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Recriar o Brasil contra a devastação do capital e das pandemias
Recreating Brazil against the devastation of capital and pandemics
O Social em Questão, vol. 24, núm. 51, pp. 87-102, 2021
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro



Recepción: 01 Marzo 2021

Aprobación: 01 Mayo 2021

Resumo: Ao preço de muitas mortes e sofrimentos, a pandemia da Covid-19 está escancarando as contradições e o grau de degradação que está levando à necrose a nossa sociedade. O que neste artigo procura se mostrar é que a pandemia não é um acidente natural ou um surto imprevisível, mas o resultado de um sistema que chegou aos limites mais absurdos de destruição e de letalidade. Contrariamente às teorias que pregam um “novo normal” e a revitalização das atuais formas de vida, aqui, mostra-se a necessidade de operar mudanças profundas que possam superar o modo de produção e reprodução vigente, potencializando as lutas que concorrem para a construção de uma nova civilização. Ao focalizar a situação particularmente calamitosa que se abateu no Brasil entregue ao ultraneoliberalismo catastrófico, apontam-se caminhos não só para resistir, mas, principalmente, para enfrentar a barbárie e lançar as bases para um novo projeto de sociedade.

Palavras-chave: Covid-19, ultraneoliberalismo, nova civilização.

Abstract: At the cost of many deaths and suffering, the Covid-19 pandemic is opening up the contradictions and the degree of degradation that is leading to necrosis in our society. What this article seeks to show is that the pandemic is not a natural accident or an unpredictable outbreak, but the result of a system that has reached the most absurd limits of destruction and lethality. Contrary to the theories that preach a “new normal” and the revitalization of the current forms of life, here, presents the necessity to make profound changes that can overcome the current mode of production and reproduction, potentiating the struggles that contribute to the construction of a new civilization. By focusing on the particularly calamitous situation that hit Brazil in the wake of catastrophic ultraneoliberalism, ways are pointed out not only to resist, but mainly to face barbarism and lay the groundwork for a new project for society.

Keywords: Covid-19, ultraneoliberalism, new civilization.

O projeto de destruição e de morte do sistema dominante

O penoso e prolongado período de propagação da pandemia causada pela Covid-19, particularmente trágica para o Brasil, expôs a céu aberto as entranhas pútridas do sistema dominante, cuja reprodução se faz ao custo de crescentes disseminações de doenças e mortes e da devastação da natureza. Mais convincente do que muitas análises teóricas, o impacto chocante provocado pelo coronavírus desmascara concretamente a natureza irracional e perversa do capitalismo que impera no mundo, mostrando claramente como o seu metabolismo não promove apenas a concentração de um poder incontrolável nas mãos de pequenos grupos e a progressiva precarização do trabalhador (ANTUNES, 2020), mas gera profundo desequilíbrio no ecossistema, desintegra as relações sociais, manipula as culturas e inviabiliza a civilização democrática. Veiculada pelo vírus da acumulação psicopática e da “guerra de todos contra todos”, a rapinagem inescrupulosa instalada também no setor sanitário aparece ainda mais nítida nos momentos de sofrimento e desespero. Diante da gravidade da situação e do número assustador de contaminados e de óbitos, os oportunistas andam mais à solta e a grande indústria farmacêutica (Big Pharma) não só não suspende a patente sobre as vacinas, mas encontrou no precioso líquido fabricado em seus laboratórios um grande filão para obter lucros astronômicos e aprofundar o abismo entre classes sociais e países ricos e pobres. Desta forma, a guerra estratégica de corrida às vacinas tornou-se uma poderosa arma para o enriquecimento privado, para os planos de poder dos governantes e as barganhas internacionais.

