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A periferia da periferia e o pensamento de Antonio Gramsci
The periphery of the periphery and Antonio Gramsci´s thought
O Social em Questão, vol. 24, núm. 51, pp. 67-86, 2021
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro



Recepción: 01 Marzo 2021

Aprobación: 01 Mayo 2021

Resumo: Os estudos gramscianos, seguindo o mesmo processo de muitas outras tradições teóricas, acabaram, por décadas, restritos a determinadas regiões nas quais algumas condições foram asseguradas pelas sociedades civis. No caso do Brasil, isso é bastante evidente e deve, por hipótese, ser a situação de outros países da América Latina. Os motivos são diversos, sendo a concentração dos centros de produção de conhecimento, um dos mais importantes. De qualquer modo, numa sociedade como a brasileira, em que a formação histórica não seguiu um ritmo único e homogêneo, difundir o pensamento gramsciano para além das grandes cidades é não só possível, como necessário. Sendo Antonio Gramsci um autor também das periferias do mundo, a sua inserção em espaços sociais, políticos, econômicos e culturais não marcados pelo capitalismo desenvolvido, pode gerar importantes contribuições teórico-políticas.

Palavras-chave: Periferia, Brasil, Antonio Gramsci.

Abstract: Gramscian studies, following the same process as many other theoretical traditions, ended up for decades restricted to certain regions in which some conditions were ensured by civil societies. In the case of Brazil, this is quite evident and should hypothetically be the situation in other countries in Latin America. The reasons are many, with the concentration of knowledge production centers being one of the most important. In any case, in a society like the Brazilian one, in which the historical formation did not follow a single and homogeneous process, spreading Gramscian thought beyond the big cities is not only possible, but also necessary. Since Antonio Gramsci is also an author from the peripheries of the world, his insertion in social, political, economic, and cultural spaces not characterized by developed capitalism, can result in important theoretical and political contributions.

Keywords: Periphery, Brazil, Antonio Gramsci.

Elemento iniciais: Gramsci, América Latina e Brasil

Aqui não será aprofundada a relação entre Gramsci e América Latina, de modo a analisa-la como objeto específico de discussão. Serão sim abordadas algumas características da disseminação das ideias gramscianas no Brasil, para além das sociedades civis complexas social, política e culturalmente. Tais características podem, apenas por hipótese, ser estendidas aos demais países da região.

No interior das relações capitalistas globais, a América Latina se localiza na periferia do sistema. Quanto a isso, muito já se falou e se demonstrou. Como não poderia ser diferente, o Brasil, sendo um país dessa região, mesmo tendo um importante destaque econômico no cenário internacional, também é dimensionado como periferia do capitalismo. Tanto a América Latina, em geral, quanto o Brasil, em particular, encontram-se ainda submetidos ao poder econômico, político e cultural dos países e das regiões centrais do sistema. A literatura sobre tais constatações já é consolidada e amplamente reconhecida.

Antonio Gramsci, diante de uma Itália de capitalismo incompleto – isto é, sem passar por uma profunda revolução burguesa e, assim, preservando traços fortes da sociedade pré-burguesa – elaborou sua teoria social não apenas a partir da classe operária dos centros urbanos e industriais do Norte, mas também teve em conta a vida dos camponeses, imersos em relações sociais marcadas pelo poder dos latifundiários e da igreja. Como o Brasil, a América Latina e muitos outros países de demais regiões, também foram inseridos no capitalismo sem revoluções burguesas radicais – como nos casos dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra – mas ao contrário, preservaram antigas relações sociais, as concepções gramscianas acabaram tendo impacto teórico-político significativo entre os estudiosos e os militantes de suas vidas nacionais.

