Resumo: Nas últimas décadas, a investigação sobre a desigualdade social vem ampliando o entendimento dessa condição, situando-a como um fenômeno multidimensional que ultrapassa a esfera econômica. Sob essa perspectiva, o presente artigo tem como objetivo discutir a proteção social, no contexto educacional, enquanto possível estratégia voltada para o enfrentamento das desigualdades socioeducacionais. Embasado nas pesquisas bibliográfica e documental, aponta, entre seus resultados, que a escola, enquanto instituição que protege, deve priorizar o aspecto formativo e o acesso a bens culturais, atendendo ao desafio da qualidade do ensino, constituindo-se, assim, instância fundamental no combate a tais desigualdades.
Palavras-chave:Desigualdade socialDesigualdade social,Vulnerabilidade socialVulnerabilidade social,EducaçãoEducação,Proteção socialProteção social.
Abstract: In recent decades, the research on social inequality has broadened the understanding of this condition, placing it as a multidimensional phenomenon that goes beyond the economic sphere. From this perspective, the present article aims to discuss social protection in the educational context as a possible strategy to face socio-educational inequalities. Based on bibliographic and documentary research, it presents, among its results, that the school, as an institution that protects, should prioritize the formative aspect and the access to cultural goods, meeting the challenge of the quality of education, thus constituting a key factor in the fight against such inequalities.
Keywords: Social inequality, Social vulnerability, Education, Social protection.
Educação, desigualdade e proteção social
Education, inequality and social protection
Recepción: 01 Julio 2021
Aprobación: 01 Septiembre 2021
A desigualdade social, condição estrutural da sociedade brasileira, reflete dois aspectos distintivos de seu desenvolvimento: a escravidão e o colonialismo (CARVALHO, 2015; SOUZA, 2011; GOMES, 2019). Matéria central no campo das políticas sociais públicas, a condição de desigualdade assenta-se na dinâmica de retração de direitos, especialmente de direitos sociais, afetando o exercício da cidadania plena, o convívio social e a garantia das condições humanas básicas de sobrevivência na sociedade.
A cidadania e a desigualdade posicionam-se de forma inversa, uma vez que a primeira pressupõe o acesso igualitário a um conjunto de direitos, nomeados por Carvalho (2015) como direitos civis, políticos e sociais. Segundo o autor, um grande obstáculo à superação da condição de desigualdade localiza-se na formação da sociedade brasileira, que, historicamente, conviveu com a impossibilidade de conciliar a cidadania com a grande propriedade e o trabalho escravo, fatores que, embora tenham passado por algumas transformações, se perpetuam em nosso país (CARVALHO, 2015).Por seu turno, a seção “Amanhãs”, integrante da exposição principal do Museu do Amanhã/RJ (RIO DE JANEIRO, 2017), ao exibir projeções científicas futurísticas para a existência humana no planeta Terra, prescreve:
Sabemos que a única certeza sobre o futuro é que haverá o inesperado, mas as Ciências nos indicam as grandes tendências que muito provavelmente moldarão as próximas décadas: seremos ainda mais numerosos, com alguns vivendo por muito tempo; habitaremos um mundo mais urbano e interconectado, porém mais desigual [...].
A afirmação leva a indagar: para quem a vida no planeta será mais longa e interconectada? Podemos vislumbrar respostas para essa pergunta no Mapa da Violência 20203 (BRASIL, 2020), que, ao abordar a questão da juventude perdida, menciona os trinta anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/1990 (BRASIL, 1990), como uma legislação que promoveu grandes avanços voltados para o cuidado e a proteção das crianças e dos jovens brasileiros, com destaque para as áreas de educação, saúde e trabalho infantil. Por outro lado, o estudo ressalta que as desigualdades de renda e de raça limitam o acesso de crianças e adolescentes vulneráveis a todos os direitos sociais, sendo que, em relação ao direito à educação, aponta:
Na área de educação, por exemplo, a pobreza e a desigualdade de renda são fatores responsáveis pelas elevadas taxas de abandono e atraso escolar entre os jovens de 15 a 17 anos. De acordo com o IBGE, em 2018, enquanto 11,8% dos jovens pobres de 15 a 17 anos tinham abandonado a escola sem concluir o ensino médio, entre os jovens mais ricos esse percentual era de apenas 1,4% (BRASIL, 2020, p.30).
O estudo, referindo-se aos homicídios de jovens e adolescentes4, especialmente os que moram na periferia ou em regiões metropolitanas das capitais brasileiras, traz à discussão as consequências perversas da desigualdade de raça no Brasil, responsabilizando, entre outros fatores, a não priorização do investimento público no desenvolvimento de ações e políticas públicas voltadas para a efetivação dos direitos previstos no ECA (BRASIL, 2020).
