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O modelo privatizado da previdência social chilena e a pandemia de covid-19: legado e tendências da desproteção social
Brenda Luanda Silva Costa; Mônica de Castro Mai Senna
Brenda Luanda Silva Costa; Mônica de Castro Mai Senna
O modelo privatizado da previdência social chilena e a pandemia de covid-19: legado e tendências da desproteção social
The chilean privatized pension system and the covid-19 pandemic: legacy and trends in social deprotection
O Social em Questão, vol. 1, núm. 52, pp. 61-84, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Este artigo aborda a trajetória do emblemático modelo de capitalização individual da previdência social chilena, problematizando o legado de desproteção social no enfrentamento da Covid-19. Parte do diálogo com teorias de Estados e regimes de bem-estar social, identificando características centrais do modelo chileno. Até a década de 1970 o país desenvolveu um regime universalista-estratificado. Com as reformas neoliberais, passou a adotar o modelo de capitalização individual, em detrimento de um sistema público. O movimento de (re)mercantilização da política mostrou ao mundo sua ineficiência em termos da garantia de direitos, acentuando ainda a desproteção social neste contexto de pandemia da covid-19.

Palavras-chave:Regime de Bem-Estar SocialRegime de Bem-Estar Social,ChileChile,NeoliberalismoNeoliberalismo,Previdência SocialPrevidência Social,COVID-19COVID-19.

Abstract: This paper focuses on the paths taken by the emblematic individual capitalization model of Chilean social security. It problematizes the social deprotection legacy and limits to deal with the Covid-19 pandemic. The study dialogues with Welfare States and regimes theories, in order to identify the Chilean model. Until the 1970s, Chile had developed a universalist-stratified social regime. The neoliberal reforms introduced an individual capitalization against of the public system. The policy (re)commodifying is evaluated as inefficient and it does not guarantee social rights. As a result, the social inequalities and deprotection have been accentuating in the Covid-19 pandemic context.

Keywords: Welfare Regime, Chile, Neoliberalism, Social Security, COVID-19.

Carátula del artículo

O modelo privatizado da previdência social chilena e a pandemia de covid-19: legado e tendências da desproteção social

The chilean privatized pension system and the covid-19 pandemic: legacy and trends in social deprotection

Brenda Luanda Silva Costa1
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Mônica de Castro Mai Senna2
Universidade Federal Fluminense, Brasil
O Social em Questão, vol. 1, núm. 52, pp. 61-84, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Julio 2021

Aprobación: 01 Septiembre 2021

Introdução

A segunda década do século XXI iniciou com o acirramento da crise estrutural do capitalismo, abalando de forma ainda mais intensa as já frágeis economias latino-americanas, com repercussões em termos de aumento da pobreza e das desigualdades sociais, além da ascensão de governos conservadores e de orientação ultraneoliberal. Esse cenário tem favorecido a retomada do debate sobre os sistemas de proteção social na América Latina e a adoção de reformas orientadas por políticas de austeridade fiscal e pró-mercado.

A Previdência Social tem ocupado centralidade na agenda dessas reformas, dado que ela se configurou na espinha dorsal de constituição dos sistemas de proteção social na região, ainda que restrita a uma pequena parcela de trabalhadores inserida no mercado formal de trabalho em sociedades marcadas por alto grau de informalidade e inserção periférica e subordinada ao padrão de acumulação capitalista mundial. A experiência de reforma da Previdência Social chilena, iniciada nos anos 1980, sob o regime militar ditatorial do governo Pinochet (1973-1990), tem sido evocada em muitos países como inspiração para as propostas de mudanças que se quer imprimir nos sistemas previdenciários latino-americanos, a exemplo dos debates em torno da Reforma da Previdência Social no Brasil, intensificados desde 2016 e não esgotados com a aprovação dela em 2019.

O caso chileno é considerado emblemático, tanto por seu pioneirismo na implantação de reformas estruturais de orientação neoliberal, quanto pelo caráter radical e privatizante adotado na reforma previdenciária, sustentada pela implantação do modelo de capitalização individual, com repercussões nefastas para o sistema de proteção social, para a garantia dos direitos sociais e até mesmo para as condições de subsistência de grande parte de sua população. Ainda que críticas a esse modelo tenham se fortalecido na última década, graças, sobretudo, à forte mobilização social no país, tentativas de sua reversão ainda não conseguiram romper com o legado anterior. A chegada da pandemia da Covid-19 no início de 2020 acirra ainda mais as já intensas desigualdades sociais, ao mesmo tempo em que o país atravessa uma das mais amplas e promissoras mobilizações sociais experimentadas, as quais conferem visibilidade a segmentos antes “invisibilizados” na arena política e colocam em xeque a ordem socioeconômica vigente.

O presente artigo aborda alguns elementos do modelo de capitalização individual implantado na Previdência Social chilena e suas repercussões em termos de proteção social para a população do país, apontando seus limites em face do aprofundamento das desigualdades sociais postas pela pandemia da Covid-19. Trata-se de um estudo descritivo, pautado em revisão bibliográfica sobre as temáticas que circundam as discussões propostas.