Na América Latina e, obviamente, no Brasil, as relações sociais pré-capitalistas não foram superadas efetivamente, ao contrário, foram incorporadas à lógica de acúmulo do capital. Com isso, formas de dominação marcadas pela escravidão de negros oriundos da África e de indígenas do “novo continente”, tiveram permanência. O convívio entre realidades tipicamente burguesas, em algumas localidades, e outras carregadas de passado, correspondentes a maior parte dos territórios nacionais, fez surgir sociedades civis com tempos históricos diferenciados. Enquanto nos grandes centros industriais de algumas cidades, a classe operária foi o principal sujeito político das contestações perante o sistema, em muitas outras regiões a luta contra a exploração foi, e ainda é, realizada por classes e grupos outros. Nessa linha, se no cenário internacional as experiências capitalistas desses países são identificadas como periféricas, em cada terreno nacional o periférico não está no seu particular centro sistêmico, está em outro lugar, isto é, em regiões dominadas pela brutalidade político-social do passado escravagista. No caso do Brasil, isso é bastante explícito. Em território brasileiro, o capitalismo se desenvolveu na faixa litorânea e o seu interior continental preservou a herança histórico-nacional da escravidão (SODRÉ, 1990). Somente entre o final do século XX e o início do XXI, as relações de produção capitalistas começaram a fazer parte do quadro social desse imenso território – fundamentalmente por meio do chamado agronegócio. No entanto, esse avanço do capital para o restante do país vive ainda o momento do impacto puramente técnico, das máquinas e da grande produtividade, pois, do ponto de vista político-cultural o arcaico é ainda predominante. As contradições típicas do capitalismo moderno, principalmente em relação ao surgimento e à consolidação das organizações de luta das classes e dos grupos explorados, ainda não fazem parte de tais cenários, pelo menos não significativamente.

Esses elementos da formação histórica brasileira e, como hipótese, dos países latino-americanos, fizeram surgir uma variação na estrutura das suas sociedades civis. O caso do Brasil é exemplar, já que aqui não é possível falar em uma sociedade civil nacionalmente uniforme, mesmo depois das importantes mudanças ocorridas nas primeiras décadas deste século, em relação aos avanços da comunicação de massa. Como indicação concreta desse contexto heterogêneo, pode-se dizer que a sociedade civil construída na capital paulista não é mesma erguida em Porto Velho, estado de Rondônia – região Norte do país. Enquanto a primeira apresenta um grau elevadíssimo de organizações sociais, possibilitando avanços na luta político-cultural das classes e dos grupos populares, a segunda ainda vive o predomínio de forças autoritárias impedidoras da construção de aparelhos de hegemonia antagônicos aos interesses dos donos de terras.

Segundo o próprio Gramsci, quanto mais complexa e desenvolvida uma sociedade civil, mais propícia fica sendo a produção de hegemonias. Isso fica evidenciado em suas formulações sobre as diferenças entre Oriente/Ocidente, entre Estado e sociedade civil (GRAMSCI, 2000). Quanto mais robusta for uma sociedade civil, mais se torna possível e necessária a edificação de aparelhos diversos capazes de elaborar a política, a ciência e a cultura. Serão, portanto, nessas localidades que as concepções de Gramsci terão melhor contexto de recepção. Já na sociedade civil dominada por um único exército, com poucas barreiras de contenção em relação aos interesses da velha classe e tendente ao uso exclusivo da força, a sua inserção será mais lenta e precária. É obvio que esse quadro não está ausente de movimento, porém a questão persiste. Especificamente em relação à periferia da periferia é possível ser gramsciano? É possível fermentar as ideias do autor italiano nesses territórios? Se sim, quais as suas particularidades? Se não, como fazer para superar tal estado de coisas? O fato é que Gramsci foi tradutor de um mundo repleto de complexidades; sua obra, avessa ao determinismo pode, portanto, ainda contribuir para a tradução da realidade contemporânea das periferias.

Gramsci e o Brasil: a questão do território

Já há um consenso estabelecido internacionalmente de que o Brasil é um dos países de maior inserção do pensamento gramsciano. A constatação disso, encontra-se no grande número de pesquisas realizadas sobre o autor, nos vários níveis de ensino e nas diversas áreas das Ciências Humanas. Grupos de estudos e pesquisas, livros, artigos, teses, dissertações e monografias, tendo como objeto de análise o próprio autor ou o utilizando como referência teórica, apresentam-se de forma bastante robusta na produção de conhecimento nacional. O “Mapa Bibliográfico de Gramsci no Brasil”, trabalho coordenado por Giovanni Semeraro, demonstra facilmente esta afirmação (SEMERARO, 2019).

