Resumo: O artigo trata dos fundamentos da Filosofia marxista no pensamento de Antonio Gramsci nos Cadernos miscelâneos, desenvolvida nos Apontamentos Filosóficos dos Cadernos 4, 7 e 8, entre outubro de 1930 e na primavera de 1932. Trata-se de uma rigorosa pesquisa teórica de grande relevância na produção de conhecimentos sobre o pensamento de Gramsci, com destaque para a filosofia da práxis e de interesse para várias áreas do conhecimento. O texto investiga, na arquitetônica dos textos miscelâneos, o emergir da Filosofia da “práxis”, a partir dos fundadores do marxismo, dos intelectuais orgânicos e da tarefa epistemológica no ativo agir político.
Palavras-chave:GramsciGramsci,FilosofiaFilosofia,Filosofia da práxisFilosofia da práxis.
Abstract: The article deals with the foundations of Marxist Philosophy in the thought of Antonio Gramsci in Cadernos miscelâneo, developed in the Philosophical Notes of Cadernos 4, 7 and 8, between October 1930 and spring 1932. It is a rigorous theoretical research of great relevance. in the production of knowledge about Gramsci's thought, with emphasis on the philosophy of praxis and of interest to various areas of knowledge. The text investigates, in the architecture of miscellaneous texts, the emergence of the Philosophy of “praxis”, from the founders of Marxism, organic intellectuals and the epistemological task in active political action.
Keywords: Gramsci, Philosophy, Philosophy of praxis.
Gramsci e os apontamentos da “nova filosofia”
Gramsci and the notes of the “new philosophy”
Recepción: 01 Marzo 2021
Aprobación: 01 Mayo 2021
Neste artigo trataremos dos fundamentos da Filosofia marxista nos Cadernos miscelâneos, desenvolvida nos Apontamentos Filosóficos dos Cadernos 4, 7 e 8, entre outubro de 1930 e nos primeiros meses de 1932, com aproximadamente 236 recorrências.
Os planos de pesquisa e de escrita de Antonio Gramsci, descritos ao longo de várias cartas escritas para a sua cunhada Tatiana será de fundamental importância para compreender como nasce o movimento com base na estrutura, refinar a luta, propor um novo tipo de Estado e uma nova ordem intelectual e moral. Para apreender uma nova inteligibilidade do real, o secretário do partido comunista italiano demonstra o cuidado com a pesquisa e adverte:
Pode se dar o caso de que a sua “verdadeira” filosofia deva ser buscada, antes que nos livros filosóficos, em seus escritos sobre política. Em toda personalidade existe uma atividade dominante e predominante: é nela que se deve buscar o seu pensamento implícito na maioria dos casos, e, por vezes, em contradição com o que é expresso ex professo (Q 11, § 65, p. 1493)2.
Se Gramsci fez emergir da sua oficina o aspecto prático da filosofia para eliminar possíveis diletantismos no marxismo e o julgamento histórico das necessidades das classes populares, que tipo de expressão adquire sua “filosofia” nos Apontamentos filosóficos? Seria ela “uma atividade puramente receptiva, quando muito ordenadora, ou uma atividade absolutamente criadora” (Q 11, § 59, p. 1485)? Seu ponto de partida é “a própria atividade de ‘homem político’ e ‘cientista da política’ [que,] envolvido em uma coletiva ‘luta pela hegemonia’, encontra a coragem para medir suas forças diretamente sobre o terreno dos problemas tradicionais da filosofia” (BARATTA, 2004, p. 114).
Os Cadernos apontam para a existência de três pilares no ocidente: o espírito crítico, o espírito científico e o espírito do capitalismo, sendo que os dois últimos permanecem estáveis, mas o primeiro encontra-se desestruturado na relação da consciência crítica com a ação. Sob o ponto de vista da ação, da cooperação com a vida, “o imperativo filosófico é tão cinza e vazio quanto o solidarismo científico. Neste vazio a alma agoniza, e disto dá algum indício a inspiração poética, que se tornou cada vez mais lúgubre ou febril” (Q 1, § 76, p. 83). O realismo desse caminho reflexivo desvela o tipo de discurso prático e impuro.