O debate parte da discussão sobre os regimes de bem-estar social na América Latina, para aí situar as características centrais do sistema de proteção social do Chile. Em seguida, aborda o contexto, conteúdo e justificativas apresentadas para a implantação da reforma da Previdência Social chilena nos anos 1980, passando à discussão de suas repercussões sociais, econômicas e políticas, bem como as respostas produzidas pelo governo do país no período de redemocratização. Finaliza com algumas considerações ainda incipientes sobre a questão no período da pandemia da covid-19, dado ser um processo ainda em curso.

Revisitando teorias de welfare state: elementos para pensar a América Latina

Esforços para compreender os processos de revisão e/ou desmonte dos Estados Sociais constituídos no segundo pós-guerra têm se intensificado nas últimas décadas, colocando a necessidade de revisitar as teorias de Welfare State e ampliar os olhares sobre as experiências em curso. Existe uma vasta literatura com distintas interpretações analíticas sobre as origens e desenvolvimento do Welfare State, tão bem sistematizadas por Fleury (1994) e Arretche (1995). Não é intenção explorá-las no curto espaço do presente artigo. Antes, o que se quer é uma aproximação a elementos que permitam problematizar as características centrais do sistema de proteção social construído no Chile e as alterações nele introduzidas a partir da adoção do modelo de capitalização individual da Previdência Social no país.

Uma das principais referências para o estudo do Welfare State, Esping-Andersen (1991) inaugurou uma nova geração de análises comparadas em nível internacional, incorporando um conjunto complexo e variado de dimensões e processos capazes de identificar tanto a dinâmica de conformação do padrão predominante de proteção social nos países de capitalismo central, quanto as diferenças históricas, econômicas, políticas, sociais, institucionais e culturais que modelam distintas configurações de Welfare State entre esses países. O autor argumenta que a emergência do Welfare State corresponde ao estabelecimento de um novo pacto social, erigido durante o processo de democratização da Europa no pós-guerra e articulado a uma nova etapa de acumulação capitalista. Nesse cenário, uma versão ampliada de cidadania, com incorporação de sua dimensão social, é institucionalizada, convocando uma maior participação do Estado no sentido de assegurar a provisão e regulação social.

Mas o autor salienta que existem diferenças na magnitude da cidadania e dos direitos sociais entre os países, as quais se distinguiriam em função de três dimensões centrais: a relação entre o público e o privado na provisão social; o grau de desmercantilização de bens e serviços sociais, compreendido como o processo de extensão de direitos sociais pelo Estado, afetando a condição de dependência dos cidadãos ao mercado para garantir sua sobrevivência; e o grau de desfamiliarização, que corresponderia ao nível de autonomia dos cidadãos em relação aos sistemas domésticos de cuidados e proteção (ESPING-ANDERSEN, 1991). Além disso, e ancorando-se na teoria de mobilização de poder, Esping-Andersen considera que as classes sociais são o principal agente de mudança e que a relação ou o equilíbrio de poder determina a distribuição de renda. “Mas o poder de um agente não é indicado apenas por seus próprios recursos: depende dos recursos das forças conflitantes, da durabilidade histórica de sua mobilização e da configuração das alianças de poder” (ESPING-ANDERSEN, 1991, p.95).

Assim, não há, para o autor, como definir um modelo universal do Welfare, pois cada país o desenvolveu de uma determinada maneira, com políticas organizadas de forma diferenciada em consonância com as especificidades de cada país: nível de industrialização, influências religiosas, capacidade de mobilização da classe trabalhadora, dentre outros aspectos. Com base nessas dimensões, Esping-Andersen desenvolveu uma tipologia dos Welfare States por meio de uma análise comparativa entre países da Europa Ocidental, América do Norte e Oceania que culminou em três modelos: liberal, corporativista-conservador e socialdemocrata.

Mesmo que seja possível separar as nações em grupos de Welfare semelhantes, não há como dizer que um país é puramente liberal, corporativista ou social-democrata. O desenvolvimento dos Estados de Bem-Estar Social se deu de maneira dinâmica e híbrida nas diferentes nações, à medida que foi possível (e favorável) a cada uma delas.

Estudos sobre o processo de constituição e recente desmonte dos sistemas de proteção social na América Latina têm problematizado a pertinência da adoção de referenciais do Welfare State construídos com base na realidade dos países capitalistas avançados para analisar as experiências de uma região marcada pela inserção tardia, periférica e dependente no capitalismo internacional, pelo alto grau de informalidade de seu mercado de trabalho e por frágeis e pouco duradouras vivências democráticas (DRAIBE, 2007; GOUGH, 2006).

Gough (2006) chama atenção para o fato de que o termo Welfare State tem sido alvo de objeções por parte de estudiosos dos sistemas de proteção social nos países situados ao Sul do hemisfério. Isso se deve principalmente porque a noção de Welfare tende a carregar uma conotação positiva, não compatível com a realidade de extrema vulnerabilidade, fome e pobreza nesses países. Além disso, o termo Welfare evoca a ideia de que o Estado assume papel central na organização das políticas sociais ofertadas, o que não ocorre em grande parte dos países latino-americanos.