Os dados apresentados pelo IPEA conduzem à reflexão de que a condição de desigualdade é constituída por uma dinâmica que é atravessada por elementos como raça, gênero e localização geográfica. Tal compreensão, inclusive, tem contribuído para orientar as investigações no campo das políticas sociais, a partir das quais vêm emergindo dois aspectos essenciais ao avanço do entendimento desse fenômeno. Ao tempo que o primeiro sinaliza para a urgência de posicionar as desigualdades como objeto de políticas econômicas (SPOSATI, 2011, 2013; COSTA, 2015), o segundo enfatiza sua compreensão enquanto fenômeno multifacetado, complexo, que envolve aspectos que extrapolam a dimensão socioeconômica (COSTA, 2015; FRASER, 2001; MONTEIRO, 2011).
O entendimento das desigualdades como um fenômeno multidimensional vem trazendo à cena nacional a importância do papel do Estado e das políticas de proteção social voltadas para o seu enfrentamento (COSTA, 2015; SPOSATI, 2011). Por seu turno, os sistemas de proteção social, reconfigurados a partir da Constituição Federal (CF) de 1988, ampliaram o alcance de suas políticas, tendo como objetivo central a garantia da vida humana em sociedade, ocasião em que passaram a englobar aspectos considerados mais subjetivos, como o acesso à cultura e à educação. Como desdobramento dessa reconfiguração, o tema da proteção passou a ganhar espaço nas discussões do campo educacional. Em um movimento que se iniciou no ECA, que estabeleceu a doutrina da proteção integral, o referido tema figurou nos dois últimos Planos Nacionais de Educação – PNE 2001- 2010 (BRASIL, 2001) e PNE 2014-2024 (BRASIL, 2014) –, os quais repercutiram em políticas e programas que abordam a relação entre desigualdade, vulnerabilidade e educação. Um dos exemplos mais emblemáticos da abordagem dessa relação consistiu no Programa Mais Educação – PME (BRASIL, 2007)5 em que a vulnerabilidade social dos estudantes está associada aos critérios de elegibilidade para a participação no programa (SILVA, 2018).
Assim, considerando que o campo educacional reflete a desigualdade social instalada em nosso país, especialmente quando as oportunidades educacionais acompanham a lógica das desigualdades sociais (RIBEIRO, 2011; SOUZA; 2011), este artigo – alicerçado nas pesquisas bibliográfica e documental (LAKATOS, 2003; ANDRÉ, 2013) – tem como objetivo discutir a proteção social no contexto educacional, enquanto possível estratégia voltada para o enfrentamento das desigualdades socioeducacionais.
Sob essa perspectiva, afora esta introdução, este artigo está constituído por outras três seções. A primeira aborda algumas discussões associadas aos temas das desigualdades sociais e das vulnerabilidades, os quais conduziram à constituição da segunda seção, que trata da proteção social, a partir da CF de 1988, no contexto das políticas sociais públicas. A terceira seção trata da relação entre proteção social e educação. Por fim, são tecidas algumas considerações sobre a importância da educação escolar e de seus aspectos formativos para a concretização da proteção social enquanto política pública.
Como condição que atravessa a sociedade brasileira desde sua formação e em estreita ligação com seu passado escravagista e colonialista, a desigualdade social tem se constituído matéria central nas discussões do campo das políticas sociais. Embora o fator econômico e a distribuição de renda ocupem posição de destaque no seu combate, pode-se afirmar que, no campo das políticas sociais (SPOSATI, 2011; COSTA, 2019), cresce o entendimento das desigualdades como um fenômeno complexo que abarca múltiplas dimensões.
Sob a perspectiva de Fraser (2001) – que define o conceito de desigualdade a partir das dimensões econômicas e culturais –, os fatores econômicos e as questões de raça, gênero e sexualidade, nacionalidade e etnicidade conjugam-se a realidades de grande desigualdade material. A autora indaga sobre a possibilidade de combinar políticas sociais de igualdade com a luta pelo reconhecimento, uma dinâmica que envolve as concepções de diferença, identidade e dominação cultural. Nesse raciocínio, distingue dois tipos de injustiça – socioeconômicas e culturais ou simbólicas –, associando ao seu combate, respectivamente, duas formas de resposta, que nomeia remédios: a redistribuição, entendida como redistribuição de recursos e bens; e o reconhecimento, que se refere à condição de diferença.