Quase nenhum dia em nosso tempo é alegre (mas esta crise não estará antes ligada à queda do mito do progresso indefinido e do otimismo que daí decorria, isto é, de uma forma de religião, do que à crise do historicismo e da consciência crítica? Na realidade, a “consciência crítica” se restringia a um pequeno círculo, certamente hegemônico, mas restrito; o ‘aparelho de governo’ espiritual se rompeu com a crise, mas ele também é de difusão, o que levará a uma nova ‘hegemonia’ mais segura e estável) (Q 1 § 76, p. 84).
Trata-se de um pessimismo racional intenso, o qual fez insurgir em seus textos o desejo pela honestidade e a unidade entre o conhecimento e a ação na vida. Sobre este tipo de terreno e o retorno ao fundador da filosofia da práxis sucede-se a trama dos Apontamentos Filosóficos. Ao longo das Três séries dos Apontamentos Filosóficos sobre o Materialismo e o Idealismo, a filosofia recebe um vigoroso “conceito de que o marxismo se basta a si mesmo” (Q 4, § 14, p. 435). O pensamento de Gramsci possui um continuum por dentro do marxismo, que demonstra “uma precisa concepção de mundo, um método e investigação e o desenho de uma nova teoria do conhecimento” (SEMERARO, 2006, p. 15).
Na prisão Gramsci não se dá por vencido. Ele enfrenta o problema do marxismo que fora “um momento da cultura moderna: numa certa medida determinou ou fecundou algumas de suas correntes.” (Q 4, 3, p. 421 [CC3, 4, 9,31]). Ainda no primeiro caderno de Apontamentos filosóficos constatou que o marxismo sofrera uma dupla revisão, por ter servido para formar combinações com elementos principais, seja com o idealismo, seja com o materialismo filosófico. Diante dessa metamorfose, o pensador sardo se permite revalorizar a formulação do problema, como fora tentado por Antonio Labriola, de que “o marxismo é uma filosofia independente e original” (Q 4, 3, p. 422). Entretanto, esse tipo de trabalho investigativo não pode deixar de ser complexo, pois exige fineza de análise e sobriedade intelectual. “Porque é muito fácil se deixar levar pelas semelhanças exteriores e não ver as semelhanças ocultas e os nexos necessário, mas camuflados” (CC, 16, 9, 33).
Gramsci desenvolveu um itinerário muito particular para investigar “o problema da filosofia da práxis, é, ao mesmo tempo, o problema da filosofia depois de Marx, ou seja, do seu estatuto no nosso tempo” (FROSINI, 2002, p. 16). Uma “nova” filosofia precisava encontrar a sua força teórica, seu próprio estatuto para investir não somente contra o revisionismo, mas para afirmar a seguinte posição:
Preocupa-se, então, em colocar em evidência a autonomia, o pensamento novo e independente de um ‘marxismo [...] que contém em si todos os elementos fundamentais [...] de uma concepção global de mundo [...]’, que ‘renova completamente a maneira de entender a filosofia’ (SEMERARO, 2006, p. 68).
Segundo Frosini (2012), o marxista sardo introduz um modo muito peculiar de interpretar o marxismo. Será um desenhar livre da verdadeira concepção de mundo. Profundamente criterioso ao desenvolver a pesquisa sobre o fundador da filosofia da práxis, o pensador sardo utilizou os seguintes textos: as Teses sobre Feuerbach, o Manifesto do partido comunista, a Miséria da filosofia, A Sagrada Família, o Prefácio à Contribuição da Economia Política e O 18 Brumário, mas não conhecera a obra Ideologia Alemã (cf. FROSINI, 2012 – mimeografado). Ele buscou limpar o terreno interpretativo do materialismo histórico. Reafirmou a “potência” do fundador de uma concepção de mundo que “nunca fora exposta sistematicamente” (Q 16, § 2, p. 1840).
Nos três Cadernos miscelâneos de filosofia buscaremos identificar um movimento do pensar que ascende ao retorno do “marxismo”4, a “política” dos “intelectuais” e a “unidade da teoria-prática”. Este tipo de critério analítico não possui naturalmente um valor absoluto, mas visa demonstrar o que estão fazendo com a filosofia, com a atividade intelectual no âmbito da história e da cultura para as classes populares. Compreender os escritos filosóficos exige mergulhar no projeto de vida e de estudo de Gramsci, demonstrar a arquitetônica da filosofia nos cadernos miscelâneos e o télos filosófico da unidade e coerência entre teoria e prática.
