Recepción: 01 Noviembre 2021
Aprobación: 01 Enero 2022
Resumo: Este trabalho analisa casos de ações repressivas abusivas perpetradas por policiais em favelas e habitações coletivas do Rio de Janeiro da Primeira República. Trata-se de mostrar como práticas excessivas de poder e de violências físicas protagonizadas por agentes da força policial foram abordadas por jornalistas, literatos e compositores populares como uma realidade cotidiana daquele período histórico. Nas primeiras décadas republicanas, a imposição de uma ordem social capitalista informava as estratégias de controle social da polícia – que atingiam os espaços de moradia de trabalhadores, onde eram desenvolvidas importantes experiências para a formação da classe.
Palavras-chave: Favelas, Cortiços, Violência policial.
Abstract: This article analyses several instances in which the Rio de Janeiro police force deployed abusive and repressive actions against favelas and collective tenements during the First Republic. I aim to demonstrate how journalists, writers, and popular songwriters of that period engaged with the excessive demonstrations of power and physical violence practiced by law enforcement as a daily reality. During the first decades of the republican era, the imposition of a capitalist social order informed the strategies of social control deployed by the police. These strategies went after the spaces where the working class lived, precisely where important experiences with regards to class formation took place.
Keywords: Favelas, Tenements, Police violence.
A violência policial nas favelas no Rio de Janeiro foi consideravelmente abordada no debate acadêmico em diferentes disciplinas (VELHO e ALVITO, 1996; ZALUAR e ALVITO, 1998; COIMBRA, 2001; MISSE, 2006, MACHADO DA SILVA, 2008, BRITO, OLIVEIRA, 2013)2. A segunda dupla e o quarto autor dessa lista escreveram, respectivamente, uma introdução e um capítulo com passagens sobre o fim do século XIX e o início do XX, mas esses exemplos constituem exceções diante da predominância das análises sobre o tempo presente. Outros espaços de habitação dos trabalhadores foram tratados em uma reunião de estudos sobre a violência urbana, tendo obtido repercussão no meio universitário (ZALUAR, 1994), enquanto uma recente obra de fôlego avançou no conhecimento sobre a prática de desestabilização da polícia nas favelas em períodos mais recuados no tempo, entre a década de 1940 e a de 1970 (PESTANA, 2018). Mas pouco se sabe sobre essa realidade na Primeira República. Mesmo a produção historiográfica dos anos 1980, que redundou em um boom de estudos sobre a cidade na virada do Império para a República, privilegiou o combate do Estado aos cortiços – enfocando a criação de leis, a força dos discursos ideológicos, a prevalência de interesses corporativos e a efetivação de demolições massivas –, mas não propriamente a atuação violenta dos policiais junto aos locais de residência da classe trabalhadora (ABREU, 1984; ELIA, 1984; VAZ, 1985; CARVALHO, 1995; PORTO ROCHA, 1995; BENCHIMOL, 1990). Vale ressalvar que há nesses trabalhos o entendimento segundo o qual a tentativa de extinção dessas formas habitacionais pelos poderes públicos também passava pela preocupação com o combate à criminalidade. Esse veio foi aprofundado por Sidney Chalhoub (1996), que destrinchou o nexo histórico entre perseguição aos cortiços, práticas de controle social e políticas de saúde pública no Brasil do Oitocentos, não obstante ter se debruçado pioneiramente sobre as rixas entre os trabalhadores e os “meganhas” ao investigar as relações cotidianas travadas pelos primeiros fora do âmbito do movimento operário (CHALHOUB, 2001). Este artigo tem o objetivo de contribuir para o preenchimento de tal lacuna na História das favelas e dos cortiços, a um só tempo, considerando os aspectos comuns entre as habitações coletivas e as primeiras ocupações de morros; ou seja, a presença de formas habitacionais indefinidas, intermediárias entre o “velho e o novo” (VAZ, 2002, p. 55), além do fato de que a população de ambas convivia com a repressão da polícia não apenas nos espaços de produção da capital do país que se inseria cada vez mais nas malhas do capitalismo internacional, mas também em suas áreas de lazer e, no que toca especialmente este texto, de moradia.
Mais especificamente, este trabalho analisa casos de ações repressivas abusivas, incluindo aquelas fisicamente violentas, perpetradas por policiais em favelas e habitações coletivas do Rio de Janeiro da Primeira República. Trata-se de mostrar como práticas excessivas de poder e, mais especificamente, de violências físicas protagonizadas por agentes da força policial foram abordadas por jornalistas, literatos e compositores populares como uma realidade cotidiana daquele período histórico. De maneira naturalizada, em tom irônico ou sob forma de denúncia, esses relatos possibilitam compreender tais práticas policiais em uma História de longa duração na cidade. No caso específico das primeiras décadas republicanas, a imposição de uma ordem social capitalista informava as estratégias de controle social da polícia – que atingiam os espaços de moradia de trabalhadores, onde eram desenvolvidas importantes experiências para a formação da classe.