Sinaliza, contudo, que a utilização desses remédios pode se constituir como uma dinâmica complexa, haja vista que, em algumas situações, eles precisariam ser conciliados e, em outras, contrapostos, citando como exemplo a discriminação racial, que demanda tanto um quanto outro. Diante disso, a autora introduz concepções alternativas de redistribuição e reconhecimento denominadas afirmação e transformação. Ao mesmo tempo que os remédios afirmativos são entendidos como aqueles que buscam alterar resultados em uma determinada configuração social, sem, contudo, interferir nos mecanismos de suas causas, os transformativos, ao contrário, agem de forma interventiva, com vistas a modificar seus resultados (FRASER, 2001). Na visão da autora, os remédios afirmativos estão associados ao estado de bem-estar liberal, já que combatem as desigualdades de distribuição de recursos sem alterar as estruturas política e econômica implícitas. Os remédios transformativos, que, de certa forma, estão vinculados ao socialismo, têm o objetivo de interferir não só na distribuição estatal de bens de consumo como também “na divisão social do trabalho e assim nas condições existenciais de todos” (FRASER, 2001, p. 269). A autora argumenta, então, que, embora as redistribuições afirmativas busquem soluções para injustiças econômicas, não interferem nas estruturas de classes.
Reflexões como as de Fraser são significativas para se pensar a dinâmica das desigualdades no contexto das políticas sociais públicas, que têm se delineado como um fenômeno cada vez mais complexo, haja vista envolver aspectos para além dos fatores econômicos, a citar, sociais, políticos e/ou ideológicos. Nessa direção, Costa (2019) pontua a necessidade de, atualmente, as pesquisas avançarem no estudo das desigualdades, superando o aspecto econômico. Argumenta que, embora a compreensão das desigualdades socioeconômicas seja de grande importância para o entendimento das diferenças nas condições concretas de vida, ela não dá conta da complexidade desses eventos (COSTA, 2019). O autor lança mão dos conceitos de desigualdade multidimensional – que envolve a tríade desigualdades socioeconômicas, assimetrias de poder e desigualdades socioecológicas – e de desigualdade de posição – em oposição ao de desigualdade de oportunidades. Ao tempo que este último se alinha à perspectiva liberal, para a qual as posições sociais resultam de conquistas pessoais, o primeiro define que as questões que envolvem gênero, raça e etnia interferem de forma decisiva nas possibilidades de mobilidade social (COSTA, 2019). Essas dinâmicas comporiam, assim, a dimensão das assimetrias de poder, entendidas como “as diferentes possibilidades que indivíduos ou grupos têm de exercer influência nas decisões que afetam suas trajetórias e convicções pessoais, materializando-se, ainda, na distribuição assimétrica dos direitos políticos e sociais” (COSTA, 2019, p. 57). Nesse âmbito, pontua que, embora as assimetrias de poder estejam estreitamente relacionadas às desigualdades socioeconômicas, o papel do Estado e dos sistemas de proteção social são decisivos na garantia dos direitos sociais.
Sociedades que dispõem de um estado de bem-estar forte e amplo, capaz de oferecer bons serviços públicos de educação, saúde ou transporte, contribuem enormemente para diminuir o impacto das desigualdades socioeconômicas sobre as condições de vida existentes (COSTA, 2019, p. 57).
Assimetrias de poder acabam por assumir um papel central na abordagem das desigualdades, já que elas conjugam variados aspectos, como questões raciais e econômicas que, somadas à ausência de políticas de proteção social, perpetuam posições de extrema desvantagem a alguns sujeitos na sociedade. Tais posições vêm sendo descritas, nas últimas décadas, a partir do conceito de vulnerabilidade social, cujo emprego se encontra em destaque na atualidade. Nesse sentido, os estudos sobre as vulnerabilidades indicam que esses eventos não se restringem às condições de pobreza, dificuldades materiais ou de sobrevivência, podendo, também, estar vinculados a dificuldades relacionais e/ou culturais, já que tais vulnerabilidades interferem na forma de viver das famílias (SEMZEZEM, ALVES, 2013).
A relação direta entre vulnerabilidade e pobreza é uma ideia que tende a ser superada. Segundo Monteiro (2011), pesquisas apontam que uma considerável parcela da população vulnerável não está incluída na situação de pobreza em termos de renda financeira. Ainda segundo a autora, a vulnerabilidade social posiciona-se como um constructo impreciso, possibilitando interpretações variadas e antagonismos, uma vez que: “a vulnerabilidade social se constitui como construção social, enquanto produto das transformações societárias, assumindo diferentes formas, de acordo com os condicionantes históricos” (MONTEIRO, 2011, p.34). Partindo dessa compreensão, Monteiro (2011) aponta como positivo o aprofundamento do estudo do referido conceito, fato que possibilitou o deslocamento do foco exclusivo no indivíduo para também levar em conta aspectos do contexto social, passando a compreender tal condição como provocada por múltiplos fatores. A autora denomina a lógica atrelada ao sujeito, e não a estrutura social, como paliativa, uma vez que “não considera o caráter estrutural da sociedade capitalista, não problematiza a superação das suas contradições, na medida em que não as considera como produto das desigualdades sociais” (MONTEIRO, 2011, p. 37).