Caderno 4 está subdividido em Apontamentos de Filosofia sobre Materialismo e Idealismo, Primeira Série (AF I) e diversos textos miscelâneos, totalizando 95 textos. Gramsci constrói uma crítica vigorosa contra o dogmatismo historiográfico de caráter determinista, por empregar um tipo de método que nega a individualidade dos eventos históricos e, reduziu a Teoria da história e da historiografia do materialismo histórico numa sociologia.
Para afirmar que o marxismo é uma “concepção orgânica da história como terreno sob o qual a filosofia surge e numa situação própria de horizonte intransponível” (FROSINI, 2013, p. 3), a refundação da filosofia marxista passava pela compreensão das Teses a Feuerbach, nas quais a Teoria da história é posta no âmbito da práxis, como produto da contradição entre as forças produtivas e, as relações de produção, explicitado no Manifesto comunista, como a lutas de classes, em conformidade com os princípios metodológicos no Prefácio para a crítica da economia política. A “práxis” carecia superar o nível das forças produtivas e mergulhar no mundo das relações de produção. Era imperativo considerar as relações de força na complexa trama da relação política e ideológica (cf. Q 4, § 38). Se Marx pensou a história do seu tempo como a “história econômica”, Gramsci aprofunda a “história econômica” para pensar a história como “história política” (Q 4, § 33, p. 452) e a formulação da dialética marxista.
Esse itinerário expõe o esforço de Gramsci em estudar o marxismo em todo o seu realismo a partir da filologia vivente e da crítica. Uma das frequentes queixas expressas nas Cartas era a dificuldade em participar da complexidade molecular da vida real, visto que não teria a “matéria-prima” da “impressão imediata, direta, viva, da vida de Pedro, de Paulo, de João, de específicas pessoas reais, sem entender as quais não é possível compreender o que é universalizado e generalizado” (Q 6 § 180, p. 826). Para captar “naturalmente” a singularidade do movimento histórico e passar para um organismo coletivo “democrático”5 Gramsci utiliza o método da “filologia vivente”, que visa à coleta sistemática dos critérios de pesquisa e interpretação. Para além de um conjunto de técnicas e de meios que se combinam para obter um resultado, a “gnosiologia” é apreendida num ativo agir político que visa construir uma teoria do conhecimento. A “realidade objetiva” para Gramsci é a pesquisa que “funciona como mestra”, pois a história é inseparável do homem e contém um fluxo de pensamento em permanente superação.
O método da “filologia vivente” está posto nos textos produzidos e assim encadeados: “a nota tem uma estrutura em espiral. Os assuntos principais, abordados em um primeiro momento de longe, são filtrados e inseridos em secções mais afuniladas e densas no cone por ela desenhado” (BARATTA, 2004, p. 93). Essa operação possibilita progredir, lentamente, na “intimidade” da reflexão do fundador do marxismo, comparar de modo analítico e crítico a consistência teórica para alcançar a generalização e a universalização da sua concepção de mundo. Só após ter exposto, passo a passo, o reconhecimento do autor e da sua teoria, Gramsci retoma a problemática do materialismo e do idealismo com as seguintes inquietações: “por que o marxismo tivera o destino, o de ter servido para formar combinações, com seus elementos principais, seja com o idealismo, seja com o materialismo vulgar? [...] o que significa fazer a história da cultura moderna depois de Marx e Engels?” (Q 4, 3, p. 422). Para fazer o marxismo avançar na história era necessário enriquecer a formulação do problema como fora experimentado por Antonio Labriola. Gramsci descreve desta maneira a perspectiva de Labriola:
Labriola se distingue de uns e de outros por sua afirmação (nem sempre segura, para dizer a verdade) de que a filosofia da práxis é uma filosofia independente e original que tem em si mesma os elementos de um novo desenvolvimento para passar da interpretação da história à filosofia geral (Q 16, § 9, p. 1855).
Gramsci não só fortalece a posição de Labriola, mas está convicto de que o marxismo “é uma filosofia independente e original”. Se ele se combinar, perde a vitalidade ao revitalizar o idealismo e o materialismo vulgar. Não basta recuperar sua originalidade, mas será necessário verificar os elementos que lhe dão vitalidade. Trata-se da construção do estatuto da “filosofia do marxismo”, portador de duas tarefas: “combater as ideologias modernas em sua forma mais refinada, para poder constituir o próprio grupo de intelectuais independentes, e educar as massas populares, cuja cultura era medieval” (Q 4, 3, p. 422).