A primeira fonte analisada neste texto é o livro O Cortiço, de Aluísio Azevedo (s.d., p. 67), marco do Naturalismo brasileiro publicado em 1890. Estereotipando padrões comportamentais dos trabalhadores, o autor abordou a conflituosa relação entre os moradores de tal tipo de habitação coletiva e os agentes policiais, enfatizando a ação violenta desses últimos:
A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estrupício: à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.
A sugestão da existência de um “ódio velho” entre as duas partes é significativa porque remonta à instituição da escravidão. Chalhoub (1996, p. 26) afirmou que os cortiços foram um importante cenário da luta dos negros contra a escravidão nas últimas décadas do século XIX. Nessas habitações coletivas, os escravos que tentavam comprar sua alforria encontravam uma significativa rede de solidariedades e, em caso de fuga, podiam se esconder em meio a uma população variada. Segundo o historiador, o fato de a era dos cortiços ter correspondido ao período de intensificação das lutas dos cativos pela liberdade pode ser relacionado à incisiva ação dos poderes públicos contra tais moradias: “(...) a decisão política de expulsar as classes populares das áreas centrais da cidade podia estar associada a uma tentativa de desarticulação da memória recente dos movimentos sociais urbanos”.
Azevedo (s.d., p. 67) narra a resistência dos moradores do cortiço literário, momento em que reforça a ideia de uma velha rivalidade entre eles e a polícia, além da existência de uma identidade territorial entre os tais residentes:
De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira vez. Tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por alguém ou alguma coisa querida.
Considerando a possibilidade histórica do comportamento resistente dos habitantes de habitações coletivas diante de invasões policiais, vale citar as palavras de Thomas Holloway (1997, p. 27):
Na medida em que as instituições estatais refletem e defendem os interesses de uma classe ou classes específicos a expensas dos interesses de outras, a coerção não é apenas uma ameaça: ela é imposta. Não surpreende que outros se ressintam a essa coerção, o que não se deve tomar como medida de barbárie. Ao contrário, trata-se de um reflexo de sua humanidade.
Depois que a polícia consegue adentrar o ficcional cortiço, o romancista descreve uma cena de violência policial durante um incêndio em tal moradia popular:
Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma boiada. A multidão atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam em defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera, metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingança (AZEVEDO, s.d., p. 68).
É interessante que o romancista cite o aparecimento de um incêndio justamente no momento em que a força policial faz carga para entrar no cortiço. A ocorrência de incêndios suspeitos – ou criminosos – em habitações populares foi uma realidade histórica na Primeira República. Esse recurso foi visto, por exemplo, no morro de Santo Antônio, no centro da cidade, nos anos 1910, num contexto em que os seus residentes resistiam a uma ordem de despejo, embora esse espaço tenha voltado a ser ocupado pelos trabalhadores (ABREU, 1994, p. 41). Mas o caso mais conhecido de incêndio criminoso em espaços ocupados pelos trabalhadores foge ao escopo deste trabalho, e teve como alvo a Favela do Pinto, em 1969, em meio à política de remoções forçadas na ditadura. E essa realidade ainda pode ser vista na década atual, em outras cidades, quando incêndios em favelas sempre localizadas nos bairros mais caros da capital de São Paulo são relacionados com a especulação imobiliária (VIEIRA, 2017). Trata-se de uma tradição de negação aos trabalhadores do seu direito à cidade, revalorizada segundo cada contexto histórico. Não pode passar despercebida uma observação de Azevedo (s.d., p. 67) sobre um possível comportamento dos policiais em ação: “Se tivessem espingardas fariam fogo”. Essa análise pode ser concluída com a ideia de que a polícia do Rio de Janeiro, estabelecida na nova era de racionalidade burocrática, reconhecia o terror como uma arma para forçar a submissão dos que, por suas ações, declarassem ilegítimas as estruturas do poder (HOLLOWAY, 1997, p. 27, 28).
A literatura de Azevedo foi tomada aqui como um “testemunho histórico”, o que implica a necessidade de buscar a sua lógica social e inseri-la em um processo histórico determinado (CHALHOUB, PEREIRA, 1998, p. 8). Desde os anos 1850, o centro do Rio de Janeiro era pontilhado por essas habitações coletivas, e mesmo os morros dessa região eram ocupados pela população pobre, mas sem conotação de densidade e aglomeração (GONÇALVES, 2013, p. 46). No contexto imediatamente anterior ao lançamento de O Cortiço, houve a Abolição e a cidade do Rio de Janeiro se tornou a capital de uma nova institucionalidade, a República. Com o acelerado aumento da chegada de migrantes nacionais e estrangeiros, a sua população cresceu 90% (foi de 274.972 a 518.292 habitantes), enquanto o crescimento do parque domiciliar no mesmo período foi de 62%. A decorrência desse processo foi a deterioração das condições habitacionais, observada no aumento da densidade domiciliar (7,3 pessoas) e predial (10,8 pessoas) (RIBEIRO, 1997, p. 168-9). Entre 1869 e 1888, o número de cortiços e estalagens na cidade passou de 642, com 9.671 quartos e 21.929 pessoas, para 1.331, com 18.866 quartos e 46.680 pessoas (CARVALHO, 1995, p. 139-40).