Do ponto de vista de uma difusão mais sistematizada, os estudos gramscianos começam a surgir em meados do século XX, com as primeiras edições dos “Cadernos do cárcere”, em 4 volumes, por Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mário Gazzaneo, em plena ditadura civil-militar (SIMIONATTO, 2002). Mesmo com toda a dificuldade encontrada em tal contexto, Gramsci começou a ser lido por um número cada vez maior de pessoas. Nesse momento, no entanto, esses estudos se davam muito mais nos espaços políticos do que na academia. Gramsci, tornou-se referência para partidos políticos, organizações civis, coletivos, etc. Somente após o processo de redemocratização do país, a partir da década de 1980, é que ele será, aos poucos, também absorvido nos espaços de ensino e de pesquisa (SIMIONATTO, 2002). Obviamente que a absorção política de seu pensamento revela a sua importância como teórico da política, principalmente quanto ao seu combate ao autoritarismo fascista. Ocorre que a luta política está sujeita a inúmeros interesses e disputas ideológicas imediatos, nem sempre favoráveis ao aprofundamento das ideias e da obra de determinado autor. Teoria e política não estão cindidas no pensamento gramsciano, assim, priorizar uma, marginalizando outra, não é o melhor caminho para compreender sua obra. Deste modo, deve-se também atentar para o problema inverso, isto é, beneficiar a teoria em oposição à política.

Se é um fato histórico que partidos políticos e organizações civis absorveram concepções gramscianas para formularem seus programas, também é verdadeiro que isto ocorreu nos espaços da nação nos quais a sociedade civil se desenvolveu e criou as condições objetivas e subjetivas para sua recepção.

No âmbito das instituições de ensino e pesquisa, a apropriação da teoria gramscina também avançou em decorrência do cenário político-cultural do reduto mais desenvolvido da heterogênea sociedade civil brasileira. Até o final da década de 1990, Gramsci já estava consolidado como um clássico do século XX, em diversas áreas, porém a sua presença ainda estava quase que exclusivamente restrita a alguns centros de formação e pesquisa. O Sudeste e mais especificamente os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, eram, até então, os espaços nos quais se concentravam os estudos gramscianos. Desenvolver algum trabalho organizado sobre sua obra, fora dessas localidades, configurava-se como exceção.

Dois fatores contribuíram para uma mudança desse quadro, a partir dos anos 2000: 1) entre 1999 e 2002 é publicada uma nova edição dos “Cadernos do Cárcere”, em 6 volumes, mais próxima do texto original e com uma tradução mais apurada; 2) com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, começa a haver um processo de expansão das universidades federais por todo o território nacional criando, obviamente, condições necessárias para a pesquisa e o estudo da obra gramsciana e, assim, expandindo-a para além do eixo Rio de Janeiro-São Paulo.

A nova edição, organizada por Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henrique, contribuiu sobremaneira para uma maior e mais qualificada difusão do pensamento gramsciano pelo Brasil. Principalmente para uma nova geração de estudiosos, essa edição significou a porta de entrada para os conceitos e as elaborações do pensador italiano. Logo em seguida, também foram publicados, sobre organização dos mesmos autores, os chamados “Escritos Políticos”, em 2 volumes, e as “Cartas do Cárcere”, também em 2 volumes. Esse trabalho editorial, forneceu uma visão ampla da obra do italiano e isso diversificou consideravelmente as pesquisas. Sem dúvida, a democratização dos estudos gramscianos, pelo país, passa por este fundamental trabalho dos organizadores e da editora Civilização Brasileira.

O segundo ponto, acima indicado, não tem, obviamente, vínculo direto com a obra gramsciana, mas teve impacto direto sobre a sua difusão nacional, fundamentalmente no campo do ensino e da pesquisa. Com o programa de expansão das Universidades e dos Institutos Federais, levado adiante pelos governos do Partido dos Trabalhadores, inúmeros espaços de pesquisas foram criados. A descentralização da produção do conhecimento científico, até então restringida a poucas instituições e, em sua maioria, localizadas na faixa litorânea do país, acabou contribuindo também para a desconcentração dos estudos sobre a obra do italiano. Os pesquisadores e as pesquisadoras se inseriram em novos espaços e os estudos gramscianos também. O resultado é que atualmente em praticamente todas as regiões do país existe algum tipo de trabalho de aprofundamento sobre Gramsci. É certo que a maior parte das pesquisas continuam sendo realizadas entre Rio de Janeiro e São Paulo, porém outros estados e regiões já apresentam forte produção própria. Nesse contexto, destaca-se o Nordeste que já apresenta importante presença no conjunto da produção nacional gramsciana.

