Resumo: Este trabalho examina a política pública de assistência farmacológica, analisando os fundamentos das decisões judiciais a fim de verificar se existem elementos que indicam atenção aos critérios definidos pelo gestor público, e sua respectiva consequência na execução da saúde no âmbito coletivo. A análise exploratória sequencial circunscreve-se no Rio Grande do Sul, observando dados de 2016. Os resultados apontam para a necessidade de maior integração entre magistrados, profissionais da saúde e gestores do SUS para estipularem critérios que atendam simultaneamente os princípios da integralidade e universalidade da política pública e sua viabilidade de execução.
Palavras-chave:Direito fundamental social à saúdeDireito fundamental social à saúde,Política Pública de Assistência FarmacêuticaPolítica Pública de Assistência Farmacêutica,Critérios de fornecimentoCritérios de fornecimento.
Abstract: This work examines the pharmacological assistance public policy, analyzing the judicial decisions foundations to verify if there are elements that indicate attention to the criteria defined by the public manager, and its respective consequences in the execution of health in the collective sphere. The sequential exploratory analysis is limited to Rio Grande do Sul, observing data from 2016. The results point to the need for greater integration between magistrates, health professionals and SUS managers to stipulate criteria that simultaneously meet the principles of comprehensiveness and universality of public policy and its feasibility of implementation.
Keywords: Fundamental Social Right to Health, Public Policy of Pharmaceutical Assistance, Criteria supply.
A política de assistência farmacológica e os critérios do fornecimento judicial de medicamentos no Rio Grande do Sul
The pharmacological assistance policy and the criteria for the judicial supply of medicines in Rio Grande do Sul
Recepción: 01 Julio 2021
Aprobación: 01 Septiembre 2021
No presente artigo são observados os critérios estabelecidos para a concessão de medicamentos por meio da política pública de assistência farmacológica do Sistema Único de Saúde (SUS), em contraste aos argumentos utilizados pelos magistrados, nas demandas judiciais, para decidir sobre a concessão de medicamentos. O cenário é o Rio Grande do Sul (RS), um dos Estados com maior gasto relacionado ao fornecimento de medicamentos, principalmente por conta das dispensações garantidas individualmente por concessões judiciais.
Para tanto, realizou-se pesquisa dentre demandas por medicamentos iniciadas em 2016 no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), a fim de verificar se existem elementos, nas decisões judiciais, que indicam atenção aos critérios definidos na política pública, e sua respectiva consequência na execução da saúde no âmbito coletivo. A estratégia metodológica empreendida é a análise exploratória sequencial, combinando as abordagens quantitativa e qualitativa a fim de, primeiramente, estabelecer um panorama do fenômeno em estudo para, a seguir, examiná-lo segundo o objetivo proposto. O período escolhido para análise implica no maior gasto com prestações judiciais de deferimentos por medicamentos em relação ao valor dispendido administrativamente.
A análise em tela ganha relevo em face das dificuldades econômicas vivenciadas no período recente pelo Estado, discutindo-se seu papel como fornecedor de benefícios assistenciais por conta dos novos contextos desenhados, principalmente, com o alto índice de comprometimento orçamentário que as ações judiciais representam, alocando recursos que já haviam sido designados pela Administração Pública. Estima-se, dessa forma, contribuir para o debate, que requer especial atenção de gestores públicos, dos operadores do Direito e daqueles que se concentram na defesa dos direitos sociais. Em tempos em que o ataque aos direitos sociais se intensifica, debruçar-se acerca das políticas públicas de assistência à saúde assume uma relevância singular.
No texto da Constituição Federal (CF/88), a atenção dada à regulação da saúde pública é marcada pela menção à integralidade da assistência e ao acesso pleno dos cidadãos e cidadãs ao sistema de saúde. A saúde, direito fundamental de alcance universal, necessita do comprometimento do Estado e de toda a sociedade, tanto em âmbito coletivo, quanto no cuidado individual de cada um (SARLET, 2004). Notável, portanto, a prestação positiva exigida do Estado a fim de que as garantias constitucionais sejam concretizadas (LEDUR, 2009). O texto constitucional dispõe, em seus artigos 196 a 200, sobre a forma de efetivação do direito à saúde, atribuindo-se ao Estado a responsabilidade de garanti-lo via políticas públicas, por meio de um Sistema Único. Assim, sua regulamentação, fiscalização e controle deverão ser realizados pelo Poder Público, integrado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (BRANCO, 2013).