Sidney Chalhoub (2001, p. 136) corretamente criticou a tendência de se exagerar a importância do “processo industrializante” como um dos desencadeadores das transformações urbanas. Embora houvesse, de fato, um peso relativamente pequeno do operariado industrial típico no conjunto da força de trabalho, existiam fábricas em grandes cidades como o Rio de Janeiro, e um mercado de trabalho assalariado urbano estava em construção: “Desse ponto de vista, enquanto grupo de pessoas que compartilhavam experiências comuns a partir de condições de vida e de trabalho semelhantes, pode-se afirmar que uma classe trabalhadora já estava em formação” (MATTOS, 2002, p. 15). E uma dessas experiências compartilhadas que contribuíram para o desenvolvimento de uma consciência classista foi a da exploração, em que as condições de habitação devem ser ressaltadas. A precariedade e a insalubridade dos cortiços, assim como o alto custo relativo do aluguel, eram uma realidade em um período com escassas opções de moradia (MATTOS, 2008, p. 63, 64). Embora houvesse uma concentração na área central, devido à presença de postos de trabalho e da dificuldade de locomoção, a habitação coletiva da obra de Azevedo se situava em Botafogo, então um bairro nobre do Rio de Janeiro, mas que precisava de braços para a realização de serviços. Outro elemento a ser abordado é que o seu nome é “Estalagem São Romão”. Segundo o parecer do engenheiro da prefeitura Everardo Backheuser (1905, p. 90), a pior de todas as habitações coletivas seria a casa de cômodos, “(...) a mais anti-higiênica, a mais detestável (...)”. A estalagem apresentaria melhores condições do que as casas de cômodos: “há mais ar, há mais luz, há um pouco mais de bem estar e conforto” (idem) e a “vida noturna não tem a promiscuidade da ‘casa de cômodos’” (idem). O interessante é que a estalagem seria igual ao cortiço, apesar de o engenheiro tratar esse último como “estalagens antigas”, em piores condições de conservação. A melhor habitação multifamiliar seria a avenida, “uma estalagem aperfeiçoada”. Seja como for, Chalhoub (1996, p. 29) apontou para a importância do julgamento do observador na especificação das habitações coletivas.
Saltando um pouco no tempo, e abordando outro contexto decisivo para a História da habitação popular na cidade do Rio de Janeiro, o da Reforma Passos, em 1904, na crônica “Sono calmo”, João do Rio (1995, p. 122) visitou um zunga (hospedaria barata), integrando a expedição comandada por um delegado de polícia. Com a intenção de ressaltar a presença das “classes perigosas” naquela habitação coletiva, o flaneur carioca, sem querer, mostrou como tais moradores sofriam com a perseguição dos policiais. Ao ser acordado por um agente de polícia, um trabalhador exclama: “– Espero a hora do bote para a ilha. Sou carvoeiro, sim senhor... Ai! minha mãe! Vão levar-me preso!”. Por sua vez, notando a presença da comitiva liderada por João do Rio, outra habitante pergunta: “– Por que será tudo isso? Vão levar-nos presas?” (ibid, p. 123). Além desses exemplos, o autor menciona que o encarregado da habitação coletiva está “trêmulo” diante daquela autoridade.
O texto literário mostra que tais pessoas estavam possivelmente acostumadas a serem presas sem motivo justo. E ressalta a visão do delegado sobre as habitações coletivas, por ele chamadas de “círculos infernais” (ibid, p. 119). Ele determina que todos os residentes do zunga sejam revistados, e afirma: “Há por aqui gatunos, assassinos, e coisas ainda mais nojentas” (p. 123). Corroborando esse parecer, um de seus agentes define a citada modalidade habitacional como uma “hospedaria só de gatunos” (ibid, p. 120). E como as classes pobres também seriam perigosas pelo ponto de vista da higiene pública, o escritor completou: “Parecia que todas as respirações subiam, envenenando as escadas, e o cheiro, o fedor, um fedor fulminante, impregnava-se nas nossas próprias mãos, desprendia-se das paredes, do assoalho carcomido, do teto, dos corpos sem limpeza” (ibid, p. 122).
A crônica “Sono calmo” é um documento relevante para se entender o estigma lançado sobre os moradores das habitações populares. Outros trechos poderiam ser analisados, mas essa opção fugiria do objetivo deste trabalho. Davi Arrigucci Junior (1987), Antonio Candido (1992), Margarida Neves (1995) e Beatriz Resende (1995) relacionaram as crônicas à vida moderna, entre outras razões, porque elas eram detentoras de uma leveza de linguagem que facilitava o seu consumo imediato – embora o primeiro autor tenha lembrado que elas eram fruto de um trabalho que caminhava em direção oposta. Chalhoub, Neves e Pereira (2005) negaram a suposta ausência de elaboração narrativa do gênero, bem como relativizaram a sua despretensão e a sua ligeireza, ao considerarem que ele era uma construção autoral, que intervinha na realidade que tentava representar. Portanto, as crônicas são fontes ricas para a história da cidade em suas mais diversas dimensões e podem ser vistas como narrativas subjetivas do “real vivido” (NEVES, 1995, p. 26) e esboços de identidades. Por meio de sua atuação na grande imprensa, os cronistas estiveram envolvidos em projetos sociais e políticos.