As demais regiões e estados seguem esse movimento. O Sul, o Centro-Oeste e o Norte, cada um com suas particularidades, estão num processo de pleno avanço sobre os trabalhos gramscianos. Localidades que até muito pouco tempo desconhecia a riqueza do pensador clássico do marxismo, passaram a entrar em contato com suas contribuições. Em alguns casos, porém, deve-se ressaltar o fato de haver, ainda, importantes obstáculos para a difusão da obra de Gramsci para além do espaço acadêmico. Afinal, o amplo domínio das relações sociais arcaicas no plano político-cultural é, em tais sociedades civis, uma poderosa realidade. As dificuldades estruturais impostas às forças democráticas e populares, nesses espaços, limitam a inserção de concepções como a gramsciana.

Utilizar-se de forma orgânica o pensamento gramsciano nessa sociedade civil, situada fora dos espaços nos quais seus estudos já se encontram disseminados, não é nada óbvio e simples. Nesse caso, se está falando de contextos ricos em complexidades diversas daquelas encontradas em regiões nas quais Gramsci já possui uma tradução consolidada e já é visto como um clássico. Os conflitos existentes nas periferias da vida nacional exigem mediações especificas, não sendo possível importar mecanicamente as características da produção, do debate e da luta, encontradas nos grandes centros do capitalismo brasileiro.

O próprio autor, como já foi dito, é um importante promotor da possibilidade de expandir suas concepções para além dos territórios de capitalismo avançado. O seu conceito de tradução, indispensável para a sua nacionalização pelo Brasil, é capaz de colocar num mesmo movimento histórico a luta dos/as trabalhadoras/res precarizados/as pelos aplicativos de entregas de São Paulo e as reivindicações dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul. Portanto, chamar a atenção para a questão da expansão territorial de sua obra, colocando-a diante de realidades concretas diversas, impulsiona a necessidade de tornar sempre operante o conceito de tradução. Afinal, esse não se refere apenas ao ato técnico de traduzir uma língua em outra, por exemplo, mas de concretizar elementos culturais amplos de uma determinada realidade em outras localidades. Os conceitos de “tradução” e de “tradutibilidade”, foram utilizados pelo autor para estabelecer relações dialéticas entre povos e nações, isto é, entre suas particularidades (GRAMSCI, 1999). No entanto, é perfeitamente possível trabalha-lo a partir de realidades específicas de uma mesma vida nacional. Esse conceito gramsciano leva em conta a importância das particulares e, assim, nega-se a imposição e o mecanicismo no processo de absorção de uma concepção originada em um terreno diferente daquele que se busca incorporá-la.

Até o atual momento, não é possível falar em uma consolidada brasilização das ideias de Gramsci. É preciso ter o entendimento de que a vida nacional brasileira apresenta realidades e complexidades regionais próprias, ainda que estejam sempre ligadas a movimentos mais amplos e universais. E que, por existir esta heterogeneidade, em muitas localidades a obra gramsciana está apenas em seu momento introdutório, tendo ainda muitos obstáculos pela frente.

As contribuições do autor sardo/italiano para a margem subalterna da sociedade civil nacional, principalmente quanto às organizações político-culturais, ainda não ocorreram efetivamente. Em tais situações, a sua teoria social ainda está limitada às dimensões da pesquisa e do ensino, tendo pouca ou nenhuma inserção nos movimentos da sociedade civil.

Gramsci no centro do agronegócio

Como exemplo de tentativa de difusão do pensamento gramsciano nos espaços subalternos do território nacional, será ressaltada, agora, a experiência do Grupo de Estudos Antonio Gramsci (GEA) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), surgido no primeiro semestre de 2014, em Mato Grosso do Sul, no Centro-Oeste brasileiro. A sua criação se deu no interior do Curso de Ciências Sociais, vinculado à Faculdade de Ciências Humanas.

Incialmente, teve um impacto significativo na formação de parte dos/as estudantes. O seu alcance, além disso, não se restringiu às ciências sociais, pois o interesse despertado sobre o autor italiano ocorreu em discentes de outros cursos como história, direito, pedagogia e relações internacionais. Suas atividades também teve a participação de educadores/as e estudantes de outras áreas e de outras instituições do estado, como da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Sobre a pós-graduação, o GEA também exerceu um papel de destaque, pois forneceu elementos conceituais para o andamento de pesquisas que buscavam em Gramsci o seu referencial teórico, principalmente nas áreas de Sociologia e de Educação.