A Lei Orgânica da Saúde, em harmonia com a CF/88, também caracteriza a saúde como direito fundamental do ser humano, sendo dever do Estado a formulação e execução de medidas que a assegurem, não excluindo o direito do conjunto social (BUCCI, 1997). Nessa senda, as ações e serviços prestados devem ser desenvolvidas com base nas diretrizes previstas de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade, e nos princípios elencados na Lei Orgânica da Saúde, dentre os quais destacam-se a universalidade e a integralidade.
A universalidade diz respeito ao acesso à saúde de todos os cidadãos, garante acesso ao Sistema Único, exigindo planejamento segundo as peculiaridades de cada região (AMARAL, 2001). O princípio da integralidade engloba os serviços assistenciais de prevenção, promoção e recuperação dos cidadãos que recorrem ao SUS, almejando satisfazer as necessidades dos indivíduos e de toda sociedade. Não significa, contudo, a dispensação de todos os serviços e tratamentos relacionados à saúde disponíveis no mercado, sendo precisamente nesse sentido que a assistência farmacêutica deve ter parâmetro nos protocolos públicos. Necessários, assim, critérios tecnicamente fundamentados, comprovando a eficácia de determinada ação ou tratamento, restringindo-se ao disposto nos limites orçamentários (CONASS, 2015; BARROSO, 2014; BARATA, 2009).
Em 2011, com a Lei nº 12.401 os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) foram definidos disciplinando a assistência terapêutica integral e a incorporação de novas tecnologias, buscando parametrizar a noção de integralidade. Também em 2011, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) foi criada para assessorar o Ministério da Saúde (MS) na incorporação, exclusão ou alteração de novas tecnologias (BRASIL, 2015). Os fármacos dispensados pela Administração Pública estão elencados na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), elaborada pelo MS seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em 2016, no RS, a assistência farmacêutica, pela via administrativa, atendeu aproximadamente 230 mil pessoas, com gastos de oitenta e dois milhões, trezentos e cinquenta e nove mil, novecentos e noventa reais e vinte e três centavos (R$ 82.359.990,23) na compra de medicamentos. Na via judicial, o Rio Grande do Sul dispendeu, em 2016, duzentos e dez milhões, trezentos e oitenta e um mil, quatrocentos e oitenta e quatro reais e sessenta e cinco centavos (R$ 210.381.484,65) para o atendimento de, aproximadamente, 61 mil pacientes. Quando são colocadas em comparação as proporções entre valores gastos por pessoas atendidas nas demandas por medicamentos pelas vias administrativa e judicial, a diferença chama a atenção. Em 2016, cada pessoa contemplada na via judicial custou ao Estado três mil, quatrocentos e quarenta e oito reais e oitenta e sete centavos (R$3.448,87), ao passo que, na via administrativa, o custo individual foi de trezentos e cinquenta e oito reais e oito centavos (R$ 358,08). Como se verifica, o valor dispendido pela via judicial é 9,6 vezes maior do que o dispendido pela via administrativa (GABARDO, 2017; GTPM&A/SES/RS, 2020).
As demandas sobre o direito à saúde crescem profusamente no âmbito do Poder Judiciário. Conforme demostra o Relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Brasil, em 2016, foram iniciadas 110.816 novas demandas judiciais por fornecimento de medicamentos. Dessas, 9.974 correspondem aos processos iniciados no TRF4. Até junho de 2014 havia 392.921 processos tramitando com demandas relacionadas à saúde no território nacional. O Estado do Rio Grande do Sul figurava com a maior concentração de demandas, tanto no âmbito da Justiça Federal quanto da Justiça Comum Estadual. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) apresentava o maior número de demandas, com 35.287, e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também liderava o ranking entre os Tribunais Estaduais, com 113.953 processos (CNJ, 2014). Os valores gastos pela esfera federal do SUS para suprir as demandas judiciais também têm crescido. Esses valores, no âmbito do MS, são custeados de acordo com a disponibilidade orçamentária, já prevista para alocação nas ações e programas da assistência farmacológica. Dessa forma,
no que se refere à compra direta de medicamentos para suprir as demandas judiciais, no ano de 2015 os recursos alocados aumentaram cerca de 35% em relação ao ano de 2014, sendo que em termos reais, o gasto com compras diretas de medicamentos em 2015 foi de R$ 1,1 bilhão. Como os gastos com a judicialização de medicamentos não constam nem nos planos anuais de saúde nem nas Leis Orçamentárias Anuais (LOA), seu pagamento deve ser efetuado retirando-se recursos dos componentes existentes, o que prejudica o planejamento orçamentário para saúde e, consequentemente, afeta outras áreas do SUS (SOUZA et al., 2018, p. 3).