No combate contra o feudalismo e o absolutismo, o nascente capitalismo fora admirado pelo seu ímpeto expansivo e “revolucionário” (MARX; ENGELS, 1999, p. 8), mas, ao se impor no mundo, não tardou a revelar a sua natureza essencialmente predadora e mortífera. Uma tendência que hoje enveredou para rumos mais funestos quando se observa a expansão de poderosas corporações financeiras gestoras de dinheiro que se multiplica com simples toques de teclado, dedicadas a arquitetar sofisticadas formas de juros e alimentar um ciclo degenerativo que extrai valor fictício sem contribuir com a dinâmica da produção e os avanços da sociedade (MAZZUCATO, 2018). Hoje, portanto, chega-se ao absurdo de ver que o capital cresce à medida que se destroem as fontes da vida no planeta, a força do trabalho e a sociabilidade humana.

No século XIX, Marx havia já desvelado as contradições catastróficas embutidas no projeto implantado pelo capital, suas metamorfoses e sucessivas crises para poder se reproduzir. No Livro III de O Capital, no cap. XXI, denominado “O capital portador de juros”, mostra que na base da produção capitalista o dinheiro torna-se uma “mercadoria sui generis” que chega a “passar de um valor dado para um valor que se valoriza em si mesmo”, até transformar-se em poder de lucro. No entanto, nunca como agora a reprodução do capital alcançou os limites mais extremos desse mecanismo, explorando até o esgotamento “a terra e o trabalhador”, assaltando os bens públicos e gerando uma destruição pandêmica. Em desespero pelo encolhimento dos espaços para a expansão das taxas de mais-valia, pela escassez dos recursos do planeta e a incapacidade de atender às crescentes reivindicações das massas, o capitalismo incrementa os meios repressivos e as investidas mais necróticas para sobreviver, aumentando ainda mais o “desastre” no mundo.

Não é de hoje que diversos autores vêm observando uma regressão à época feudal, mostrando que o capitalismo industrial vem sendo substituído por um capitalismo rentista e parasita (DURAND, 2020). As próprias criações no campo da informática e das tecnologias digitais, aplaudidas pelos seus prodigiosos recursos que beneficiariam a todos, acabaram logo se tornando um monopólio de grandes corporações transnacionais que criaram uma nova estrutura de dominação, submetendo tudo ao latifúndio de plataformas virtuais. Ao açambarcar esse universo com o domínio de softwares e aplicativos sofisticados mantidos em códigos fechados, esse novo colonialismo que concentra bases incalculáveis de dados e de algoritmos nas mãos dos países centrais, não só ganha lucros vultuosos com a dispensa de mão de obra, mas penetra em todas as atividades: nos desejos e na mente humana, na informatização da produção e nas tramitações bancárias, no desenvolvimento da ciência, nas instituições públicas e na segurança nacional, nas operações da magistratura e nas escolhas políticas. Desta forma, os fluxos de dados (big data) concentrados nas mãos dos big techs de poucas corporações (Google, Amazon, Microsoft, Apple, Facebook, Twitter, Whatsapp, Netflix) controlam a vida individual e coletiva, subjugam os sistemas nacionais e aprofundam ainda mais a divisão de trabalho e o fosso entre os países. A nova configuração do capitalismo que concentra um poder tão extenso, sutil e manipulador, na verdade, não está regredindo ao mundo feudal, mas marchando para a desintegração social e a barbárie. De fato, dos “capitães de indústria” que promoviam algum progresso se passou aos “capitães de pirataria”, aos terroristas do mercado financeiro, às ilhas dos paraísos fiscais e às empresas fictícias que avançam seus tentáculos sobre setores estratégicos para a sobrevivência da humanidade: a liberdade, o trabalho criador e socializado, os comportamentos humanos e a reprodução, a religião, a biodiversidade, a segurança alimentar, os bens comuns e a soberania cultural e política. As perspectivas delineadas por Adorno e Horkheimer que mostravam os perigos provenientes dos encantamentos da mercadoria e do desejo do consumo permanentemente excitado pela sedução da “indústria cultural”, cuja homogeneização levava à apatia e à destruição da política (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, pp. 114ss), hoje, com o totalitarismo adocicado da ideologia ultraneoliberal, se transformaram em usina de entretenimento estúpido e corrosivo capaz de anestesiar massas enormes, permear todos os âmbitos da sociedade e deturpar os próprios processos da natureza.