O Grupo acabou, rapidamente, tornando-se referência para os/as jovens estudantes que buscavam explicações no campo do marxismo para os problemas criados pelo capitalismo. Alguns participantes possuíam vínculos no movimento estudantil e em partidos políticos. Um grande desafio, em particular, sempre foi tentar traduzir o pensamento gramsciano para a realidade sul-mato-grossense. Os conflitos agrários, envolvendo indígenas e agronegócio, sempre estiveram nas pautas de discussões. Obviamente que tais tipos de conflitos não foram analisados pelo pensador italiano, afinal não faziam parte de seu contexto histórico tal particularidade, entretanto, as suas reflexões sobre os camponeses, sobre os intelectuais, sobre a hegemonia, sobre a sociedade civil, sobre os subalternos, entre outros elementos de sua obra, sempre possibilitaram uma reflexão orgânica da realidade local.

Pesquisas, leituras, orientações, debates, promoções de eventos e de minicursos, foram realizados pelo GEA e contribuíram para o enriquecimento do processo de formações dos/as estudantes. Em todas essas atividades, o diálogo com o contexto local e com a realidade contemporânea esteve presente.

Dourados, cidade localizada ao Sul de Mato Grosso do Sul, ao mesmo tempo que se destaca pela forte presença do agronegócio – com usinas de álcool e açúcar, grandes plantações de soja e milho, além grandes empresas de proteína animal – também concentra a maior reserva urbana indígena do país, com mais de 15 mil habitantes das etnias Guarani, Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva e Terena2. Criada em 1917, essa reserva faz parte da política de confinamento de indígenas em territórios criados pelo Estado brasileiro. Retirados, por meio da violência, de seus territórios originários, os indígenas foram levados para as aldeias e, com isso, suas terras ficaram livres para o processo de colonização. Obviamente que esse cenário gerou, e ainda gera, dramáticos conflitos. Atualmente, o grupo social subalterno composto pelos indígenas da região enfrentam a hegemonia do agronegócio.

Como se sabe, durante séculos, os proprietários de terras dominaram a sociedade brasileira. Domínio dado pelo uso exclusivo da força e da violência das armas. Seus interesses defendidos por grupos privados armados, na maioria das vezes, agiam em aliança com os aparelhos repressivos do próprio Estado. Essa classe dominante, possuidora de grande parte do território nacional, somente no decorrer do século XX irá compartilhar o poder do Estado com outros setores igualmente poderosos e terá, assim, companhia no processo de dominação sobre toda a sociedade. Com o avanço do capitalismo e o surgimento de outros ramos da produção econômica, os proprietários de terras não mais eram a única classe dominante.

De qualquer forma, a sua presença nas estruturas do Estado sempre esteve fortemente caracterizada. E até os primeiros anos do século XXI, o seu poder exercido sobre a sociedade brasileira se deu apenas pela violência, dentro da antiga tradição. Enquanto outras frações das classes dominantes já estavam em busca do consenso sobre as classes subalternas – pela educação, por produções culturais diversas e pela opinião pública –; os donos de terras somente nos últimos 20 anos passaram almejar este objetivo. Bancos, indústrias, serviços e comércio, cada um ao seu modo, já no decorrer do século XX buscaram o convencimento da classe trabalhadora, quanto aos seus interesses. Estes eram os agentes da construção da hegemonia burguesa no país. Os donos de terras restringiam ao domínio do aparelho do Estado e ao uso da violência sobre as classes subalternas. Construir uma hegemonia representante de seus interesses privados não era um projeto. Disputar, junto às demais hegemonias dominantes, a hegemonia geral de condução do processo histórico brasileiro não era algo vislumbrado.

Esse cenário muda com o surgimento do agronegócio. A partir dos primeiros anos do século XXI, os proprietários de terras do Brasil – que deixam de ser apenas indivíduos ou famílias e passam também a ser multinacionais e grandes conglomerados – iniciam uma nova fase no processo de dominação: a busca pelo convencimento das demais classes quanto aos seus interesses privados. Deixam de atuar exclusivamente pela coerção e passam a investir numa poderosa máquina de consenso.

