Artigos

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como instrumento de reparação: território, identidade e políticas de reconhecimento

Gabriel Carvalho Vogt
UNIRIO, Brasil

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como instrumento de reparação: território, identidade e políticas de reconhecimento

O Social em Questão, vol. 17, núm. 32, pp. 151-164, 2014

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo: Este artigo tem como proposta caracterizar o artigo 68 do Ato das Disposições Consti- tucionais Transitórias (ADCT) - como mecanismo fundamental de reparação e proteção do patrimônio cultural representado pelas comunidades remanescentes de quilombos no Brasil, transformando grupos até então silenciados por sofisticados mecanismos de violência simbólica em sujeitos de direito. Desta forma, estabelece-se não apenas o direito à propriedade da terra, mas, e ainda mais importante, a inserção destes como protagonistas da própria história, tendo seu papel e importância reconhecidos pelo Estado, seja por meioda agenda jurídica, seja pela sua derradeira inserção na história e na identidade oficial do país.

Palavras-chave: Quilombos, Reconhecimento, Identidade, Memória, Reparação.

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como instrumento de reparação: território, identidade e políticas de reconhecimento

Gabriel Carvalho Vogt1

Resumo

Este artigo tem como proposta caracterizar o artigo 68 do Ato das Disposições Consti- tucionais Transitórias (ADCT) - como mecanismo fundamental de reparação e proteção do patrimônio cultural representado pelas comunidades remanescentes de quilombos no Brasil, transformando grupos até então silenciados por sofisticados mecanismos de violência simbólica em sujeitos de direito. Desta forma, estabelece-se não apenas o direito à propriedade da terra, mas, e ainda mais importante, a inserção destes como protagonistas da própria história, tendo seu papel e importância reconhecidos pelo Estado, seja por meioda agenda jurídica, seja pela sua derradeira inserção na história e na identidade oficial do país.

Palavras-chave

Quilombos; Reconhecimento; Identidade; Memória; Reparação.

Article 68 of ADCT as an instrument for reparation: territory, identity and the politics of recognition

Abstract

This article aims to characterize the Article 68 ADCT as a fundamental mechanism of rep- aration and protection of cultural heritage represented by the quilombos remaining com- munities in Brazil, turning groups so far silenced by sophisticated mechanisms of symbolic violence in subjects of rights.Thus, it establishes not only the right to land ownership, but, even more importantly, the inclusion of these as protagonists of their own history, and their role and importance recognized by the State, either through legal agenda, either through their ultimate inclusion in the official history and identity of the country.

Keywords

Quilombos; Recognition; Identity; Memory; Reparation.

152 Gabriel Carvalho Vogt

Introdução

“Eu falei, padre, nosso tipo de fome é diferente, nossa fome é por justi- ça. Nós não temos fome de comida porque nós temos batata, nós temos mandioca, nós temos inhame, quem tem isso e folha verde, né, até rama de batata, se você botar ela na panela e jogar um salzinho e cozinhar, você come com angu, né, e tá satisfeito. Agora, a fome nossa é de jus- tiça, é de reconhecimento, porque, você vê, eu acho que é até uma covardia o que o Brasil faz com os negros, tá. Não só o negro daqui, não, você vê os negros nas favelas, o negro em qualquer lugar é discri- minado. Então esse é o tipo de fome... você tem que provar, você tem que provar, tá, você tá com um carro novo, você chega em uma blitz de polícia, ele te para com arma na cara, então, de cara ele acha que você é um bandido, que você é um ladrão, e você tem que provar que aquele carro é seu... aí o cara ainda fica pensando, mas o que é esse negro pra comprar esse carro, tá. Então é tudo isso, o Brasil deve muito a gente, ele tem que, não é só dar explicação, ele tem que reconhecer e tem que começar pelos quilombos, pelos quilombos.” 2

As concepções filosóficas, políticas e sociais pós-modernas foram, tanto no Brasil como em diversos outros países, veículo de emergência de novos atores sociais no fim do século XX, bem como sua influência se fez sentir na mudança de comportamento dos Estados no tratamento das questões sociais. Segundo a professora de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Pa- raná - PUC-PR, Amália do Carmo Sampaio Rossi, a inserção de valores como respeito e dignidade nas Constituições nacionais ocorreu como resposta aos regi- mes autoritários que dominaram parte da Europa na segunda metade do século