Antes da explosão da Covid-19, a propagação do HIV-1 e dos vírus Nipha, Ebola, SARS, MERS, as sequências das gripes aviária e suína, do H1N1, do Zika, a doença da vaca louca, os surtos de dengue e as numerosas epidemias detectadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nestas últimas décadas, deram sinais claros da formação de um fenômeno global favorecido pelos “nossos modelos sociais que contribuem para a sua difusão rápida e generalizada” e intimamente relacionado com “o esfarelamento de todos os ecossistemas” submetidos às agressões do capital “a uma taxa que tem as características de cataclisma” (QUAMMEN, 2014, p.43). Uma monstruosidade, essa, que reduz o planeta a máquina de fornecer commodities ao preço do desmatamento, da extinção de espécies, da devastação do ambiente, da expulsão de populações nativas da própria terra, do aquecimento global e da interferência nas mudanças climáticas. São já incontáveis os estudos e alertas que mostram como esta violência epidêmica abre o caminho à transferência de patógenos silvestres para os humanos, para aves, porcos e rebanhos torturados em criadouros artificiais, processados por duvidosos métodos de industrialização e concentrados nos alimentos postos a circular pelo mundo (WALLACE, 2020). Não há mais como duvidar que por trás de muitas doenças e da explosão das pandemias está o modo enlouquecido de produção, a voracidade do capital que contamina terras, ar e recursos hídricos, que incrementa a indústria predatória da pesca, impõe monoculturas, o uso indiscriminado de agrotóxicos e “defensivos”, que pratica a exploração madeireira e a mineração descontrolada, acumula poluição em todos os espaços vitais do planeta, promove consumo desenfreado e desperdício, asfixiantes aglomerações urbanas e priva de condições básicas de vida boa parte da população. O choque da pandemia atual, portanto, não é um acidente natural ou um surto imprevisível na história humana, mas a manifestação de um câncer maligno em dilatação no corpo social, provocado pela profunda crise orgânica de um sistema estruturado sobre a mercantilização de todas as relações, a destruição da natureza e a fábrica de ruinas e de mortes.

A falta de ar provocada pela Covid-19, que compromete vários órgãos e leva à morte por asfixia, é a imagem mais ilustrativa da necrose em curso que está se expandindo no tecido da humanidade. Contrariamente aos que ainda esperam a realização das “promessas não cumpridas” do liberalismo (BOBBIO, 1986, p. 10) e acreditam na possibilidade de ajustes e da revitalização do sistema capitalista, o estado avançado da sua putrefação não deixa dúvidas sobre seu fracasso e letalidade, evidenciados ainda mais pelas novas formas de colonialismo e pelo incremento dos aparelhos de repressão e do arsenal bélico, pelas ondas reacionárias e neofascistas, pela difusão da xenofobia, do racismo, da construção de muros e da propagação do caos social.