Seus intelectuais orgânicos que atuam na sociedade política – ou aparelho restrito e coercitivo do Estado – pouco mudaram. Ainda preservam o perfil moral rude dos primeiros colonizadores. Entretanto, com o surgimento da pauta ambientalista, em dimensões nacionais e globais, além de inúmeras outras questões comportamentais da própria sociedade brasileira, os novos donos das terras foram forçados a criar outros tipos de intelectuais orgânicos. E a frente de luta desses não está na sociedade política, mas na sociedade civil. É nela que devem atuar junto ao conjunto da população para garantir o apoio social necessário para a manutenção do seu poder secular. É nesse movimento que surge o agronegócio, como um conceito carregado de ideologias que tenta desvincular os donos das terras das velhas práticas sociais e políticas. Assim, em pouco tempo, o agronegócio se tornou sinônimo de modernidade e futuro, de inovação científica e produção cultural. Ele não representa apenas o desenvolvimento econômico, mas também um tipo de sociabilidade que, a partir de vários elementos, deixou de se restringir ao campo, isto é, ocupou grandes cidades e centros urbanos. De qualquer forma, a força econômica do agronegócio é inquestionável e está no centro de seu projeto de hegemonia. Efetivamente, em termos de acúmulo de capital, o agronegócio representa atualmente uma enorme força, capaz de fazer frente aos demais setores que dominam a economia nacional. E esse é um dado permanentemente explorado na construção do consenso social. Entretanto, ao longo da história brasileira, os donos das terras sempre detiveram enorme poder político-econômico. Sempre obtiveram papel de destaque tanto no interior das estruturas do Estado, quanto nas estruturas da economia nacional. Sobre esse aspecto, o agronegócio pouco inova. A sua originalidade histórica está no seu projeto destinado à construção de uma hegemonia que o represente. A utilização dos aparelhos de hegemonia, visando a conquista do consenso social, tornou-se um instrumento de poder tão importante quanto o uso da violência.

É possível identificar como elementos da estrutura hegemônica do agronegócio, os seguintes pilares: o educacional, o cultural e a opinião pública. Cada um desses espaços de atuação possui a sua complexidade. Cada um merece abordagens específicas e aprofundadas. Aqui, no entanto, apenas sinalizações introdutórias serão feitas. O objetivo é apenas mapear, num primeiro momento, os espaços de atuação utilizados pelo agronegócio para a construção de sua hegemonia própria.

Antes, porém e ainda que tardiamente é necessário contextualizar rapidamente o surgimento desse conceito. Ele surge entre as décadas 1990 e 2000, com objetivo de redefinir o entendimento de “atividades agrícolas”. A partir de então, a produção do campo deveria ser vista de modo integrado entre mais de um setor produtivo. Como afirma a autora Maria Luisa Rocha Ferreira de Mendonça: “No Brasil, o termo agronegócio, compreendido como o processo de industrialização da agricultura, tem sido utilizado para justificar a criação das chamadas cadeias produtivas, com o objetivo de agregar atividades agroquímicas, industriais e comerciais aos cálculos econômicos da agricultura” (MENDONÇA, 2013, p.140). Ideologicamente, seus defensores difundiram a:

[...] ideia de que a agricultura nos moldes do agronegócio seria a solução para resolver a escassez de comida no mundo [...] principalmente a partir dos anos 1950, através do modelo que ficou conhecido como “revolução verde”. Nos anos 1990, defensores da ideologia neoliberal se utilizam deste tipo de mensagem para reivindicar recursos públicos para o agronegócio. (MENDONÇA, 2013, p.171).

De modo bastante resumido:

A construção do conceito de agronegócio, inicialmente forjada nas universidades dos Estados Unidos como agribusiness, foi importada através de meios acadêmicos e políticos no Brasil e serviu de base ideológica para explicar a continuidade do apoio estatal para o latifúndio e para a intensificação do uso de insumos industriais na agricultura. Na atualidade, o conceito de agronegócio continua a ser difundido nos meios de comunicação, associado à imagem de eficiência e desenvolvimento. (MENDONÇA, 2013, p.205).

Avançando, a partir da abordagem acima, muito mais que ideológico, o agronegócio contém uma concepção ampla de sociedade, isto é, contempla uma noção de hegemonia.