A partir dessas duas tarefas que o marxista sardo retoma o processo cultural ocorrido entre o Renascimento e a Reforma, a filosofia clássica alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia política inglesa, o liberalismo laico e o historicismo, como elementos basilares da filosofia moderna. Tais diretrizes apontam que “o materialismo histórico é o coroamento de todo este movimento da reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura” (Q 16, § 9, p. 1860). O termo “coroamento” explicita claramente o sentido da expressão “materialismo histórico” e seu diacronismo que “corresponde ao nexo Reforma Protestante + Revolução Francesa: é uma filosofia que é também política e uma política que é também filosofia” (Q 16, § 9, p. 1860), que tende a potencializar o elemento prático do marxismo. Gramsci fundamenta tal relação na medida em que dialoga com Maquiavel e Marx a partir do movimento da história. Esse caminho investigativo propunha superar não apenas a concepção tradicional de filosofia, mas demonstrar sistematicamente a pujança do marxismo e sua novidade.
Para garantir a atualização desta concepção de mundo, Gramsci enfrenta problema da “teoria” no terreno da história, apontando três planos necessários: o teórico, o histórico e o histórico-bibliográfico.
No plano teórico, o marxismo não se confunde e não se reduz a nenhuma outra filosofia: ele não é original apenas enquanto supera as filosofias precedentes, mas é original, sobretudo enquanto abre um caminho inteiramente novo, isto é, renova de cima abaixo o modo de conceber a filosofia. No plano da investigação histórica, deverão ser estudados os elementos que motivaram a elaboração filosófica de Marx, os elementos que incorporou, homogeneizando-os, etc.: então se deverá reconhecer que, destes elementos “originários”, o hegelianismo é relativamente o mais importante, especialmente por sua tentativa de superar as concepções tradicionais de “idealismo” e de “materialismo” (Q 4 § 11, p. 433).
Gramsci ocupa-se com a “terrenalidade” do materialismo histórico, a imanência, ao afirmar que “Marx é essencialmente um historicista” (Q 4 § 11, p. 433) e não, unicamente, materialista. Se a doutrina materialista se fundamenta no campo das forças produtivas não pode afirmar verdades eternas, mas ele está se opondo ao conceito de imanência na perspectiva da transcendência. Além da problematização da história, aponta para a questão da produção bibliográfica nos seguintes termos:
No plano da investigação histórico-bibliográfica, devem-se estudar os interesses que motivam a elaboração filosófica do fundador da filosofia da práxis, levando em conta a psicologia do jovem estudioso que, em cada ocasião, deixa-se atrair intelectualmente por toda nova corrente que estuda e examina, e que forma a sua individualidade através deste ir e vir que cria o espírito crítico e a potência de pensamento original, após ter experimentado e confrontado tantos pensamentos contrastantes; e também quais elementos ele incorporou, homogeneizando-os, ao seu pensamento, mas notadamente aquilo que é criação nova” (Q 11 § 27, p. 1436-1437).
A pujança do pensamento de Marx não pode ser encontrada nos grandes filósofos ou às vertentes filosóficas que estudou, “mas, precisamente, o que não estava contido a não ser em germe em todas estas correntes e que Marx desenvolveu, ou cujos elementos de desenvolvimento abandonou” (Q 4 § 11, p. 433). A potência do pensamento dos fundadores da filosofia da práxis é citada no ensaio de Rosa Luxemburgo, Estagnação e Progresso no Desenvolvimento da Filosofia da Práxis, publicado no Vorwärts6, de Berlim, em 14 de março de 1903, no vigésimo aniversário da morte de Marx (in CC 4, § 21, 329). Nele verifica-se que “os fundadores da filosofia nova teriam se antecipado em muito às necessidades do seu tempo e mesmo às do tempo subsequente, teriam criado um arsenal com armas que ainda não serviriam por serem anacrônicas” (Q 16 § 9, p. 1857). Mesmo sendo uma explicação um pouco falaciosa, essa memória de Gramsci é significativa, tanto para o momento que estava vivendo no cárcere quanto para os recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis. Neste viés, a análise feita por Antonio Labriola sobre a filosofia no marxismo é preciosa. Ele não só resgata a complexidade da filosofia no materialismo histórico, mas o faz “de acordo com as necessidades da atividade prática” (Q 16 § 9, p. 1857).