O avanço da barbárie no Brasil

O grau de degradação e destruição desse sistema encontrou terreno particularmente fértil no Brasil, em permanente condição de colônia. Em “O segredo da acumulação primitiva”, processo incontestavelmente documentado e cruamente descrito por Marx em O Capital (pp.863-874), há um retrato básico dos horrores inauditos praticados pela expansão do capitalismo. No Brasil, o extermínio dos povos indígenas, o poder praticamente absoluto mantido durante séculos pelos senhores da vida e da morte de seus escravos, aprisionados nas plantations e nas senzalas, os privilégios e a impunidade das classes abastadas, o charlatanismo religioso e a baixa escolaridade destinada para grande parte da população, a glorificação das Forças Armadas e a ferocidade dos aparelhos coercitivos do Estado criaram um lugar perfeito para o enraizamento do colonialismo estrutural, para o saqueio das riquezas e as formas mais brutais de exploração. O tráfico de negros que abasteceu o modo dependente de produção instaurado no Brasil e explanou os caminhos para a incursão de predadores na África, têm sido laboratório e inspiração para os campos de concentração e de extermínio que se difundiram no mundo (LOSURDO, 2005, pp. 333-336). Atrocidades, na verdade, que, com outra roupagem, hoje, se reproduzem no trabalho praticamente escravo em muitos setores da sociedade, nas prisões para as “classes perigosas”, nas favelas e nas extensas periferias das cidades onde é largada ao descaso e ao abandono parte considerável da população negra e se consome um genocídio silenciado.

Não surpreende, portanto, se o Brasil se tornou epicentro mundial da pandemia e campeão nas taxas elevadas de mortes e malefícios. Entre os numerosos estudos que evidenciaram as causas dessa lastimável realidade, a pesquisa conduzida pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA-USP) e a Conectas Direitos Humanos, realizou a análise de 3.049 normas do governo federal emitidas em 2020 e mostrou fartamente que a propagação da Covid-19 no Brasil não é fruto de incompetência e de erros e que o negacionismo não é só burrice e ignorância, mas trata-se de estratégia intencional do poder executivo, de projeto deliberado da política de abandono e de eliminação2. Expressão mais grotesca e letal do capitalismo de destruição, impulsionado pelas ondas organizadas de fake news, pelo lobby latifundiário e armamentista, pelo fundamentalismo e obscurantismo de igrejas retrógradas, a pulsão fascista do governo Bolsonaro favoreceu a exposição ao coronavírus, banalizou a gravidade da pandemia, desenformou sistematicamente, abdicou da coordenação de um programa nacional de vigilância sanitária, sabotou o confinamento e a aplicação de testes, acabou transformando o Brasil em “câmara de vírus” ao apostar na “imunidade de rebanho”, sustentou métodos e remédios reprovados pela ciência, usou todos os meios para protelar a aprovação da CoronaVac, recusou as ofertas da Pfizer, desqualificou as vacinas de China e Rússia, reduziu os recursos no enfrentamento da pandemia, nada fez para proteger indígenas, quilombolas e setores vulneráveis. As atitudes do governo a favor da disseminação do vírus são tantas e evidentes que não conseguem esconder o claro intuito de se aproveitar da catástrofe para abrir caminho a seus planos golpistas. Outro resultado assustador da atual condução política do país é apresentado pelo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 ao revelar que “116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos”3, um absurdo totalmente incompreensível em um país que exporta milhões de toneladas de produtos agrícolas e abastece de alimentos parte considerável do planeta.

Mas, tal como é projeto a manutenção da pobreza e da fome, do desemprego e da informalidade e como é projeto o descalabro na educação e o abandono da escola pública, como já observava Darcy Ribeiro, as proporções da tragédia provocada pela Covid-19 não têm nada de acaso acidental, uma vez que o governo se colocou a serviço do mais abjeto ultraneoliberalismo e do neocolonialismo. Não fosse assim, não iria aprofundar as políticas de cortes e de extinção dos serviços públicos, a PEC 98/2016 do teto de gastos, a Reforma do Ensino Médio/Lei 13.415/2017, o desmonte do SUS, do programa Mais Médicos, da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), da agricultura familiar, das universidades públicas e dos centros de pesquisas, não iria comprometer o trabalho do INPE, da Capes, do INEP e do IBGE, resistir a adotar um auxílio emergencial capenga, bloquear os subsídios de proteção social, de apoio a emprego e renda, implementar as perversas reformas da previdência e trabalhista, verdadeiras sentenças de morte para a nova geração, para os mais carentes e desprotegidos. A pandemia, portanto, revelou com mais nitidez um país entregue aos predadores externos e internos e a estruturação de um novo processo de colonização, mais do que visível na desindustrialização, na abdicação da soberania e na falta de autonomia nos setores essenciais de uma nação. Na prática, o ultraneoliberalismo selvagem imposto nesses últimos anos, mascarado de combate à corrupção, aos fantasmas do comunismo, aos “inimigos internos” e à ideologia do gênero, tem sido a receita mais catastrófica para enfrentar a pandemia.

