto, torna-se importante esclarecer que o desemprego aberto se re- fere às pessoas cuja única atividade é a procura de emprego; o desemprego oculto por desalento refere-se às pessoas que estão sem trabalho há mais de 12 meses e que, por alguma razão, não procuraram emprego nos últimos 30 dias; o desem- prego oculto pelo trabalho precário refere-se às pessoas que possuem alguma

ocupação em atividade precária (SEADE, 1995 apud JARDIM, 2005).

Como mencionamos anteriormente, múltiplos sujeitos estão associados à ca- tegoria desemprego oculto pelo desalento devido ao desânimo e à falta de espe- rança em obter um emprego e, consequentemente, em relação à vida. Outros, como os já mencionados trabalhadores ambulantes, estão vinculados à categoria desemprego oculto pelo trabalho precário. Esta subcategoria engloba a maioria dos sujeitos que compõe a categoria de desemprego oculto. A fronteira entre essas subcategorias é extremamente tênue, podendo haver o câmbio de uma para a outra de modo frequente.

Os sujeitos que constituem a classe trabalhadora demandam um trabalho para dar andamento à vida e, devido à escassez de trabalho para todos os que dele ne- cessitam, os tempos se tornam difíceis. A precariedade parece ter invadido toda parte, não somente a vida dos desempregados, mas também a dos empregados. Nesse contexto, os sujeitos bem abastados financeiramente buscam viver em uma “redoma de vidro” para não serem atingidos pelas sequelas da intensa pobreza.

Em contextos de pobreza, são manifestas as vulnerabilidades dos corpos malnu- tridos, a fisiologia precarizada devido às péssimas condições de vida, a escassez do descanso, os corpos abatidos e o retraimento por cansaço demasiado; além da ausência de acesso à participação social, à oportunidade de conhecimentos, à conscientização política, à sociabilidade e aos lazeres expressivos (FRANCO, et al., 2010). Podemos observar algumas, ou melhor, várias dessas características na classe trabalhadora mais empobrecida. A feição sofrida dos pobres costuma assustar, principalmente, os sujei- tos que possuem melhores condições financeiras, pois alguns sujeitos em sofrimento podem, por não ter nada a perder, visto que já perderam tudo, tanto material quanto simbolicamente, revoltar-se contra uma indistinta sociedade.

Os sujeitos que trabalham como ambulantes, em sua maioria, têm uma apa- rência sofrida devido às suas péssimas condições de trabalho, e, consequente- mente, de vida, uma vez que os mesmos estão expostos às humilhações que, costumeiramente, ocorrem junto à apreensão das mercadorias. A incerteza em relação ao rendimento, em virtude do movimento das vendas, está diretamente associada à insegurança quanto ao exercício do trabalho, além da sujeição a que podem vir a ser submetidos.

Mas não somente o trabalhador “informal”, mas também o trabalhador assala- riado, que recebe um salário mínimo mensalmente, por exemplo, ao vender sua força de trabalho, acaba se submetendo às árduas condições de trabalho. Muitas vezes sem ter a iniciativa de lutar por direitos, pois sabe que, se for demitido, haverá uma fila imensa no dia seguinte para disputar a vaga que seria sua. Mesmo o salário mínimo sendo insuficiente diante do valor do custo de vida, diversos sujeitos, como os ambulantes, almejam obter um emprego de carteira assinada e, assim, terem a garantia de recebimento de um salário ao final do mês.

Segundo o Dieese, o salário mínimo necessário11 em maio de 2015 seria de R$3.377,62, ou seja, um pouco mais que quatro vezes o salário nominal, que é o salário mínimo nacional vigente, cujo valor, na ocasião, era de R$788,00. O valor da cesta básica nesse mesmo mês foi de R$402,05 em São Paulo, capital com a cesta de gêneros alimentícios de primeira necessidade mais cara. A segunda cesta de maior valor, R$395,23, foi verificada no Rio de Janeiro. E a terceira em Porto Alegre, no valor de R$394,29.