A fim de contornar essas insuficiências, Gough (2006) propõe utilizar o termo Welfare Regimes ou regimes de bem-estar social, o que implicaria em reconhecer que o Estado não é o único ator no processo de provisão social na região, tampouco o mais importante. Trata-se de um enfoque baseado nas teorias de médio alcance (middle range theory), cuja análise procura escapar tanto das abordagens generalizantes e abstratas quanto das perspectivas particularistas, que padecem de um relativismo absoluto. O autor considera que os países citados na tipologia de Esping-Andersen formam uma “família” dos Estados de Bem-Estar, enquanto os demais países considerados “em desenvolvimento”, como é o caso da América Latina, integram o bloco dos Regimes de Bem-Estar.

Diversos estudos têm buscado analisar os diferentes regimes de bem-estar social na América Latina e mesmo construir uma tipologia mais próxima e adequada à realidade da região. Toma-se por referência aqui o estudo de Filgueiras (2005), que parte do referencial de Esping-Andersen (1991) para compreender a complexa dinâmica relacional, historicamente construída em cada país, entre o legado institucional e as circunstâncias políticas, econômicas e sociais na conformação das políticas sociais. O autor recusa o emprego do termo regimes de bem-estar social, optando pela referência à noção de Estado Social, enfatizando que a estruturação dos sistemas de proteção social nos países latino-americanos se realizou de maneira diferenciada dos países centrais devido a sua posição como economias dependentes ou periféricas em relação ao capital internacional, bem como a formação de sua burguesia (FERNANDES, 1981). Além disso, o Welfare está diretamente relacionado à industrialização, processo que ocorreu temporalmente mais tarde na América Latina e sob moldes distintos do padrão clássico, com a convivência simultânea da modernidade da indústria e o arcaísmo da sociedade agrário-exportadora, nos termos de Fernandes (1981).

A tipologia de Filgueira (2005) considerou o período de montagem dos sistemas de proteção social na região até a década de 1970, tomando como eixo central a política econômica adotada na região, em especial com o modelo de industrialização por substituição de importações (ISI). Assim, o autor distinguiu três grupos distintos de países, conformando modelos distintos de proteção social.

No modelo denominado de universalista-estratificado, estariam incluídos Chile, Argentina e Uruguai. Segundo Filgueira (2005), a principal característica que uniu esse grupo de países foi a larga cobertura da população até 1970 para serviços de educação, saúde e previdência social. “Em outras palavras, todos esses países ofertaram níveis elevados de desmercadorização, no que diz respeito tanto à provisão de serviços fora do mercado quanto à provisão de benefícios monetários aos idosos e aos incapacitados para o trabalho” (FILGUEIRAS, 2005, p.13 - tradução própria). Assim, é considerado um sistema de proteção social universalista, visto que abrange a grande maioria da população. Entretanto, observa-se a estratificação dos benefícios quanto à qualidade e às condicionalidades (ordem de acesso segundo o grau de empregabilidade, no qual em primeiro estão os funcionários públicos, trabalhadores urbanos, trabalhadores industriais, autônomos, trabalhadores informais, desempregados e trabalhadores rurais), compondo o termo universalista-estratificado. Se os benefícios são estratificados, logo, a desmercadorização também o é.

Huber (1995) apud Filgueira (2005) aponta que as experiências desses países se aproximam às dos países corporativistas-conservadores europeus. Entretanto, Filgueira argumenta que não houve grandes avanços na questão de um seguro-desemprego. Além disso, o autor afirma que não se podem considerar essas nações latino-americanas como Welfare States, pois a implementação das políticas sociais para a primeira infância e para os idosos foi exitosa, entretanto, para os adultos “somente por meio da ligação entre a cidadania econômica e a cidadania política foi possível a garantia de uma cidadania social” (FILGUEIRA, 2005, p.19 - tradução própria).

O modelo dual abrange o Brasil e o México, em que até a década de 1970 esses países tinham um modelo de educação primária quase universal, bem como alto nível de cobertura de saúde, apesar da grande estratificação. A extensão territorial e a heterogeneidade entre as regiões desses países influenciaram diretamente seu desenvolvimento econômico e social e o Regime de Bem-Estar foi baseado na ascensão de governos populistas. No Brasil, por exemplo, observa-se a influência do modelo de seguro social bismarckiano na constituição dos Institutos de Aposentadoria e Pensão e a cobertura deles apenas para algumas categorias de trabalhadores urbanos durante a Era Vargas (BOSCHETTI, 2003).

Os regimes populistas, observados em ambos os países, não tinham o objetivo de promover a redistribuição e universalização dos direitos sociais; pelo contrário, o compromisso era com as elites e com a cooptação e com o controle popular. Ou seja, o traço marcante do modelo dual é a capacidade do Estado e da economia moderna de incorporar as pessoas a uma “cidadania econômica” (“economic citizenry") ou às relações protegidas pelo Estado entre capital e trabalho (FILGUEIRA, 2005).

