Resumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre o desfinanciamento da política de assistência social no âmbito da proteção social especial e seus rebatimentos na conjuntura atual. A metodologia desenvolvida partiu de uma análise documental realizada no período de 2017 a 2021, na qual evidencia-se uma redução significativa dos investimentos na política pública, cujas consequências acenam para um cenário de retrocessos que comprometem diretamente a vida dos usuários e trabalhadores do SUAS.
Palavras-chave:DesfinanciamentoDesfinanciamento,Assistência SocialAssistência Social,Desproteção socialDesproteção social.
Abstract: This article aims to reflect on the unfunding of social assistance policy in the context of special social protection and its repercussions in the current situation. The developed methodology was based on a documentary analysis carried out in the period 2017 to 2021, in which a significant reduction in investments in public policy is evidenced, whose consequences point to a scenario of setbacks that directly compromise the lives of SUAS users and workers.
Keywords: Unfinancing, Social assistance, Social lack of protection.
(Des)financiamento e (des)proteção social: o abate da ‘prima pobre’ da Seguridade Social
(Un)financing and (un)social protection: the slaughter of the 'poor cousin' of Social Security
Recepción: 01 Julio 2021
Aprobación: 01 Septiembre 2021
Em tempos de crise sanitária e do capital, o orçamento da seguridade social brasileira é atravessado por diversos ataques que vem sendo arquitetados desde o golpe de 2016. De acordo com Salvador (2017), trata-se de um esvaziamento permanente do financiamento da seguridade social que se restringe a recursos cada vez mais escassos para o provimento das políticas sociais, em face às políticas econômicas de ajuste fiscal que se justificam por meio de falácias ultraneoliberais de resposta à proteção cada vez maior aos bancos e instituições financeiras do que à população subalterna.
Durante os anos de 2017 a 2021, buscamos analisar o (des) financiamento e a (des) proteção social que está em curso na política de assistência social, por meio da análise de dados secundários disponibilizados nas principais fontes de acesso referente ao assunto como o mapeamento de políticas do Ministério da Cidadania (BRASIL, 2019) e o relatório do FONSEAS (2021).
Esta política tem um desenvolvimento emblemático desde sua institucionalização em 1988. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), sancionada pela Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993, marca um primeiro momento de avanços na materialização da assistência social enquanto direito de cidadania, pois estabelece já em seu primeiro artigo a delimitação de uma política de seguridade social comprometida com a provisão de mínimos sociais para satisfação das necessidades sociais da população, por meio de esforços integrados entre iniciativa pública e privada. (BRASIL, 1993)
Cabe ressaltar que, após a Constituição Federal de 1988, a assistência social passa a ser reconhecida como direito e, logo depois, a regulamentação da LOAS em 1993 e a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) em 2004 constituem processos políticos que possibilitaram a organização do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 2005. Nesse novo modelo socioassistencial brasileiro, a assistência social é concebida como política pública e passa a ser nomeada como um direito do cidadão e um dever do Estado, contrapondo-se à noção da assistência como um conjunto de iniciativas de caráter assistencialista, dependente de uma prática histórica de concessão de favores e/ou de boa vontade, fora do campo do direito à cidadania.
De tal forma, a política pública de assistência social, rompida com a lógica tradicional, preconiza um financiamento adequado para prover seus serviços de proteção social. Portanto, exploramos de forma sistematizada os dados que evidenciam um processo de destituição dos investimentos da política de assistência social nos últimos quatro anos. Salvador (2017) aponta que entre 2008 a 2016, os investimentos na assistência social tiverem uma expansão de 65,95%, contudo tal ênfase se dá nos programas de transferência de renda como o Programa Bolsa Família (PBF) e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os governos pós-golpe, além de atacar os recursos da seguridade social, por meio de políticas de austeridade fiscal cada vez mais violentas, principalmente no que tange à assistência social, tem focalizado o privilegiamento das despesas obrigatórias, como as do PBF e do BPC, em detrimento às despesas discricionárias, sendo estas essenciais para o suporte aos serviços e à gestão do SUAS.