Vieira (2008) alerta para as demandas judiciais que requerem a concessão de medicamentos não fornecidos pelo SUS, mas que possuem alternativas de tratamento eficazes. Segundo ela, a interpretação jurisprudencial indica que (p. 366): “a integralidade para os tribunais está mais associada à noção de consumo, haja vista o deferimento de demandas sem ressalvas sobre a existência de política pública para tratar as doenças”. Assim, haveria apenas preocupação com as ações curativas, em detrimento da noção complexa de integralidade do SUS, que comporta também a promoção e prevenção da saúde, necessitando atender a vários níveis assistenciais (DALLARI, 2009; DRESCH, 2016; PIVETTA, 2014).
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2016, determinou a suspensão em todo território nacional dos processos que requerem a concessão de medicamentos de caráter excepcionais não incorporados pela Portaria nº 2.982, de 26 de novembro de 2009. Contudo, apesar da suspensão desses processos, não há impedimento para os magistrados concederem as tutelas de urgência, desde que a parte interessada convença o juiz da probabilidade do seu direito e do perigo de dano decorrente ou de risco associado ao não fornecimento do fármaco.
No Supremo Tribunal Federal (STF), também há discussão sobre o fornecimento de remédios de alto custo não disponíveis na lista do SUS e de medicamentos não registrados na ANVISA. Sobre os fármacos de alto custo (RE 566471), o Plenário desobrigou o Estado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, do SUS. As situações excepcionais ainda serão definidas na formulação da tese de repercussão geral, mas os votos dos ministros apresentam alguns possíveis critérios a serem fixados para a concessão, conforme sumariza-se, da decisão em julgamento eletrônico dos dias 21 a 28 de agosto de 2020:
(...) comprovação da imprescindibilidade – adequação e necessidade –, da impossibilidade de substituição do fármaco e da incapacidade financeira do enfermo e dos membros da família solidária, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil"; [...] (a) comprovação de hipossuficiência financeira do requerente para o custeio; (b) existência de laudo médico comprovando a necessidade do medicamento, elaborado pelo perito de confiança do magistrado e fundamentado na medicina baseada em evidências; (c) certificação, pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), tanto da inexistência de indeferimento da incorporação do medicamento pleiteado, quanto da inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; (d) atestado emitido pelo CONITEC, que afirme a eficácia segurança e efetividade do medicamento para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde do requerente, no prazo máximo de 180 dias. [...]; (i) a incapacidade financeira de arcar com o custo correspondente; (ii) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; (iii) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; (iv) a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências; e (v) a propositura da demanda necessariamente em face da União, que é a entidade estatal competente para a incorporação de novos medicamentos ao sistema. Ademais, deve-se observar um parâmetro procedimental: a realização de diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde tanto para aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento, quanto, no caso de deferimento judicial do fármaco, para determinar que os órgãos competentes avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS (BRASIL, 2020, online).
Quanto aos medicamentos sem registro na ANVISA, o STF (RE 657718) estipulou:
1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União (BRASIL, 2019, online)
Ainda na Suprema Corte (Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175), o Ministro Gilmar Mendes buscou parâmetros para o fornecimento de medicamentos, privilegiando as políticas públicas implementadas sem desconsiderar suas falhas ou omissões em situações específicas. Com isso, concluiu que sempre que não for comprovada ineficácia do tratamento concedido pelo SUS, esse deve ser privilegiado, pois contempla estudos técnicos e econômicos antes de ser incorporado aos PCDTs, fundamentando suas escolhas na Medicina Baseada em Evidências (MBE). Tais parâmetros foram ilustrados na Figura 1.
Figura 1. Critérios indicados no julgamento do Agravo Regimental na SAT nº 175, conforme o Relator.
Fonte: Elaboração própria, a partir de BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na suspensão de Tutela Antecipada n. 175.