Paralelamente ao avanço das discussões sobre vulnerabilidade, o conceito de pobreza também teve seus referenciais repensados. Azevedo e Burlandy (2010), ao investigarem as relações entre as concepções de pobreza presentes nas propostas para seu combate, ressaltam a importância de se analisar, de modo mais minucioso, a adequação entre as formas de intervenção e os determinantes da pobreza. Partem do princípio de que o conceito de pobreza está em construção, devendo estar ancorado em premissas que podem variar em função de valores e princípios sociais, consistindo em um “fenômeno complexo, composto por dimensões subjetivas, econômicas, sociológicas e políticas” (AZEVEDO, BURLANDY, 2010, p. 202). Sendo assim, chamam a atenção para movimentos frequentes no processo de elaboração de políticas sociais públicas, que refletem a ausência de uma análise mais criteriosa dos determinantes da pobreza na proposição de estratégias para o seu combate, de tal forma que grande parte das políticas voltadas para o seu enfrentamento vem se caracterizando como de “compensação pelos prejuízos que a desigualdade causa, justificando, portanto, sua focalização nos pobres” (AZEVEDO, BURLANDY, 2010, p. 206). Ao destacarem que a distribuição de renda não deve se constituir como estratégia única no combate às desigualdades, as autoras buscam em sua argumentação diluir a polarização políticas focais x políticas universais, priorizando critérios, valores e práticas de justiça social, a partir dos quais as estratégias devem ser definidas de acordo com o seu potencial de alterar a situação de pobreza (AZEVEDO, BURLANDY, 2010).
As questões aqui trazidas conduzem ao entendimento de que o debate em torno da falta de acesso a alguns elementos que assegurem o bem-estar e os direitos dos cidadãos tem se intensificado na esfera das políticas sociais. A investigação das desigualdades e das vulnerabilidades revela que a ausência de um conjunto de relações materiais, sociais e culturais acaba por destituir o indivíduo de sua condição de cidadania, culminando com a perda de sua capacidade responsiva e relacional e incapacitando-o para administrar sua vida pessoal e familiar. Em meio a esse cenário, o indivíduo acaba por ficar à mercê de um Estado que, por sua vez, não atende a essas demandas, configurando-se, assim, em um círculo vicioso. Podemos afirmar que essa dinâmica se materializa na interpendência entre desigualdades sociais e educacionais, reiterando a complexidade do tema das desigualdades, haja vista a atual compreensão enquanto um fenômeno multifacetado.
Em relação às desigualdades educacionais, Ribeiro (2011)6 entende-as como desigualdades de oportunidades educacionais. Tais oportunidades se concretizariam a partir das condições de vida das famílias e das características das instituições escolares a que os estudantes têm acesso. Nessa lógica, a trajetória de um aluno encontra-se atrelada tanto aos bens e riquezas familiares7 quanto às alternativas das famílias de escolha da instituição escolar para seus filhos. O autor identifica na melhoria do acesso à escola, concretizada, por exemplo, na expansão do ensino fundamental, como um fator que contribui de forma expressiva para a diminuição das desigualdades educacionais. Sinaliza, contudo, a interrelação entre desigualdades sociais e educacionais ao afirmar que: “para melhorar o acesso e progressão no sistema educacional brasileiro precisamos não apenas melhorar a qualidade das escolas, mas também as condições de vida das famílias brasileiras” (RIBEIRO, 2011, p. 79). Subentende-se, assim, que a garantia de direitos sociais fundamentais proporciona maiores oportunidades educacionais.
As reflexões em torno da privação de direitos sociais e da utilização de estratégias que se ancoram em análises superficiais da condição de desigualdade e vulnerabilidade remetem ao pensamento de Costa (2019), quando destaca o importante papel do Estado e das políticas de proteção social, associadas a políticas de distribuição de renda, na diminuição das desigualdades sociais. Nesse sentido, Sposati (2011) relaciona o aprofundamento das desigualdades sociais no Brasil à criação de um estado de bem-estar tardio e precarizado, o qual não cumpriu o objetivo da efetiva garantia de direitos sociais a todos os cidadãos, tarefa que cabe aos sistemas de proteção social. Sendo assim, a próxima seção adentra o campo das políticas sociais públicas, discorrendo sobre os sistemas de proteção social em sua relação com a dinâmica das desigualdades e das vulnerabilidades.