Nesse sentido, este artigo explora os impactos diretos à política pública de assistência social que perpassa esse processo de desfinanciamento ocorrido por meio da diminuição, atrasos e até mesmo inexistência de repasses no cofinanciamento, o que contribui diretamente num processo de desproteção social a quem mais necessita dos programas, serviços e benefícios socioassistenciais.
A assistência social é reconhecida como direito social a partir da Carta Magna de 1988, como política pública não contributiva, integrando o sistema de seguridade social junto à saúde e à previdência social. (SPOSATI, 2005). No entanto, isso não significa que o reconhecimento formal garantiu a efetivação conforme a Lei.
Apesar de tantos avanços e conquistas, a provisão dos serviços de assistência social, durante a década de 1990, ainda eram marcados pelo predomínio de concepções assistencialistas, clientelistas e filantrópicas em torno de sua operacionalização.
Embora a assistência social tenha incorporado um novo desenho institucional a partir da sua função de política pública de proteção social, Yazbek (2004) chama a atenção para o processo de descentralização e reorganização do campo socioassistencial em que as Entidades Privadas adquirem legitimidade na implementação dos serviços direcionados aos mais necessitados, justificando-se a partir dos pactos regulatórios do Estado gerencial que vai se formulando com as tendências neoliberais durante a década de 1990. Como exemplo, apontamos o programa Comunidade Solidária implementado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso como uma opção política de parcerias entre entidades públicas e privadas para oferta de serviços. Nessa perspectiva, o combate à pobreza considerava a habilidade de todas as pessoas e a intenção de fortalecer e potencializar suas capacidades. No entanto, isso não levava em conta as trajetórias e limitações individuais e coletivas.
Assim, uma ambiguidade se faz presente entre a garantia de uma política estatal, afirmada como dever do Estado (YAZBEK, 2004) e a disseminação expansiva de práticas filantrópicas e benemerentes por parte da Sociedade Civil, compreendida como parceira governamental no papel de prover proteção social, o que estabelece nas palavras de Mestriner (2001) uma mediação fundamental na herança simbiótica com as práticas assistenciais tradicionais do Século XX. Portanto, a assistência social ganha novos contornos e responsabilidades, mas ainda presa às amarras conservadoras do passado que serão tencionadas pelas respostas criadas pelo Estado.
No mesmo lapso temporal, assistimos também à concretização de um projeto reformista, pautado no receituário neoliberal, que justifica mudanças necessárias na ação do Estado quanto à sua responsabilidade social para amenização dos impactos do ajuste fiscal executado em meio às crises econômicas instaladas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). (SOARES, 2009). Para tanto, o governo FHC nomeia Luiz Bresser Pereira para ocupar a chefia do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), instalando um grande pacote de medidas austeras de privatização, descentralização e publicização da coisa pública. (BRESSER PEREIRA, 1998). Isso tem rebatimentos diretos no campo da proteção social e dos direitos trabalhistas, configurando novos contornos para a política de assistência social. (BOSCHETTI, 2001)
Os programas de transferência de renda com condicionalidades e focalizados nos pobres assumem a agenda da proteção social, a partir das influências dos organismos multilaterais internacionais como o Banco Mundial, propondo cada vez mais a atenção imediatista a partir de provisão de recursos financeiros por meio do Estado como modo de enfrentamento da extrema pobreza, da fome e do desemprego. Tais programas vão surgindo em níveis locais como alguns municípios e se disseminam de forma fragmentada em oposição aos serviços de assistência social. Tal tendência vai perdurando e se expandindo até os anos 2000, quando se consolida no início do governo Lula em 2003 a partir da unificação de tais mecanismos no PBF, fomentado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). (VAITSMAN; ANDRADE; FARIAS, 2009)
Entendemos que os avanços em matéria de enfrentamento da fome e da miséria por meio de programas condicionados de renda tiveram efeitos consideráveis, até mesmo com a instituição do PBF que até 2006 retirou muita gente da extrema pobreza. O PBF passa a ser componente central da rede de proteção social, com mais investimentos que alguns serviços e programas essenciais da política de assistência social. Contudo, gostaríamos de salientar que não se trata de um direito social universal, reconhecido por Lei como política de Estado, mesclando universalidade com exclusão, configurando-se em um programa focalista e seletivo.