Um dos maiores legados que a pandemia está deixando mais evidente é a desconstrução da imagem idílica de um país cordial, acolhedor, abençoado pela convivência pacífica de classes, raças, culturas e religiões. Ao contrário, para surpresa chocante de muitos, o que emergiu abertamente nesse período é a fratura profunda de um país rachado e os sentimentos de ódio e discriminação que permeiam as classes privilegiadas e abastadas. Sustentado pelos bancos, o agronegócio, os grandes empresários, a corporação das Forças Armadas, as milagreiras igrejas neopentecostais e setores da magistratura, o governo se dedicou sem trégua a destruir avanços sociais, a perseguir opositores, a criminalizar organizações populares, a intimidar as instituições democráticas e ameaçar cientistas e jornalistas. Neste contexto, os conceitos de “opressor e oprimido”, “classes dominantes e dominadas”, “subalternos”, “dependentes”, “periféricos”, “emergentes” etc. já não se mostram mais suficientes para interpretar a realidade do Brasil, uma vez que não se trata só de colonizados, explorados, inferiores, subdesenvolvidos que, embora de forma subordinada, permanecem funcionais e incluídos de certa forma no sistema. A sociedade salarial de um capitalismo que dava mostras de ser racional e propulsor, que tolerava direitos trabalhistas, sindicatos, garantias sociais básicas, vem sendo desmontada e destinada à extinção. O que, hoje, avança cada vez mais é a constituição de um capitalismo fechado para um clube privado de poderosos que dança sobre o abismo da própria destruição, promove desemprego, subemprego, informalidade, precariedade, desestrutura a classe trabalhadora, desintegra a sociedade, abandona a seu destino parcelas crescentes da população e controla a classe média com políticas de chantagem, ressentimento e medo.

Não é um acaso que “ordem e o progresso” virou bandeira das classes privilegiadas, às quais não interessa a subsunção do trabalho, da cultura, da educação, da política da população nos planos da nação. Por isso, segmentos que de certa forma eram administrados, hoje, passam a ser considerados inúteis, de peso e estorvo para a implacável marcha de acumulação e concentração do capital: povos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, velhos, doentes, portadores de deficiência, presos, LGBTs, favelados, desempregados, descartáveis, todos os que precisam de algum suporte do Estado para sobreviver. Assim, da mesma forma que as crises financeiras servem para expurgar estoques vencidos e avariados, o sistema dominado pela lei inexorável da seleção natural precisa se livrar de excedentes da população que atrapalham seu decurso. Não surpreende, portanto, se a mesma lógica que comanda a destruição da natureza se aplica na limpeza direta e indireta da população “desajustada”. Como a guerra, exaltada pelo nazifascismo, as pandemias acabam se tornando uma solução interessante para a purificação inevitável da espécie e uma operação cirúrgica para desencadear um novo ciclo na sociedade. Expressão mais nua e crua do darwinismo social e dos métodos malthusianos, o governo miliciano de Bolsonaro tornou-se sócio ativo do coronavírus com o seu projeto baseado sobre “o interesse privado acima de tudo” e “o deus mercado acima de todos”.

Dentro deste quadro se explica a aberração do aumento de bilionários brasileiros durante a pandemia, como revela o ranking de “Bilionários do Mundo 2021”, elaborado anualmente pela Revista Forbes, a multiplicação das fortunas dos bancos, do lucro dos hospitais particulares, das farmácias e dos planos de saúde, a aprovação pela Câmera dos Deputados da compra de vacinas por empresas particulares, enquanto o país vem sendo empurrado cada vez mais a ocupar a condição de colônia agrícola exportadora de commodities baratas, a abdicar de sua soberania e a minar os projetos de desenvolvimento.