XX. É o que se depreende dos trechos abaixo, retirados do seu trabalho intitulado “Neoconstitucionalismo3 e direitos fundamentais”:

O neoconstitucionalismo, emergindo no âmbito dos valores pós-modernos, ba- liza a reformulação da Carta Magna brasileira e insere o conceito de multicul- turalismo. A partir de então, novos sujeitos de direito passam a gozar de prote- ção específica. A pluralidade étnica e cultural, entendida como base formativa da identidade nacional deve ser protegida como patrimônio imaterial da nação. As Constituições da Itália (1947), Alemanha (1949), Portugal (1976), Espanha

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como instrumento

153

(1978) e Brasil (1988) são exemplos desta mudança que tem demarcado o espa- ço do constitucionalismo contemporâneo, com a abertura das Constituições aos valores, por meio dos princípios constitucionais e, por conseguinte, a necessária abertura de todo o sistema jurídico. A introdução destes elementos ocorre, como se sabe, num contexto de reação aos regimes políticos marcados pela opressão, pelo autoritarismo e pela barbárie e marcados singularmente pelo não reconheci- mento do outro, da alteridade, a ausência da solidariedade.(ROSSI, 2012,p.3085)

Nesta mesma linha, o Estado brasileiro, sob pressão de diversos setores so- ciais antes dissolvidos sob o olhar monolítico do nacionalismo militarista, segue a mesma tendência dos Estados europeus e institui, na Constituição de 1988, uma série de direitos que constituem irradiações do princípio da dignidade da pessoa humana: os direitos fundamentais. Ao longo da década de 1980, o fortalecimento dos movimentos negros por todo o país produziu um novo olhar sobre a memória da escravidão no Brasil e, consequentemente, sobre a cultura negra no país. Nas palavras de Abreu e Mattos,

À imagem da princesinha branca, libertando por decreto escravos submissos e bem tratados, que durante décadas se difundiu nos livros didáticos brasileiros, passou-se a opor a imagem de um sistema cruel e violento, ao qual o escravo negro resistia, especialmente pela fuga e formação de quilombos.” (ABREU e MATTOS, 2011, p.2)

Esta releitura vai, aos poucos, impactar a produção intelectual nacional e, em especial a estrutura jurídica, convertendo o afro-brasileiro, em suas múltiplas e peculiares formas de organização e expressão cultural, em su- jeito de direitos específicos, baseados na proteção do patrimônio cultural4 e na promoção da dignidade. Em nosso trabalho, procuraremos analisar uma categoria particular destes direitos (fundamentais), chamados direitos de re- conhecimento (FIGUEIREDO, 2011). Neste contexto, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) merece nossa especial atenção. Em nome da conservação do patrimônio cultural da nação e do res- gate de uma dívida histórica com a população negra do país, o referido artigo assim foi elaborado: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos5 é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os res- pectivos títulos.”(ARRUTI, 2006, p.102).

154 Gabriel Carvalho Vogt

Reconhecimento

O direito embutido no artigo 68 do ADCT traz, antes de tudo, uma reflexão sobre a questão do negro no Brasil. Na sociedade brasileira, apesar dos avanços em termos de implementação de políticas de diferenças, persiste, em relação ao negro, uma dinâmica hierarquizante e uma desigualdade de oportunidades, se comparado à população branca6.

A visão estigmatizante sobre o negro, fomentadora de racismos de todo tipo, impacta negativamente o olhar que o indivíduo possui sobre si mesmo, desvalorizando elementos relacionados à cultura afro-brasileira, ao mesmo tempo em que cria reações da parte de alguns grupos que buscam a revaloriza- ção identitária.Embora ainda se proclame o discurso da democracia racial7 no Brasil, que nega a existência de um problema racial no país, o abismo entre po- pulação negra e branca vai além das desigualdades socioeconômicas, alcançando dimensões aviltantes de violência simbólica8.