Apontamentos de Filosofia sobre Materialismo e idealismo da Segunda série (AF II) foi escrito na primeira parte do Q 7, entre 1930 e 1931, com 48 textos, nos quais repensa o papel dos intelectuais. O ponto de partida é o discurso de Benedetto Croce na sessão de Estética do Congresso Filosófico de Oxford em 1930, resumido e publicado na Nuova Itália em 20 de outubro do mesmo 1930. Esse discurso retoma as teses sobre o marxismo na História da historiografia italiana no século XIX. “Como pode ser julgado criticamente este mais recente ponto de vista crítico de Croce sobre a filosofia da práxis (que renova completamente o sustentado em seu volume MSEM)?” (Q 10, II, § 41. I, p. 1291).
Segundo Gramsci, Croce não está preocupado com o fundamento filosófico do marxismo, mas com a “‘ação política’, ‘prática’” (Q 7, § 1, p. 851). Estabeleceu uma análise externa, impondo uma perspectiva sem discutir os elementos intrínsecos fundantes da filosofia da práxis, o qual “deverá ser julgado não como um juízo de filósofo, mas como um ato político de significação prática imediata” (Q 10, II, § 41. I, p. 1291). Ele traduziu o materialismo histórico numa “linguagem ‘fetichista’” (Q 7, § 1, p. 851), semelhante à posição intelectualizada de Sorel em relação à de Clemenceau, “a julgar um movimento histórico pela sua literatura de propaganda e de não compreender que até mesmo opúsculos banais podem ser a expressão de movimento externamente importantes e vitais” (Q 10, II, § 41. I, p. 1292). Não seria expressão de vitalidade ou de enfraquecimento se uma filosofia rompesse com os limites impostos pela alta cultura e tiver se enraizado no meio popular? Ao fazer tal movimento não teria perdido sua potencialidade? Não seria “um preconceito de intelectuais fossilizados acreditarem que uma concepção de mundo possa ser destruída por críticas de caráter racional” (Q 10, II, § 41. I, p. 1292). Gramsci afirma que essas posições são a expressão “do homem do Renascimento verso o homem da Reforma protestante” (Q 7, § 1, p. 851). As negações e a “crise” permanente dão um significado muito próprio da filosofia da práxis:
[...] seu vasto movimento de massa, representou e representa um processo histórico similar à Reforma, em contraste com o liberalismo, que reproduz um Renascimento estreitamente limitado a poucos grupos de intelectuais e que, em certo momento, capitulou em face do catolicismo, até o ponto em que o único partido liberal eficiente era o Partido Popular, isto é, uma nova forma de catolicismo liberal (Q 7, § 1, p.1293).
Se as filosofias tradicionais buscaram princípios gerais para demonstrar sua existência, a filosofia da práxis tende a demonstrar a historicidade das filosofias a partir da “filologia vivente” e da “crítica”, sem apartar estrutura e superestrutura. Croce chega a afirmar que o marxismo “separa” estrutura das superestruturas, pondo em evidência o dualismo teológico e a desestruturação do processo do real, por meio da introdução do conceito de dialética dos distintos.
Além do cuidado de Gramsci no debate com Croce, o AF II marcará uma nova fase, “que representa o principal momento de virada na evolução ‘filosófica’ dos Cadernos” (Baratta, 2004, p. 114), pois investiga a complexa expressão do “que é o homem?” (ibidem, p. 114). Se a vulgarização do marxismo fora um momento necessário para estabelecer o diálogo com as massas e com o homem na sua particularidade, o marxista sardo buscou no seu projeto de trabalho compreender os instrumentos de mecanização e os possíveis momentos de superação. Ele não desqualifica o universo do homem comum e da religião, mas encontra um espaço precioso para compreender o homem e a sua “natureza humana”. A filosofia participa desse movimento na história, ao se identificar com o processo social que realmente pode unificar a humanidade. É uma filosofia imanente, capacitada para analisar as contradições do ponto de vista dos “homens” que querem superar a tirania. Essa verdade só pode ser entendida e sentida se for arrolada no conjunto das relações concretas (cf., FROSINI, 2011, p. 22).
As necessidades das massas encontram no materialismo histórico uma filosofia própria, validada a partir de um contexto histórico preciso. Diante desse imanentismo radical o que une ou distingue os homens não é o “pensamento”, mas aquilo que realmente se pensa (cf., Q 7 § 35, p. 885). O filósofo é o primeiro a estar convencido dessa verdade, os homens não poderão criar nova história e nem possibilitar que as filosofias se transformem em ideologia ou “religião”. A ampliação da concepção de mundo numa ideologia exige a aderência da massa. O materialismo histórico se diferencia das filosofias anteriores por combinar duas coisas que não tinham sido ainda combinadas: o caráter imanente da produção da realidade e o caráter da consciência, dos limites dessa produção da verdade (cf., FROSINI, 2011, p. 23 – mimeografado).