Isso não afasta a viabilidade de prestações não fornecidas pela política pública, caso alguém comprove, em situação específica, a falta de eficácia dos tratamentos disponibilizados pelo SUS, desde que não sejam experimentais, ou seja, realizados em laboratórios ou hospitais sem ainda possuir a devida comprovação científica da sua eficácia. Caso não haja Protocolo Clínico para determinar doença, o Ministro reconheceu a possibilidade de pleitear perante o Judiciário a prestação de saúde adequada, tanto em ações individuais, como coletivas, desde que haja produção de provas na instrução processual, o que pode obstaculizar o deferimento de tutelas de urgência.
Ao analisar o teor do voto do Ministro Gilmar Mendes, percebe-se uma ampliação do princípio da integralidade, conforme disposto no contexto do SUS. Ainda que afirme a necessidade de privilegiar a política pública de saúde, entendeu pela possibilidade de conceder medicamentos não incorporados aos PCDTs do SUS, assim como medicamentos que não possuam o registro na ANVISA. Tornou-se imprescindível estruturar uma definição da assistência terapêutica integral (art. 6º, alínea d, da Lei 8080/90), assegurando a toda sociedade serviços de saúde igualitários, de acesso universal, dentro dos limites orçamentais previstos e com a devida segurança técnica (CAÚLA, 2012).
Em 25 de abril de 2018 a Primeira Seção do STJ afetou o Recurso Especial n.º 1.657.156, da relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, para julgamento pelo sistema dos recursos repetitivos, e estabeleceu requisitos objetivos para a determinação do fornecimento de remédios que estejam fora da lista do SUS. Em síntese, foram determinados critérios balizadores, como apresenta a Figura 2:
Figura 2. Requisitos fixados para o fornecimento de remédios fora da lista do SUS, em julgamento de Recursos Repetitivo.
Fonte: Elaboração própria, a partir de BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1657156/RJ.
Percebe-se, dada a necessidade de comunicação de cada decisão após trâmite em julgado, ao MS e à CONITEC, preocupação dos julgadores em conciliar as referências dos fornecimentos de fármacos em demandas judicializadas às da formulação da política pública. Todavia, cabe frisar a necessidade de se observar a fixação de requisitos pelo STJ no contexto mais amplo de discussão da matéria. Os esforços para parametrização das decisões na via judicial permitem perceber a necessidade de balizadores técnicos, o que também se faz necessário para que a política pública alcance efetividade.
A partir do quadro esboçado, foi elaborada a análise dos julgados observados no presente estudo, realizando-se pesquisa jurisprudencial no sítio eletrônico do TRF4. A pesquisa restringiu-se aos processos de jurisdição do Rio Grande do Sul e sobre as demandas de concessão de medicamentos, de janeiro a dezembro de 2016, e decisões provenientes da 3ª e 4ª Turmas de Direito Administrativo do TRF4, pela classe processual de Apelação Cível, possuindo no polo passivo, dentre outros entes públicos, o Estado do Rio Grande do Sul. A base de dados da pesquisa foi composta de 46 processos com pedidos de concessão de medicamentos em favor dos entes públicos.
O Gráfico 1 aponta os fundamentos empregados pela parte autora, ao embasar seus pedidos.
Gráfico 1: Argumentação do pedido do demandante. Sessão Judiciária Federal, RS, 2016, (%).
Fonte: Elaboração própria, a partir de pesquisa de jurisprudência pelo texto “medicamento” e filtro por janeiro a dezembro de 2016, 3ª e 4ª Turmas, Apelação Cível, selecionando-se os processos provenientes do RS, com os três entes públicos no polo passivo. Total de processos analisados (N): 46. Total de argumentos computados em N (n): 281.
Os dois argumentos utilizados com maior prevalência pela parte autora são a necessidade do medicamento e o direito constitucional à saúde, com base nos Arts. 6º e 196 da CF/88. Em sequência, aparecem os riscos de morte ou agravamento da doença, bem como a insuficiência financeira da parte autora. Apenas em 13,2% dos casos foi apresentado o indeferimento administrativo por conta de o medicamento não fazer parte da lista SUS, ou não ser fornecido para a patologia informada. A responsabilidade solidária dos entes públicos para a dispensação apareceu em 10,7% do total de argumentos analisados. O fato de não haver, na lista do SUS, medicamento substitutivo ao requerido foi utilizado em 6,7% dos casos. O argumento menos utilizado, com 6% nessa classificação, afirma o esgotamento das alternativas terapêuticas disponíveis no SUS.