A busca pela restauração da igualdade, nesse contexto, deve ser pensada não apenas como uma questão econômica (embora também o seja), mas também como uma questão moral, de resgate do respeito e do reconhecimento de grupos em situação de desvantagem por motivos raciais.A adoção de políticas universais, nesse caso, demonstra-se insuficiente, pois não leva em conta as particularidades dos grupos em desvantagem, mantendo as disparidades já existentes. O reconhe- cimento igualitário perpassa, antes de qualquer coisa, o reconhecimento da dife- rença, permitindo a cada indivíduo que desenvolva sua identidade própria, sem sofrer os danos decorrentes do olhar menosprezante lançado pelo outro.

Na filosofia moderna, o nome de Charles Taylor se destaca na lista dos grandes pensadores comunitaristas, que defendem a interpretação de valores como liberdade e igualdade a partir de uma ótica que privilegie as particu- laridades de cada comunidade política existente em uma sociedade plural, como é o caso da sociedade brasileira.

Os comunitaristas entendem o homem como um ser essencialmente coletivo, e não apenas individual. Dessa forma, a identidade humana se desenvolve e se per- petua dentro do coletivo (ou dos coletivos9) a que cada indivíduo pertence, não ha- vendo comunidades culturais superiores a outras, já que todas as culturas possuem o mesmo valor intrínseco e devem ser respeitadas nas suas singularidades.

Diante do quadro de múltiplas desigualdades nas sociedades multiculturais, Taylor(1998) afirma que o não-reconhecimento de uma identidade constitui uma forma de opressão, capaz de gerar danos incomensuráveis à imagem do grupo

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como instrumento

155

vitimizado. Ele defende, assim, uma política de reconhecimento da diferença, baseada no respeito à alteridade, no reconhecimento do “ser humano concreto”, portador de uma identidade fundada em fontes morais, sem as quais ele não seria capaz de nortear-se ou compreender-se. Apenas a recuperação da dignidade dos grupos que sofrem algum tipo de exclusão dentro do território que dividem com outros grupos privilegiados os tornariam hábeis a restabelecer a igualdade subs- tancial entre eles. Trata-se, aqui, fundamentalmente, de resgatar a autoestima do grupo historicamente menosprezado por sua diferença, haja vista:

(...) nossa identidade ser formada, em parte, pela existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorrecto dos outros, podendo uma pessoa ou grupo de pessoas serem realmente prejudicadas, serem alvo de uma verdadeira distorção, se aqueles que o rodeiam reflectirem uma ima- gem limitativa, de inferioridade ou de desprezo por eles mesmos. O não re- conhecimento ou o reconhecimento incorrecto podem afectar negativamente, podem ser uma forma de agressão, reduzindo a pessoa a uma maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe. (TAYLOR, 1998, p. 45.)

O antropólogo Jacques d’Adesky (2006), pesquisador da temática do negro e do racismo no Brasil, traz um exemplo emblemático envolvendo reconheci- mento e ideal de beleza, no caso do negro. Ele sustenta, na esteira de Taylor, que o olhar que lançamos uns sobre os outros é extremamente impactante em nossa autoestima e orgulho próprio. Um olhar negativo gera danos permanentes, fo- mentando preconceitos de ambas as partes.

No quesito beleza, por exemplo, prevalece em nossa sociedade o padrão “pele bran- ca, de cabelos lisos”. Esse padrão ideal pode ser constatado em publicidades, propagan- das, novelas, cinema e até mesmo no critério de recrutamento para certas profissões. Indivíduos de pele negra aparecem em ampla desvantagem em profissões subalternas que lidam diretamente com o público (como porteiros, garçons, recepcionistas etc.). Segundo o antropólogo, não é de se admirar, por essa razão, que a procura por tratamen- tos capilares para alisar cabelos afro seja muito frequente entre as mulheres negras, aspi- rando alcançar, assim, uma aparência mais bem aceita na sociedade brasileira.D’Adesky conclui reafirmando que a plena autonomia só pode ser assegurada

por políticas de promoção daqueles que sofrem efetivamente com injustiças sociais e culturais específicas (menores oportunidades no mercado de traba-