Ao observamos esses dados, percebemos o quanto está defasado o salário mí- nimo para atender as necessidades relacionadas à reprodução social do trabalha- dor e de sua família. Para o sujeito que recebe um salário mínimo e comprou uma cesta básica no município do Rio de Janeiro, por exemplo, restaram apenas R$392,77.Tal valor, como não é preciso demonstrar, não dá conta de contemplar todas as demais necessidades humanas, inclusive alimentares. Basta lembrar que o popular “pão de cada dia” vem aumentando radicalmente.

“Por ser importada, a farinha de trigo ficou mais cara, uma vez que a moeda nacional está desvalorizada em relação ao dólar. Outros custos como elevação da energia elétrica e dos combustíveis, também tiveram impacto no valor do pão” (DIEESE, 2015).

Sobre este aspecto que, preliminarmente, parece apenas peculiar, cabe destacar que, historicamente, o pão tem um papel fundamental na vida da maioria da popula- ção. Podemos remeter esta questão aos trabalhadores do século XVIII da Inglaterra,

que não viviam somente do pão, mas tinham neste a base de sua alimentação. Nesse contexto, as inquietações sociais eram decorrentes da combinação do desemprego e do aumento dos preços dos alimentos, assim como do custo de vida de modo geral.Tal combinação parece persistir nos tempos presentes, quando o aumento de R$0,20 centavos no preço do transporte público deflagrou as chamadas “jornadas de junho de 2013”, que reuniram milhões de pessoas em protesto aberto contra a autoridade do Estado e contra os cartéis do transporte “público”.

O salário do trabalhador, conforme apontado, é menor que o necessário, sen- do preciso que este obtenha vales, adiantamentos, em um contexto no qual sua substituição por outro trabalhador não é difícil para a chefia. Nesse sentido, o aumento do preço do pão, por modesto que possa parecer, traz impactos graves para os trabalhadores, demonstrando o grau de precarização, muitas vezes oculto, das relações de trabalho contemporâneas.

A realidade dos ambulantes na ferrovia da RMRJ

Observamos a dinâmica de trabalho dos ambulantes da ferrovia da RMRJ nos cinco ramais principais: Deodoro, Santa Cruz, Japeri, Belford Roxo e Saracuru- na. Convém citar os demais ramais: o ramal Paracambi é uma extensão do ramal Japeri, havendo apenas uma estação entre eles, Lages; já os ramais Vila Inhomirim e Guapimirim são extensões do ramal Saracuruna.Tais ramais transcorrem muni- cípios que formam a RMRJ, também conhecida como Grande Rio.

Os trens disponibilizados para circular no ramal Deodoro estão, em sua maio- ria, em melhor estado de conservação, se comparados com os outros ramais. Costumam circular neste ramal os trens chineses, adquiridos no início do ano de 2012, além dos reformados. A vigilância no ramal Deodoro é mais constante e o público usuário é menos pauperizado, constituindo o que pode ser chamado de “linha 1” e “linha 2”, como no MetrôRio12. Há diferenciação nas condições de funcionamento das duas linhas do MetrôRio e do ramal Deodoro em relação aos demais ramais dos trens, sendo a mesma percebida diariamente pelos usuários.

A proibição, realizada pela SuperVia, do trabalho dos vendedores ambulantes nos trens e dependências da empresa, evidencia uma ofensiva contra os trabalhadores. Segundo uma reportagem publicada na coluna EU-REPÓRTER do site O Globo, in- titulada “Camelô pós-moderno”13, a SuperVia afirma que realiza operações para coibir a presença de vendedores não autorizados no sistema ferroviário. Para isso, conta com o apoio da Polícia Militar e do Núcleo de Policiamento Ferroviário (NPFer). Nessas ocasiões, são apreendidas mercadorias e realizados registros em delegacia.