A discussão parte de Arendt (1998;1999), que entende a política como uma atividade própria da condição humana e do convívio em sociedade, matéria central do campo das políticas sociais públicas. A reflexão sobre o conceito de política na modernidade merece destaque no pensamento da autora, tendo em vista as marcantes experiências dos regimes totalitários, nos quais política e liberdade se encontram dissociados, subtraindo, sob essa perspectiva, o direito fundamental da humanidade, que é o próprio direito de existir. Arendt (1998) preconiza a relação entre política e liberdade como elementos indissociáveis, uma vez que o indivíduo afirma sua identidade e constrói a sociedade em que habita por meio da relação com o outro, da sua atuação no mundo e da liberdade, para que a sua condição de pluralidade humana se manifeste. Pode-se inferir, então, que a política se encontra naturalmente imbricada à condição humana.
Destacam-se, assim, dois elementos centrais no pensamento de Arendt: 1. a política, fundante da condição humana em que a figura do outro é essencial para a afirmação dessa condição; e, 2. a ação, atividade humana fundamental, essencialmente ligada à pluralidade, já que, segundo a autora, somos únicos e plurais, e, nesse movimento, a ação assume um papel central, uma vez que “se empenha em fundar e preservar corpos políticos; cria condição para lembrança, ou seja, para a história” (ARENDT,1999, p. 16-17). Nessa perspectiva, a autora entende a história como um processo desencadeado pelo humano que se faz a partir de rupturas e descontinuidades, localizando aí o sentido da política. Mais especificamente, situa a política na capacidade de agir e de desencadear processos, ancorada na condição de liberdade: a liberdade de agir, de criar condições e de modificar percursos compõem o objetivo primeiro da política, qual seja, “a garantia da vida no sentido mais amplo” (ARENDT, 1998, p.46).
Assim, tendo por base o convívio dos diferentes, a liberdade para agir, a defesa da vida em seu sentido mais amplo e a garantia dos direitos humanos, o conceito de política, em Arendt (1998), aproxima-se do objetivo principal das políticas sociais públicas nos dias atuais, qual seja assegurar os direitos sociais – educação, saúde, habitação e cultura – aos cidadãos. Em uma percepção mais objetiva, as políticas públicas, em especial, as sociais, compreendem a atividade política em si mesma, envolvendo “um conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica dos conflitos quanto a bens públicos” (RUA,1998, p.1), estes últimos entendidos como um conjunto de bens e serviços como saúde, educação e segurança pública (EASTON, 1970 apud RUA, 1998).
Por sua vez, os sistemas de proteção social8 – matéria relevante no campo das políticas sociais públicas e estreitamente relacionada à dinâmica das desigualdades sociais – têm como tarefa primordial a garantia de acesso igualitário a esses bens para todos os cidadãos.
Conforme já mencionado, os sistemas de proteção social no Brasil caracterizam-se, em sua origem, por um desenvolvimento lento, fragmentado e setorial, em contraste com a Europa, onde, após a Segunda Guerra, foi desenvolvida uma proposta unificada de medidas sociais: o estado de bem-estar social. No Brasil, as políticas sociais públicas refletiram o contexto no qual foram elaboradas, caracterizado por forças antidemocráticas de ditaduras militares e pela desconsideração de importantes fatores históricos, como a escravidão negra e a servidão indígena, produzindo grave segregação social, impedindo a conformação de sistemas latino-americanos igualitários (SPOSATI, 2011). A proteção social no Brasil, com vistas a amparar o processo de industrialização e o trabalho formal, estruturou-se predominantemente em seu aspecto contributivo9, sendo que, ao privilegiar o acesso da população branca em detrimento das populações afrodescendentes, indígenas e rurais, resultou no crescimento do empobrecimento das classes populares e, por conseguinte, das desigualdades sociais, instalando a chamada dívida social10 (SPOSATI, 2011).
Foi somente com a CF de 1988 que a seguridade social se ampliou, passando a englobar políticas de seguro social, assistência social, saúde e seguro-desemprego, aproximando-se, assim, dos objetivos da “garantia universal da prestação de benefícios e serviços de proteção social pelo Estado” (DELGADO; JACOUD; NOGUEIRA, 2008, p.21). O processo deflagrado pela CF de 1988, regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), redefiniu a assistência social brasileira direcionando-a “para seu caráter de política de Proteção Social articulada à outras políticas do campo social, voltadas à garantia de direitos e de condições dignas de vida” (BRASIL, 2005, p.31). Passou, então, a se constituir como objetivo da proteção social brasileira “garantir as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e autonomia); de acolhida; de convívio ou vivência familiar” (BRASIL, 2005, p.31).