156 Gabriel Carvalho Vogt

lho, imagens inadequadas na mídia etc.); injustiças que não atingem o grupo majoritário e nem lhes são visíveis pelo motivo, mesmo, de pertencer ao grupo dominante10. (D’ADESKY 2006, p. 98)

Na corda bamba dos discursos históricos, o equilíbrio entre o dito e o não-

-dito se dá de acordo com o ordenamento das forças políticas. Na história oficial do Brasil, a tentativa de eliminar o componente racial das discussões culturais e sociais relegou boa parte da identidade afro-brasileira ao silêncio e ao esqueci- mento. Nas palavras de Abreu e Mattos,

a incorporação de uma agenda política patrimonial nas reivindicações pelo direito à terra e à identidade quilombola não envolveu unicamente expressões culturais de música e dança associadas à escravidão e à afrodescendência. Envolveu também a percepção da própria história, memória e tradição oral do grupo como patrimônios que precisam ser valorizados, lembrados e, desta forma, reparados. (ABREU e MATTOS 2011, p.8) (grifo nosso).

Há um gradual entendimento entre os vários grupos quilombolas pelo país de que não se trata apenas da formalização de um direito agrário, por assim dizer, de um direito à terra, como se da simples reprodução material da vida se tratasse a questão. Não. O que se inicia, em verdade, é o protagonismo político destes gru- pos minoritários ante a sociedade englobante (POLLACK, 1992). É na reescrita da história que reside o foco político das políticas11 de reparação.

Território e territorialidade

O direito encerrado no artigo 68 do ADCT - de conferir a titularidade das terras ocupadas por grupos remanescentes de comunidades quilombolas - busca, antes de tudo, preservar a identidade cultural do grupo-alvo, identidade essa que estaria ameaçada de extinção na ausência de políticas públicas voltadas para sua preservação e perpetuação.

Deve-se tomar cuidado para não confundir a questão com simples questão fundiária12. Se assim o fosse, não haveria que se falar em direito àquela terra espe- cífica que ocupam, mas a qualquer uma. Os territórios tradicionais de que trata o referido artigo, por analogia com o §1º do art. 231, da CF, que dispõe sobre as terras indígenas, são aqueles“ (...) utilizados para suas atividades produtivas [da comunidade], as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessá-

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como instrumento

157

rios a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Para compreender tal definição, devemos esclarecer certos conceitos como território e territorialidade.

Pode-se dizer, em linhas gerais, que as comunidades tradicionais caracterizam-

-se, primordialmente, por sua territorialidade, isto é, pelos estreitos laços existen- tes entre as práticas econômicas, culturais e espirituais e a terra que ocupam. A re- lação terra/cultura é o elemento que confere coesão ao grupo, aquele que sustenta a existência do grupo. Extirpado desse elemento, o indivíduo deixa de pertencer a uma comunidade e é jogado em um limbo. Neste sentido,esclarece Sarmento,

Para comunidades tradicionais, a terra possui um significado completamente diferente da que ele apresenta para a cultura ocidental hegemônica. Não se trata apenas da moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando a pre- servação da cultura, dos valores e do modo peculiar de vida da comunidade étnica. (SARMENTO, 2006a, p.5):

Na mesma linha, ressaltando o valor especial que a terra possui para povos ditos “tribais”, assim dispõe o art. 13 da Convenção 169 da Organização Interna- cional do Trabalho (OIT)13:

Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espi- rituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneirae, particularmente, os aspectos coleti- vos dessa relação. (grifo nosso).

O conceito de territorialidade possui importância vital na fundamentação dos processos de regularização de terras quilombolas. É preciso, neste ponto, distin- gui-lo da noção de território, conceito do qual deriva o primeiro.

O termo território é quase sempre utilizado em sua acepção política, fazendo referência ao espaço diretamente vinculado ao exercício do poder, especialmente do poder exercido pelo Estado-nação14. Em uma análise superficial, pode parecer

pg 151 - 164

O Social em Questão - Ano XVII - nº 32 - 2014

158 Gabriel Carvalho Vogt

que o território, visto por este ângulo, resume-se a uma dimensão física, concre- ta, dentro da qual caberia ao Estado gerenciar as bases materiais de reprodução da vida de um dado grupo social. O Estado e o território representariam a manifes- tação do poder político exercido, por meio da separação entre os que podem e os que não podem adentrar tal porção do espaço.