Por fim, o modelo excludente abrangeria países da América Central (Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala) e alguns países do Sul (Bolívia, Equador e Peru). Nestes países não foi possível registrar porcentagem significativa de cobertura da população em relação aos serviços e políticas sociais. Isso se justifica pela apropriação do Estado pela elite agrária com o objetivo de utilizar a capacidade fiscal para fins de lucro próprio sem se preocupar com a regulamentação dos serviços sociais, tampouco infraestrutura do país. O acesso à proteção social se limitou a algumas frações de classe, como um número reduzido de trabalhadores formais e funcionários públicos (FILGUEIRA, 2005).

Essas tipologias, como o próprio autor destaca, estão inscritas no recorte temporal até 1970, pois após esse período a economia mundial passou a experimentar o avanço do neoliberalismo, modificando substancialmente os Regimes de Bem-Estar, gerando dois novos modelos: um ligado diretamente à agenda neoliberal e outro que o autor ousa chamar de “embrionária socialdemocracia latino-americana” (FILGUEIRA, 2005, p.10). Esses modelos estariam vinculados também a momentos distintos. O primeiro ganha força no contexto de crise do capital dos anos 1970 e esgotamento do modelo de substituição de importações, caracterizando-se pela adoção de programas neoliberais de ajuste estrutural e pelo recuo do Estado. Já na primeira década dos anos 2000, a região experimenta a introdução de modelos econômicos neodesenvolvimentistas, pautados em extensa intervenção estatal e ampliação de políticas sociais, interrompidos com o aprofundamento da crise estrutural do capitalismo a partir de 2008 e a ascensão de governos de orientação conservadora em diversos países.

Capitalização da previdência social chilena: mercantilização do direito versus medidas de atenuação

O cenário político e econômico mundial que se abre a partir da década de 1970 com a crise estrutural do capitalismo repercute intensamente na América Latina, região já marcada por frágeis economias e imensas desigualdades sociais. A saída proposta pelo capital para essa crise orgânica (MOTA, 1995 apud MOTA, 2018) foi a reestruturação do capitalismo, organizada em três frentes centrais: reestruturação produtiva, financeirização econômica e contrarreforma do Estado (BEHRING, 2003).

Como mencionado, o Chile foi identificado na tipologia de Filgueira (2005) como universalista-estratificado. O país foi um dos pioneiros na região a adotar um sistema público de proteção social, por meio da implantação, desde meados dos anos 1920, de um conjunto de leis sociais relativas ao trabalho e à proteção dos trabalhadores. Em 1924, a Lei n° 4.054 instituiu o Seguro Obrero Obligatorio, considerado o embrião da Previdência Social chilena e que daria origem, posteriormente, ao Serviço de Seguro Social, principal sistema previdenciário para a maioria dos trabalhadores até os anos 1970.

O sistema assumiu o modelo de repartição, com financiamento tripartite oriundo da contribuição de trabalhadores, empregados e Estado (OLIVEIRA et al., 2019). Foram criadas diversas caixas previdenciárias, organizadas por categorias de trabalhadores e com esquemas e cobertura bastante desiguais (RODRIGUEZ, 1998; LANZARA, SILVA, 2018). Rodriguez (1998) indica que ao final dos anos 1970, o sistema chileno contava com mais de 150 programas previdenciários diferentes, que funcionavam de forma independente e sem qualquer tipo de coordenação entre eles. Ao mesmo tempo, o sistema carecia de fontes estáveis de financiamento, haja vista as políticas de isenção fiscal e outras formas de incentivos aos empregadores, além da sonegação da parte patronal nas contribuições previdenciárias. Como afirmam Lanzara e Silva (2018), “sem fontes estáveis de financiamento para empreender sua política previdenciária, o Estado se viu em dificuldades para atender as mínimas expectativas de inclusão da população no sistema previdenciário”.

A reforma do sistema previdenciário chileno foi introduzida em 1981, durante o governo ditatorial do general Augusto Pinochet, sendo reconhecida tanto por seu pioneirismo na implantação de reformas estruturais de caráter neoliberal quanto pela radicalidade da privatização do sistema. Em meio ao contexto de crise do capital e sob o argumento de ineficiência do sistema de proteção social vigente, o governo Pinochet implantou uma série de reformas econômicas e sociais dirigidas a equilibrar a economia do país, com eliminação dos controles de preços, abertura a importações, liberação do mercado financeiro para fluxos de capital estrangeiro, reforma tributária, redução do setor público e privatização de empresas estatais. Rompeu, desse modo, com o chamado Estado de Compromisso que vigorava no país desde os anos 1930 (LEIVA, 2020).

Validada pela Constituição monocraticamente estabelecida por Pinochet em 1980, as reformas implantadas seguiram o princípio da subsidiariedade do Estado, com transferência da responsabilidade pública na prestação de serviços públicos para prestadores privados, sobretudo nas áreas de educação, saúde, trabalho e previdência social (LEIVA, 2020). Além disso, houve supressão da maioria dos direitos sindicais e fragilização da organização dos trabalhadores (FFRENCH-DAVIS, 2002).

