Resumo: A questão da sexualidade perpassa as organizações delineando o mundo dos negócios como algo eminentemente masculino (HANSEN, 2002). Nossa pesquisa buscou compre- ender parte dessa problemática e ouviu 42 relatos sobre o que é ser homem no ambien- te corporativo. Apresentamos aqui, fragmentos clarificadores do ideal de masculinidade partilhado entre os gestores ouvidos. Ao tratar as narrativas, recorremos à Análise Crítica do Discurso (ACD), orientados por questões como: o que é ser um homem de negócios; quais os atributos valorizados na cena organizacional; e qual o peso dos estereótipos. Concluímos que o universo corporativo permanece povoado por crenças conservadoras.
Palavras-chave:GêneroGênero,TrabalhoTrabalho,GestoresGestores,DiferençaDiferença,Análise Crítica do DiscursoAnálise Crítica do Discurso.
Seção Livre
Ser ou não ser: a reprodução do "ideal" de masculinidade entre gestores brasileiros
Ser ou não ser: a reprodução do “ideal” de masculinidade entre gestores brasileiros1
Elisângela Domingues Michelatto Natt2 Alexandre de Pádua Carrieri3
Claudia Sirangelo Eccel4
Resumo
A questão da sexualidade perpassa as organizações delineando o mundo dos negócios como algo eminentemente masculino (HANSEN, 2002). Nossa pesquisa buscou compre- ender parte dessa problemática e ouviu 42 relatos sobre o que é ser homem no ambien- te corporativo. Apresentamos aqui, fragmentos clarificadores do ideal de masculinidade partilhado entre os gestores ouvidos. Ao tratar as narrativas, recorremos à Análise Crítica do Discurso (ACD), orientados por questões como: o que é ser um homem de negócios; quais os atributos valorizados na cena organizacional; e qual o peso dos estereótipos. Concluímos que o universo corporativo permanece povoado por crenças conservadoras.
Palavras-chave
Gênero; Trabalho; Gestores; Diferença; Análise Crítica do Discurso.
To be or not to be: reproduction of the “ideal” to masculinity between brazilian managers
Abstract
The issue of sexuality pervades organizations outlining the business world as something eminently masculine (Hansen, 2002). This research from which we obtained 42 reports on what is being man in corporate environment. Here are some excerpts which are cons- tituted as clarifiers fragments of the ideal of masculinity shared among Brazilian managers heard. For the treatment of narratives, we used the Critical Discourse Analysis (CDA), guided by questions such as: what is a man of business; what valued attributes in the or- ganizational stage; and what the weight of stereotypes. We conclude that the corporate world remains populated by conservative beliefs.
Keywords
Gender;Work; Managers; Difference; Critical discourse analysis.
O “ideal” de masculinidade
Almejando a discussão e reflexão sobre as práticas discriminatórias nos am- bientes organizacionais, buscamos compreender como a problemática da sexua- lidade perpassa as organizações brasileiras. Para tanto, é necessário compreender as causas que levaram a sociedade moderna a adotar o modelo masculino como o mais acertado e mais coerente ao mundo corporativo. Nesse sentido, considera- mos importante a atenção sobre a adoção de modelos predominantemente mas- culinos, no intuito de desvelar os ideais partilhados em caráter mais amplo, como ocorre na sociedade ocidental (MENEZES et al, 2013). Buscamos elucidar alguns temas, trazendo à tona aspectos sobre a modernidade, marcada por eventos que valorizam o patriarcado. Observamos um postulado que demarca a divisão dos espaços públicos (masculino) e privados (feminino), onde os espaços públicos, considerados lugares de decisão e de poder, historicamente destinado aos sujeitos de razão, indivíduos com identidades e, portanto, homens, e os espaços priva- dos, cedidos às paixões e, portanto, considerado o terreno do incivilizado, da não razão, do não indivíduo, das mulheres (PATEMAN, 1993; HOLMER-NAD- SEN,1996; MENEZES et al, 2013).
Para Carrieri et al (2013), a partir das práticas heterossexuais houve uma hete- ronormatização das relações sociais (RIBEIRO, 2009), resultando em práticas ma- chistas e homofóbicas, culminando em preconceito e cerceamento de direitos. É assim que o ponto de vista dominante estabelece preceitos heterossexuais no âmbi- to das organizações, oportunizando políticas de gestão que estimulam a competição e tornam frágeis e estressantes as relações de trabalho. Padrões de normalidade são estereotipados e o desvio não cabe. Para Louro (1997) e Seffner (2003) o construto de masculinidades entendido nesses moldes envolve o reconhecimento do regime de gênero como classificatório e atuante entre os homens e as mulheres, mas tam- bém dentre os homens, demarcando hierarquias. Welzer-Lang (2004) afirma que ainda que o homem seja dominante em relação às mulheres, há entre os homens hierarquias masculinas que os organizam em termos dos privilégios e poder que detêm. Nem todos os homens são igualmente dominantes (LIMA et al, 2008), uns o são tanto em relação às mulheres quanto a outros homens. A hegemonia de uma masculinidade (JESUS, 2011) se mantém com as disputas de poder em busca de legitimação (CONNELL, 1998; KIMMEL, 1998, 2006; SEFFNER, 2003; NASCI-
MENTO et al, 2011), de tal modo que desvalorizam continuamente o que é dife- rente (SILVA, 2009), reafirmando o que é entendido como “o verdadeiro homem” em contraponto ao que não é (MACHADO; SEFFNER, 2013). Connel (1998)
enfatiza que mesmo a masculinidade hegemônica não sendo acessível a todos os homens, sua representação é compartilhada pela maioria.