As grandes mídias diariamente têm dado destaque ao sistema ferroviário por causa das inúmeras situações de conflitos entre os próprios usuários dos trens e a SuperVia. O fato é que a qualidade do serviço ofertado pela SuperVia à população é muito problemático. Consequentemente, as condições de trabalho dos vendedores ambulantes também são péssimas, pois, assim como os usuários, eles estão expostos a constantes problemas, como, por exemplo, os enguiços dos trens ultrapassados e ainda em circulação, que normalmente trafegam nos ramais mais longínquos.

Já as tensões presentes entre os ambulantes e os funcionários que prestam serviço à SuperVia parecem ser omitidas pela grande mídia. Até mesmo a Su- perVia vem tentando tornar oculta esta relação de conflito com os ambulantes, pois estes contam com o apoio da maioria dos usuários. Há seguranças à paisana principalmente nas composições que fazem o trajeto Central-Deodoro, repri- mindo os ambulantes. Inicialmente, e de forma discreta, tais sujeitos chamam os ambulantes, como se fossem comprar algo, e dão a popular “dura”14. Em seguida, os expulsam das composições. Esses seguranças impedem, também, possíveis furtos e assaltos no espaço ferroviário.

De acordo com o então diretor de Operações da SuperVia, João Gouveia, em reportagem publicada no canal de notícias Online R715, a SuperVia recorre- rá à Prefeitura do Rio para regularizar, até o ano de 2015, todos os vendedores ambulantes que trabalham nos trens. A reportagem destacava, ainda, que aproxi- madamente meio milhão de passageiros utilizam diariamente os trens do Rio de Janeiro. Contudo, estes precisarão esperar até 2016, ano das Olimpíadas, para deixar de vivenciar as questões problemáticas que enfrentam na ferrovia, como panes e descarrilamentos que ocasionam inúmeros acidentes.

Para apresentarmos o perfil dos ambulantes com os quais dialogamos, pon- tuaremos o quantitativo mínimo e máximo da carga horária de trabalho semanal exercida por eles, o tempo de trabalho na ferrovia, as profissões desempenhadas pelos próprios e por seus pais que se destacaram, além do rendimento obtido.

A menor carga horária informada foi de 36 horas semanais, já a maior foi de 66 horas semanais. Trata-se de uma carga extensa, principalmente se conside- rarmos onde esse trabalho é desenvolvido e o desgaste físico que ele provoca, pois os ambulantes estão o tempo todo se movimentando e não são todos os trens da RMRJ que possuem ar- condicionado.

Quanto ao tempo de trabalho na ferrovia, tivemos a oportunidade de dialogar tanto com ambulantes classificados, por eles próprios, como novatos, quanto com veteranos. Além de outros que podemos considerar que possuíam tempo mediano.

As profissões exercidas pelos ambulantes e seus pais muitas vezes se repetem, como doméstica e gari. Tais profissões, em sua maioria, não demandam formação especializada. Constituem afazeres que podem ter sido aprendidos com a própria família, ou seja, práticas reproduzidas ao longo do tempo entre as gerações através das experiências sociais oriundas de histórias de vida que se cruzam e reproduzem. No que diz respeito ao rendimento obtido com o trabalho ambulante, é im- portante sublinhar que ele não é uma mera complementação na renda familiar, mas sim o principal recurso financeiro para as famílias se sustentarem. O estudo do Ipea (2000) já divulgava a grande importância da atividade de comércio am- bulante para as famílias. Dos ambulantes entrevistados, somente um já possuía renda fixa, que era o idoso que recebia a aposentadoria por idade no valor de um salário mínimo.Todavia, não podemos dizer que o valor obtido com o trabalho na ferrovia era apenas uma complementação do outro porque, inclusive, era maior que um salário mínimo. Os dois valores somados sustentavam o entrevistado e

sua família, formada por mais duas pessoas.