Ainda em 1904, quando a crônica de João do Rio foi publicada na grande imprensa, ocorreu a Revolta da Vacina. No dia 20 de novembro, certas pessoas haviam esperado o sol se pôr para dispararem tiros do morro da Favela contra a 9a Delegacia de Polícia. A força da Marinha revidou ao ataque e, logo em seguida, os homens do Exército subiram o morro, mas não encontraram a quem atacar. No dia 23, o ato final da repressão mobilizou 180 soldados da polícia, que realizaram uma grande batida naquela localidade. As suas moradias foram varejadas, sem que novamente nenhuma pessoa fosse encontrada (PEREIRA, 2002, p. 114). Descontando-se os juízos de valor, em 1923, Orestes Barbosa (1993, p. 113) explicou essa estratégia dos residentes da localidade diante das incursões policiais:
Se a polícia achar que aquilo deve mesmo acabar, leve para lá uma força de linha e bombardeie.
Já fica sabendo que bombardeia casebres vazios.
A Favela, quando vê que não pode matar a polícia, não aceita a luta e foge para todos os lados em que tem saída.
Fugirá, por isso, em tempo.
E quando a força de linha desguarnecer a região conflagrada, a população voltará toda, bela e formosa.
Era comum a fuga coletiva de moradores do morro da Favela enquanto policiais penetravam a localidade por uma de suas subidas. Mas as batidas policiais tornaram-se frequentes em cortiços, casas de cômodo e subúrbios, nos quais eram diariamente presos inúmeros indivíduos acusados de terem participado do levante. “Era preciso limpar a cidade”, dizia o chefe de polícia Cardoso de Castro, justificando o grupo de 945 indivíduos presos ao fim das diligências policiais na região portuária, da qual o morro da Favela fazia parte (PEREIRA, 2002, p. 114). Amparado pelo estado de sítio, o governo decidiu deportar parte dos presos para o Acre, sem figura de processo.
Nesse contexto, a crise habitacional assumiu dimensões “dramáticas” (BENCHIMOL, 1990, p. 202) na cidade do Rio de Janeiro, por conta do advento das reformas urbanas. A derrubada de 2.240 prédios entre 1902 e 1906 provocou a retirada de cerca de 36.900 pessoas da área central. Não obstante, o efeito multiplicador dessa ação dificilmente poderá ser calculado, assim como a quantidade de cortiços desaparecidos nesse processo (VAZ, 1985, p. 226). Observa-se nessa conjuntura a primeira expansão da favela no tecido urbano carioca (ABREU, 1994, p. 38). Quanto ao mundo do trabalho, mais especificamente, o governo Rodrigues Alves é marcado pelo dinamismo do movimento operário, que passa a ter nas greves uma nova estratégia – em 1904, inclusive, elas haviam assumido um caráter de greve geral. Principalmente em 1905 e 1906, os gêneros alimentícios aumentaram de preço sem a correspondente elevação dos salários, tendo se agravado o desemprego. Somou-se a isso o próprio descontentamento popular com os métodos impositivos utilizados pelas autoridades, que contribuiu para a eclosão da Revolta da Vacina (LOBO, CARVALHO, STANLEY, 1989, p. 75).
Pesquisas mais aprofundadas sobre esse conflito apontam para a resistência dos negros em torno de suas tradições culturais e religiosas diante da vacinação obrigatória (CHALHOUB, 1996, PEREIRA, 2002). Isso ajuda a compreender o porquê de a região portuária ter sido o epicentro do conflito entre a classe trabalhadora e as tropas policiais, uma vez que ali se concentrava o maior percentual de afro-brasileiros da capital republicana, embora esses não constituíssem maioria numérica (CRUZ, 2000, p. 276). Localizado em um dos bairros portuários, a Gamboa, o morro da Favela era geralmente resumido na grande imprensa como um enclave africano na capital (MATTOS, 2004, p. 87). A 15 de maio de 1918 – portanto, dois dias depois do trigésimo aniversário da abolição –, a revista ilustrada D. Quixote publicou uma charge que mostra um morador negro do morro da Favela com curativos em forma de cruz no rosto machucado, enquanto uma irônica observação acompanha a imagem: “A Cruz Branca na Favela”. Em uma rara crítica social em prol dos direitos dos moradores das favelas, o autor do desenho dava a entender que a única instituição que assistiria a tais pessoas seria a violência (DUARTE, 2004, p. 109).
DOM QUIXOTE, 1918.