Somente a partir da deliberação da IV Conferência Nacional de Assistência Social em 2003 que se consolida o SUAS e a aprovação da PNAS no ano de 2004, definindo dois níveis de proteção social, em básica e especial, e a primazia da responsabilidade do Estado em cada nível de governo na condução da assistência social. (COHN, 2020)
O avanço da estruturação do SUAS foi acompanhado todo o tempo de retrocessos no desenvolvimento de projetos de governos, que muitas vezes conflitavam com os princípios dessa política pública e sobretudo em cortes orçamentários, que reduzem o alcance das ações desenvolvidas pelos serviços, projetos e programas e também impactam na distribuição de programas de transferência de renda e no combate à pobreza.
A partir da aprovação da nova PNAS (2004) e da Norma Operacional Básica – NOB, o então MDS empreendeu esforços no sentido de implementá-la na direção da concretização do SUAS, conforme deliberação da IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em 2003. A NOB estabelece níveis de gestão para que os municípios acessem recursos federais na perspectiva de associar gestão e financiamento, definindo requisitos, responsabilidades e incentivos para cada nível de gestão. O SUAS configura-se como o novo reordenamento da política de assistência social na perspectiva de promover maior efetividade de suas ações, aumentando sua cobertura. Neste sentido, a política de assistência social é organizada por tipo de proteção - básica e especial, conforme a natureza da proteção social e por níveis de complexidade do atendimento.
No SUAS, os serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social são reorganizados por níveis de proteção, em Proteção Social Básica (voltada à prevenção de situações de riscos pessoal e social, fortalecendo a potencialidade das famílias e dos indivíduos) e Proteção Social Especial (voltada à proteção de famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social), tendo por base o território, de acordo com sua complexidade, respeitada a diversidade regional e local. Nesse contexto, a proteção social especial tem por direção: a) proteger as vítimas de violências, agressões e as pessoas com contingências pessoais e sociais, de modo a que ampliem a sua capacidade para enfrentar com autonomia os revezes da vida pessoal e social; b) monitorar e reduzir a ocorrência de riscos, seu agravamento ou sua reincidência; c) desenvolver ações para eliminação/redução da infringência aos direitos humanos e sociais. Esse campo de proteção na assistência social se ocupa das situações pessoais e familiares com ocorrência de contingências/vitimizações e agressões, cujo nível de agravamento determina seu padrão de atenção (PNAS, 2004).
Ainda segundo a PNAS, a proteção social especial deve afiançar acolhimento e desenvolver atenções socioassistenciais a famílias e indivíduos para possibilitar a reconstrução de vínculos sociais e conquistar maior grau de independência individual e social. Deve ainda, defender a dignidade e os direitos humanos e monitorar a ocorrência dos riscos e do seu agravamento.
Os serviços de proteção social especial caracterizam-se por níveis de complexidade, hierarquizados de acordo com a especialização exigida na ação e se distinguem, respectivamente, entre serviços de proteção social especial de média complexidade e de alta complexidade. Os serviços de média e alta complexidade devem ser oferecidos de forma continuada a cidadãos e famílias em situação de risco pessoal e social por ocorrência de negligência, abandono, ameaças, maus tratos, violações físicas e psíquicas, discriminações sociais e infringência aos direitos humanos e sociais.