Segundo o estudo publicado pelo Ipea sobre o comércio ambulante no Rio de Janeiro, recorrentemente aludido, “... o Rio de Janeiro se mantém na rota de precarização das relações de trabalho” (MELO e TELES, 2000, p.20). Embora tal estudo tenha sido divulgado no final do ano 2000, consideramos o mesmo bastante atual em virtude da intensificação da precarização do trabalho e da vida, não apenas no Rio de Janeiro, mas, também, nos demais estados do Brasil e em diversas partes do mundo. O estudo ressaltou que o setor de serviços absorveu a mão de obra expulsa dos demais setores econômicos, sendo elevada a proporção de trabalhadores por conta própria e sem carteira de trabalho assinada, grande parte oriunda do comércio ambulante, presente nesse setor.

É possível perceber o aumento do número de trabalhadores que não con- seguem chegar ao final do mês com seu rendimento. Consequentemente, não conseguem garantir condições de vida minimamente dignas para si e sua família (VASAPOLLO, 2005). Nesse sentido, podemos fazer referência ao ambulante 3, que, ao ser questionado se o valor obtido com o trabalho de ambulante conseguia suprir as suas necessidades e de sua família, expôs: “Dá. A gente é econômico. Dá pra passar, levar...”. Na ocasião do diálogo, ele ganhava mensalmente menos de um salário mínimo para sustentar a si próprio e sua companheira, com quem vivia no bairro de Vigário Geral em uma fábrica desativada que foi ocupada por várias famílias. Percebemos que tanto as condições de trabalho quanto as condições de vida dos ambulantes da ferrovia são atravessadas pela precarização.

Uma vida de andanças

Ressaltamos que a expressão “uma vida de andanças” tem uma dupla dimen- são: tanto em relação às andanças, alusivas ao trabalho dos ambulantes, presentes quanto passadas, podendo até mesmo apontar as perspectivas futuras destes su- jeitos em relação ao próprio trabalho.

Quanto às “andanças” presentes, o ambulante 3 ressaltou que vivia andando, ao responder que não trabalhava apenas em um ramal, mas em vários: “Fico mais andando, sempre andando, em todos...”. Quando se cansava, parava e descansava um pouco, como estava fazendo no momento da entrevista na estação de Ricardo de Albuquerque, e acrescentou: “Não dá para se matar muito não”. O entrevis- tado embarca no trem na estação de Vigário Geral, bairro onde morava, e se desloca para outras estações, principalmente de outros ramais.

O mesmo entrevistado se considerava desempregado e disse que por utili- zar o colete da Pepsi, que significava que ele era um ambulante autorizado pela SuperVia a vender, “é como se fosse um trabalho”. Expressou, ainda, que já foi auxiliar e ajudante em firmas, acrescentando: “Já rodei muito por aí...cansei” (ambulante 3), referindo-se as suas “andanças” laborais passadas. Em relação ao futuro, mencionou que estava pensando em trabalhar com um amigo, na verdade seu enteado. A proposta era vender doces sentado em uma praça, só servindo. Ou seja, assim pararia literalmente de andar tanto por aí.

Consideramos que a maioria dos vendedores ambulantes que trabalham no es- paço ferroviário estava desempregada e não conseguiu se alocar em trabalhos com vínculos estáveis e, considerando a realidade atual, não conseguirá. Inclusive alguns já perderam a esperança. Desse modo, se esses sujeitos adoecem e/ou sofrem algum tipo de acidente, ficam completamente desamparados, pois não é comum que esses trabalhadores contribuam para a Previdência Social, e, além disso, no futuro não terão direito à aposentadoria. Em suma, estão preocupados em garantir a sua sobrevivência imediata e a de sua família, que, possivelmente, vive em condições de penúria.