No mundo do trabalho a racionalidade, entendida como atributo masculino, tornou-se valorizada e os discursos fortalecem o ideal do trabalhador homem, considerando-se aspectos físicos e comportamentais. Para Welzer-Lang (2001; 2004) e Hansen (2002) esse contexto faz da Administração uma disciplina de do- minância masculina, em que a concepção do trabalho é atravessada pelas diferen- ças de gênero, e onde as funções concebidas como masculinas são/permanecem, de acordo com Hassard et al (2000), inacessíveis para as mulheres. Nesse sentido, buscamos compreender parte desse ideal de masculinidade e como ele perpassa o cotidiano profissional dos executivos e gestores brasileiros da alta administração. Optamos por realizar esse estudo nas cidades de Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória.
Buscamos compreender como o estabelecimento de funções, entendidas como masculinas (HASSARD et al, 2000), constituem um cenário em que determinadas posições são inacessíveis. Ao questionar a existência de uma só masculinidade nos deparamos com uma visão predominante do que é ser um homem “normal”, o que inclui ser heterossexual, branco, relativamente jovem, magro, alto e cristão. Não negamos que os gêneros se constroem a partir dos corpos sexuados (ECCEL et al, 2010), mas compreendemos que a adoção do conceito nestes moldes merece que retornemos ao debate no campo do social. As relações de desigualdade advêm de ar- ranjos sociais e históricos (BOURDIEU, 2007; BERMÚDEZ, 2013), construídos em um determinado espaço-tempo e, portanto, podem ser desconstruídos (LOURO, 1997). Os sexos são uma interpretação política e cultural do corpo, reproduzidos socialmente, mas não devem ser considerados uma facticidade anatômica, algo inerte e neutro, sobre o qual se inscreve culturalmente o gênero (ECCEL et al, 2010).
Se o corpo deve ser entendido como uma prática (MATOS, 2001b) e não apenas como superfície ou um mero depósito inerte das experiências, é im- portante que sejam considerados como campos marcados pelo caráter trans- formacional, em que diferentes performances corporeográficas constroem-se contingencialmente. Nesse sentido, e objetivando clarificar nossas pretensões, organizamos o artigo em cinco seções, a começar por esta breve introdução, se- guindo para uma abordagem sobre a temática dos gêneros e da masculinidade. Na sequência, apresentamos o percurso metodológico, seguido por uma breve explanação sobre a Análise Crítica do Discurso (ACD), passando finalmente às análises e à conclusão de nossas observações e discussões.
A configuração do masculino
É no âmbito das relações sociais que se constituem os gêneros (LOURO, 1997) e é nesse sentido que se deve proceder às tentativas de elucidar os mo- vimentos decorrentes dessa problemática (VIGOYA e NAVIA, 2012). É preciso considerar a inter-relação do masculino com o feminino, a fim de abrir espaço para a problematização do historicamente subjugado, estereótipo feminino, bem como da norma, sempre masculina (SCOTT, 1995). A análise dos gêneros deve ser contextualizada, considerando as interfaces estabelecidas com as modalidades classistas, raciais, étnicas, sexuais e religiosas (LOURO, 1997; BUTLER, 2010). O sentido binário de sexualidade, preponderante em nossa sociedade, e sob ao qual concebemos o ser homem ou ser mulher, deve ser repensado. Esses polos se relacionam, mas a possibilidade de um contínuo não é levada em consideração, impedindo que homens e mulheres adotem postura distinta da que é esperada a partir de sua concepção biológica. Scott (1995) propõe a problematização de cada polo, reconhecendo que homem e mulher são conceitos representantes de categorias vazias e transbordantes, sem significado definitivo ou transcendente.
As identidades de gênero (BENSUSAN, 2006) estão em permanente processo de construção e seguimos ouvindo afirmativas atreladas às práticas que nos po- sicionam no mundo socialmente constituído (DINIZ et al, 2013). Os processos de estilização de gênero são dinâmicos e um conjunto de atos, gestos e com- portamentos, é repetido, de forma a reproduzir ou contestar as estruturas (pa- triarcais) reguladoras do gênero (ECCEL et al, 2010). Trata-se de uma dimensão ético-estética, onde a articulação das práticas sociais relativas ao gênero, trazem à tona o seu inacabamento e a permanente possibilidade de ruptura e mudança com formas cristalizadas (MATOS, 2000b). Os papéis configuram ambientes de dominação masculina nos quais as relações, instituídas ao longo dos anos, ocasio- nam separação, a partir de normas e estereótipos de uma cultura fálica de gênero (FOUCAULT, 1979; BUTLER, 2010; RIBEIRO et al, 2013). Para Butler (2010,
p. 16) é uma “grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gê- neros e desejos são naturalizados”. Essas matrizes compulsórias demandam uma oposição assimétrica entre masculino e feminino, contingenciando construções que ressaltam determinadas características como naturais e esperadas aos machos e fêmeas (BUTLER, 2009; 2010; OLIVEIRA, 2008).
Os sujeitos, inseridos nessa complexa rede, perpetuam transformam as relações de dominação (PIMENTA; NATIVIDADE, 2012; DINIZ et al, 2013; CARRIERI et al, 2013; LEAL GUERRERO, 2013; MENEZES et al, 2013). O
limiar das questões do sexo, criados e recriados no tempo e no espaço, na relação emocional, afetiva, pulsional, alteritária, cultural, consciente e incons- ciente com os outros indivíduos e com o mundo, é problemático e de caráter estrutural. Mattos (2000b) aponta as masculinidades e feminilidades como tra- dicionalmente reinventadas, relativizando a noção fixa e rígida da dominação masculina, apontando eixos de mudança.