Nesta perspectiva, a filosofia encontra na prática a “equação entre ‘filosofia e política’, entre pensamento e ação, ou seja, uma filosofia da práxis” (Q 7 § 35, p. 886). A perspectiva de homem em Gramsci passa pela relação prática. Nele ocorre a unificação do gênero humano a partir da unidade entre teoria e prática, visto que a “natureza humana” se constitui no “conjunto das relações sociais” (cf., Q 7 § 35, p. 885). A partir desse “progresso” intelectual, só o materialismo histórico é capaz da tradutibilidade recíproca de política e filosofia, já que as demais filosofias não podem fazer tal operação.
A perspectiva da teoria da tradutibilidade, enquanto núcleo teórico da filosofia da práxis, não pode ser reduzida a um fato meramente “teórico” do marxismo, mas ao seu caráter “crítico”. Devido à peculiaridade da filosofia da práxis, a unidade entre “ciência e ação” se concretiza por meio do seguinte movimento:
A fundação de uma classe dirigente (isto é, de um Estado) equivale à criação de uma Weltanschauung. Como deve ser entendida a afirmação de que o proletariado alemão é o herdeiro da filosofia clássica alemã? Não quereria Marx indicar a função histórica da sua filosofia, transformada em teoria de uma classe que se transformaria em Estado? Para Ilitch, isto realmente aconteceu em um determinado território. Em outro local, assinalei a importância filosófica do conceito e da realidade da hegemonia devido a Ilitch. A hegemonia realizada significa a crítica real de uma filosofia, sua real dialética (Q 7, § 33, p. 881-882).
Assim, Gramsci sedimenta um caminho próprio pautado numa proposta analítica e estratégica que resultará nos Cadernos especiais (10-13). Essa reflexão apresenta o movimento crescente dos Cadernos. A concepção de homem ativo, que educa e é educado, define claramente a perspectiva dos fundadores da “filosofia da práxis”. De Maquiavel, fundador da política moderna e concebida como “atividade independente e autônoma” (Q 4 § 8, p. 341), Gramsci encontra o “homem político” e o “cientista político”, que se depara com as filosofias tradicionais (cf. BARATTA, 2004, p. 114).
A Terceira Série de Apontamentos Filosóficos sobre o Materialismo e Idealismo (AF III) foi escrito na segunda parte do Q 8, entre 1931 e 1932 e possui 79 textos. Francioni (1984) afirma que, entre os meses de março e abril de 1932, Gramsci registrou no Caderno 8 sua versão mais elaborada como projeto de trabalho monográfico. Se em momentos anteriores havia um “aparente” arrastar-se na elaboração do “Ensaio Principal”, isso não acontece com o “Reagrupamento de Matéria” (cf., FROSINI, 2002, p. 13):
1° Intelectuais. Questões escolares. 2º Maquiavel. 3º Noções enciclopédicas e temas de cultura. 4º Introdução ao estudo da filosofia e notas críticas a um Ensaio popular de sociologia. 5º História da Ação Católica. Católicos integristas – jesuítas – modernistas. 6º Miscelânea de notas variadas de erudição (Passado e Presente). 7º Risorgimento italiano (no sentido da Età del Risorgimento italiano de Omodeo, mas insistindo sobre os motivos mais estritamente italianos). 8º Os sobrinhos do Padre Bresciani. A literatura popular (Notas de Literatura). 9º Lorianismo. 10º Apontamentos sobre o jornalismo (Q 8, p. 936).
Segundo Gerratana (1997), Fancioni (1984), Frosini (2002) e Bianchi (2008), o “Reagrupamento de Matéria” é considerado, por um lado, um projeto de “índice incompleto” com a intenção de desenvolver “cadernos especiais” e, por outro, uma proposta alternativa ao “Ensaio Principal” com relação aos temas dos intelectuais.