Recriar o país rumo a um projeto de civilização

O triste balaço de óbitos e o panorama desolador de sofrimentos disseminados pela Covid-19, que nos afeta e enluta a todos, não podem permanecer no lamento e ser relegados ao fundo de lembranças traumáticas. A experiência da morte e a dor profunda, quando desvencilhadas das garras do abatimento e da depressão, podem se tornar poderosas alavancas para enfrentar as tragédias e combater as causas que as provocam. A calamidade da pandemia, neste caso, nos oferece a possibilidade de abrir nossos olhos para perceber melhor como o modelo dominante de sociedade é fruto bichado e podre, impróprio até para ser reciclado e reaproveitado. Portanto, se quisermos nos preparar para enfrentar ondas de vírus ainda mais devastadoras, é perda de tempo e dispêndio de energias recorrer a remendos e ajustes no sistema vigente, assim como é hipocrisia e delírio apregoar um “crescimento sustentável” enquanto se preserva uma estrutura insustentável. Diante da “crise orgânica” que adoece gravemente todo o corpo social, não há como voltar ao normal anterior ou repaginar o mundo com um “novo normal”, um pouco mais comportado. Além de ilusória, tal perspectiva leva lenha para a fogueira do desastre.

O que, portanto, se impõe é mudar o estado de coisas existentes, os fundamentos do próprio sistema. Ou seja, torna-se necessário operar uma profunda transformação no modo de produzir e de viver, refundar as estruturas econômicas e o Estado e cultivar os fermentos de uma nova civilização. Mais imperioso e urgente do que a vacina, é combater as causas, gerar os antídotos contra os mecanismos que produzem as pandemias e a morte. Além dos laboratórios de pesquisas, dos insumos farmacêuticos e equipamentos do sistema de saúde, é preciso fabricar urgentemente, com o envolvimento de todos, anticorpos contra as patologias que se alastram no corpo social e dedicar-se a gestar, com a educação, a cultura e a atuação política um outro projeto de sociedade.

Como nunca em sua história, a pandemia da Covid-19 está pondo o Brasil diante da encruzilhada entre a propagação da barbárie ou a construção de um país civilizado, entre a subjugação à condição colonial ou a construção da própria soberania, entre a manutenção dos privilégios de uma minoria ou a socialização das riquezas e do poder. Para instaurar uma democracia efetiva, de fato, onde a população se apropria do próprio território, cria a sua cultura e tem a liberdade de escolher os rumos da sua história, não é mais possível admitir que algumas corporações e o acúmulo de riqueza nas mãos de oligarquias tenham mais poder que as instituições públicas e a vontade popular. Não há mais como adiar o enfrentamento dos problemas cruciais e estruturais do país: a reforma agrária e urbana, o monopólio do sistema econômico e da mídia, a reestruturação da política e do judiciário, o papel das Forças Armadas, o combate efetivo à evasão fiscal e à lavagem de dinheiro, ao racismo e à homofobia.