Nas contestações, foram analisados os argumentos de defesa dos três entes públicos demandados. No Gráfico 2, pode-se observá-los e a sua prevalência:
Gráfico 2: Argumentação em contestação da Administração Pública. Sessão Judiciária Federal, RS, 2016, (%).
Fonte: Elaboração própria, a partir de pesquisa de jurisprudência pelo texto “medicamento” e filtro por janeiro a dezembro de 2016, 3ª e 4ª Turmas, Apelação Cível, selecionando-se os processos provenientes do RS, com os três entes públicos no polo passivo. Total de processos analisados (N): 46. Total de argumentos computados em N (n): 283.
O argumento mais utilizado pelos réus foi a ilegitimidade passiva, sob a alegação de problemas da solidariedade irrestrita no cumprimento de decisões judiciais, requerendo o cumprimento da decisão por um ente e depois ressarcimento administrativo. Esse argumento busca descaracterizar a responsabilidade solidária, ou seja, compartilhada, dos três entes federados (Município, Estado e União) pela prestação de saúde ao cidadão. Ao utilizarem tal argumento, alegam ainda problemas no cumprimento de decisões judiciais, requerendo o cumprimento da decisão por um ente e depois ressarcimento administrativo, justificando com base na ofensa ao art. 7º, inciso XIII, da Lei nº 8.080/90 a existência de legislação infraconstitucional (leis, decretos, resoluções, portarias e outros regulamentos que dispõem especificamente sobre o fornecimento de fármacos); regulando de forma específica determinadas formas de assistência, como aparece em 13,4% do total das argumentações.
O argumento que consiste em opções terapêuticas ainda não utilizadas pela parte autora, disponibilizadas pelo SUS para a doença em questão, ou a falta de demonstração da superioridade técnica do medicamento pleiteado, aparece como 3º argumento preponderante, com 11%. Este argumento encontra base na Medicina Baseada em Evidências, assim como no julgamento do STF, na STA nº 175, no qual ficou definido como um dos parâmetros a necessidade de privilegiar a política pública de saúde, sendo necessária uma ampla dilação probatória para comprovar a ineficácia dos tratamentos dispensados gratuitamente.
A alegação de restrições orçamentárias consta em 10,2% dos argumentos utilizados. Os entes públicos ponderam de interesses em razão dos medicamentos de alto custo concedidos judicialmente, tendo em vista os recursos financeiros finitos e escassos, a fim de evitar um colapso no funcionamento das políticas públicas que procuram garantir o acesso à saúde da coletividade. Com incidência de 8,1%, tem-se o desequilíbrio causado por pedidos individuais ao funcionamento da Política Pública de Saúde, alegando a impossibilidade de determinação de fornecimento de fármaco para uma pessoa específica. A Administração Pública alega que são realizados planejamentos em relação às maiores necessidades médicas para ser possível o atendimento a toda comunidade, sem a criação de privilégios para alguns, obedecendo as previsões orçamentárias disponíveis (MEIRELLES, 2016; MENDES, 2013). Reforça que as políticas públicas são previamente organizadas para buscar proporcionar uma melhor qualidade de vida a toda sociedade, pensando sempre na íntegra da coletividade. A Administração Pública alega, em 7,8% das argumentações, que a STA nº. 175 permite extrair as premissas que deverão nortear a apreciação das demandas em que se postula a dispensação de medicamento pelo Sistema Único de Saúde, ao menos até nova manifestação do STF.
O argumento de descabimento da interferência do Poder Judiciário nas ações de saúde coletiva promovidas em face da Administração Pública incide em 7,4% das alegações. De acordo com os entes públicos, quando o Poder Judiciário invoca para si a condição de administrador, passando a conceder medicamentos de forma individualizada, sem a devida observância das previsões orçamentárias disponíveis, acaba por desequilibrar as políticas públicas previamente organizadas, acarretando um prejuízo a toda sociedade para beneficiar uma minoria que consegue obter uma tutela judicial favorável (POTYARA, 2002; ELIAS, 2004).
Com 7% de incidência, a Administração Pública alega que, ao conceder medicamentos de alto custo fora da lista do SUS, o Poder Judiciário não respeitaria as políticas públicas previamente estabelecidas para conceder determinado medicamento a uma pessoa específica, concedendo certo privilégio em detrimento dos demais cidadãos (CARLINI, 2012). Isso resultaria, no aspecto da dispensação de medicamentos, quando um agente confere vantagem a um conhecido, passando-o na frente da fila de espera por um fármaco específico, por exemplo.