Enquanto construto teórico, as masculinidades estão pautadas nas identida- des de gênero e trazem configurações sustentadas a partir da própria concepção de masculinidade (MATOS, 2000a; 2000b; 2001b; ECCEL; GRISCI, 2011). Os estudos sobre masculinidades remontam às décadas de 1970 e 1980 (MATOS, 2000a) e ocorreram sob a perspectiva hegemonia funcionalista (OLIVEIRA, 2004). O movimento feminista promoveu novas perspectivas relacionais, e cul- minou em um movimento paralelo, com foco nos problemas e dificuldades de gênero. Um olhar sobre a possibilidade de sofrimento do homem, é lançado no cenário recente (OLIVEIRA, 2004), levando a uma inversão, no mínimo, inte- ressante. O homem passa de algoz a afligido. Essa posição, sempre lançada às mulheres, condenando-as a submissão, agora fazia do homem, o ser frágil, vítima das dificuldades que as obrigações e sacrifícios de virilidade lhes requerem.
Também contribuiu para a alavancagem dos estudos sobre as masculinida- des, a emergência da epidemia de AIDS, na década de 1980 (HEILBORN; SORJ, 1999). Na década de 1990, os estudos ganharam maior expressividade nas ciências humanas e sociais, destacando os construtos de masculinidades hegemônicas, su- bordinadas e subalternas adotados inicialmente por Connell (1995) e largamente empregados nas pesquisas sobre o tema. Uma pluralidade de masculinidades é revelada (CONNELL, 1998; KIMMEL, 1998), e evidenciam-se relações sociais de hierarquia e exclusão, e algumas maneiras de ser homem são hegemoniza- das (WELZER-LANG, 2004; ECCEL; GRISCI, 2011). As trajetórias masculinas flertam com a tradição e a reinvenção, permitindo experiências complexamente construídas, em um processo dinâmico, fluido e contraditório, em que as mascu- linidade são relacionais (PIMENTA; NATIVIDADE, 2012). Para Oliveira (2004), não há ruptura com a tradição e atributos medievais continuam valorizados como expressão de uma masculinidade autêntica. O ethos guerreiro continua represen- tando um conjunto de atributos que informa um modo específico de construção do masculino, baseado em bravura, coragem, destemor e disposição para o sacri- fício da vida, enfatizando o respeito e a obediência às hierarquias, e o preparo do corpo para a luta e para a competição (PIMENTA; NATIVIDADE, 2012).
A família nuclear burguesa rege a diferenciação dos sexos na modernidade (GERSON, 1993; OLIVEIRA, 2004), e subjuga à mulher os afazeres domésticos. As escolas reificam as identidades de gênero e a divisão sexual (BOURDIEU, 2007; 2009), reforçando os pressupostos patriarcais. A medicina contribuiu para o construto de estereótipos e reforçou estigmas. O sexo vai do pecaminoso – igreja – ao normal ou patológico – ciência (FOUCAULT, 1979). Instalam-se discursos hegemônicos, perversões menores ou irregularidades sexuais são ane- xadas à concepção de doença mental. Da infância à velhice são definidas normas para o desenvolvimento sexual, e os desvios são cuidadosamente caracterizados (FOUCAULT, 1979). Mudanças vêm acontecendo, mas não sem gerar descon- forto. Buscando compreender os impactos desse processo, desenvolvemos essa pesquisa, cujo percurso é apresentado a seguir.
Caminhos percorridos
Os gêneros são espaços constituídos por um princípio normativo e alguns aspectos devem ser considerados, tais como (1) o significado de ser um “ho- mem de negócios”, (2) as representações de gênero partilhadas pelos gestores,
(3) as masculinidades mais valorizadas para a gestão, (4) os atributos dessa masculinidade, (5) as consequências dessas representações e (6) o modo de lidar com elas. Nesse sentido, buscamos compreender como a problemática da sexualidade perpassa as organizações brasileiras. Realizamos 42 entrevistas semiestruturadas, com gestores das cidades de Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória. A escolha dessas cidades se deve à distribuição geográfica dos pesquisadores envolvidos, o nível de in- dustrialização, a presença de organizações que comportam a alta gestão, e a diversidade encontrada em capitais desse porte.
Os gestores entrevistados ocupam posição de comando nos setores de pro- dução e serviços, em organizações públicas e privadas, e foram contatados dire- tamente nas organizações em que trabalham. Os 42 relatos foram analisados e resultaram no conteúdo aqui exposto. Para fins de ilustração, utilizamo-nos de trechos de 18 entrevistas, por uma questão de forma e espaço, que retratam com clareza o ideal de masculinidade partilhado entre os demais. Os sujeitos têm en- tre 35 e 60 anos, são casados ou vivem em união estável e apresentam formação de nível superior nas áreas de administração, economia ou direito. Suas narrativas foram analisadas a partir da Análise Crítica do Discurso (ACD) e a opção em re- alizar uma pesquisa qualitativa se justifica pela liberdade de escolher e combinar,
ou mesmo criar, práticas e métodos que se concatenam da maneira mais perti- nente ao objeto e ao contexto estudado (DENZIN; LINCOLN, 1994). Essa com- binação e adequação das técnicas e métodos entendida por Certeau (1994) como bricoleur e por Becker (1994) como técnica do mosaico, é uma posição útil aos fins propostos neste estudo, à medida que viabilizou a contraposição dos discursos coletados e o aparato teórico sobre o tema; possibilitou a observação das cone- xões entre a realidade brasileira e os pressupostos teoricamente investigados; e permitiu observar a diversidade dos sujeitos, contribuindo para a visão do todo, revelando como os indivíduos, a partir de suas práticas diárias, universalizam a época histórica em que vivem (GOLDENBERG, 2002).