Podem-se imaginar quem seriam os agentes promotores das agressões físicas aos moradores do morro da Favela. Marcelo Badaró Mattos (1993, p. 21) pesquisou os dados de entrada na Casa de Detenção, em 1907, e descobriu que, entre os 3967 presos acusados por contravenções, 2077 eram negros. Em 1909, foram processados 1336 negros entre os 2409 denunciados por infrações. Se de acordo com estes números os negros representavam pouco mais da metade dos acusados, o confronto com os dados da população do período mostra que os negros eram o principal alvo da repressão policial. O próprio contexto em que o conceito de “classes perigosas” foi adotado no Brasil – o da transição do trabalho escravo para o livre, no fim do século XIX – fez com que “os negros se tornassem os suspeitos preferenciais” da instituição policial (CHALHOUB, 1996, p. 23).
Vale ressalvar que a revista D. Quixote se caracterizava como uma revista ilustrada de humor, porém com veio social. Os grandes jornais da capital associavam diariamente os negros aos casos de desordem no morro da Favela. O que dizer sobre um título de reportagem como: “Amores da Favela – Ciúmes pretos – três navalhadas”? (, 1908). Promotor da violência física, o “mestiço” Estanisláo José de Mattos é retratado como quem se deixa levar pelos impulsos biológicos, irracional como uma personagem de romances naturalistas:
Ontem, em plena explosão de raiva, cioso dos afetos que a pretinha concedia a outro, o Estanisláo não se pôde conter e, armado de navalha, golpeou gravemente a Julieta, na região mamária esquerda, produzindo-lhe fundo ferimento de doze centímetros de extensão.
Além disso, a navalha ainda talhou a vítima no ventre e no braço esquerdo.
Tratava-se do “Bom-Crioulo” em pessoa, mencionando aqui o livro de Adolfo Caminha, de 1895. A grande imprensa também desenvolveu uma intensa campanha quanto à necessidade de intervenção policial no morro da Favela, ao longo de toda a Primeira República. Nesse tipo de matéria, havia um processo de estigmatização da localidade como o território das classes perigosas no Rio de Janeiro, que contribuía para legitimar a violência policial sobre os seus moradores. O exemplo mais escancarado dessa lógica é visto na citação a seguir, que coloca o morro como:
(...) o lugar onde reside a maior parte dos valentes da nossa terra, e que, exatamente por isso – por ser o esconderijo da gente disposta a matar, por qualquer motivo, ou, até mesmo, sem motivo algum –, não tem o menor respeito ao Código Penal nem à Polícia, que também, honra lhe seja feita, não vai lá, senão nos grandes dias do endemoninhado vilarejo (CORREIO DA MANHÃ, 1909).
Publicações que defendiam interesses policiais tendiam a criticar a pressão oriunda dos jornais sobre a ineficiência da corporação no combate ao crime, e apontavam negativamente para a existência das notas sensacionais: “A imprensa vive a clamar todos dias contra a vadiagem que infesta até as ruas mais centrais desta cidade e a registrar, com estrepitoso escândalo, os casos de pequenos furtos que estão ocorrendo, realmente em assustadora estatística” (REVISTA POLICIAL, 1919). Se a belle époque foi marcada por um considerável “mal-estar da segurança pública”, a polícia não ficou imune a esse processo, tendo a grande imprensa se convertido em um espaço de críticas ao desempenho policial e de reclamações por reformas urgentes, bem como em produtora e veículo de denúncias (GALEANO, 2016, p. 64). Mas as afinidades entre as duas instituições eram denunciadas naquele mesmo texto: “De fato, o Rio está cheio de vagabundos e vadios” (REVISTA POLICIAL, 1919). Porque as reclamações da grande imprensa podiam ser um instrumento para policiais reivindicarem melhores condições materiais para o seu trabalho: “A polícia, o eterno alvo das censuras e das queixas não está neste país devidamente aparelhada para combater a malandragem” (idem). E, principalmente, mais poder e autonomia, dada a suposta necessidade de “uma reforma de lei, dando mais prestígio à polícia, para que possa inspirar a devida confiança e o necessário respeito” (idem).
As atuações da grande imprensa e da polícia devem ser entendidas como complementares, apesar das críticas mútuas. Em 1917, dois anos antes da publicação daquele artigo policial, João da Baiana compusera “Batuque na Cozinha”, gravada por ele somente em 1968, aos 81 anos. Na letra da canção, o narrador se define como um “mulato” da Paraíba do Norte, Maranhão, que entra em conflito com um homem branco na cozinha de uma casa de cômodos. O motivo dessa contenda é explicado pelo nortista em um dos versos: “O malandro tá com olho na minha mulher”. Marcos Alvito (2016) realizou uma significativa análise, na qual explorou os diversos sentidos possíveis desse samba. Neste texto, cabe apontar para o fato de que o comissário de polícia encarregado do caso não se interessa em investigar a ocorrência ou ouvir os envolvidos na contenda. Conforme observou aquele historiador, se eles estão em uma casa de cômodos, são malandros e então devem ser presos: “Seu comissário foi dizendo com altivez/ É da casa de cômodo da tal Inês/ Revista os dois bota no xadrez/ Malandro comigo não tem vez”. Ainda de acordo com Alvito, em outra estrofe, o narrador habilmente se utiliza da lógica da autoridade policial para tentar se safar da prisão, ao alegar inocência com o argumento de que não era morador da casa de cômodos: “Mas, Seu Comissário, eu estou com a razão/ Eu não moro na casa de habitação/ Eu fui apanhar o violão/ Que estava empenhado com Salomão”. Na primeira parte da letra, ele chega a ponto de aceitar a ideia de que a casa de cômodos fosse realmente perigosa (“Não moro em casa de cômodos/ Não é por ter medo não”) e afirma que não mora ali para evitar confusões (porque nesse tipo de habitação “Sempre tem apelação”).