Ao observarmos, enquanto sujeitos que transitam no mesmo espaço urba- no, o cotidiano dos vendedores ambulantes, não somente dos que trabalham na ferrovia, mas todos, de um modo geral, percebemos que eles realmente estão a serviço das maiores empresas capitalistas, como a Coca-Cola, por exemplo. Tais sujeitos estão o tempo todo trabalhando para escoar as mercadorias destas empresas e, provavelmente, obtendo um valor ínfimo com a venda destes pro- dutos. Dessa forma, são explorados por essas empresas, sem possuírem qual- quer tipo de vínculo e com muitas incertezas em relação ao futuro.

As experiências individuais de trabalhadores não qualificados, como é o caso dos ambulantes da ferrovia da RMRJ, adquirem um caráter coletivo no que diz respeito à experiência de exploração e opressão à classe trabalhadora. Nesse sen- tido, nos reportamos no decorrer deste estudo a falas individuais, pois considera- mos que elas exemplificam a experiência coletiva, já que esses sujeitos comparti- lham uma experiência comum. Conjecturamos que essa experiência comum está intrinsecamente associada à precariedade nas suas condições de trabalho e, por conseguinte, nas suas condições de vida.

Os dados coletados na pesquisa de campo demonstram que, há bastante tem- po, inúmeros ambulantes experimentam a precariedade no trabalho, seja direta- mente porque precisaram trabalhar quando ainda pequenos (como o ambulante 1 que disse trabalhar na ferrovia como ambulante desde os 12 anos de idade), ou indiretamente, por conta do trabalho precário de seus pais. Inclusive, a maioria expôs que parou de estudar para trabalhar. Quando o ambulante 3 disse isso, destacou: “Não tem ninguém por mim”. Assim, no contexto de uma vida material repleta de privações, esses sujeitos vêm experimentando inseguranças determi- nadas por trabalhos precários que definem suas formas de pensar e agir.

As experiências de trabalho, principalmente as permeadas pelo desemprego e pela insegurança social, se mesclam em distintas experiências de precariedade no amplo campo da reprodução social. Tais experiências se desdobram no tecido urbano, agregando, inúmeras vezes, trabalho precário e precariedade de acesso a bens e serviços urbanos, como transporte e moradia. A precarização dos serviços coletivos incide sobre a proteção social do trabalhador, tornando-o ainda mais desprovido de recursos para lidar com as contradições urbanas e, por conseguin- te, com o trabalho (BARBOSA, 2010).

A experiência dos ambulantes que não possuem a permissão da SuperVia para trabalhar no espaço ferroviário é tão conflituosa que os próprios identificam tais embates como uma guerra. É possível identificar no dia-a-dia, durante as idas e vindas nos trens, algumas estratégias de sobrevivência engendradas pelos tra- balhadores ambulantes para driblar a vigilância. Alguns sujeitos, por exemplo, utilizam sacos pretos para esconder suas mercadorias e, ao perceberem a aproxi- mação de vigilantes, colocam suas sacolas nos espaços destinados a guardar bolsas e sentam ao lado dos passageiros, fazendo-se passar por um deles. E há muitos ambulantes solidários que avisam aos seus colegas a aproximação do perigo.

Toda essa experiência, permeada pela precariedade vivenciada pelos trabalha- dores ambulantes da ferrovia da RMRJ, sejam os que possuem a permissão, sejam

os que não a possuem, gera aprendizado. Este pode vir a ser um diferencial na vida desses sujeitos que adquirem, através das experiências passadas e presentes, conhecimento para dar andamento à vida, enfrentando as adversidades com as quais se deparam cotidianamente.

Os sujeitos se expõem a adquirir experiências como essa porque necessitam trabalhar para sobreviver. Os ambulantes não trabalham no espaço ferroviário de forma tão precarizada simplesmente porque querem. Mesmo os ambulantes que já estão habituados a trabalhar na ferrovia e acabaram se acomodando, trabalham ali por necessidade. Na maioria das vezes não é uma escolha, mas sim a falta de opção que os leva a trabalhar naquele espaço, sendo a única saída encontrada. Uma questão que evidencia isso é o desejo dos entrevistados de trabalhar com vínculo empregatício, tendo sua carteira de trabalho devidamente assinada. Essa aspiração é oriunda do próprio trabalho precário que desenvolvem, repleto de inseguranças. Por não existir qualquer tipo de vínculo empregatício, este é justa- mente o anseio mais mencionado pelos ambulantes.