Di Giovanni (1998 apud BRASIL, 2005), ao abordar os objetivos da proteção social, apresenta a definição de segurança de sobrevivência como um aspecto que ultrapassa a materialidade da existência humana, envolvendo a dimensão da cultura. Tal pensamento permite estabelecer relações entre a proteção social e o campo educacional, quando ressalta a importância do conhecimento como um bem cultural que possibilita a sobrevivência e a integração na vida social. Sposati (2013, p. 653), por seu turno, pontua que a proteção social, enquanto política pública, não se vincula “à provisão de condições de reprodução social para restauração da força viva de trabalho humano, mas sim deve buscar atender às demandas da vida humana em sociedade, exposta a vitimizações e fragilidades”. Além disso, a autora destaca que “o trato da proteção social em sua forma de previdência social é, no caso brasileiro, um mosaico de respostas desiguais” (SPOSATI, 2013, p. 653).
Diante das discussões apresentadas, a educação – percebida como um direito social e, como tal, situada no âmbito das políticas sociais públicas – cumpre um papel decisivo na concretização da cidadania plena, ao formar e instrumentalizar o indivíduo para o convívio em sociedade. Contudo, a trajetória das políticas educacionais no Brasil reflete o mesmo processo por meio do qual as questões sociais foram conduzidas, podendo ser caracterizada por um desenvolvimento lento, repleto de embates, avanços e retrocessos, conformando o que vem sendo denominado de dívida educacional (OLIVEIRA, 2007, 2007a).
Foi somente nos anos de 1930, ocasião em que a educação passou a ser compreendida como um instrumento necessário para o desenvolvimento e modernização do país, que políticos e intelectuais se voltaram para as questões educacionais, posicionando-as como resposta para as questões sociais, econômicas e políticas. As análises do campo educacional, no período que se estende da década de 1930 até os anos 1990, indicam que os embates entre diferentes concepções políticas e ideológicas foram alternados por fases de forte repressão política em que as divergências eram dissolvidas ou adormecidas11 (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2000). Assim, a década de 1990 iniciou-se em meio a muitos desafios e poucas propostas concretizadas (MOTA JÚNIOR; MAUÉS, 2014), estando marcada ainda por duas características no campo educacional: a educação como privilégio de uma minoria (AZEVEDO, BURLANDY, 2010; RIBEIRO, 2011; TEIXEIRA, 2007) e a perspectiva dual da escola brasileira, diferenciando a escola da elite da escola para as classes populares (LIBÂNEO, 2012). Esse contexto, ressalta-se, era marcado pela preponderância das ideias liberais, as quais buscavam, entre outros aspectos, a adequação das propostas educacionais aos interesses do capital internacional, contribuindo para o aprofundamento das desigualdades sociais e da pobreza, uma vez que a crescente submissão do social ao mercado se associa à privatização de serviços essenciais, como saúde, educação e previdência (SPOSATI, 2011). Os eventos citados, entendidos como sequelas das ditaduras militares e de uma concepção liberal de Estado mínimo, são nomeados pela autora como heranças do séc. XX. A desresponsabilização política e financeira do Estado em relação ao campo educacional, inerente às práticas liberais, resultou em consideráveis índices de analfabetismo, tendo contribuído para a não universalização da educação básica pública, em suas diferentes etapas de ensino (MOTA JÚNIOR; MAUÉS, 2014). Em meio a esse contexto, é possível perceber que as dinâmicas do campo educacional refletem as questões sociais e, ainda, que desigualdades educacionais e sociais são condições que se interinfluenciam.
Como citado, a década de 1990, marcada pelo aprofundamento da dívida social, trouxe mudanças significativas no ordenamento normativo voltado para as políticas sociais, as quais, por sua vez, reverberaram no campo educacional. Uma delas refere-se ao tema da proteção que, introduzido pela Constituição Federal (CF) de 1988, passou a estabelecer a proteção à infância e à juventude como competência da União, dos Estados e do Distrito Federal (BRASIL, 2015, Art. 24, Inciso XV). Menciona-se também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990), que, em atenção ao art. 227 da Constituição de 1988, institui a “Doutrina da Proteção Integral”, por meio da qual crianças e adolescentes passam a ser percebidos como pessoas em desenvolvimento, sujeitos de direitos e destinatários de proteção integral.