Conforme vimos no já mencionado texto de época do engenheiro Backheuser, a casa de cômodos era a modalidade habitacional mais precária do período. Analisando a crise habitacional nos anos 1910, a Primeira Guerra Mundial desencadeou um deslocamento populacional para o Brasil, além de ter contribuído para o aumento do déficit habitacional ao elevar os preços dos materiais importados – o que diminuiu a uma oitava parte o número de construções e reconstruções na capital (ELIA, 1984, p. 120). Surgiram diversas favelas no tecido urbano carioca, que apresentavam em comum a localização nas encostas dos morros e a proximidade de importantes fontes de emprego (ABREU, 1994, p. 38). Também se inicia nessa conjuntura a fase de maior mobilização operária na Primeira República, tendo esse movimento atingido um alto grau de organização e de consciência de classe. Isso pode ser medido pelo nível de politização das greves, como também pelo número de greves em si. Entre 1917 e 1920 houve nada menos que 90 greves na capital, sendo 25 de pauta política, 14 de pauta econômica, 22 de pauta política e econômica, e 20 de pauta não identificada. Em uma conjuntura sobre a qual pairava o espectro da Revolução Russa, o avanço das reivindicações do proletariado inaugurou uma era de métodos de prevenção e repressão à mobilização política nos sindicatos. Assim, os aparatos policiais passaram por uma reestruturação, principalmente em torno da chamada polícia política, que se especializou ou definiu mais claramente suas funções e poderes de intervenção. Não há dúvida de que a forte repressão desencadeada aos trabalhadores nesse período tenha conseguido frear o impulso combativo e organizativo de suas lutas: se em 1920 haviam ocorrido 26 greves, em 1926 ocorreram apenas quatro (COSTA, FREITAS, 2004, p.141, 144-145).
Adentrando essa última década, em 1921, a polícia recebeu notícias de que Sete Coroas, o “criminoso” mais famoso do Rio de Janeiro naquela época (MATTOS, 2012), estava escondido no Porto de Maria Angu, zona norte da cidade. Publicado na grande imprensa carioca, o longo trecho a seguir é ilustrativo do nível que a violência policial poderia atingir em uma área ocupada por trabalhadores:
Depois de longa caminhada, a caravana chegou ao local de destino e não viu nem a sombra do herói [Sete Coroas].
Então, para não perder tempo, o suplente em exercício no 25º distrito resolveu fazer uma batida pelas cercanias, a fim de povoar o xadrez, e praticou com a sua gente as violências que a polícia comete sempre em tais ocasiões.
Um dos pontos visitados pelos subordinados do desembargador Geminiano da França foi a casa de pasto de Innocencio da Costa Alves, sita à rua Maria Angu n. 6.
Aí faziam refeição várias pessoas, que foram surpreendidas pela polícia. Havendo reação, o pessoal do 25º distrito fez fogo, saindo feridos Hernani Pereira da Silva, preto, de 34 anos (...), com uma bala no ventre; Matheus Patrício Pinto, cozinheiro da casa de pasto, com um ferimento na perna direita; Antonio Manoel das Neves (...) com um ferimento na região frontal e João Baião, ferido a pau, em várias partes do corpo (CORREIO DA MANHÃ, 1921).
As chamadas casas de pasto também podem ser entendidas como estabelecimentos mistos, que ofereciam hospedagem e serviam comida (embora apenas esse último serviço tenha sido abordado na reportagem). Ressalta-se na citação anterior a ideia de que “a polícia praticou com a sua gente as violências que (...) comete sempre em tais ocasiões”, ou seja, quando tem o objetivo prender pessoas de forma arbitrária (“povoar o xadrez). A gravidade da ocorrência levou o jornal a informar não só a versão da instituição policial, mas também a da comissão de moradores sobre o episódio:
A polícia prendeu no local Euclydes Pereira da Silva, João Macedo Damasio, vulgo ‘Bom Crioulo’, Raul Simões Ferreira, João Francisco Gonçalves, Julio Rodrigues de Faria e Antonio Esperança da Costa, que foram recolhidos ao Corpo de Segurança.
Todos esses indivíduos, segundo afirma a polícia, são ladrões conhecidos.
De todos os feridos o que apresenta maior gravidade é o cozinheiro da casa de pasto, Matheus Patrício Pinto.
O chefe de polícia foi procurado por uma comissão de moradores do local, a qual foi pedir providências a s. ex., no interesse de voltar aquele lugar ao estado de calma.