As formas pelas quais a educação, a cultura e a opinião pública são utilizadas pelos donos das terras para alcançar o consenso social não ocorre de modo homogêneo. Cada estrutura segue as particularidades de cada contexto social e político existente no território nacional. A sua atuação no espaço educacional, por exemplo, não ocorre em todos os estados do país, mas apenas naqueles em que suas atividades econômicas e também política são predominantes. Neles é prioritário criar não apenas mão de obra capaz de atuar na sua produção, mas também formular e difundir ideologias em sua defesa. Velhos enunciados como “progresso”, “modernidade”, “desenvolvimento econômico” etc. são atualizados e defendidos nas instituições de ensino para fazer frente aos permanentes conflitos envolvendo disputas de territórios com os demais grupos sociais que também dependem da terra para a sobrevivência. Indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pequenos proprietários e os expulsos de suas terras, são, em maior ou menor grau, os principais obstáculos para a manutenção e o avanço do agronegócio. Portanto, é sempre urgente, nos estados e nas regiões em que os donos das terras são dominante econômica e politicamente, que as populações locais tenham uma percepção sobre o mundo voltada para a sua defesa.

Um exemplo da projeção do agronegócio sobre o ambiente educacional/escolar é o “Programa Agrinho” do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural. Esse programa está presente nos principais estados produtores do agronegócio e atende o objetivo de difundir os valores desse ramo da economia. Mato Grosso do Sul é um dos estados contemplados por tal iniciativa3.

Já a dimensão cultural contribui para uma difusão de maior alcance, de cunho nacional, dos valores oriundos do agronegócio. Na música, o velho caipira é substituído pelo jovem sertanejo, com letras contextualizadas no espaço urbano e com foco em relacionamentos amorosos. As letras sobre o “homem do campo” e o seu contato com a natureza desaparecem. Com essas características, o chamado “Sertanejo Universitário” alcançou todo o território nacional, rompendo as delimitações regionais do agronegócio. A “moda sertaneja”, com suas características de vestimenta, também se transformou em símbolo de força e poder, não mais associado ao “jeca” miserável, mas ao bem-sucedido fazendeiro. Até mesmo no campo da linguística há aspectos da hegemonia do agronegócio. Os jargões, os sotaques e as palavras, identificados com o homem rude, porém rico, do campo, também exercem influência sobre a visão de mundo de milhões de brasileiros. De alguma forma, essas dimensões culturais têm seu ápice nas feiras agropecuárias, espalhadas pelo país e que mobilizam milhões de pessoas em várias cidades.

Conquistar a opinião pública nacional também é objetivo da hegemonia do agronegócio e, para isso, são investidos muitos recursos financeiros em grandes peças publicitárias. O interesse central é ofuscar os impactos causados pelas divulgações dos inúmeros dados que denunciam o amplo uso de venenos nas plantações, a destruição do meio ambiente e a tradicional concentração das terras em poucas mãos. Canais de televisão, rádios, jornais impressos e revistas, também se colocam como porta-vozes do setor e atuam para criar uma opinião pública nacional favorável aos seus interesses privados. A conquista da opinião pública nacional é o grande desafio de seu projeto de convencimento.

Em todos esses pilares de sua construção de hegemonia, os conflitos reais devem desaparecer: disputas por terras, degradação ambiental, uso excesso de venenos nas plantações, entre outros, devem ser eliminados.

É diante desse contexto que o pensamento gramsciano pode se revelar importante. Aliás, a própria forma de expor a questão já demonstra a capacidade do autor em dar conta dessa particular realidade.

Em especial no caso dos indígenas, a categoria de grupo social subalterno, apresentada por Gramsci, pode se posicionar de forma orgânica à realidade histórica e efetiva dessa população. Afinal, a sua luta, a sua cultura, a sua história e a sua organização social, foram, ao longo de séculos, sufocadas ou mesmo exterminadas e agora também o são pela hegemonia do agronegócio. A dominação integral desse setor da econômica capitalista brasileira, sobre Dourados, Mato Grosso do Sul e o Centro-Oeste brasileiro, dificulta a criação de aparelhos de hegemonia vinculados não apenas às lutas dos povos indígenas, mas também aos trabalhadores/as assalariados/as do campo e da cidade. Neste contexto, acaba sendo praticamente inexistente a sua presença teórico-política nas organizações das classes e dos grupos subalternos. Ficando, como já ressaltado, restrito, pelo menos até o momento, às dimensões da pesquisa e do ensino.

Muitos são os intelectuais orgânicos do agronegócio que atuam na sociedade civil para garantir unidade entre seus interesses privados e os anseios do restante da população. O aparelho coercitivo do Estado, do mesmo modo, está orgânico aos seus programas. A sociedade política, em grande parte do país, encontra-se praticamente toda ocupada pelo agronegócio. Aqui, o seu domínio é ainda mais robusto do que aquele encontrado na sociedade civil. A sociedade política, em tais localidades, é o terreno de praticamente um único exército. Há pouca ou nenhuma oposição, diferentemente do interior da sociedade civil que ainda é possível encontrar alguma resistência, mesmo muito frágil e limitada a alguns agrupamentos.