Tal acepção não é equivocada, mas reducionista. Segundo Haesbaert (2004, p.1), desde sua origem, o termo território possui, etimologicamente, uma dupla conotação, envolvendo as dimensões material (domínio do território) e simbólica (identificação, identidade territorial).

Partindo destas possíveis dimensões é que nos apropriamos dos conceitos de território e territorialidade nas discussões sobre as comunidades remanes- centes de quilombo.

Se extrapolarmos em direção à compreensão de que território diz respei- to não apenas ao poder político exercido sobre uma dada parcela do espaço, mas às múltiplas modalidades de poder, vislumbraremos novas possibilidades de recortes territoriais.

Além da dominação, ligada à propriedade, observamos que territórios podem se construir mediante mecanismos de apropriação, onde as estratégias de repro- dução e produção da vida ditam as relações que se estabelecem com o espaço habitado. O relacionamento continuado de um determinado grupo social com a terra em que sua existência se reproduz estabelece novas formas de se perceber o território, baseadas fundamentalmente em valores simbólicos, em valores de uso ligados às experiências, ao “vivido”.

O território ganha simbolismo a partir e através do uso. O uso continuado do território produz o gradual enraizamento que conecta o grupo ao espaço cons- truído, dinâmica e coletivamente. É esse espaço que servirá de base para a cons- trução dos vínculos identitários de todo o grupo que coletivamente o constituiu. As comunidades remanescentes de quilombos têm sua identidade constituí-

da sobre os referidos elementos simbólicos, amparados na apropriação e no uso cotidiano de seu constructo territorial. As inúmeras comunidades quilombolas existentes pelo país, embora apoiadas em elementos identitários comuns, desen- volveram variadas estratégias de apropriação do espaço e também de dominação territorial e, portanto, variadas territorialidades.

Reforçando esse entendimento, Haesbaert (2004, p.3) diz que a territorialidade,“além de incorporar uma dimensão estritamente política, diz res- peito também às relações econômicas e culturais, pois está ‘intimamente ligada

O Social em Questão - Ano XVII - nº 32 - 2014

pg 151 - 164

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como instrumento

159

ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar’”.

As relações simbólicas com o espaço variam sobremaneira na sociedade bra- sileira devido, entre outros fatores, a sua multiplicidade cultural. Pode-se dizer que o olhar dominante sobre o território é o olhar capitalista. Para ele, acima de quaisquer dimensões subjetivas, o território é dotado de dimensão funcional que o transforma em mercadoria.

Na ótica desenvolvimentista que dominou o pensamento econômico e polí- tico brasileiro durante décadas, o uso do território esteve diretamente associado a sua capacidade de produção de riqueza material. Tal ótica vem desenhando um amplo mapa de choques de territorialidades pelo país.Territorialidades economi- camente mais frágeis vêm sendo sacrificadas em nome do desenvolvimento e do progresso econômico do país15.

Conforme Haesbaert,

Para os ‘hegemonizados’, o território adquire muitas vezes tamanha força que combina com intensidades iguais funcionalidade (“recurso”) e identidade (“sím- bolo”). Assim, para eles, literalmente, retomando Bonnemaison e Cambrèzy (1996), ‘perder seu território é desaparecer’. O território, neste caso, ’não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas ao ser’. (HAESBAERT, 2004,p. 4):

Sarmento (2006a:6) reforça essa ideia, comparando a privação da terra, nes- ses casos, a um verdadeiro etnocídio:

Privado da terra, o grupo tende a se dispersar e a desaparecer, tragado pela sociedade envolvente. Portanto, não é só a terra que se perde, pois a identida- de coletiva também periga sucumbir. Dessa forma, não é exagero afirmar que quando se retira a terra de uma comunidade quilombola, não se está apenas violando o direito à moradia dos seus membros. Muito mais que isso, se está cometendo um verdadeiro etnocídio.