Em 6% dos casos é alegado que SUS possui protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas específicas para diversas doenças, sendo necessário um rigoroso estudo para que determinado medicamento seja incluído na lista, sem o qual não seria coerente a obrigação de dispensação (CONRAD, 2016).
O argumento da exigibilidade de perícia prévia esteve presente em 4,6% das alegações de defesa, justificado pela necessidade de verificar a imprescindibilidade do medicamento pleiteado e a possibilidade de substituição por outro fármaco disponível no SUS. A ofensa à isonomia aparece em 3,9% dos argumentos, justificada pela Administração Pública no que tange a uma necessária ponderação de interesses, pois alega haver uma colisão entre o direito individual à saúde concedido judicialmente e o direito da coletividade à saúde, concedido por meio de políticas públicas (POTYARA, 2002; ELIAS, 2004; MEIRELLES, 2016).
O argumento de violação da separação dos poderes é utilizado em 3,2% das alegações, sob a justificativa de que gerenciar e administrar os recursos públicos destinados à saúde é competência exclusiva do Poder Executivo. Dessa forma, não se consideraria coerente que o Poder Judiciário administre recursos financeiros destinados a toda sociedade, para satisfazer a pretensão de poucos que conseguiram acesso ao Judiciário (MENDES; BRANCO, 2012). O argumento de que o Poder Executivo pode estabelecer prioridades, oportunizando priorizações em relações a determinadas demandas que considerar com maior carência social aparece em 1,4% dos casos.
O fato de que o medicamento postulado não possui registro na ANVISA foi utilizado em 0,7% das argumentações, alegando que a ausência de registro constituiria fator impeditivo para o fornecimento do fármaco pela Administração Pública. Tal impedimento foi sustentado com base na Lei 6.360/76, segundo a qual os medicamentos, as drogas e os insumos farmacêuticos não podem ser expostos à venda ou entregues a consumo, sem que antes sejam registrados no MS, sob pena de se configurar infração de natureza sanitária. Também foi arguido que importar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribuir ou entregar a consumo o produto sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente, configura crime hediondo. A Administração Pública justifica estar vinculada ao Princípio da Legalidade, só podendo atuar ante as permissões legais, estando proibida, por conseguinte, a fornecer medicamentos sem o respectivo registro na ANVISA.
Para embasar as sentenças, os magistrados utilizaram as seguintes fundamentações:
Gráfico 3: Argumentação do Magistrado em Sentença. Sessão Judiciária Federal, RS, 2016, (%).
Fonte: Elaboração própria, a partir de pesquisa de jurisprudência pelo texto “medicamento” e filtro por janeiro a dezembro de 2016, 3ª e 4ª Turmas, Apelação Cível, selecionando-se os processos provenientes do RS, com os três entes públicos no polo passivo. Total de processos analisados (N): 46. Total de argumentos computados em N (n): 145.
Em 58,7% das sentenças, houve o julgamento pela procedência da demanda, condenando os réus ao fornecimento dos medicamentos pleiteados. Essas decisões afastaram qualquer consideração orçamentária. Em 13% das sentenças houve o julgamento pela improcedência do pleito, negando-se os pedidos do autor com fundamento, basicamente, na inadequação da indicação do medicamento pleiteado pelo estado de saúda da parte autora, no ponto de vista do médico perito judicial e o fato de haver outro medicamento com efeito semelhante disponibilizado pelo SUS. Salienta-se o elevado percentual de decisões sem resolução de mérito em consequência do óbito da parte autora, em sua totalidade portadores de câncer. Nesses casos, os magistrados já haviam deferido os pedidos dos autores em antecipação de tutela, isto é, reconhecendo tratar-se de situações de urgência, emergência e o risco na demora que a análise de mérito do processo pode representar. Dentre os processos analisados, os magistrados pouco privilegiaram as políticas públicas de assistência farmacêutica no que diz respeito ao indeferimento de pedidos de medicamentos com eficácia semelhante e custo reduzido disponibilizado gratuitamente pelo SUS. Foram apenas dois indeferimentos por esse motivo, em um total de 46 ações.
O reconhecimento da solidariedade entre os entes públicos possui incidência em 23,7% dos argumentos, estando fundamentado pelos magistrados no Art. 196 da CF/88, que disciplina ser dever do Estado a assistência à saúde. Dessa forma, os juízes alegam possuir legitimidade solidária qualquer dos entes federativos para figurar no polo passivo da relação processual de fornecimento de medicamentos, podendo o cidadão ajuizar o pedido de medicamentos contra os três, na mesma ação.