Segundo Mota (2010), a partir dos anos 2000, a política de assistência social passa a ter centralidade frente as outras políticas que compõem o tripé da seguridade social. Isso porque as políticas de previdência social e de saúde vivenciam um grande incentivo à mercantilização, com a previdência privada e os planos de saúde. Ao mesmo tempo à assistência social é incumbida a função de atuar frente as situações de pobreza e desigualdade social, com destaque para a expansão dos programas de transferência de renda, que contribuiu para a transformação dessa política no “(...) principal mecanismo de proteção social no Brasil.” (Mota, 2010, p. 134).
Apesar do SUAS e de toda diretriz dessa política, ao longo dos anos observamos inúmeras transformações em programas e projetos, que são criados e em seguida sofrem descontinuidade, se atrelando a políticas de governo. Outro fator de impacto nas transformações dessa política é a questão do financiamento, já que não se faz política pública sem orçamento suficiente. Ao longo dos anos identificamos a ampliação do corte orçamentário e o enxugamento de verba para serviços, sendo boa parte dos recursos destinados a pagamentos de benefícios de transferência de renda, como o PBF e o BPC. Exemplo disso são os dados trazidos por Silva (2018), que revelam que no período entre 2004 e 2009, o SUAS obteve um aumento orçamentário de 35%, enquanto o recurso destinado ao PBF cresceu 91,6%.
Esse marco de crescimento da política de assistência social, apontado por Mota (2010), se relaciona com o primeiro governo Lula (2003 – 2006), que teve o Programa Fome Zero (Lei nº 10.836 de janeiro de 2004) como marca registrada e como principal ação do recém criado MDS.
Oliveira (2009) nos traz que o Programa Fome Zero ressignificou os programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio Gás, agrupando-os e lançando o PBF, o mais significativo programa de transferência de renda já existente.
Como já pontuado, o PBF proporcionou que milhares de famílias saíssem da linha da miséria, entretanto o programa mantém as características de focalização, seletividade e moralidade. Tornando-se o carro chefe do governo Lula, o programa ocupou a centralidade das ações da política de assistência social, que possui boa parte das ações desenvolvidas voltadas direta ou indiretamente a sua execução, como o cadastramento dos beneficiários e o acompanhamento desses pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias (PAIF).
Ainda assim, é inegável que nos governos Lula a política de assistência social tenha tido o período de maior crescimento. Conforme salientado por Braga et al (2017), utilizando dados do IPEA (2012), o orçamento destinado à assistência social saltou de R$ 234 bilhões em 1995, no governo FHC, para R$ 638,5 bilhões em 2010, no fim da gestão Lula. Silva (2018) destaca que foi nesse período que tivemos a aprovação da PNAS (Resolução nº 145, de 15 de outubro 2004) e a criação do SUAS (Resolução nº 130, de 15 de julho de 2005), que implementou ao longo dos anos o serviços de proteção social básica e especial em todos os municípios do país.
Já no governo Dilma Rousseff (2011- 2016), o principal programa foi o intitulado Plano Brasil sem Miséria, que tinha como proposta agregar ações de combate à pobreza, ampliação do acesso a serviços públicos e fomento de ações de inclusão produtiva, visando a geração de renda. Segundo Silva (2018), a partir desse programa a assistência social sofre uma reformatação com a modernização do sistema informacional e a ampliação dos equipamentos sociais, porém, nesse período, evidencia-se a característica de delinear essa política com ações voltadas para execução de programas de alívio da pobreza. Silva (2018) aponta ainda, que, entre os anos de 2011 e 2014, o valor destinado ao referido programa foi de R$ 107,9 bilhões, valor aquém dos empregados nos primeiros anos do governo petista.
Com o governo de Michel Temer (2016- 2018) a assistência social, bem como outras políticas sociais, contabilizou perdas significativas, com uma ofensiva ultraneoliberal. Silva (2018) evidencia como principais impactos desse governo para a política de assistência social o corte orçamentário do ano de 2018, onde o Conselho Nacional de Assistência Social aprovou uma proposta orçamentária (Resolução CNAS Nº12/2017) de R$ 59 bilhões para o ano de 2018 e o Ministério de Planejamento disponibilizou apenas R$ 900 milhões; a Emenda Constitucional Nº 95 de 2016, conhecida como “PEC da Morte”, pois congela os gastos públicos pelo período de 20 anos; e a implantação, sem discussão e construção coletiva, do Programa Criança Feliz (Resolução CNAS Nº 20/2016), que traz de volta práticas conservadoras da assistência social, como o primeiro damismo e práticas moralizantes e higienizadoras de controle da população pobre.