Nesse sentido, podemos afirmar que os ambulantes que trabalham nos trilhos da ferrovia da RMRJ que, de um modo geral, desenvolvem formas de vida reite- radamente improvisadas, estão incluídos na nova modalidade de superexploração:

(...) o uso capitalista da força de trabalho sem contrato, ou a expropriação do próprio contrato de trabalho, de tal forma que se instaura uma jornada sem li- mites, cuja remuneração explicita uma imposição econômica, social e política de patamares infra-históricos de subsistência dos trabalhadores (FONTES, 2010, p. 355). Grifos da autora.

Trata-se, realmente, de uma jornada sem limites, já que eles precisam obter um valor que, minimamente, dê conta de suprir as suas próprias necessidades de sobrevivência, assim como de suas famílias, em inúmeros casos. Dessa forma, ocorre, cotidianamente, de trabalharem até alcançar determinado valor e nem sempre por horas fixas por dia de trabalho.

Na atualidade, o contexto do trabalho está associado, em primeiro lugar, à sobrevivência, sendo este trabalho desenvolvido por sujeitos que podem apresen- tar insatisfação e resistência frente ao estado de coisas vigente. É imprescindível compreendermos o contexto em que vivemos, suas possibilidades, contradições e materialidade, para alcançar as alternativas de produção no que tange a ideias, saberes e conhecimento no trabalho (VENDRAMINI, 2006).

Considerações finais

Apesar de termos nos centrado na precarização do trabalho, destacamos que a mesma está intrinsecamente relacionada à precarização da vida. O tra- balho precário repercute em todas as dimensões da vida social. São negados a milhares de “cidadãos” brasileiros que compõem a classe trabalhadora, na atu- alidade, os diversos direitos garantidos constitucionalmente, como o direito ao trabalho. Os mesmos não foram efetivados no plano cotidiano da vida. Tal panorama de precarização do trabalho e da vida é experimentado por sujeitos que vivem em distintos países, porém com peculiaridades próprias, depen- dendo da história de cada nação.

O que ocorre com os trabalhadores ambulantes da ferrovia é reflexo de uma dinâmica contemporânea mais ampla, visto que grande parte da classe trabalha- dora está oprimida, em conjunto, pelo desemprego estrutural e pela fragmen- tação das experiências. Reafirmamos que todos os sujeitos, de um modo geral, que trabalham como ambulantes nos trilhos da ferrovia da RMRJ, possuem uma experiência de trabalho permeada pela precarização. Com destaque para o fato de que o que era para ser um trabalho passageiro se converte no trem da vida.

Ponderamos que, mesmo diante de um Estado que deixa tantas lacunas no que se refere ao social e que faz da exceção a regra (OLIVEIRA, 2003), e no qual o “soberano” – o mercado – decide a exceção, é possível lutar para transformar esta realidade, marcada pelas desigualdades, numa sociedade mais justa e demo- crática. E isto no sentido de construção de outra ordem, orientada por uma nova sociabilidade na qual todos os sujeitos possam, de fato, exercer seus direitos de cidadania, em contraposição às árduas condições de trabalho e de vida que são postas para grande parte da população.

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Notas

15 Reportagem intitulada: “Rio: responsável por trens admite falhas e diz que melhorias só serão senti- das no ano das Olimpíadas”. Online R7 Rio de Janeiro, de 25 de outubro de 2012. Disponível em: <http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/supervia-admite-falhas-e-diz-que-passageiros-so- -sentirao-melhorias-nos-trens-no-ano-da-olimpiada-20121025.html>. Acesso em: 12 dez. 2013. Artigo recebido para publicação em junho de 2015, aprovado para publicação em agosto de 2015.
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