Conclusão

Não há nada mais estreitamente relacionado à dignidade da pessoa humana do que o sentimento de pertencimento a um grupo identitário, especialmente em se tratando de grupos tradicionais. Mas não é apenas sob a ótica dos grupos imedia- tamente beneficiados que podemos perceber a relevância do artigo 68 do ADCT.

160 Gabriel Carvalho Vogt

A Constituição brasileira estabelece a pluralidade étnica e cultural brasileira como patrimônio imaterial a ser protegido, sob o risco de serem comprometidos os fundamentos de nossa identidade nacional. Como sociedade pluriétnica e mul- ticultural, a existência de multiterritorialidades, onde as comunidades quilombo- las se inserem, é a garantia de preservação do patrimônio cultural imaterial do país, constituindo verdadeiro “direito fundamental cultural”.

Essa nova concepção de patrimônio cultural adotada pela Constituição de 1988 rompeu com a antiga visão monumentalista, enaltecendo valores até então depreciados, como os da cultura popular e dos grupos étnicos não-caucasianos formadores da nação brasileira.

A reconstrução e afirmação da identidade de grupos minoritários como os remanescentes de comunidades quilombolas é realizada em proveito não apenas dos integrantes das comunidades, mas de todos os brasileiros, que se beneficiam com a preservação deste patrimônio cultural imaterial tão rico, que poucos países possuem. A reconstrução da memória e da identidade das comunidades se trans- forma, gradualmente em projeto de reconstrução da memória e identidade na- cionais. Na construção do discurso oficial universalizante, a identidade nacional é forjada através da escolha arbitrária de elementos da cultura particularizável. Tal escolha segue sempre um projeto político, não sendo jamais isenta. Para Pollack (1992, p.8) “toda organização política veicula seu próprio passado e a imagem que forjou para si mesma” (grifo nosso). A verdadeira reparação passa, indiscuti- velmente, pela reescrita da história, pela construção de um novo passado.

Referências

ABA, Documentos do grupo de trabalho sobre as comunidades Negras Rurais.Boletim Informativo NUER, n. 1, 1994.

ABREU, M.; MATTOS, H. Remanescentes das Comunidades dos Quilombos”: memó- ria do cativeiro, patrimônio cultural e diretito à reparação. In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011 Disponível em:http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1299778862_AR- QUIVO_anpuh2011.pdf.Acesso em: 10 ago.2013.

ADESKY, J. D’. Anti-racismo: Liberdade e reconhecimento. 1 ed. Rio de Janeiro: Daut Design Editora, 2006.

ARRUTI, J. M. Mocambo. 1 ed. Bauru:: EDUSC, 2006.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Coleção Memó- ria e Sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Bra- sília, DF: Senado, 1988.

DALLARI, D. A. Elementos da Teoria Geral do Estado. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

FIGUEIREDO, A. V.de.O caminho quilombola: sociologia jurídica do reconheci- mento étnico. 1ed. Curitiba: Appris, 2011.

HAESBAERT, R.. Dos múltiplos territórios á multiterritorialidade. In Anais do I Seminá- rio Nacional sobre Múltiplas Territorialidades. Porto Alegre, 2004. Disponível em: http://www.ufrgs.br/petgea/Artigo/rh.pdf Acesso em: 27 de set. 2014.

ORTIZ, Renato.1994. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed. São Pau- lo: Brasiliense.

POLLACK, M.. Memória e identidade social. Tradução de Monique Augras. Estu- dos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, p. 200-212.

ROSSI,Amélia Sampaio. Neoconstitucionalismo e Direitos Fundamentais. In:Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. [Anais eletrônicos] Disponível em:http://conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salva- dor/amelia_do_carmo_sampaio_rossi.pdf . Acesso em: 2 nov. 2012

SARMENTO, Daniel. A garantia do direito à posse dos remanescentes de quilom- bos antes da desapropriação. Comissão Pró-índio de São Paulo. 2006a.

SARMENTO, D.A. de M. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ed. Rio de Ja- neiro: Lumen Juris, 2006b.