Cita-se também o ordenamento normativo voltado para o campo educacional, em especial aqueles que pautaram políticas e programas de ampliação da jornada escolar, cujos objetivos focavam a diminuição das desigualdades de oportunidades educacionais, bem como a priorização do atendimento a alunos em situação de vulnerabilidade social. Nesse âmbito, é importante trazer, novamente, o Programa Mais Educação, que teve como propósito a indução, entre os entes subnacionais, de políticas de educação em tempo integral na perspectiva da educação integral (BRASIL, 2013; GUILARDUCCI, 2015). O PME (re)acendeu, no cenário nacional, as discussões em torno do potencial do tempo integral para o avanço da qualidade em educação, especialmente aquela direcionada às camadas mais vulneráveis da população, contribuindo, por conseguinte, para o debate que relaciona a ampliação da jornada escolar com a proteção social (SILVA, 2018).
Ainda nesse âmbito, menciona-se, novamente, os dois últimos Planos Nacionais de Educação. O tema da proteção social estava presente no PNE 2001-2010, cabendo destacar, inclusive, que constava em seus objetivos e prioridades a “redução das desigualdades sociais e regionais, no tocante ao acesso e à permanência, com sucesso na educação pública”, bem como a “melhoria da qualidade de ensino em todos os níveis” da educação (BRASIL, 2001, p.7). À vista disso, o plano buscou privilegiar os socialmente mais vulneráveis, recomendando “uma educação de qualidade prioritariamente para crianças mais sujeitas à exclusão ou vítimas dela” (BRASIL, 2001, p. 13).
Por sua vez, entre os principais objetivos do PNE 2014-2024 estão a “universalização do atendimento escolar” e a “superação das desigualdades educacionais” (BRASIL, 2014, Art. 2°, Incisos II e III), referindo-se à intenção da proteção social e à redução das desigualdades sociais em, pelo menos, duas de suas metas. A meta 6, ao estabelecer o aumento da oferta de educação em tempo integral, privilegia a construção de escolas em “comunidades pobres ou com crianças em situação de vulnerabilidade social” (BRASIL, 2014, Meta 6, Estratégia 6.2). Já a meta 8 prevê, no período de vigência do plano, a elevação da escolaridade média da população de 18 a 29 anos para, no mínimo, 12 anos de estudo, priorizando, entre outros, a parcela 25% mais pobre da população. Outro objetivo dessa meta é “igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE” (BRASIL, 2014, Meta 8), indo de encontro às desigualdades, já citadas, entre jovens de classes média e alta e jovens de classes populares, quanto ao acesso e conclusão da etapa final da educação básica, isto é, o ensino médio (BRASIL, 2020).
Em face dessa discussão, que se fortalece no âmbito do ordenamento normativo para o campo educacional, e das desigualdades sociais, assentadas no contexto nacional, a relação entre educação e proteção vem sendo abordada na literatura acadêmica que discute o papel e a função da escola no contexto atual, em especial quando a escola é posicionada como instituição de cuidados e proteção, em detrimento de seu objetivo de formação (ALGEBAILE, 2009; LIBÂNEO, 2012).
Ainda em torno da função protetiva da escola, Krenzinger e Soares (2020, p.22) enumeram alguns fatores que favorecem a condição de vulnerabilidade social vivenciada por grande parte das crianças e jovens brasileiros, mencionando, entre eles, a evasão escolar, que acaba por acentuar as desigualdades sociais.
A ausência de vínculo com a escola tende a ser apenas um elemento entre outros, embora, chave na constelação de fenômenos desafiadores que vulnerabilizam crianças e adolescentes, expondo-os aos circuitos da violência, às dinâmicas estigmatizantes e a processos institucionais de criminalização, que reproduzem e aprofundam o racismo estrutural e as desigualdades.
Os autores, contudo, referendando os pensamentos de Costa (2015), Fraser (2001) e Sposati (2011), consideram que a escola consiste em um elemento estratégico na dinâmica das desigualdades, destacando o papel das políticas sociais públicas, em que a proteção social irá se concretizar na conjugação de ações intersetoriais que envolvem os campos educacional, social, econômico e urbano, entre outros (KRENZIGER; SOARES, 2020).