Esse novo movimento investigativo da “filosofia da práxis”, posto nas notas do Q 8, tem como pano de fundo os recentes desenvolvimentos do marxismo no século XX. Com base nessa nova impostação da filosofia, a pesquisa e a figura de Labriola tornaram-se importantes por tratar do problema da complexidade filosófica do marxismo. O marxista sardo está preocupado em constituir um núcleo filosófico autossuficiente para o marxismo. O núcleo da “nova filosofia” são as Teses sobre Feuerbach. Sobre a última Tese, Gramsci tece o seguinte comentário:
A tese XI – “os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras, trata-se agora de transformá-lo” – não pode ser interpretada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia, mas apenas de fastio para com os filósofos e seu psitacismo, bem como de enérgica afirmação de uma unidade entre teoria e prática (Q 10 II, § 31, p. 1270).
A perspectiva de “transformação” não poderia ser desenvolvida nem pelo idealismo, nem pelo materialismo. Ambos teriam apenas uma parte do processo e não a sua totalidade, isto é, a unidade da teoria e da prática. O modo de pôr o problema da identidade entre filosofia e história no marxismo não pode ser reduzida à forma, mas parte do movimento histórico e da relação com a política. Neste sentido, Labriola trata dessa questão no seu livro Discorrendo e Engels sobre Ludwig Feuerbach. Gramsci a aprofundará no AFI em maio de 1930, em fevereiro de 1932 no Caderno 8 § 198, como também no Caderno 10, II § 31, escrito entre junho e agosto de 1932. Ainda no Caderno 4 §28, verifica-se o registro de um pequeno livro de Antonio Lovecchio7 (Filosofia dela Prassi e Filosofia dello Espírito) que chamara a atenção de Gramsci sobre o tema debatido por Labriola, passando por Gentile8 e Croce, chegando a Mandolfo9, Adelchi Baratono10 e Alfredo Poggi11. Por que nesse debate, Gramsci cita imediatamente Labriola e não a Engels?
Engels é colocado em segundo plano, pois define a práxis como um experimento da indústria, como uma falsa tentativa de resolver a antinomia da filosofia tradicional (cf, Q 10, II § 31, p. 1271). Para Engels, a resolução do conflito entre Materialismo e Idealismo passa pela determinação do estatuto filosófico do marxismo. Nos seus escritos, aparece a distinção entre materialismo como uma concepção de mundo baseada numa determinada relação entre matéria e espírito e, a forma particular na qual a concepção de mundo se apresenta em um determinado grau de desenvolvimento histórico no século XVIII (cf., FROSINI, 2002, p. 15). O marxista sardo reconhece o esforço de Engels, mas não aceita a sua tese, descrita no Anti-Dühring como “ciência positiva da natureza e da história”, isto é, na perspectiva do mecanicismo.
Num determinado momento, entre 1931 e nos primeiros meses de 1932, Gramsci acreditara ter encontrado o caminho percorrido por Marx ao entender o desenvolvimento histórico. No cárcere Gramsci não teve acesso a todos os livros que desejava ter lido ou que o diretor lhe permitia. Não lera o livro Princípios de Economia Política de David Ricardo, mas tivera acesso a um manual de história da economia política escrito por dois franceses. Nele, há um capítulo no qual David Ricardo é apresentado como um pensador impressionante, com uma lógica apurada e prática, na qual formulava leis econômicas supondo haver um princípio comum na economia. A originalidade do marxista sardo estava em relacionar o mercado determinado e homo economicus ao superar a lei de tendência.
O problema é enunciado por Marx quando afirma que os economistas Adam Smith e David Ricardo formularam leis implacáveis do desenvolvimento econômico dentro de uma determinada sociedade. Essas leis intransigentes que lutavam contra o Antigo Regime possuem um cunho não apenas econômico, mas político. Elas não apresentam apenas a verdade econômica, possuem um valor de mediação estratégica com a aristocracia. Com isso, Ricardo se coloca numa posição mais progressista dos demais pensadores da sua época sob o ponto de vista das relações sociais. Isso explicita a importância desse economista para o entendimento de uma nova ideia de imanência para Gramsci.
Ricardo, ao enunciar as leis econômicas de tendência, não está fora da sociedade e nem especulando. Está marcando uma posição verdadeira dentro da realidade social favorável à luta da burguesia contra as leis de tendência da aristocracia. Tais leis só poderiam se concretizar com a luta da burguesia por ser uma verdade prática e não apenas teórica. Há um novo conceito de lei, determinista e necessário, mas tendencial por estar em conexão com as forças sociais, com as lutas em andamento, distinguir entre o que é necessário e o que não se faz necessário. As forças em disputa se encontram e há uma estreita relação entre triunfo e submissão. A lei é necessária e verdadeira por estar dentro da luta. Os conceitos econômicos expostos por Ricardo estão a favor da luta da burguesia, por enfatizar leis necessárias, pois visam ganhar ideologicamente a luta. Não se trata de ganhar a luta enganando as classes subalternas, mas de algo que tem um sentido de verdade. Não há como negar as forças do capital e tudo que envolve enquanto algo necessário. A necessidade sempre é algo hipotético e essa é a posição de Ricardo.