Registra-se ainda o grande endividamento externo, que se realizou entre agentes privados, com o objetivo de manter a balança superavitária. O governo chileno, porém, não esperava uma crise cambial e “pela segunda vez, em uma década, a economia chilena se viu afetada por uma crise recessiva de magnitude considerável, a maior de toda a América Latina: em 1982-83 o PIB caiu 14%” (FFRENCH-DAVIS, 2002, s.p. - tradução própria). Para o autor, o momento de maior ortodoxia neoliberal no país se deu entre os anos de 1973 a 1982 e a ascensão de um governo autoritário, combinado à grave recessão econômica, permitiu que a pauta neoliberal avançasse no país, dado o histórico de mobilização e organização dos trabalhadores chilenos.

No âmbito da Previdência Social, a reforma instituiu o sistema de capitalização individual, baseado na contribuição individual dos trabalhadores por meio de cotas obrigatórias e não obrigatórias (para aqueles sem condições de poupança), sob a gerência das então recém-criadas AFP, Administradoras de Fundos de Pensões, instituições privadas que poderiam utilizar esses recursos para investimentos no mercado financeiro. Dessa forma, a aposentadoria ou pensão do contribuinte variaria de acordo com o valor do rendimento da sua cota individual. Todavia, para que um trabalhador conseguisse adquirir uma pensão minimamente garantida seriam necessários 240 meses de contribuições, fato dificultado em face da flexibilização e precariedade das relações de trabalho. Além disso, a metodologia de cálculo dos valores a serem recebidos se baseia na realidade de países do hemisfério norte (YAÑEZ, 2010 apud FLORES et al, 2014), cujos salários e expectativas de vida são mais altos. Desta forma, esse modelo beneficia somente aqueles trabalhadores que recebem maiores salários e conseguem pagar cotas mais altas.

No modelo instituído, coube ao Estado a fiscalização e garantia do sistema, inclusive assumindo os gastos decorrentes da privatização, bem como a responsabilidade do ressarcimento às AFP em caso de falência das mesmas (OLIVEIRA et al, 2019). A instituição do caráter privado para a previdência e a manutenção do sistema público criou competição entre ambos (MESA-LAGO, 2000), resultando no desmantelamento desse último em prol do crescimento e fortalecimento daquele. Isso quer dizer que ao apoiar o setor privado, o Estado afirma a contribuição individual em detrimento da contribuição solidária, responsabilizando e valorizando a proteção social a cargo dos indivíduos sobre a oferta de serviços públicos.

Em relação ao tempo para a aposentadoria, dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2017) revelam que os chilenos se aposentam mais tardiamente em comparação com os demais países, além de terem menor expectativa de vida após a saída do mercado de trabalho. Além disso, há certas flexibilidades, como recompensas pelo adiamento da aposentadoria após o alcance da idade mínima para tal, assim como a possibilidade de receber o rendimento da aposentadoria e continuar recebendo o salário advindo do trabalho.

Essas flexibilidades podem estar em consonância com as baixas taxas de reposição de pensões por rendimento no Chile. Segundo a OCDE as taxas líquidas de reposição de pensões para os afiliados com menores rendimentos têm uma projeção de menos de 50%, o que resulta em pensões muito baixas, implicando a necessidade da população com menor salário buscar outras formas de aumentar a renda por intermédio do trabalho, ou recorrer ao Estado para adquirir pensões complementares. (OLIVEIRA et al, 2019, s.p)

A redemocratização do país, a partir dos anos 1990, foi acompanhada da ascensão de governos de centro-esquerda, que implantaram políticas sociais dirigidas à redução da pobreza e melhoria das condições sociais, mas não romperam com a base econômica e produtiva neoliberal anterior e mantiveram o texto constitucional do período ditatorial, caracterizando o que Leiva (2020) denomina de progressismo limitado. Foram investidos esforços no sentido de estabilizar a economia, que herdara uma grande crise recessiva. Dentre esses esforços, destaca-se o investimento estatal em obter apoio dos sindicatos e dos trabalhadores e incorporá-los ao processo de tomada de decisões referentes às políticas sociais, possibilitando incluir a população mais pobre, a mais afetada pela recessão dos anos de 1980. Esse processo culminou com uma proposta de reforma tributária, determinando o aumento de receitas e maior direcionamento do gasto público para o âmbito social (FFRENCH-DAVIS, 2002). Também nesse período houve a proposta de reforma trabalhista que previa maior equilíbrio na negociação entre empregados e empregadores. Essas e outras reformas foram aprovadas pelo Parlamento, porém com modificações que não surtiram os reais efeitos contidos nas propostas (FFRENCH-DAVIS, 2002).

Após a reforma tributária, registrou-se crescimento econômico em termos de aumento do PIB. Contudo, o fluxo de capitais externos prejudicou a iniciativa do Chile de controlar sua economia de forma independente das influências internacionais. Mas isso não impediu que o país aplicasse medidas para regulação da política monetária no sentido de equilibrar as contas internas e promover o desenvolvimento de políticas mais equânimes e de distribuição de renda (FFRENCH-DAVIS, 2002). Esse autor argumenta que, apesar de não terem sido suficientes, os governos da Concertación conseguiram implementar algumas “reformas nas reformas” e lograram avanços no que tange à capacidade produtiva do país e conquistas no enfrentamento da pobreza.