O momento atual, de crise econômica, sanitária e política, com Jair Bolsonaro na Presidência (2019) é marcado por um grande ataque às políticas sociais e ao serviço público. Em matéria intitulada “A Decisão do Ministério da Cidadania que põe em risco a assistência social nas cidades brasileiras”, de 11 de março de 2020, veiculada pela página online da BBC News Brasil, André Shalders revela que para o ano de 2020 a política de assistência social sofreu um corte orçamentário significativo por meio da Portaria Nº 2.362 de 23 de dezembro de 2019, impactando em uma redução de 30 a 40 % das verbas repassadas aos municípios. A reportagem revela que no fim de 2019, o CNAS aprovou um orçamento de R$ 2,7 bi para o ano de 2020, valor próximo ao executado no ano de 2019, que foi de aproximadamente R$ 2,8 bi. Contudo, o valor disposto na Lei Orçamentária para o ano de 2020 foi de apenas R$ 1,3 bi.
Durante a pandemia, a assistência social ganhou contornos de serviço essencial à população junto aos atendimentos da saúde pública. Supõe-se, então, um maior investimento nessa política, o que não foi possível num governo neofascista e ultraneoliberal que se opõe ao combate às violações de direitos, às vulnerabilidades e ao risco social.
O que há em contrapartida é um processo frequente de ataques aos direitos sociais e trabalhistas, por meio da desregulamentação e expropriação dos direitos historicamente conquistados, exaltando um desfinanciamento dos recursos e dos investimentos de uma política tão necessária em tempos de pandemia.
Como já colocado neste trabalho, foi a partir da Constituição de 1988 que as ações na área da assistência social passaram a ser realizadas com recursos provenientes do orçamento previsto para seguridade social, tal como descrito na Carta Magna e organizados com base nas diretrizes da descentralização político-administrativa e da participação popular.
O orçamento da seguridade social é formado por financiamento coletivo de toda a sociedade por meio das chamadas contribuições sociais, sendo as principais delas do empregador e trabalhador na folha do salário, de receitas e faturamentos diversos e de contribuições diversas do consumo. Sendo a assistência social parte do sistema de seguridade, ela passa a seguir os ritos de disputa e inclusão no orçamento público, devendo incluir em seu planejamento instrumentos como: Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e a Lei Orçamentária Anual (LOA)6.
É preciso compreender que os instrumentos da gestão orçamentária e financeira citados anteriormente, devem refletir as intenções de atender a população com os recursos disponíveis, por meio de serviços programas e projetos, não estando, portanto, desvinculados os debates de planejamento, orçamento, execução financeira e prestação dos serviços e benefícios socioassistenciais.
No que diz respeito diretamente ao financiamento das ações da assistência social, ela é anterior à LOAS, seu financiamento teve início, no caso brasileiro, em 1942 com a criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA). No quadro abaixo é sistematizado como era o financiamento da assistência social antes da instituição do SUAS.
Quadro 1 – Organização do cofinanciamento pré SUAS
Fonte: Caderno de Gestão Financeira e Orçamentária do SUAS, 2013.
Aqui para fins de entendimento e limites do volume do artigo, trataremos especificamente do período após 2005. A aprovação da PNAS e a reformulação da Norma Operacional Básica (NOB-2012) o financiamento da assistência social passou a compreender serviços, programas, projetos e benefícios conforme quadro 2.