Disse a comissão que a polícia dali atira sobre pessoas pacatas, adiantando que, na ocasião a que nos referimos, não houve provocação, e os policiais alvejaram até indefesos animais domésticos.
O desembargador Geminiano da Franca prometeu abrir inquérito a respeito (CORREIO DA MANHÃ, 1921).
Nesse trecho, chama atenção que a polícia tenha justificado o seu brutal ataque, em que até animais domésticos foram alvejados, por meio da declaração de que todos os homens atingidos fossem “ladrões conhecidos”. Nos dias de hoje, a instituição lança afirmações legitimadoras parecidas quanto a sua conduta violenta: geralmente, as suas vítimas teriam “passagem pela polícia” ou, de forma mais genérica, “ligação com o tráfico”. Vale destacar ainda que moradores organizados tivessem procurado o chefe de polícia, “no interesse de voltar aquele lugar ao estado de calma”. É possível que eles ainda se sentissem ameaçados pelos policiais. Mais tarde, o Correio da Manhã (1921b) anunciou a morte de Ernani Pereira da Silva: “(...) preto, de 43 anos, uma das vítimas da ira policial”. Vale ressalvar que ele não era a vítima que mais corria risco de morte, conforme mostra a reportagem anterior. Logo, outras pessoas podem ter morrido nesse episódio.
Toda essa violência policial contra os trabalhadores teve origem na tentativa de captura de Sete Coroas, conforme foi mostrado. Em 1924, Benjamin Costallat (1995, p. 38-9) escreveu a crônica “A Favela que eu vi”, em que há um suposto diálogo entre esse autor e José da Barra, uma reconhecida liderança da localidade. O morador inicia a conversa:
- Sete Coroas não era o pior. Foi o que ganhou mais fama. (...) Terríveis eram os seus dois companheiros que morreram: o Camisa e o Benedito.
- Morreram os dois?
- Morreram. O camisa morreu num pavoroso tiroteio com a polícia, aqui no buraco Quente.
- E o Benedito?
- Ah! O benedito foi encontrado morto. Mas na véspera ele tinha sido descoberto pela polícia na casa de uma velha, onde se havia refugiado...
- Então, foi a polícia que o assassinou?
- Não sei. São mistérios...
Sem delongas, nesse trecho, o cronista cita um possível assassinato perpetrado por agentes policiais no morro da Favela, com ares de execução. Todo esse histórico de violência contra os moradores das favelas na cidade do Rio de Janeiro possibilitava que a sua reprodução fosse socialmente autorizada a outros agentes estatais. Pode-se ver na reportagem a seguir certa indignação com a atitude do prefeito Carlos Sampaio, que, ao mandar destruir “barracões” erguidos a poucos metros da Avenida Niemeyer, nas fraldas do morro da Gávea, deixou seus moradores ao relento. O periódico chegou a denunciar o espancamento de Graciana Maria da Conceição por funcionários municipais, a golpes de cabo de enxada, diante da resistência popular, que não queria deixar sua casa ser demolida:
Nunca vi tamanha desumanidade, mormente em país como o nosso, que se gaba de ser o mais liberal do mundo. Estou de pleno acordo com a retirada para outro local dos barracões que ficam próximos da Avenida Niemeyer, e que lhe tiram a estética. Mas, a Prefeitura não permite que eles sejam construídos em outro lugar, por exemplo, no meio das matas, que ficam longe das vistas dos que passam por aquela avenida (JORNAL DO BRASIL, 1920).
Nos anos 1920, além das antigas condenações de ordem higiênica e de segurança pública, somava-se a de estética, de acordo com a chegada do urbanismo no país (VALLADARES, 2005, p. 42). No início dessa década, o Correio da Manhã (1920) destacou que os aluguéis haviam aumentado “em proporções assustadoras” – ou seja, de 30% a 50% nas casas destinadas à moradia, enquanto nos imóveis alugados para fins comerciais não haveria limites para o reajuste. Para além das já citadas consequências da Primeira Guerra Mundial, a conjuntura desfavorável ao setor habitacional em tal década se relacionava com:
(...) o capital imobiliário, retendo grandes áreas de terra nos subúrbios, o monopólio detido pela Light e pela Leopoldina Railway de grande parte dos serviços de transporte oferecidos às áreas suburbanas, aliado às exigências crescentes no tocante à construção de prédios (LOBO, CARVALHO, STANLEY, 1989, p. 107).
Se não bastasse, a necessidade de um juro compensador para o capital empregado também aumentara o preço dos aluguéis (ELIA, 1984, p. 120). O processo de favelização na cidade tornou-se “multidirecional e incontrolável” (ABREU, 1994, p. 38), tendo sido esse fenômeno incrementado pela compra de lotes pelo trabalhador suburbano para a realização da chamada autoconstrução (RIBEIRO, 1997, p. 197). De acordo com a revista Careta (1920), era possível ouvir “o clamor rugido por vozes dos mais diversos timbres e sons de maior contraste: ‘Casas!... Nós queremos casas!’”. Dentro desse conjunto de reivindicações, ao qual se refere a mencionada publicação, a voz dos trabalhadores vinha em alto volume, embora o movimento da classe média por moradia tenha sido duradouro nos anos 1920 (CARONE, 1978, p. 182-3).