A previdência chilena pautada na capitalização individual, apesar de ter sido reconhecida internacionalmente como “modelo a ser seguido” se revelou ineficiente ao longo dos anos, pois não promoveu a cobertura dos filiados das AFP, tampouco garantiu segurança financeira, devido aos baixos valores alcançados nas pensões e aposentadorias. Tal conclusão advém de análises realizadas sobre a temática, como a efetuada pela comissão criada pela presidente Bachelet (2006-2010 e 2014-1018) dedicada aos estudos dos sistemas de pensão. As projeções desses estudos estimam que

metade das pessoas que se aposentarão entre 2025 e 2035 e que contribuíram entre 25 e 33 anos exclusivamente no sistema da AFP terão uma taxa de reposição menor que 22%. Quer dizer: se você nos últimos 10 anos de sua vida laborativa registrou remuneração tributável de 769,23 dólares, você só pode autofinanciar uma pensão “menor” que 169,23 dólares (MESINA, 2017, p. 88 – tradução própria).

Em relação ao gasto público, o investimento do Estado no setor previdenciário se mostrou elevado (FLORES et al, 2014; OLIVEIRA et al 2019) a fim de estimular e proteger o esquema de privatização. Em contrapartida, evidencia-se o aprofundamento da desigualdade e insegurança da população. Por isso, relembrando Esping-Andersen (1991), não é seguro analisar a composição de um Regime ou Estado de Bem-Estar Social apenas pela perspectiva das contas públicas, mas sim pela independência do mercado no que concerne aos serviços e políticas sociais. Seguindo essa lógica, pode-se afirmar que esse modelo de capitalização da previdência social rema no sentido contrário ao da desmercantilização, ou seja, o regime de bem-estar social vive seu desmonte e a proteção social passa a depender diretamente do mercado.

Atrelar o recebimento de benefícios de aposentadoria e pensão ao mercado financeiro revela a intencionalidade das medidas neoliberais, suportadas pelo Estado, de valorização e incentivo ao setor privado. O impacto negativo que isso causou na vida da população, ademais do seu descontentamento e reivindicações, obrigaram o governo chileno a implantar medidas de atenuação diante desse cenário. De fato, na última década o Chile tem vivenciado uma vigorosa e intensa mobilização social, que tem questionado o modelo socioeconômico adotado, o modelo de democracia pós-ditadura e a persistência da Constituição pinochetista, com significativa reativação da sociedade civil e renovação da sociedade política. Destaque aqui, no caso específico da Previdência Social, deve ser dado ao Movimento No+AFP, cuja proposição central pode ser sintetizada na defesa de um sistema solidário, com distribuição tripartite e administrado pelo Estado (OLIVARES; CARRASCO-HIDALGO, 2020).

Diante desse quadro, algumas medidas foram esboçadas e podem ser creditadas, em grande parte, à força e influência dos movimentos sociais na agenda política. Em 2008, foi criado o Sistema de Pensões Solidárias, dirigido a pessoas em situação de vulnerabilidade social – o que corresponderia a cerca de 60% da população total à época – que trouxe o pilar da solidariedade para o modelo de previdência. Procurou-se ampliar a presença do Estado, mas que ocorreu apenas de maneira complementar. Isso porque o pilar solidário não é universal e os benefícios podem ser concedidos em um momento e retirados em outro, regido por critérios de classificação da pobreza (FLORES et al, 2014).

Cinco anos depois da reforma, o pilar da solidariedade mostra avanços significativos, mas o seu pilar fundamental não: o da capitalização individual, onde os problemas persistem e tendem a se agravar. Os trabalhadores argumentam contra abusos e, sobretudo, péssimas pensões, cujos valores médios estão abaixo do salário mínimo; e expressam publicamente seu crescente descontentamento. Nos últimos anos, as críticas ao sistema previdenciário tornaram-se generalizadas, apontando justamente para seu componente de capitalização individual obrigatória. (FLORES et al, 2014, p. 114 - tradução própria).

O primeiro governo de Piñera (2010-2014), composto por uma coalizão de direita que pôs fim a vinte anos ininterruptos de governo da Concertación, foi atravessado por grandes mobilizações sociais, tais como a greve de fome dos comuneros mapuches e o fortalecimento do movimento estudantil. Mas sua aliança com os setores empresariais foi um dos fatores que constrangeu qualquer iniciativa que alterasse o padrão de políticas públicas vigente. Com o retorno de Bachelet ao segundo mandato (2014-2018) e a crescente mobilização social no país, foram apresentadas propostas de reformas nas áreas tributária, eleitoral, educacional e constitucional. Tais propostas, contudo, não conseguiram se materializar.

Em 2016 o país assistiu a primeira grande marcha coordenada pelo movimento No+AFP, que sacudiu todo o território nacional, provocando abertura do debate e convocando a uma mudança na base do sistema AFP. A resposta do governo federal foi a criação de um grupo de trabalho composto por especialistas, com a missão de rever o sistema e propor soluções em curto e médio prazos. Daí resultou a proposição de novo sistema de pensões de poupança coletiva, com a convocação de um plebiscito nacional, em 2017; e o envio, já no último ano de mandato de Bachelet, de três projetos de lei ao Congresso Nacional sobre a matéria. O plebiscito contou com a participação de quase um milhão de chilenos e cerca de 97% dos votos favoráveis a mudanças no sistema de pensões. Ainda que os resultados desses processos não tenham se efetivado, há que se reconhecer o mérito do movimento em colocar a temática na pauta da agenda política nacional, permanecendo em atividade no segundo mandato de Piñera (2018-2022) (OLIVARES; CARRASCO-HIDALGO, 2020).