A ACD nos permitiu traçar um percurso semântico, o que nos orientou quanto às práticas observadas, a partir dos depoimentos. O principal expoente? da ACD é Norman Fairclough e sua proposta analítica permite a compreensão e o desvelamento das práticas que perpassam o mundo social, possibilitando ainda, a reflexão e o reconhecimento da dominação, revelando elementos de emancipação a partir do conhecimento da realidade. As análises culminaram na identificação de quatro gêneros comunicativos – o da entrevista, em que se obtém respostas mais curtas e objetivas, o da conversa face a face, marcado pela descontração e informalidade, permitindo articulação entre os sujeitos e suas experiências, o gênero da instrumentalização dos atributos masculinos e femininos na esfera do trabalho, e o gênero comunicativo do ethos, em que se apoiam os conhecimentos compartilhados sobre a função do executivo e as condutas requeridas. Esse tipo de perspectiva lança um olhar sobre a possibi- lidade de emancipação dos sujeitos (FAIRCLOUGH, 1992; 1995) e considera que as estruturas e as práticas se revelam plásticas, o que recoloca o sujeito, ora motivado intencionalmente, ora determinado ideologicamente.
As três dimensões da proposta de Fairclough (1992; 1995) – micro (nível textual onde emergem os significados, a criação de palavras, a gramática, a co- esão textual e as metáforas); meso (dimensão das práticas discursivas, em que a intertextualidade é manifesta, a partir de uma disposição evidente nos discursos e sua relação com os pressupostos implícitos, tomados como tácitos pelos sujeitos (FARIA e LINHARES, 1993; PHILLIPS e HARDY, 2002); e macro (nível das
práticas sociais, em que os níveis macro e micro se aglutinam a partir das práticas sociais diárias observadas tanto no cotidiano, quanto na vida e na trajetória dos sujeitos, e que permite análises no nível micro ou macro do discurso) – possibilita que qualquer discurso, falado ou escrito, seja compreendido por sua constituição
e inter-relação num conjunto de textos, numa relação de práticas que propiciam a construção de um objeto qualquer. Essa interdiscursividade, situada social e historicamente, faz sentido e permite o desvelar dos signos que perpassam a fal- ta. No nível das práticas sociais e, a partir delas, e de seu contexto histórico, é viável observar e analisar os discursos que, vistos como uma prática, podem ser encarados como articulações e inculcações políticas (FARIA e LINHARES, 1993; OSWICK; KEENOY; GRANT, 2002; CORNELISSEN, 2005; ANDRIESSEN, 2009; DAVED; MEISIEK, 2010; SEWELL, 2003).
Privilegiamos uma leitura que remete à construção histórica das relações sociais do mundo cotidiano, optando por pontuar a problemática do ideal de masculinidade (nível macro), e as práticas decorrentes da internalização des- se ideal (nível micro) no mundo corporativo. Com nossa perspectiva analítica delineada desenvolvemos, na próxima seção, uma análise correspondente ao percurso semântico que pudemos observar no conteúdo, emergida das entre- vistas. Observamos que o ideal de masculinidade perpassa todos os níveis de análise propostos por Fairclough (1992; 1995), o que facilitou o processo de identificação das crenças machistas perpetuadas em nossa sociedade. Os dis- cursos, contundentes em torno do ideal de masculinidade, foram notados nos interditos, em elementos ancorados em esquemas sociais de classificação e de- limitação dos espaços destinados para homens e mulheres. A seguir, apresenta- mos essas análises e as discussões em que elas culminaram.
Desvelando crenças machistas
Notamos que os sujeitos apresentam uma série de valores tradicionais, funda- mentados na construção da esfera pública moderna. Observa-se a valorização de aspectos como sobriedade, respeito, lealdade, honestidade e racionalidade lógica. Esses valores se confundem com o ideal de masculinidade tradicional e mostra que as organizações têm sido ambientes prolíferos para a noção fixa e rígida da dominação masculina, mesmo havendo indicativos de mudança. O percurso se- mântico nos revelou o pensamento binário e excludente, entre masculino e femi- nino, como elemento incidente no imaginário masculino, e muitos dos discursos puderam ser compreendidos a partir da identificação de interdiscursos. Foram muitas as referências aos papéis de homens e mulheres e ao poder patriarcal, estabelecidos na contemporaneidade. Ao referenciar o poder, criam-se categorias de segregação e hierarquização, e o nível mais alto requer mais indícios de mas- culinidade e virilidade (SUÁREZ; FREIRE, 2010).
A pluralidade de masculinidades (CONNELL, 1998; KIMMEL, 1998) não é considerada e ocasiona disparidades de força também entre os homens, como observamos em E28 e E29.
[...] essa é uma entidade mantida e administrada oficialmente pelos empresá- rios. Mas quem trabalha aqui é empregado. (E28).
[...] a diferença do executivo, é que o executivo está no topo da pirâmide na empresa [...] numa condição muito elevada, seria aquela pessoa inatingível, o dono dos meios de produção. (E29)
Persiste um pensamento hegemônico sobre o que é ser um homem de negó- cios, e algumas maneiras de se comportar são mais valorizadas. Nesse contexto, a dominação é facilitada e evidencia hierarquias masculinas que submetem os pró- prios homens às relações de privilégios e poder como observamos em E30.