TAYLOR, C.. A política de reconhecimento. In: TAYLOR, C. et al. Multiculturalis- mo. Lisboa: Piaget, 1998.

Notas

1 Graduado em Geografia (Universidade Federal Fluminense). Mestrando em Memória Social (PPG- MS/UNIRIO). Professor do Colégio Militar do Rio de Janeiro. E-mail: vogt.gabriel@hotmail.com.
2 FERNANDES, Antônio do Nascimento: depoimento [jul.2012]. Entrevistador: L.V. C. VOGT e G. C.VOGT. Rio de Janeiro: UERJ, 2013. .mp3 (59 min.). Entrevista concedida para elabo- ração de trabalho de conclusão do curso de Direito da UERJ.
3 Apesar da inexistência de uma teoria neoconstitucional clara e bem definida, podemos entender o neoconstitucionalismo como um conjunto de novos valores em vigência no campo das ciências jurídicas a partir da segunda metade do século XX. Este proclama a primazia do princípio da dignidade da pessoa humana, a qual deve ser protegida e promovida pelos Poderes Públicos e pela sociedade. Da mesma forma, esse movimento enaltece a força normativa da constituição, a qual deixa de ser um mero catálogo de competências e de recomendações políticas e moraispara se tornar um sistema de preceitos vinculantes, capazes de conformar a realidade.
4 O Decreto do governo federal n. 3.551, de 4 de agosto de 2000, permitiu considerar como patrimônio da nação as manifestações culturais imateriais.
5 É interessante destacar que o sentido atribuído ao termo quilombo passou por um processo de ressemantização. A Associação Brasileira de Antropologia apresentou, no ano de 1994, uma sugestão de interpretação da categoria “remanescentes de quilombos”, baseada fundamental- mente em aspectos culturais, que privilegia a visão que os próprios membros do grupo étnico possuem sobre si mesmos. Essa nova proposta interpretativa é qualificada por Arruti (2006, p.92) como ressemantizadora, em contraposição à ultrapassada interpretação dicionarizante ou historicizante dos termos “quilombo” ou “quilombola”. O cerne da proposta ressemantizadora está na adoção do critério de etnicidade formulado por Frederick Barth (ABA, 1994), segundo o qual os grupos étnicos seriam “um tipo organizacional que confere pertencimento por meio de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão”, ou, nas palavras de André Figueiredo (2011, p.48), grupos que “se definem a partir de critérios intersubjetivos de per- tença e não pertença”. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) como instrumento163
6 Diante da ampla mistura racial existente no Brasil, o antropólogo Jacques d’Adesky (2006) sugere, em vez de questionar quem é negro no Brasil, questionar quem sofre privações por mo- tivos raciais ou étnicos, resolvendo, assim, o dilema da cor da pele, tão polêmico atualmente.
7 Para considerações mais profundas sobre o mito da democracia racial, vide: D’ADESKY, 2006.
8 O conceito de violência simbólica foi criado pelo pensador francês Pierre Bourdieu para descrever o processo pelo qual a classe que domina economicamente impõe sua cultura aos dominados. Bourdieu, juntamente com o sociólogo Jean-Claude Passeron, partem do princípio de que a cultura, ou o sistema simbólico, é arbitrária, uma vez que não se assenta numa realidade dada como natural. O sistema simbólico de uma determinada cultura é uma construção social e sua manutenção é fundamental para a perpetuação de uma determinada sociedade, através da interiorização da cultura por todos os membros da mesma. A violência simbólica se expressa na imposição “legítima” e dissimulada, com a interiorização da cultura dominante, reproduzindo as relações do mundo do trabalho. O dominado não se opõe ao seu opressor, já que não se percebe como vítima deste processo: ao contrário, o oprimido considera a situação natural e inevitável. L’APICCIRELLA, Nadime. O Papel da Educação na Legitimação da Violência Simbólica. Disponível em: http://www.cdcc.sc.usp.br/ciencia/ artigos/art_20/violenciasimbolo.html. Acesso: 23/08/2013
9 D’ADESKY(2006, p. 87) explica que cada indivíduo possui identidades múltiplas e sobrepos- tas, “começando pela identidade universal do ser humano, que é abstrata; as identidades nacio- nal, étnica etc”.