Em meio à explosão das mobilizações e protestos sociais no país, em 2019 são estabelecidos, por meio da Lei nº 21.190, novos benefícios no sistema de Pensões Solidárias, tendo em vista o descrédito do sistema das AFPs. Essa lei aumenta em 50% o valor da Pensão Básica Solidária (PBS), direcionada aos idosos e aos considerados incapacitados para o trabalho (“vejez e invalidez”) e da Pensão Máxima com Aporte Solidário (PMAS). Foi também estabelecido aumento de 71% para o Aporte Previsional Solidário (APS) (CONDEZA, 2021), que funciona como uma espécie de complemento às pensões de “vejez e invalidez”, havendo critérios para acesso baseados principalmente no valor das pensões PBS e PMAS, além da idade e residência, critérios esses regulamentados pela Lei n° 20.255 (Ibidem, 2021).

Essas mudanças expressam o que chamamos aqui de medidas de atenuação frente ao fracasso do sistema privado das AFPs, no sentido de ampliar a cobertura da proteção social por meio da garantia de renda. Entretanto, essas medidas não foram eficazes no suprimento das demandas da população que se organizou em torno de um movimento pela reforma da Constituição do país formulada pelo governo Pinochet e insuficiente nas garantias de direitos sociais. Luta essa, que ganhou ainda mais evidência diante do contexto de crise ocasionada pela pandemia da covid-19.

Proteção social privatizada no contexto de pandemia da covid-19: como estão os usuários chilenos do sistema de pensões?

Após o fim do período ditatorial, o governo progressista de Bachelet investiu esforços no sentido de modificar a Constituição chilena muito engessada nas premissas neoliberais, pautando-se na privatização dos serviços da Seguridade Social em detrimento da cobertura universal. Contudo, durante seu governo não houve efetivas mudanças no texto constituinte, ainda que as pautas trazidas pela presidente tenham fortalecido o movimento iniciado em outubro de 2019.

Em uma entrevista dada por Javier Couso Salas3, o estudioso aponta que as demandas por mudanças no país vêm se acumulando ao longo do tempo, visto que o Chile vivia um paradoxo: crescimento econômico versus pobreza da população. O autor relata que em 2019 uma declaração do ideólogo da Constituição pinochetista, Jaime Guzmán, ganhou destaque e trouxe efervescência ao movimento de reconfiguração constitucional. Guzmán, afirmara que “se os adversários políticos da direita chilena alguma vez chegassem ao poder, estariam obrigados pela Constituição a fazer mais ou menos o que a direita quis projetar” (MARROQUÌN & ANDRADE, 2020, p.190 – tradução própria).

Salas sinaliza alguns dos motivos que possam ter incitado tais manifestações, como o aumento do custo de 10 centavos na passagem do metrô, mas também destaca os problemas relacionados ao sistema de pensões da AFP. Quando instituído, o sistema financiava ainda um número pequeno de pessoas, tendo em vista que a população contribuinte ainda era jovem; porém, a partir de 2015, essas pessoas, de aproximadamente 30 anos em 1985, adquiriram idade para se aposentar. Isso gerou grandes problemas, tendo em vista o baixo valor das pensões diante de altos custos com saúde e medicamentos (MARROQUIN & ANDRADE, 2020).

Nesta arena de mobilizações, nota-se o fortalecimento do movimento No+AFP, além da atuação da Fundação Sol, um centro de pesquisa e ação que busca gerar conhecimento crítico e ações para potencializar as lutas sociais e sindicais. Em sua página na internet é possível encontrar as frentes de estudo, publicações de textos, artigos de opinião, vídeos e outros materiais. Em uma dessas produções, que também foi publicada no jornal digital El Mostrador, Ponce (2020) traz o debate sobre o sistema de pensões, abordando a relevância da autorização de retirada de 10% dos fundos de pensão como única solução de sobrevivência de grande parte da população chilena diante da crise inaugurada pela pandemia da covid-19.

Ao longo do ano de 2020 até abril de 2021 foram permitidos três saques dos fundos de pensão aprovados pelo Senado, segundo informações divulgadas em fontes oficiais do país. O processo de tramitação que culminou na Lei nº 21.248/2020, a qual autorizava o primeiro saque de 10% dos fundos de pensão, foi marcado por disputas dentro do cenário político chileno. As elites políticas expressaram resistência quanto à aprovação da lei (SOLANO; MORENO, 2021), sob a justificativa do desequilíbrio dos sistemas de pensão, a exemplo do discurso proferido pelo superintendente das Pensões de que estes saques poderiam gerar perda de 5 anos de contribuições e uma redução de 23% nos valores de aposentadoria (PONCE, 2020). Por outro lado, as pressões sociais por respostas do governo diante da crise foram cruciais para que tal medida fosse efetivada, configurando-se como “primeira medida de cunho universal que procurou suprir a ausência de uma política pública com essas características” (SOLANO; MORENO, 2021, p.152).