[...] no banco é um tratamento muito distante [...] nunca vi ele (o presidente) [...] são pessoas quase intocáveis, para falar com uma pessoa dessa, tem que pedir a deus e o mundo. (E30)
Para E22 o ser humano precisa de alguém que o comande, que o diga o que fazer, sendo necessário um líder com legitimidade para isso. Essa perspectiva ex- cludente delimita as ações dos sujeitos e traz noções de superioridade (KIMMEL, 1998; WELZER-LANG, 2004), impositivas e definidoras de uma sexualidade masculina, onde o homem, sob os privilégios de gênero, deve ser viril, altivo e dominante, para se instalar no topo da hierarquia.
[...] eu acho que o ser humano ele necessita de alguém que o comande, sabe? [...] principalmente em grupo, tem que ter um líder [...] e tendo essa lideran- ça, ele se sente mais tranquilo [...]. (E22)
[...] talvez eu seria um executivo se eu tivesse numa posição mais elevada. Eu estou mais na parte de guerramesmo, no campo de batalha. (E30)
A entrevista de E10 parece se distanciar desse estereótipo, mas ainda re- mete ao ideal de masculinidade, ao mencionar que o fracasso não é algo que se
admite a um executivo. Esse elemento remete a tenacidade apontada por Matos (2000a) como autodeterminação intrínseca às masculinidades, responsabilizan- do os indivíduos por tudo o que os cerca. Essa reinvenção aparente circula entre a tradição e o novo, onde as experiências construcionistas e relacionais são complexas, perpassadas por um ideal medieval que se tenta moderno sem, no entanto, ser menos cruel ou rígido. A fala de E27 evidencia essa ausência de ruptura com a tradição.
[...] eles sabem que se quiserem conversar comigo sobre a questão das reivindica- ções eles sentam aqui e conversam, entendeu? Não existe esse distanciamento e essa é uma postura que todo executivo deve adotar, que seja homem, que seja mulher. A partir do momento que qualquer executivo, ele achar que ele está aci- ma do bem e do mal e que ele é um deus, e que ali embaixo todo mundo é alegre [...] ele é um fracassado, ele é um fracassado. (E10)
Quando eu decidi que ia entrar na área financeira, eu decidi que não seria um financeiro à moda antiga [...] Aquele cara que só grita, tem um porrete, bate na mesa e não pode fazer nada. Não, não, esse é um conceito muito antigo, uma coisa muito... Sabe, a gente ameaça. [...] e isso aí tem uma resposta a curtíssimo prazo; no médio prazo é insustentável. (E27)
A dedicação e perseverança, parte do ethos guerreiro (OLIVEIRA, 2004), exige do masculino um conjunto de atributos como bravura, coragem, destemor e disposição para o sacrifício. Evidência encontrada na fala de E30, em que o ethos traz a dimensão estética do macho viril, ocasionando preocupação com a aparência, como observamos nas falas de E9, E28 e E32.
[...] o ambiente de trabalho ele é cada vez mais, ele é muito competitivo. O ambiente de trabalho, hoje, ele é, eu te diria quase uma guerra, até. (E32)
O executivo é aquele sujeito de terno, gravata, pastinha [...] Sempre bem perfu- mado, cabelinho bem penteado. E chega nas reuniões todo pomposo. Geral- mente [...] bem acompanhado de uma secretária muito bonita. (E9).
Bom, se você tivesse quatro ou cinco ternos, dez camisas sociais e dez gravatas, você estava vestido o mês inteiro e variando, entendeu? [...] Só que [...] isso ficou
acessível a todo mundo, aí meio que o homem ficou tomando meio que comportamento de mulher. (E28)
E isso que eu tento difundir, enquanto professor também [...] Se um dia for importante para você usar gravata, usar terno e gravata naquele momento, tudo bem. [...] Aí é uma coisa. Você gosta de vestir assim e tal. Agora, se vestir para, digamos, entrar numa cápsula do poder? Que é o que acontece: fica mais poderoso. (E32)
Além do ambiente da guerra, da virilidade ou da dimensão estética do guerreiro, a imagem do executivo está vinculada ao comando, como evidenciado nas falas de E19, que aponta a necessidade de planejamento e controle para lidar com a vida, e de E32, que remete à palavra saudável para falar de um comportamento necessário à manutenção e enfrentamento da guerra corporativa. E29 menciona que foi atleta e que não pratica mais exercícios, o que o tem prejudicado profissio- nalmente e E28 se queixa do afastamento profissional por estresse. Na vida nada acontece por acaso, tudo tem que ser planejado. [...] Eu não acredito no acaso! É preciso controle.” (E19)
[...] eu tava aqui na academia de manhã até meio-dia [...] comecei a ficar estres- sado, assim. Cheguei a um determinado momento [...] Eu disse: “Não. Essa vida não está sendo mais saudável.Tem que mudar”. E aí eu comecei a reduzir algumas coisas para conseguir engrenar. (E32)
Eu fui atleta, e de um período para cá não faço nem um exercício [...] A gente vai engordando, vai ganhando peso, vai perdendo a agilidade [...] os executivos cometem um grande erro que é o esporte esporádico. (E29)
Eu passei por uma situação delicada. Fiquei afastado três semanas do trabalho, assim, por estresse total, fiquei três dias acordado, três dias eu passei acordado, depois disso, de passar por esse momento, e aí comecei a fazer terapia e aprendi que eu tenho que dividir meu tempo. (E28)
A batalha firmada contra a própria saúde é percebida em E10, que aponta para uma caracterização requerida para o exercício de certas posições, reve- lando obediência a uma hierarquia a partir da crença na incapacidade de todo
aquele que não corresponda ao ideal de masculinidade (OLIVEIRA, 2004). A esfera selvagem deve ser controlada, e o espaço público concebido como o lu- gar de disputas e decisões políticas, a partir do autocontrole e equilíbrio.