Quadro 2 - Tipos de benefícios, serviços, programas e projetos da assistência social que organizam o financiamento
Fonte: Elaboração própria a partir dos artigos da LOAS, 1993 e NOB SUAS (2005)
A Assistência Social assim instituída vai organizar seus serviços e ações de forma hierarquizada por níveis de proteção, conforme já exposto no quadro 3, é expresso o financiamento para cada um desses serviços e programas da Proteção Social básica e Especial de Alta e Média Complexidade.
Quadro 3 – Organização do financiamento por níveis de proteção e serviços
Fonte: Elaboração própria NOB SUAS (2005) e Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (2011)
Na organização do financiamento do SUAS cada piso possui uma conta própria onde são repassados os recursos do governo federal para a execução dos serviços, conforme descrição do quadro 3, em seus respectivos equipamentos. Essas contas compõem o fundo da assistência social que recebe recursos do ente estadual, conforme definição da Comissão Intergestores Bipartite (CIB). No caso do estado do Rio de Janeiro é repassado 30% do valor destinado aos municípios pelo governo federal. Por sua vez, os entes municipais também devem investir nos seus respectivos fundos de assistência social, criando assim a base de recursos disponibilizados anualmente para a sustentabilidade dessa política pública. De modo esquemático temos o seguinte desenho no cofinanciamento atual do SUAS.
O Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) instituído como fundo público de gestão orçamentária, financeira e contábil, pela Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, repassa os recursos para os estados em alocação no Fundo Estadual de Assistência Social (FEAS) e também de forma direta sem passar pelo estado aos municípios no Fundo Municipal de Assistência Social (FMAS). Também o FEAS’s repassa recursos aos FMAS’s, cabendo aos conselhos de assistência social das respectivas instâncias federadas (CNAS, CEAS e CMAS) aprovar não só os planos de ação anuais que definem o montante e o destino dos recursos, como também a aprovação das contas no final de cada ano de exercício financeiro, sendo assim a instância máxima de fiscalização e controle da assistência social.
Uma vez aqui compreendido o financiamento da assistência social e suas fontes, nos marcos da cooperação entre os três entes federados, precisamos entender o movimento de desfinanciamento, que se intensificou após a aprovação da PEC 95/2016 que desafia a continuidade desse financiamento, e, mais que isso vem retirando do FNAS os recursos já aprovados.
O desfinanciamento significa a retirada progressiva de recursos que seguiam uma série histórica de ampliação para manter a rede instalada. As análises comparadas dos orçamentos aprovados na Lei Orçamentária Anual – LOA, na esfera federal, relativos à destinação de recursos ordinários, visando o cofinanciamento de serviços, programas e projetos e benefícios, revelam uma queda progressiva, tanto na sua elaboração quanto nas transferências intergovernamentais, o que compromete a provisão de seguranças socioassistenciais continuadas, e contraria a previsão constitucional. (FONSEAS, 2021, p.6)
No gráfico 1 é possível observar este panorama de desfinanciamento a partir do orçamento público de 2012 a 2020.
Gráfico 1 - Orçamento Federal Aprovado na Lei Orçamentária anual de 2012 a 2020
Fonte: Câmara dos Deputados - Orçamento da União, 2021.
De acordo com o levantamento, o orçamento aprovado vem diminuindo na contramão do aumento das demandas da população usuária dos serviços socioassistenciais. No estudo, o desfinanciamento é caracterizado e apontado nas normativas que o legitimam. Pode-se perceber que os recursos aprovados pelo CNAS, em 2021, de R$ 2,6 bi foram reduzidos a R$ 1 bi. As reduções se deram, também, em 2017, quando houve um “déficit de 21,76%, em 2018 de 37,52%, em 2019 de 29,16% e, em 2020 de 35,47%” (FONSEAS, 2021, p.6). Esse orçamento gera impactos diretamente no cofinanciamento da política de assistência social.
Importante ressaltar que o desfinanciamento vem atingindo de forma diferenciada as áreas da assistência social conforme pode ser observado no gráfico 2 produzido pela pesquisa do FONSEAS referente ao período de 2016 a 2019.