O embate gigantesco entre as forças regressivas que deflagram uma ofensiva virulenta para garantir a manutenção da velha ordem e as forças populares, portadoras de sementes de uma nova civilização, exige tomar posição. O tamanho da tragédia que se abateu no Brasil pela pandemia e por um governo genocida não permite se amedrontar e apequenar nas lutas pela criação um novo projeto de sociedade. Diante do trauma do nazifascismo e da maciça reprodução de consciências coisificadas, Adorno apontou para a educação como a tarefa mais importante para impedir que Auschwitz se repetisse (1986, pp.117ss). Uma tarefa, hoje, particularmente desafiadora para o Brasil, uma vez que há uma maciça campanha de desqualificação da escola pública, o rebaixamento da educação, o desprezo pela ciência e a perseguição de intelectuais. Neste período de pandemia afloraram tentativas de adaptação da escola, propostas de ensino híbrido, o enaltecimento do Ensino à Distância, cursos rápidos de profissionalização, o aprendizado de tecnologias para o mercado online, pressões para a aprovação da homeschooling, projeto racista e segregador que visa eliminar os investimentos na escola universal e de qualidade. Ao contrário dos propósitos sectários de uma minoria, a pandemia deixou mais claro que, além do acesso às novas modalidades e tecnologias de trabalho, a educação e a escola precisam estar profundamente conectadas com a realidade, que é lugar fundamental da relação, da afetividade, da socialização, do confronto e convivência com o outro, da aprendizagem do trabalho coletivo, da pluralidade de pontos de vista, do reconhecimento das diferenças e respeito das divergências, do desenvolvimento das práticas democráticas e do envolvimento com a transformação da sociedade.

Gramsci, ao se defrontar com o surgimento do fascismo e do nazismo que se expandiam na Europa, desvelou a íntima ligação desse fenômeno com a ideologia liberal (Q 10, §9, pp.1228-9). Mostrou que não se tratava apenas de uma reação apavorada da burguesia tomada pelo “temor pânico” diante do avanço do movimento operário e da irradiação da Revolução russa, mas, de uma operação de reestruturação do capital que, nos momentos cruciais de crise orgânica recorre à intervenção violenta do Estado (Q 10, §41, p. 1325). O legado que transparece da sua combativa obra de vida política e intelectual aponta que para derrotar o fascismo não é suficiente resistir nem atuar com o “subversivismo esporádico e desorgânico” (Q 8, §25, p.957), mas é preciso preparo, audácia e capacidade de organizar a pluralidade das forças populares para construir uma soberana “vontade coletiva nacional-popular” e realizar a “grande política: a criação de novos Estados” e de uma nova civilização (Q 13, §5, p. 1564). Como as epidemias, portanto, a propagação letal do fascismo só se debela quando se combate coletiva e radicalmente.

Neste sentido, em contraposição aos projetos da classe dominante que visam treinar e domesticar, modernizar e adaptar cidadãos ao sistema, a impactante concepção política, filosófica e pedagógica de Gramsci oferece elementos atuais para a formação das classes populares, dentro e fora da escola, de modo que possam não só obter o diploma e garantir o emprego, mas desenvolver todas as suas potencialidades, aprender a se autodeterminar, adquirir o conhecimento mais avançado, as melhores técnicas para o trabalho especializado e preparar-se a dirigir democraticamente a própria sociedade, tornando-se, assim, “intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao orgânico desenvolvimento de uma sociedade integral, civil e política” (Q 12, §1, p.1522). Um projeto, esse, que implica “um progresso intelectual de massa e não apenas de reduzidos grupos” (Q 11, §12, p.1385), porque «para construir história duradoura não bastam os “melhores”, são necessárias as mais amplas e numerosas energias nacionais-populares» (Q 9, §96, p.1160).

O antídoto, portanto, mais vigoroso para combater as pandemias e superar a sanha destruidora e obscurantista do neofascismo que se propaga nos nossos dias encontra-se no desenvolvimento de uma práxis capaz de integrar na relação inseparável e dialética trabalho qualificado e política ativa, educação e realidade sócio-política, razão e paixão, ciência e arte, indivíduo e sociedade, natureza e ser humano, em um processo consciente de construção coletiva, único caminho para garantir a soberania de um país, a vida da humanidade e do próprio planeta. Ao tornar todo cidadão «“dirigente” (especialista + político)» (Q 12, §3, p. 1551), Gramsci mina os monopólios de poder e os dispositivos que engendram as desigualdades sociais e as agressões à natureza, recusa tutelas e toda sorte de subordinação, neutraliza os mecanismos que geram seguidores de “mitos messiânicos” (Q 17, §37, p. 1940), rebanho de pastores, executivos de uma engrenagem piramidal e robôs de senhores das mentiras e da destruição. Neste sentido, o projeto educacional de Gramsci não pode ser confundido com a concepção convencional de “cidadania” que visa “inserir” a população no sistema, nos aparelhos de controle da classe dominante e reduz os indivíduos a eleitores eventuais e a meros expectadores e consumidores.