Não há dúvida de que Gramsci pode trazer contribuições em tais realidades, porém é preciso superar muitos obstáculos objetivos e subjetivos encontrados.

Considerações finais

A questão da presença das ideias de Antonio Gramsci no Brasil, não está concluída. Ainda há o que discutir, principalmente sobre a sua penetração no território nacional. A temática “Gramsci e o Brasil”, não se encerra com os dados historiográficos e conceituais sobre os quais se fundamentou o debate acerca dos estudos gramscianos em solo brasileiro. É necessário inserir ao debate a questão territorial e o tema das margens periféricas da sociedade civil nacional. A descentralização territorial referente às pesquisas e aos demais trabalhos realizados, sobre o autor italiano, deve ser uma discussão que precisa ser levada adiante. As implicações de um debate como esse podem ser de enriquecimento para os estudos produzidos no país, devido a possibilidade de diversificar ainda mais as abordagens conceituais sobre o autor, além de provocar um esforço ainda maior sobre a tradução de sua obra. O Brasil é um país bastante complexo e em todas as dimensões fundamentais da vida: na econômica, na política, na cultura, nas tradições, nas relações sociais etc., até mesmo os conflitos entre os grupos e entre as classes sociais existentes não se dão de modo homogêneo. Diante de tais elementos, envolvendo a enorme lacuna que ainda existe sobre a discussão da territorialização dos estudos gramscianos, pode-se chegar à conclusão de que a temática “Gramsci e o Brasil” necessita ser melhor aprofundada. É preciso que este “Brasil” não fique restrito a um estado ou a uma região.

As experiências do Grupo de Estudos Antonio Gramsci da UFGD revelam o quanto pode ser enriquecedor, apesar dos enormes obstáculos, colocar, diante da obra gramsciana, uma realidade particular na qual um dos principais conflitos sociais se dá entre indígenas e fazendeiros. Estudar Gramsci em Dourados, município central do agronegócio, obriga os/as estudiosos/as e os/as pesquisadores/as da obra gramsciana a operar não mecanicamente os conceitos do autor italiano. Suas contribuições para tais regiões, exigem além do rigor teórico, também a criatividade intelectual ao incorporar e difundir suas reflexões. Nestes contextos, tanto a dimensão cultural, quanto a política e, também, a econômica, criam bases sociais muitas vezes distintas daquelas existentes nas cidades em que já há décadas se estuda Gramsci. Assim, os clássicos conceitos de hegemonia, subalternos, intelectual, sociedade civil, sociedade política, entre outros, podem ter, em localidades como Dourados, direcionamentos distintos daqueles efetivados em São Paulo ou no Rio de Janeiro, afinal os principais sujeitos que operam tais realidades não são iguais. Operar a relação entre local/nacional/mundial e particular/universal é algo que traz elementos inovadores para o enriquecimento teórico do pensamento gramsciano. Produzir conhecimento, a partir da obra de Antonio Gramsci, em realidades efetivas distintas ajuda a entender melhor a complexidade da vida nacional brasileira, o que ainda está por ser feito de modo orgânico. Os passos iniciais, no entanto, já foram dados não somente pelo GEA, mas também por muitos outros grupos. Resta, agora, consolidar esse movimento para estabelecer de fato uma relação orgânica entre “Gramsci e o Brasil”.

Referências

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. 1: Introdução ao estudo da filosofia – a filosofia de Benedito Croce. Edição e tradução Carlos Nelson Coutinho; coedição Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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MENDONÇA, Maria Luisa Rocha Ferreira de. Modo capitalista de produção e agricultura: a construção do conceito de agronegócio. Tese (Doutorado em Geografia Humana), FFLCH/USP, São Paulo, 2013.

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Notas

2 Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/3656. Acesso em: 10 abr. 2021.
3 Disponível em: http://www.agrinhoms.com.br. Acesso em: 10 abr. 2021.

Notas de autor

1 Professor de Teoria Política do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Membro do Conselho Nacional da International Gramsci Society (IGS-Brasil), Coordenador do Grupo de Estudos Antonio Gramsci/UFGD. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0685-4176 E-mail: claudioreis@ufgd.edu.br


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