Gráfico 2 – Evolução do cofinanciamento federal por área de intervenção 2016 - 2019
Fonte: Câmara Técnica do FONSEAS, 2021.
No dia 16 de março de 2012, foi instituído, por Resolução CNAS nº 8 o Programa Nacional de Capacitação do SUAS (CapacitaSUAS) como parte da Política de Educação Permanente do SUAS. Uma das áreas que mais perde com o desfinanciamento desse período é a de capacitação, tal fato se deve à falta de recursos repassados para o Programa Capacitasuas que tinha como principal função ofertar a educação permanente para os servidores da assistência social em todo território nacional por meio da execução dos estados aliados a Instituições de Ensino Superior. Para exemplificar, de acordo com o portal SUASweb parcelas pagas, a secretaria do estado do Rio de Janeiro recebeu recursos no ano de 2012 (R$ 1.620.000,00), 2014 (R$ 2.681.280,00) e 2016 (R$ 1.620.000,00) não tendo mais repasse desde então. Este fator implica na descontinuidade de um processo de formação continuada necessário a qualidade da oferta dos serviços socioassistenciais.
A Política de Recursos Humanos constitui eixo estruturante do SUAS, ao lado da descentralização, do financiamento e do controle social. Com a aprovação de uma Norma Operacional Básica de Recursos Humanos - NOB-RH/SUAS (2006), “a área de gestão do trabalho adquire uma nuance especial, pois implica diretamente na qualidade do serviços socioassistenciais”, que prevê a construção de uma proposta cujos principais eixos são: princípios éticos para os trabalhadores da assistência social; equipes de referência e diretrizes para a política de capacitação, entre outros.
Ainda que a Proteção Social Especial seja a área que menos sofre o desfinanciamento, se comparada às demais, isso não significa que seu orçamento seja alinhado às necessidades demandadas pela população usuária para implementação da política conforme preconizado em Lei. Com fim de refinar essa informação, buscamos outra fonte para melhor compreender esse fenômeno. Para tal, recorremos ao Portal Siga Brasil7. Segundo a composição por ação ajustada de “assistência social - assistência comunitária – pago” comparando o período de 2016 a 2021 entre Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, incluindo o Programa Bolsa Família para demonstrar o que estudiosos da assistência social consideram a centralidade da política, cujo programa de transferência de renda é desproporcional ao investimento em serviços. Neste levantamento foi considerado somente o valor pago, ou seja, aqueles que foram de fato executados financeiramente e não o deliberado pelo CNAS que como já observamos acima, vem sofrendo os cortes após aprovação.
Tabela 1 – Recursos pagos do orçamento federal ao PBF, PSB e PSE
Fonte: Elaboração própria com dados comparados do portal siga Brasil em 20/06/2021
Como pode ser observado a maior parte do orçamento é realmente gasto com o programa de transferência de renda e ainda assim com um nível de inconstância dos valores, que deveriam ser crescentes diante do aumento da demanda ocasionada pela crise econômica mencionada na primeira parte deste trabalho. É possível concluir que a Proteção Social Especial sofreu perdas com a junção dos repasses considerando um único bloco e não mais podendo ser visualizado o que está destinado a PSE de média e de alta complexidade. A maior redução de investimentos foi no ano de 2019 e contraditoriamente nesse mesmo ano o valor do PBF aumentou significativamente.
Importante ressaltar que os recursos do governo federal aos estados e municípios para a assistência social, entre eles destinados aos serviços de PSB e PSE, precisam ser alocados no FNAS. Buscamos também os dados dos últimos seis anos de recursos do FNAS e temos a seguinte situação expressa na tabela 2.
Tabela 2 – Orçamento pago do Fundo Nacional de Assistência Social 2016-2019
Fonte: Elaboração própria com dados comparados do portal siga Brasil em 20/06/2021
Chamamos atenção para a inconstância desses números, como já afirmado a tendência correta seria um investimento crescente no FNAS para que os recursos necessários ao funcionamento de CRAS, CREAS, centro pop e unidades de acolhimento fossem garantidos. A rede socioassistencial ganhou capilaridade desde a aprovação da PNAS.