Engendrado em torno da qualificação de “dirigente”, o novo princípio educativo de Gramsci está conectado com o conceito de “hegemonia”, cujo significado nos seus escritos é frequentemente associado ao termo “dirigente” (Q 19, §24, pp.2010-12 e p.2029) e traduzido como “direção” (Q 1, §44, p. 41) que uma classe assume na sociedade com base no amplo consenso ativo obtido pelo magnetismo do projeto sociopolítico apresentado, pela qualificação de seus integrantes e a capacidade que demonstram em expandir todas as energias nacionais. Ao afirmar que «a relação pedagógica não pode ficar limitada às relações especificamente “escolares” [...] que esta relação existe no conjunto de toda a sociedade [...] e que toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação pedagógica» que envolve não só as relações intersubjetivas, mas também as forças que operam no interior de uma nação e no “inteiro campo internacional e mundial” (Q 10, §44, p.1331), Gramsci introduz a dimensão eminentemente política na base do novo princípio educativo.

E tal princípio, na verdade, é “novo” não apenas pelo fato de preconizar uma formação “omnilateral” e atualizada até as fronteiras mais avançadas da ciência e da técnica, componentes que o próprio capital exige de seus intelectuais e trabalhadores mais estratégicos. Gramsci deixa claro que, por mais avançado e tecnicamente sofisticado que venha a ser um modelo social, como a sociedade industrial americana, ao deixar inalterada a estrutura de classe e a concentração de poder, não passa de uma “revolução passiva” (Q 22, §2, pp.2145-2146). Ao contrário, a novidade revolucionária voltada a formar todos como “dirigentes”, especializados no trabalho e protagonistas políticos ao mesmo tempo, visa tornar os cidadãos “orgânicos” a um projeto nacional-popular capaz de criar uma civilização que subverte o modelo destruidor do capitalismo e as estruturas da sociedade de classe arraigada na privatização e na violência do poder econômico, cultural e político.

Só um projeto deste tamanho, ambicioso e radical, pode enfrentar e superar o sistema destrutivo que governa o planeta, derrotar qualquer forma de fascismo e se prevenir das pandemias. Os enormes problemas, as contradições e a complexidade existentes no Brasil podem demandar décadas ou séculos para realizar objetivos tão vitais e necessários, mas, nem por isso, esses horizontes, já em curso em diversos movimentos populares, deixam de agir como imãs poderosos nas nossas lutas cotidianas.

“Se as coisas são inatingíveis... ora!

Não é motivo para não querê-las.

Que tristes os caminhos

se não fora a mágica presença das estrelas!”

(Mário Quintana)

Referências

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WALLACE, R. Pandemia e Agronegócio. Doenças infecciosas, capitalismo e ciência. São Paulo: Ed. Elefante, 2020.

Notas

2 Cf. “Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma ‘estratégia institucional de propagação do coronavírus’”, in El País, 21/01/2021.
3 Cf. Rede Brasileira em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, in www.olheparaafome.com.br, 21/04/2021.

Notas de autor

1 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorado sanduíche em Filosofia Política na Università degli Studi di Padova/Itália e Pós-Doutorado na Itália (Universidade de Urbino/Instituto Italiano per gli Studi Filosofici di Napoli). Professor Titular de Filosofia da Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF). Foi presidente da International Gramsci Society Brasil (IGS-Brasil) – Gestão 2015-2017. Brasil. Orcid nº 0000-0001-6883-1853. E-mail: gsemeraro07@gmail.com,


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