E muitas vezes a gente precisa saber se o perfil do homossexual não é um perfil que você pode aproveitar em algumas áreas mais. Nós temos aqui, por exemplo, em uma área extremamente delicada. Ele não é um homossexual declarado, mas ele tem todos atributos e ele é perfeito. (E10)
Destacando a diferença, E30 diz ser insuportável trabalhar com uma mu- lher em um cargo superior ao seu, já que as mulheres são totalmente mando- nas e inflexíveis. E24 ressalta que a mulher é mais sensível e tem mais sentido para algumas áreas, o que segundo E23, faz parte da característica afetiva das mulheres. Esses apontamentos remetem a posição e comportamento tipica- mente esperados e mesmo os que elogiam a postura feminina, avaliam-na de forma preconcebida, atribuindo suas atitudes a aspectos tidos como inerentes ao gênero. A fala de E28 ilustra bem isso, e é compartilhado por E10, E24, E27, E28 e E40.
[…] você trabalhar com uma mulher que tem um cargo bem acima do seu, tipo superintendente, ou diretora, vou te dizer é quase insuportável. Não é nada contra as mulheres não, mas nos casos que a empresa tem, as mulheres ficam assim totalmente mandonas, elas são inflexíveis, não conseguem dialogar, chega ao ponto de virar bate boca [...] Diferente dos homens. (E30)
[...] o nosso negócio é a transição. Então essa sensibilidade que a mulher tem para escutar, para se conectar com as emoções isso é uma característica que facilita muito. (E24)
[...] acho que a mulher se caracteriza mais por esse vínculo um pouco mais, não sei se afeto é o termo certo aqui, mas, prestigiar um pouco mais não só o pro- fissional, também o pessoal. (E23)
Como que é a grande massa das mulheres. Elas não têm um raciocínio tão lógico, tão objetivo quanto o homem. (E28)
Sabe? Essa sensibilidade feminina, assim. Aí a gente termina cedendo [...] É por isso que as mulheres hoje dominam, porque vêm com essa fala mansa. (E28)
Essas diferenças atribuídas ao gênero estabelecem o lugar da mulher o do homem homossexual, e os indivíduos masculinos, heterossexuais acabam por distanciar-se dos demais. E12 é enfático ao mencionar tais diferenças.
[...] se eu fosse presidente, algumas coisas que eu digo, talvez eu tivesse difi- culdades para dizer se eu fosse mulher. [...] Se eu fosse um gay “desmunhe- cado”, eu teria. Se eu fosse um gay discreto, menos. (E12)
Conforme Oliveira (2004), normas informam e afirmam a superioridade dos homens e a subordinação das mulheres e de tudo que remete ao ideal de femi- nilidade. Mesmo quando os sujeitos destilam elogios à esfera do que consideram feminino, firmam a dominação do homem na esfera pública e das qualidades que a governanta (mulher) traz para essa esfera. Aproximam o homem, que consideram insuficientemente másculo e viril, a um indivíduo afeminado, gay, caracterizando-
-o como desviante e anormal. Os elementos sociais que perpassam a vida profis- sional e a crença em estereótipos vêm à tona na fala de E21, por meio de um ele- mento religioso, um interdiscurso (BOURDIEU, 2007) imbrincado a partir da igreja, que inculca o ideal de masculinidade e o lugar de inferioridade da mulher.
(23) [...] eu chego em casa [...]chego pleno, porque sei que estive fora cuidando da minha família e fazendo o que Deus quer que eu faça, cuidando de um monte de gente. [...]uma esposa é diferente de uma mulher. [...]não vai morar junto [...]a esposa é uma ajudadora idônea [...]a submissão é a missão de cuidar do marido [...]a natureza do homem está dizendo [...]o norte quem dá é o homem [...] (E21)
Os ideais de racionalidade, tradicionalmente ligado ao masculino, atendem ao ideal de estratégia e competitividade capitalistas, caso contrário, resultariam em incapacidade de adaptação, requerendo mais disciplina corporal, moral e intelec- tual (OLIVEIRA, 2004). Nessa separação entre o masculino dos demais, aparece uma preocupação com a postura certa, que E22 aponta como uma necessidade para se conter e não parecer ridículo.
Eu me continha, eu tinha que me conter às vezes, para não parecer ridículo
[...] Então eu procurava me conter. (E22)
Esse tipo de dispositivo de poder (FOUCAULT, 1979) está embasado em uma falsa lógica e estabelece a partir dela, as mais inusitadas formas de controle. O padrão do homem heroico (OLIVEIRA, 2004) leva à crença de que, quanto mais masculino o homem e mais feminina a mulher, mais saudável o Estado, e ao atri- buir qualidades às mulheres executivas, se remete a atributos masculinos, como em E12, que ao apontar que muitas empresas preferem mulheres porque elas podem ser mais competentes e focadas, mesmo sendo mais competitivas que os homens. Mais uma vez nota-se a referência a uma natureza da mulher.