Sendo assim, tendo em vista o debate que relaciona desigualdades, educação e o conceito de proteção social em sua perspectiva mais ampla, a percepção da escola como forma de proteção não pode deixar de indagar sobre as funções que vem assumindo na sociedade. Em relação à escolarização das classes média e alta esta função já está dada, a escola cumpre seu papel. Quanto a esse tema, Cavaliere (2007, p. 1022) aponta para a efetividade da associação entre a escola e a família no processo de escolarização dessas classes, em que a escola assume decisivo papel socializador em função da “homogeneidade ideológica e clareza de objetivos entre família, aluno e escola”. Ribeiro (2011) corrobora com o pensamento da autora quanto ao papel da família na promoção de oportunidades educacionais ao aluno, ao referir não apenas a um capital monetário, mas a um conjunto de valores e conhecimentos que são decisivos para formação e inserção social efetiva do estudante. No entanto, no que se refere às classes populares, tendo em vista a trajetória da educação pública brasileira e a fragilidade da garantia de direitos sociais fundamentais para esta população, conforma-se um binômio onde a promoção de oportunidades educacionais e a superação da dinâmica, composta pelas desigualdades sociais e desigualdades educacionais, constituem-se tarefa complexa.
Entendendo os sistemas de proteção social como um conceito que abarca não apenas os fatores materiais inerentes à sobrevivência humana em sociedade, mas que engloba, também, aspectos da cultura e da educação, cabe discutir o papel da escola quando ela se posiciona como instrumento de proteção social. A escola, como instituição que provê assistência e prioriza a integridade física do aluno por meio, por exemplo, da ampliação da sua jornada enquanto estratégia voltada para a garantia de alimentação, de cuidados básicos e de proteção contra a violência, atende apenas parcialmente ao objetivo da proteção social, uma vez que o acesso à educação de qualidade e à cultura se constitui em elemento essencial para a formação do indivíduo e sua inserção social. Nesse sentido, Teixeira (1997), ao preconizar a escola como expressão de uma civilização, ressaltou sua importante função no preparo do indivíduo para compreender e ocupar um lugar na sociedade. Destacou a necessidade de uma escola que ofereça aos alunos de classes populares uma formação mais completa, que ultrapasse o ensino da leitura, escrita e contas, viabilizando seu pleno desenvolvimento e o acesso a oportunidades que, até então, se restringem aos alunos de classes mais favorecidas. À vista disso, a função da escola, apregoada pelo autor, traz uma reflexão valorosa quando se relaciona educação e proteção, qual seja a de que formar é proteger.
Quando se tematiza a escola como forma de proteção, torna-se imprescindível argumentar sobre sua função para a superação da posição de extrema desvantagem dos alunos em situação de vulnerabilidade na sociedade. Tais questionamentos são levantados na proporção das demandas que se delineiam quanto ao papel da educação no combate às desigualdades sociais, tendo em vista os aspectos multidimensionais que compõem esses eventos.
A discussão aqui apresentada aponta que a relação entre educação e proteção tem se fortalecido no ordenamento normativo e nas discussões da academia. Junto a isso, é possível afirmar que a abordagem das desigualdades e vulnerabilidades, em sua perspectiva multidimensional, preconiza o papel formativo da educação formal que possibilita a inserção do indivíduo em um sistema de valores e práticas culturais, os quais, na ausência da escola, estariam excluídos do universo de grande parte das crianças e jovens brasileiros. A educação escolar possibilita aos alunos das classes populares a oportunidade de expressarem-se e posicionarem-se criticamente na sociedade, exercendo sua participação social, bem como reivindicando seus direitos. Por conseguinte, o entendimento da escola como instrumento de proteção, em uma perspectiva mais ampla em que são priorizados os aspectos formativos e o acesso à cultura, vai ao encontro do desafio da qualidade do ensino (OLIVEIRA, 2007a), que, juntamente com a perspectiva da universalização da educação básica, compõe peça fundamental para o enfrentamento das desigualdades sociais no Brasil.
À guisa de conclusão, pontuam-se aqui duas outras reflexões. A primeira refere-se à premência de que a abordagem da proteção no campo educacional caminhe para além do papel da escola enquanto instituição que atende às necessidades materiais e de sobrevivência dos alunos. A segunda consiste no entendimento de que a concepção sobre a violência, a pobreza, as vulnerabilidades e desigualdades como fenômenos complexos e multifacetados, já consolidada na discussão das políticas sociais públicas, precisa adentrar com mais força o campo educacional e, nesse movimento, envolver os profissionais que atuam na educação pública. O aprofundamento desse debate no campo da educação pode contribuir de forma decisiva para que a escola assuma a posição que lhe cabe no espectro das dimensões que compõem as desigualdades e vulnerabilidades. Delineia-se, assim, uma visão que se desloca de uma perspectiva compensatória ou mais focalizada (AZEVEDO, BURLANDY, 2010) das políticas e programas educacionais que visam minimizar as desigualdades sociais, para uma outra perspectiva em que a valorização da formação, do conhecimento e da educação assume protagonismo e, associando-se aos demais aspectos que compõem o conceito de proteção social, resultará mais efetiva no combate às desigualdades sociais e educacionais.