10 SILVA FILHO, J.C. M. da. A Repersonalização do Direito Civil a partir do pensamento de Charles Taylor: algumas projeções para os Direitos de Personalidade. Revista sequência, n° 315, nos chama a atenção para o perigo do argumento que desqualifica as políticas de reconhecimento da diferença no âmbito público. O jurista assinala: “O grande leitmotiv da filosofia tayloriana é, portanto, que não há instâncias neutras e despidas de configurações morais. O argumento liberal de que as regras do mercado e da democracia – fundadas na separação entre Estado e sociedade e no estabelecimento da meta social de maximização dos interesses pessoais e do respeito aos direitos individuais – são neutras e universais é falacioso e ingênuo. Por esse viés liberal tradicional, qualquer tentativa de situar outras concepções de bem, que envolvam o reconhecimento substantivo da identidade de certos grupos ou segmentos sociais, é vista como restrição de um princípio que se imagina neutro e universal, daí por que a esfera moral fica aprisionada no âmbito privado entendido de modo restrito.” (SILVA FILHO, J.C. M. da. A Repersonalização do Direito Civil a partir do pensamento de Charles Taylor: algumas projeções para os Direitos de Personalidade. Revista sequência, n° 315, nº57, p.299-322, dez 2008. p315).
11 Ortiz (1994:140), ao esclarecer as relações entre poder o político e as políticas, deixa claro que o empoderamento produzido pelo novo protagonismo político dá aos grupos cuja voz foi ou- trora calada por discursos mais poderosos, capacidade de conduzir a reinterpretação simbólica de si próprios enquanto manifestações simbólicas da cultura nacional.
12 Embora a responsabilidade pelo processo de titulação de terras quilombolas caiba, hoje, quase na totalidade, ao INCRA, entender esse processo como reforma agrária especial não parece 164 Gabriel Carvalho Vogt adequado, em função das demandas por reconhecimento cultural embutidas no propósito da edição do art. 68 do ADCT. ARRUTI (2006:102) atesta, a esse respeito: “O posicionamento primordialista, orientador dosresponsáveis diretos pela formulação e aprovação do ‘artigo 68’, é inicialmente estranho a essas questões agrárias e fundiárias, estando ligado às preocupações com a produção de uma identidade e de um orgulho racial que têm na recuperação do ‘mundo africano em nós’ e no exemplo de resistência o seu foco.”
13 A Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais foi ratificada pelo Brasil em 2003. Os tribunais brasileiros recorrem com frequência à dita Convenção para prote- ger os direitos de comunidades remanescentes de quilombos, por se tratarem de povos “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coleti- vidade nacional, e que sejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial”.
14 No âmbito da Teoria do Estado, território corresponde ao espaço onde o Estado exerce seu poder de imperium, isto é, seu poder soberano. (DALLARI, 2007, p. 90)
15 A historiadora Lílian Gomes (2010. p. 193)ensina que o processo de distribuição de terras no Brasil que culminou na grande concentração fundiária atual remonta ao período colonial e tornou-se definitivo com a aprovação da Lei de Terras em 1850, que associou o uso da terra ao mercado, eliminando, assim, a “possibilidade de a pequena propriedade de terras vigorar na estrutura agrária fundiária brasileira”. Esse processo deu origem a uma elite agrária muito poderosa, que até hoje exerce grande influência na política do Estado. A historiadora continua: “Essa ancoragem entre Estado e poder econômico confere capacidade às elites agrárias de lega- lizar pelas vias formais o domínio sobre as terras através da compra, fazendo sucumbir relações calcadas na construção de territórios tradicionais que estabeleceram teias de relações em pro- funda harmonia com os ecossistemas de referência, constituindo-se em patrimônio histórico e cultural de toda a população brasileira.”
16 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fon- tes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro- -brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Disponível em file:///C:/Users/Gabriel%20Vogt/Downloads/constituicao_federal_35ed.pdf Acesso em 27 de setembro de 2014). Artigo recebido em junho de 2014, aprovado para publicação em agosto de 2014.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por