A resistência das elites políticas em torno dessa medida representa o compromisso do Estado neoliberal chileno com as AFPs, pois a retirada dos valores ocasionou queda nos recursos administrados pelas seguradoras. Compromisso esse que acarretou o empobrecimento de parte da população que havia superado a linha da pobreza (MESINA, 2017).

De maneira geral, como também já apontado anteriormente, os aposentados chilenos recebem valores de pensão abaixo do salário-mínimo e contribuem com uma alíquota de 10% a 12% do seu salário. O saque de 10% se assemelha ao saque emergencial do FGTS brasileiro, que foi uma alternativa apresentada para tentar conter o avanço da pobreza e miséria da população durante a pandemia. A diferença é que, por mais que a Previdência Social brasileira ainda precise avançar no que tange à proteção social universal, o valor mínimo de benefícios previdenciários é fixado em um salário-mínimo. Em relação às medidas de proteção social na pandemia, registra-se no Chile o pagamento do Ingreso Familiar de Emergencia (IFE) direcionado às famílias cuja receita provém do trabalho informal, o Bônus de Natal Covid (Covid Christmas Bonus) pago às famílias que receberam o sexto pagamento do IFE, dentre outros (GENTILINI et al, 2020).

Diante dessa breve reflexão, percebe-se que a crise sanitária, econômica e social instalada em âmbito global, somada à ausência de políticas e direitos sociais, fortaleceu o movimento, já em curso, da população chilena pela exigência da reconfiguração de sua Constituição. O fim das AFPs e do regime de previdência por capitalização individual é um horizonte que os chilenos almejam, pois está claro que a ideologia dos “Chicago Boys” privilegia apenas o setor financeiro e dissemina pobreza e miséria para a população.

Considerações finais

Apesar das medidas e estratégias do governo do Chile de atenuação e amenização da realidade criada pelo modelo de previdência capitalizada, nunca houve interesse em romper efetivamente com esse padrão. Os lucros das AFP são altíssimos e o Estado intervém hegemonicamente de maneira a proteger esse sistema privado em detrimento do investimento no setor público de previdência social.

Desta forma, o argumento aqui defendido é de que o modelo de Regime de Bem-Estar universalista-estratificado experienciado pelo Chile até a década de 1970 entrou em declínio, pois a influência da agenda neoliberal no país alterou drasticamente o papel do Estado. Uma das pautas do Regime de Bem-Estar é a do Estado como interventor na economia, seguindo os padrões do modelo keynesiano de controle de produção e consumo e, por consequência, a oferta de serviços públicos, gerando níveis de desmercadorização, a depender da dinâmica de cada nação.

Com a ascensão do neoliberalismo e a contrarreforma do Estado, esse modelo interventor foi o primeiro a ser substituído. A perspectiva de um mercado autônomo e autorregulável retornou com máxima força, devendo o Estado atuar apenas em momentos de crise.

Considera-se, do ponto de vista das classes trabalhadoras, que a sobreposição do regime neoliberal foi um grande retrocesso, haja vista as condições de vida e reprodução destas classes em uma sociedade de economia capitalista dependente. Não se pretende afirmar aqui que o acesso a políticas e serviços públicos determina a emancipação dos sujeitos, visto que, como discutido, a sociabilidade burguesa permite a emancipação limitada aos seus moldes. Contudo, uma classe que tem condições objetivas de acesso a direitos é uma classe mais propensa à organização política com vistas à ruptura com a ordem social que as aprisiona.

A organização da população chilena em torno da construção de uma nova Constituição do país é uma faísca de esperança diante de um cenário tão incerto e assustador que a pandemia da covid-19 inaugurou, acentuando as expressões da questão social no país e no mundo.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
1 Assistente Social da Universidade Federal Fluminense e da Secretaria Municipal de Assistência Social e Economia Solidária de Niterói, mestranda em Política Social - Universidade Federal Fluminense, Brasil. Nº Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4643-3966. E-mail: brenda_p4@hotmail.com
2 Assistente Social. Mestre e Doutora em Ciências – Saúde Pública. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Política Social e da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense, Brasil. Pesquisadora CNPq. Nº Orcid https://orcid.org/0000-0003-2161-7133. E-mail: monica_senna@id.uff.br.
3 Graduado em Direito pela Pontificia Universidad Católica de Chile. Doutor e Mestre em Jurisprudência e Políticas Sociais da University of California-Berkeley, Estados Unidos. Especialização em Direito Constitucional chileno, Direito Constitucional Comparado e Estudos Sócio-jurídicos.
Notas de autor
1 Assistente Social da Universidade Federal Fluminense e da Secretaria Municipal de Assistência Social e Economia Solidária de Niterói, mestranda em Política Social - Universidade Federal Fluminense, Brasil. Nº Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4643-3966. E-mail: brenda_p4@hotmail.com
2 Assistente Social. Mestre e Doutora em Ciências – Saúde Pública. Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Política Social e da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense, Brasil. Pesquisadora CNPq. Nº Orcid https://orcid.org/0000-0003-2161-7133. E-mail: monica_senna@id.uff.br.
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