O marxista sardo utilizará tais fundamentos para enfrentar Croce no campo da filosofia, enfrentamento que pode ser visto no Caderno 8, parágrafos 122, 128 e 224, escritos na primavera de 1932, segundo Francioni (2002). Essa maneira de conceber a realidade possibilita a Gramsci expor uma linha filosófica marxista, que elimina toda especulação e transcendência, de Maquiavel-Bruno-Ricardo-Marx. Como também “a proposição de Vico12 ‘verum ipsum factum’, que Croce desenvolve no senso idealístico, de que o conhecer é um fazer e que se conhece o que faz sentido no qual ‘fazer’ tem um significado particular [...], que termina em uma tautologia” (Q 8 § 199, p. 1060). A concepção de Vico deve ser inventariada com a concepção própria da filosofia da práxis. Gramsci apresenta os conceitos de imanência e práxis de forma tão imbricada, dado o nexo diretivo entre economia-história-política.
Na primavera de 1932, introduz dois novos títulos: “Pontos para um Ensaio sobre Croce” no § 225 e “Introdução ao Estudo da Filosofia”, no § 204. Esses dois temas novíssimos expressam um nível mais elevado de reflexão e tradução do pensamento filosófico no marxismo do pensador sardo. Eles irão convergir, respectivamente, nos Cadernos 10 e 11. Os dois Cadernos são a expressão do “movimento de pensamento” que alarga a estrutura e gênese do marxismo e reformula o plano de trabalho de 1929. Esse núcleo reflexivo do pensador sardo também estará presente na estruturação de outros temas tratados nos Cadernos especiais. Especificamente para o campo da filosofia, novas perspectivas serão delineadas por Gramsci como forma de combater as filosofias contemporâneas e as deformações do próprio marxismo.
O marxista sardo desenvolveu sua atividade intelectual a partir da política, à luz dos critérios do materialismo histórico, cuja preocupação teórica está conectada com o problema da sustentação filosófica do marxismo. O ponto de partida de sua metodologia fora os problemas nascidos da cultura geral de maneira parcial, isto é, os problemas oriundos das classes populares. O critério de análise da cultura geral está no plano da história, mediante a qual será possível demonstrar o seu real valor, pois “tarefa epistemológica, em Gramsci, não se resolve em abstrações, em exercícios cerebrais nem em ‘mero dizer’ de narradores que ‘conversam’ e ‘redescrevem’, ‘livres de injunções’, mas está vinculada a um ativo agir político” (SEMERARO, 2006, p. 18). A construção efetiva de uma teoria do conhecimento parte do folclore da filosofia e da complexidade da cultura, na medida em que produz uma determinada atividade capaz de universalizar-se e tornar-se inteligível para as classes populares. Eles poderão elaborar um “método apurado e ‘por conta própria’, os nexos existentes entre as coisas, as contradições entre a condição desumana em que vivem e os discursos encobridores do poder” (SEMERARO, 2006, p. 18).
Não resta dúvida que, a problematização do Materialismo e o Idealismo ao longo de três séries de notas, é posta numa nova perspectiva de Teoria da história e historicismo, segundo Semeraro (2001), Frosini (2002), Baratta (2004) e Bianchi (2008). Diante da fecundidade dos Apontamentos Filosóficos, Gramsci explicita um novo tipo de filósofo, nomeando-o de “filósofo democrático”, pautado na tese de que “os homens são produtos das circunstâncias e da educação, e, portanto, homens modificados são produtos de outras circunstâncias e educação modificada, esquece que as circunstâncias são transformadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado” (MARX & ENGELS, 2007, p. 611-612). Neste novo século, vale ressaltar a fecundidade do pensamento gramsciano continua a transbordar e a exigir dos seus pesquisadores novos conceitos, com o intento de desdobrar o conhecimento historicamente produzido pelo marxismo, cujo télo é a conquista a hegemonia pelas classes populares.