O argumento de que houve a comprovação da necessidade do medicamento conforme laudo pericial judicial esteve presente em 21,4% das alegações. Em contrapartida, o argumento da comprovação da necessidade do medicamento somente conforme prescrição médica juntada pela parte autora foi utilizado pelos magistrados em apenas 2,1% das argumentações. Esses dados nos demonstram uma maior prudência nos julgamentos, pois a maioria dos juízes não utilizou apenas os documentos juntados pela parte autora para tomar suas decisões. Nesse diapasão, verifica-se que a atuação dos magistrados vem se desvinculando de um posicionamento majoritário assumido pelo Poder Judiciário, como destacado por Tonete e Chiusoli (2019, p. 89):
No olhar do judiciário, o direito à saúde é líquido e certo, garantido na Constituição Federal de 1988, e no seu entender, o acesso aos recursos terapêuticos é parte desse direito. A decisão de instituir tratamentos farmacológicos, na maioria das vezes, é atribuição e responsabilidade médica, e é materializada na prescrição, reconhecida como ordem incontestável.
Com 15,2% de incidência nas argumentações, esteve o direito constitucional à saúde e sua vinculação ao direito à vida e ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, devendo, segundo os magistrados, ser analisado nesta perspectiva, reafirmando a saúde como direito fundamental do cidadão e dever do Estado (SARLET, 2004; 2011; SARLET; FIGUEIREDO, 2010). Com incidência de 14,5% das argumentações dos magistrados, esteve a alegação da ausência de condições financeiras da parte autora para a aquisição do medicamento, transferindo à Administração Pública o dever de fornecer o fármaco pleiteado.
O argumento baseado no uso dos critérios estabelecidos no julgamento STA nº 175 do STF ao caso concreto, esteve presente em 11% das fundamentações. Para tanto, os juízes utilizaram as seguintes diretrizes em suas decisões:
I. É de natureza solidária a responsabilidade dos entes da Federação no serviço público de saúde;
II. Em princípio, o conteúdo do serviço público de saúde restringe-se às políticas adotadas pelo SUS. Por isso, "deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sem que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente".
III. Sujeitam-se ao controle judicial as políticas públicas eleitas pelo SUS pela não inclusão de fármacos e procedimentos. Não basta afirmar o direito à saúde para obrigar o SUS a fornecer fármaco ou a realizar procedimento não incluído no sistema. É indispensável a realização de ampla prova para demonstrar a existência da situação singular ("razões específicas do seu organismo") da ineficácia ou impropriedade do tratamento previsto no SUS.
IV. A Administração Pública não é obrigada a fornecer fármaco sem registro na ANVISA, já que sua inclusão no Sistema Único de Saúde depende prévio registro (BRASIL, Tribunal Regional Federal 4ª Região. Procedimento Comum 5005986-07.2015.4.04.7102).
As demandas analisadas reforçam a necessidade de se elaborar parâmetros criteriosos norteadores das decisões judiciais, a fim de que se observem as necessidades e especificidades dos casos concretos, sem descuidar, com a atenção ao plano individual, do direito à saúde do plano coletivo. Afinal, o fenômeno da judicialização da saúde no Brasil vem tomando grande vulto nas duas últimas décadas, como consequência das demandas judiciais que obrigam o Estado a prover de bens e serviços de saúde (VITORINO, 2020). Esse fenômeno desnuda uma
[...] grave falha de comunicação entre o poder judiciário e os serviços de saúde, devido ao desconhecimento das políticas públicas, prejudicando o ciclo da assistência farmacêutica, além de gerarem gastos desnecessários, tanto pelo poder judiciário, para dar andamento e julgar os processos, como para o estado, que precisa fornecer medicamentos básicos que têm seu financiamento e distribuição como obrigação dos municípios (TONETE; CHIUSOLI, 2019, p. 102).