Hoje, alguns até preferem mulheres. A mulher é mais competente, mais fo- cada [...] eu acho que a mulher é mais competitiva que o homem. Porque eu acho que é da natureza. Ela compete pelo macho, porque ela compete pela proteção do filho, ela compete por espaço, ela compete para entrar no mercado de trabalho. Ela é uma guerreira mais treinada [...] (E12)
Para E27, mesmo em meio a mudanças, as mulheres padecem pelas diferenças sociais, já que sua mobilidade é sempre mais limitada. E28 corrobora dizendo que sua irmã estuda como uma doida e raramente tem namorado. Para E24 o grande dilema da mulher, é ter filhos ou crescer profissionalmente. E E12 diz que uma mulher com filhos pensa diferente das demais, vivendo um conflito existencial se ela também valoriza o trabalho.
Se fosse uma mulher, casada e com filhos, teria dificuldade com certeza. Por exemplo, eu saí aqui do Rio Grande do Sul e fiquei 90 dias no interior de Minas e capital, morando em hotel, viajando. (E27)
Eu tenho uma irmã [...] executiva, estuda que nem uma doida, trabalha que nem uma maluca, e raramente tem namorado. Não consigo ver minha irmã [...] casando e tendo filho, não consigo. Porque ela é tão focada em negócio, ela se moldou tanto em ser uma executiva, [...] que ela pode ser tranquilamente aquela mu- lher que vai ser diretora, presidente[...] Mas ela teve que abandonar, não que ela abandonou a feminilidade, mas ela tem um discurso mais forte, não tão delicado [...]acaba tendo que deixar de lado [...]coisas de família, de filho etc. (E28)
Olha que te diria que esse é o grande dilema das mulheres executivas hoje. Como eu vou ter um filho? Que hora eu vou ter um filho? (E24)
Seria diferente porque mulher com filhos pensa diferente. Mulher com filhos vive um conflito horrível, que é ser mãe, é esforçada, e tem o trabalho. [...] E o homem, hoje, menos. Mas, na minha geração, ele tinha que pilotar – pilotar o trabalho, o sustento da família. (E12)
A fala desses executivos é demarcada por uma estereotipação de opostos, em que homens e mulheres são avessos um ao outro. Essa oposição construída historicamente, faz da masculinidade algo mais positivo e povoa crenças ma- chistas como a de E21 que relata que a esposa é uma excelente vendedora, o que se deve ao uso da sedução para atrair e convencer. Nota-se nas narrativas de homens e mulheres, resquícios de intolerância ao comportamento adotado no ambiente de trabalho. Há dificuldade em aceitar o sucesso do feminino e é mais confortável atribuir o êxito delas a uma espécie de vantagem natural.
Toda essa sedução para atrair, convencer no universo da tomada de decisão das pessoas, a mulher teria essa vantagem. Tanto que a minha esposa foi nos últimos dois anos campeã de venda [...] no meio de caras talentosos, que nasceram para coisa e ela ganhava de todos [...] Disciplinada, trabalhando, com alvo definido e com alguns instrumentos de credibilidade que ajudam, inclusive sedução. (E21)
Para E28, o homem é mesmo o oposto da mulher e o comportamento delas no trabalho o incomoda, pois são rancorosas. Isso faz com que ele tenha restrições à contratação de mulheres, mesmo se considerando uma pessoa mais aberta. Diz que algumas pessoas o acusam de radical, mas que ele é ape- nas metódico e visa sempre a solução do problema, diferente das mulheres, que não sabem lidar com isso e brigam por qualquer coisa.
E eu não gosto muito dessa coisa de mulher. Mulher tem uma coisa de ser, assim, eu diria, um pouco mais rancorosa, sabe? Então, eu tenho algumas restrições, porque eu sou, assim, muito aberto. As pessoas dizem que eu sou um pouco radical, eu não me considero radical, não. Eu me considero metódico, radical, não. [...] eu não tenho tempo, juro, juro, juro. Sabe? (E28)
Nota-se que o ideal de masculinidade ainda perpassa a cabeça dos executivos, mesmo que de forma mascarada. Rótulos mais ou menos sutis são atribuídos a homens e mulheres – observáveis nas falas de E32 e E10 – e códigos de disciplina e comportamento continuam perpassando as ações no ambiente organizacional, perdurando no imaginário dos executivos.
[...] as mulheresme parecem que não gostam muito da negociação. E se você for olhar, também nas áreas de compras de empresa, exige uma pessoa firme, fornecedores, e tal [...]. (E32)
Agora eu acho que mulher com mulher tem até mais problema [...] no trato do que mulher com o homem. [...] entre mulheres não tem [...] cumplicidade[...] (E10)
As características femininas são entendidas como não pertencente ao mundo dos negócios, se trate de homens ou de mulheres. Para os entrevistados, os ho- mens que as detêm são menos dignos do mundo corporativo, reforçando ainda em 2013, os apontamentos de Oliveira (2004), de que a supremacia masculina persisti, mesmo com a incorporação massiva das mulheres no mercado de tra- balho (MATOS, 2000a; 2001b). A destradicionalização do ideal masculino não tem sido capaz de libertar o mundo social e as mudanças não têm sido capazes de diminuir o desconforto, o desprazer, o sofrimento, as resistências e os confli- tos provocados por um ideal tão equivocadamente insuflado (OLIVEIRA, 2004). Como resultado dessa pesquisa, apresentamos a seguir, alguns pontos relevantes para o contexto e estudos organizacionais, nossas limitações e necessidades de futuras investidas sob a mesma temática.