Concluindo, é claro que havia outras formas de relacionamento entre os agentes da polícia e a classe trabalhadora em seus locais de moradia. Uma delas era a negociação quanto ao controle social. Em 1923, o escritor Orestes Barbosa (1993, p. 112) escreveu sobre José da Barra, citado neste trabalho: “(...) o chefe de polícia da Favela não é desembargador nem general – é o José da Barra, com quem o chefe de Polícia da capital da República não quer conversa”. Há uma pista de que o acordo de transformar um antigo “malandro” em uma autoridade reconhecida fora uma iniciativa da zona policial em que a Favela estava incluída, o 8o distrito; afinal: “o chefe de polícia da capital da República não quer conversa” com José da Barra. Um repórter do Correio da Manhã explicou o porquê dessa opção: “A polícia por deficiência de pessoal para o policiamento das zonas escusas, lança mão, na Favela, de próprios elementos dali, para a manutenção da ordem”. Se dessa forma, por um lado, a força policial conseguia manter a Favela sob controle, os seus moradores, por outro, livravam-se da incômoda presença do aparato de coerção estatal em seus limites (MATTOS, 2014, p. 14). Assim, as autoridades delegaram poderes a chefes locais que, à sua maneira, encarnaram o direito local e provocaram uma territorialização da Favela (GONÇALVES, 2013, p. 77).
Outra forma de negociação, embora essa envolvesse favores pecuniários, era o suborno a agentes policiais. Para a irritação do jornalista do Correio da Manhã (1916) e a desconfiança dos funcionários do 8º distrito, um agente da brigada da polícia inexplicavelmente considerou ilegal a prisão de Antonico do Morro – um valente chefe da Favela que originara um grande conflito ao avançar sobre um “meganha”. Para além desses exemplos de entrosamento entre a ordem e a desordem (CARVALHO, 1987, p. 155), estudiosos da História da polícia criticam a associação intuitiva da polícia ao uso da força, tendo em vista o que chamam de “cultura policial”. Essa expressaria, por um lado, uma “experiência” por parte dos policiais, ou seja, um tipo de conhecimento acumulado na delegacia e na rua; por outro, um saber técnico, frequentemente chamado de científico, obtido por meio de professores nas academias de polícia (GALEANO, 2016, p. 58). Também adepto da premissa de que o policial desenvolvia suas habilidades a partir de seu cotidiano, Marcos Bretas (1997b, p. 145) acrescentou que não se deve exagerar o isolamento do policial em serviço ou esquecer a influência de um contexto de valores sociais tradicionalmente associados à classe média, à noção de “respeitabilidade” – que refletia o ideário de grupos de posição de autoridade –, e às ordens que recebia do comando. Não obstante, criticou a tendência de se entender o policial como “oponente sempre definido da classe trabalhadora” e a dificuldade de se compreender um contato não conflituoso entre a polícia e a população (BRETAS, 1997, p. 33). Dessa forma, afirmou que o exercício da repressão podia se fazer de forma embaraçosa também para os policiais, que compartilhariam as mesmas identidades culturais com os oprimidos. Para tanto, citou crônicas escritas por João do Rio e Orestes Barbosa, que mostram a presença de tais agentes em festas realizadas nos morros de Santo Antônio e da Favela, respectivamente (BRETAS, 2000, p. 245).
Pensamos que, quando exagerado ou generalizado, esse tipo de proposta pode ocultar o conflito, sendo esse um dos mais visíveis sintomas da transformação histórica. Na Primeira República, assiste-se à construção de estratégias políticas e sociais de dominação, que visavam à imposição de uma ordem capitalista e à consolidação do regime republicano na cidade do Rio de Janeiro – e a repressão do policial era uma das faces visíveis desse movimento para os trabalhadores. O limite prático da interpretação mencionada no parágrafo anterior pode ser exemplificado pela reportagem do Correio da Manhã (1915) sobre a batida policial a um culto de candomblé no morro dos Cabritos, em Copacabana, cujo “chefe” era o músico da Brigada Policial Epiphanio Gomes. “Pouco dispostos” a seguirem a ordem do delegado do 30º distrito no sentido de prender o seu companheiro, os indisciplinados soldados foram presos, assim como todos os participantes do ritual.
Talvez seja conveniente encerrar este trabalho com a narrativa de Aluísio Azevedo (s.d., p. 16) sobre o policial Alexandre, morador do cortiço abordado em seu conhecido romance:
Alexandre, em casa, à hora de descanso, nos seus chinelos e na sua camisa desabotoada, era muito chão com os companheiros de estalagem, conversava, ria e brincava, mas envergando o uniforme, encerando o bigode e empunhando a sua chibata, com que tinha o costume de fustigar as calças de brim, ninguém mais lhe via os dentes e então a todos falava teso e por cima do ombro.
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Notas
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