Tendo como fonte o próprio Ministério da Cidadania (junho/2021) a rede atual da assistência social em todo território nacional é de 8.471 Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), 2.749 Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), 34 Centro de Referência Especializado Regionalizados de Assistência Social (CREAS/Regional), 232 Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop) e 6.453 unidades de Acolhimento Institucional da rede de Proteção Social Especial de Alta Complexidade.
Grande parte da legitimidade para esta inconstância no cofinanciamento federal à estados e municípios é o surgimento de normativas pós PEC 95/2016 como a Portaria nº 2.362/19 que em seu Art. 3º decide “priorizar o repasse de recursos limitado ao exercício financeiro vigente, conforme a disponibilidade financeira, aos entes federativos que estiverem com menor índice de pagamento nas contas dos respectivos fundos de assistência social (...)” deixando os entes federados (estados e municípios) com problemas graves quando contam nos seus respectivos orçamentos e planejamentos previstos no início de cada exercício financeiro garantidos em repasses trimestrais.
O conjunto de resoluções, decretos e normativas amplia o compromisso e a responsabilidade do Estado e da Sociedade Civil por soluções eficientes, eficazes e efetivas para o enfrentamento das situações que envolvem a violação de direitos. Devem se materializar em oportunidade de desenvolvimento e uma autêntica experiência de reconstrução de projeto de vida desses usuários. Dessa forma, esses direitos estabelecidos em lei devem repercutir diretamente na materialização de políticas públicas e sociais que auxiliem na superação das situações de violação.
Considerando a difícil adesão de outras políticas sociais nesse tipo de acompanhamento, observamos que a efetivação dessas diretrizes depende de um movimento amplo que exige o envolvimento de diferentes atores, arranjos sociais e articulação política. Demanda um esforço permanente de pactuação, busca de consensos e reinvenção de práticas de intervenção dos diversos setores do Estado que atuam diretamente com as demandas sociais, e será um desafio ainda maior no período pós pandemia.
No que se refere ao cofinanciamento da assistência social, os levantamentos realizados e a tendência de mudanças governamentais instituem programas que escapam da organização prevista na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. Destacamos o Relatório descritivo sobre programas, políticas e ações conduzidos pelo Ministério da Cidadania (2019), sendo eles: Programa Criança Feliz, Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa e Plano Progredir. Tal disputa entre programas que retomam a assistência social amorfa antes da instituição do SUAS, é muito mais que uma disputa ideológica, tratando-se de uma disputa concreta por recursos do orçamento que de acordo com a CF/1988 pertencem a seguridade social e devem ser utilizados para atender a todos que necessitam como uma forma de enfrentamento à pobreza e às desigualdades sociais.
Reafirmamos que o contexto econômico e sociopolítico dos últimos cinco anos vem implementando diversas medidas de austeridade fiscal que comprometem severamente o orçamento da seguridade social. O desfinanciamento da proteção social, associado ao sucateamento da sua gestão, comprometem o atendimento das crescentes demandas da população usuária que se ampliam cotidianamente em função do empobrecimento da população, do desemprego e das sequelas da pandemia do Covid-19, acenando para um futuro repleto de dúvidas e incertezas.
Aos militantes, trabalhadores sociais, usuários da política de assistência social cabe o desafio de entender o desfinanciamento e o risco que isso representa para manutenção dessa tão importante forma de acesso a bens e serviços que duramente foi conquistada nos últimos vinte e oito anos.
Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: I – o plano plurianual; II - as diretrizes orçamentárias III – os orçamentos anuais.
§ 1º. A lei que instituir o PPA estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.” (BRASIL, CF, Artigo 165).
(...), § 2o.A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento. (BRASIL, Constituição Federal, 1988)
(...), a LOA compreenderá: I - o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público; II - o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto; III - o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público (BRASIL,1988, Art. 165, § 5)