Conclusão
O ideal de masculinidade, ainda presente nas ideologias contemporâneas, perpassa o conteúdo das entrevistas e o imaginário dos gestores brasileiros. Com menor ou maior impacto, as consciências dos indivíduos estão carregadas de preconceitos e estereótipos inculcados ao longo de suas vidas. O conteúdo disseminado nos seios das famílias, das igrejas e das escolas é tão enraizado que passa despercebido pelos sujeitos, muitas vezes incapazes de identificar as perdas que a sociedade tem em reforçar e dar continuidade às práticas discrimi- natórias. Aliás, é comum o indivíduo não reconhecer suas pré-concepções. Os
sujeitos abordados em nossa pesquisa têm formação privilegiada e são morado- res de regiões brasileiras consideradas bem desenvolvidas, cultural, econômica e socialmente. Esse aspecto revela que as ideologias que impactam o imaginário dos indivíduos ultrapassam questões de classe social. Pois, se muitas informa- ções midiáticas levam a crer que as diferenças e violência de gênero impactam quase que exclusivamente as classes menos favorecidas economicamente, nossa pesquisa revela que mudam as formas e o tom dos discursos, mas permanecem as exclusões e delimitações territorialistas entre masculino e feminino. A desi- gualdade entre os gêneros nos parece transversal à sociedade.
Há no imaginário social, um ideal composto por oposições, por polos con- trários e complementares (OLIVEIRA, 2004; BUTLER, 2006; 2009; 2010; MA- TOS, 2000a; 2000b; 2001a; 2001b) que alimentam a noção de papéis exclusi- vos a homens e a mulheres. Não encontramos discurso livre de preconceitos e evidenciou-se um princípio normativo na reprodução das crenças sexistas. Ao buscar compreender o que é ser um “homem de negócios” na contemporaneida- de, observamos que o estereótipo e o ethos do guerreiro continuam presentes na sociedade. A naturalização dos papéis e de regras morais ou ideológicas ainda promove segregação e discriminação entre os mais masculinos ou menos mascu- linos. Mulheres pertencem a uma categoria ainda menos favorecida nessa hierar- quização e as representações de masculinidade, compartilhadas pelos executivos, partem de ideais cristalizados (FARO et al, 2013). A virilidade prevalece e a ra- cionalidade e objetividade ainda são consideradas intrínsecas ao sexo masculino. Quanto mais viril for o executivo, melhor.
A masculinidade, no entanto, parece apresentar-se em diferentes graus e quanto mais próxima da virilidade, mais valorizada no contexto corporativo (CARRIERI et al, 2013; MENEZES et al, 2013). Se superamos o período das cavernas e das caças, o macho agora exibe seu poder de outras formas, exibindo carrões, bons ternos e posições de destaque no mundo profissional. A força ainda é lembrada, mas agora com contornos simbólicos, sempre se referenciando à guerra e às batalhas. Recorre-se costumeiramente ao dito popular de que não basta ser homem, é preciso parecer homem e enfatiza-se que os desviantes pen- sam de forma inferior. Homens e mulheres foram igualmente ouvidos e conside- rados para a pesquisa, fossem héteros ou homossexuais, e ambos demonstraram pautar-se em ideais masculinos. Entretanto, alertamos para a importância da rea- lização de uma pesquisa que nos permita confrontar opiniões. É possível que uma pesquisa exclusivamente destinada aos considerados desviantes, nos revele uma
visão diferente sobre mulheres e gays, ampliando nossas impressões e reflexões. Por hora, notamos que as representações de masculinidade estão imbricadas em convicções estereotipadas e classificatórias, territorialistas. Ressalta-se a força de um e a fragilidade do outro. Valoriza-se algumas habilidades em detrimento de outras, sempre atrelando-as ao gênero. Há um vácuo que precisa ser investigado e a continuidade entre esses polos precisa ser considerada e amplamente discutida. Ao adotarmos a perspectiva da Análise Crítica do Discurso (ACD), nos foi possível uma análise profunda das dimensões de constituição dos discursos que enunciam o ideal de masculinidade. O acesso aos sujeitos fez emergir ideologias que trouxeram à tona as convicções acerca do ideal de masculini- dade, que mesmo nos meios sociais em que os discursos coletivos são mais amenos e sutis, promovem o preconceito e as dificuldades em lidar com as diferenças. Determinações sexistas ainda privilegiam o protótipo do macho, em detrimento de todos os que escapam a ele. Nosso estudo é limitado, mas o consideramos importante para a reflexão acerca da dominação e das possi- bilidades de emancipação, apontadas por Fairclough (1992;1995). Contudo, compreendemos que os estudos organizacionais ganham com esse tipo de pesquisa, porque revela particularidades do mundo socialmente organizado. Possibilita um conhecimento mais profundo sobre a complexidade que per- passa os mais variados ambientes organizacionais e permite uma perspectiva crítica dos estudos em administração, revelando dimensões pouco investiga- das pela área e, por isso, úteis ao movimento de desvelamento das experi- ências compartilhadas em ambiente organizacionais. Nossa proposta é ultra- passar os protocolos, partilhados em massa, propondo um novo olhar sobre a gestão, buscando perceber como a administração impacta na vida social e como é impactada por ela. Somos cientes de que ainda há muito para se fazer nas ciências administrativas, e percebemos que conhecer o mundo social se faz de suma importância para o desenvolvimento das pesquisas em adminis- tração. As organizações são feitas por pessoas, e é preciso compreender que,
como as pessoas, elas também são frutos da sociedade organizada.