Ante o patamar tracejado para o problema da definição de critérios que parametrizem o fornecimento de fármacos, necessita-se de uma solução a ser construída pela atuação conjunta e coordenada de todos os órgãos envolvidos e responsáveis (HENNIG; MAAS, 2019). Nesse sentido, cabe sublinhar a recente iniciativa do CNJ, “Judicialização e Sociedade: ações para acesso à saúde pública de qualidade” (BRASIL, 2021), construída ao final de 2020. A referida iniciativa visa a evitar a judicialização de demandas envolvendo prestações de saúde, coordenando esforços entre magistrados e gestores públicos da área. Articulado em quatro fases, o projeto iniciou pelo levantamento de dados realizado com os Tribunais Estaduais e Federais, os magistrados, os órgãos gestores da saúde nos Estados e no Distrito Federal e os órgãos gestores nos municípios. Na segunda fase, os dados obtidos foram analisados, instrumentalizando a terceira fase, na qual os Comitês Estaduais de Saúde do CNJ elaboraram planos de ação enfocando o aprimoramento da gestão administrativa e da prestação judicial de saúde. As propostas dos planos de ação começam a ser implementadas pelos profissionais atuantes na chamada “linha de frente”, tanto da administração pública quanto do Judiciário. A interação entre os atores referidos, com foco no cidadão, sujeito do direito fundamental social à saúde, abre possibilidades para uma política pública mais efetiva, receptiva à participação social, dialogada e democrática.
Por meio dos dados analisados foi possível identificar ser fundamental que o Poder Judiciário observe critérios para a dispensação de medicamentos, evitando decisões sem fundamentações conexas. O STF definiu parâmetros para os demais julgados, com a necessidade de privilegiar o SUS, sendo coerente a concessão de medicamentos nos casos em que não há tratamento para determinada doença, ou quando os medicamentos do SUS não produzirem mais efeitos. Ainda, possibilitou o deferimento de fármacos não registrados pela ANVISA em situações excepcionais.
A Lei nº 12.401/11 limitou ainda mais o fornecimento de medicamentos não previstos nos PCDTs do SUS e vetou a dispensação de medicamentos sem o devido registro. A maior inovação e contribuição dessa lei, que modificou a Lei Orgânica da Saúde acrescentando dispositivos, foi a criação da CONITEC e da MBE, desenvolvendo técnicas baseadas em estudos médicos científicos para a incorporação de novos medicamentos pelo SUS, e auxílio aos magistrados em suas decisões. Com a recente determinação de suspensão do STJ em todo território nacional, dos medicamentos não incorporados pelo SUS, os magistrados podem julgar apenas demandas com a devida comprovação da probabilidade do direito e do perigo de dano.
Nas demandas judiciais do TRF4 requerendo medicamentos averiguou-se uma parametrização nas fundamentações dos magistrados convergente em relação aos critérios que vêm sendo fixados pelo STF: maiores dilações probatórias, com a determinação de perícias médicas e não, apenas, com referência nos atestados dos próprios médicos prescritores da parte autora. Ainda vale destacar que as situações de óbito durante o processo, mesmo com a parte demandante já fazendo uso do medicamento, concedido em sede de antecipação de tutela, reforçam a necessidade do uso de estudos científicos para averiguar se, no caso concreto, o tratamento ainda poderá surtir efeitos positivos. A repetição de demandas por determinado fármaco, como observado na pesquisa, auxilia na atualização dos PCDTs e incorporação pelo SUS.
O orçamento público para gastos com medicamentos está previamente estipulado. Existem situações, como o esgotamento das possibilidades do SUS, ou ainda, omissões dos próprios gestores, em que a intervenção do Judiciário se mostra plenamente plausível. Porém, em situações diversas, é necessário privilegiar a política pública, que possui uma estrutura e organização para dispensar medicamentos com eficácia e segurança garantida a todos que possuam determinada patologia. Sempre que houver a obrigatoriedade do administrador público em fornecer medicamentos via demandas judiciais, haverá deslocamento dos recursos que estariam planejados para atender a outros objetivos.
Daí a necessidade de maior interação entre os magistrados, profissionais da saúde e gestores do SUS, para juntos, definirem um padrão que atenda aos princípios da integralidade e universalidade, da mesma forma como dispostos para a organização do SUS, vinculando decisões judiciais com análise também, na noção de macrojustiça. Nesse sentido, a ampliação do conceito de saúde é inerente aos direitos fundamentais sociais, numa relação direta que se concretiza por meio do SUS. Dito de outra maneira, a interação entre os mencionados atores tem potencial para aumentar o acesso dos usuários do SUS aos direitos a que têm direito, ao exercício da cidadania. Dessa forma, o foco da atuação deixa de estar no sistema de saúde, centrando-se no cidadão brasileiro, sujeito da política pública.