Habitação Social entre construções e remoções: o caso da Vila do Vintém e de Guadalupe na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1940 a 1960
Social housing between constructions and removals: the case of Vila do Vintém and Guadalupe in the city of Rio de Janeiro between the 1940s and 1960s
Habitação Social entre construções e remoções: o caso da Vila do Vintém e de Guadalupe na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1940 a 1960
O Social em Questão, vol. 1, núm. 53, pp. 65-86, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Recepción: 01 Noviembre 2021
Aprobación: 01 Enero 2022
Resumo: O contexto pós segunda guerra marca uma série de preocupações com a questão habitacional. No Brasil, formas particulares de construção de moradia popular chama a atenção, pois se, por um lado, encontramos a ação do Estado atuando na construção de habitações, por outro verificamos uma política remocionista que caracterizou o período. Desta forma, este artigo tem como objetivo analisar de que maneira em uma mesma zona, a política de habitação era desenvolvida em um ambiente de construções e remoções, como no caso de Realengo, bem como visa identificar a experiência da Fundação Casa Popular no próximo bairro de Guadalupe, na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1940 e 1960.
Palavras-chave: Habitação, Favela, Estado.
Abstract: The post war context marked a series of concerns with the housing issue. In Brazil, particular forms of popular housing construction draw attention, for if on the one hand we find the State acting in the construction of housing, on the other hand we verify a removalist policy that characterized a period. Thus, this article aims to analyze how in the same neighborhood, housing policy was developed in an environment of construction and removals, as in the case of Realengo, as well as aims to identify the experience of the Popular House Foundation in the neighborhood of Guadalupe, in the city of Rio de Janeiro between the 1940s and 1960s.
Keywords: Housing, Favela, State.
Introdução
A partir da década de 1930, o Brasil vive um novo período, econômico, social e político. No campo econômico, apresenta-se uma ampliação do mercado interno, consequência do crescimento populacional e da expansão de suas necessidades, além do impulso ao processo de industrialização que iria dominar o país nas décadas seguintes. Verifica-se também o reconhecimento da questão social enquanto caso de política, sendo criada importante legislação social que procurava mediar a relação entre capital e trabalho. Ao mesmo tempo, o período compreendido entre as décadas de 1930 e 1964 é reconhecido por alternar regimes democráticos e ditatoriais, estes marcados por processos de instabilidade política.
A realidade histórica traz a tona a existência de habitações precárias no país, por isso a tentativa de dissociar o controle sanitário e a atuação policial repressiva da moradia da classe trabalhadora pobre passa a ser repensada ao final da década de 1930 (Feldman, 2014). No que diz respeito à habitação social, foco deste artigo, pretende-se analisar, a partir do debate sobre habitação popular na região do subúrbio carioca; as intervenções realizadas pelo Estado Brasileiro tendo como foco áreas periféricas da cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, sobretudo no período pós-segunda-guerra. O artigo analisa a política de habitação social nessas áreas, onde inicialmente abordaremos a construção do conjunto do IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários) e a luta por moradia envolvendo os moradores da Vila do Vintém, ambos situados no bairro de Realengo, e em Guadalupe na Zona Norte, onde houve a atuação da Fundação da Casa Popular4, deixando explícito que se por um lado tivemos um Estado comprometido com a construção de moradias, por outro atuava na remoção e destruição de habitações populares.
Margeado pela Avenida Brasil ao norte e pela Estrada de Ferro Central do Brasil ao sul, Realengo está situado no subúrbio, mais precisamente na Zona Oeste carioca. Tem como vizinhos os bairros de Bangu, Padre Miguel e Deodoro, também situados na Zona Oeste e Guadalupe, este último localizado na Zona Norte. No que diz respeito a origem do termo que dá nome ao local duas versões merecem destaque: a primeira delas seria a de que o nome Realengo seria na verdade uma abreviação do nome Real Engenho, gravado nas placas que indicavam os caminhos para o bairro, já a segunda versão indica que o nome Realengo é uma variação do nome terras realengas, ou seja, terras que a priori eram “reais” e “sem dono”, pois pertenciam a coroa portuguesa e poderiam ser apreendidas como de “uso público” (MANSUR,2009; VIANNA,2010).
O lugar ganha importância a partir de 1811 com a fundação da academia militar por D.João VI. Tanto a escola militar como a fábrica de cartuchos, criada em 1898, acabaram por impulsionar as atividades econômicas na localidade, sobretudo nos anos 1920 e 1930, já que a freguesia era constituída por funcionários que ali trabalhavam. A eletrificação da Estrada de Ferro em 1937, que possibilitou o deslocamento em massa dos moradores dessa região para a área central da cidade, e a inauguração do conjunto do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (IAPI), em 1943, também são momentos marcantes5.
Guadalupe tem sua origem no desdobramento das glebas da antiga fazenda da Boa Esperança na Freguesia de Irajá. Cravado nos limites do que hoje denominamos Zona Norte do Rio de Janeiro, ele tem sua composição atual construída por diversos programas de habitação popular como os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPIs) e a Fundação da Casa Popular. O parque industrial do bairro era bastante significativo, com indústrias como a Remingthon, a Melhoral, a Pimaco, a Perdigão, a Brasvit e a Eternit. Quanto a origem do seu nome, existe uma grande dúvida entre os moradores do bairro. Existe três versões sobre o ocorrido e não existe consenso sobre os fatos. Tampouco o encontramos qualquer documentação que comprove as versões apresentadas.
A primeira delas é que seria derivada de uma homenagem a igreja Nossa Senhora de Guadalupe, sendo um pedido pessoal do pároco da igreja à Eurico Gaspar Dutra que tinha ido ao bairro para a inauguração de uma piscina pública. A segunda versão é a mais popular entre os moradores do bairro, nela a Senhora Darcy Vargas, esposa do presidente Getúlio Vargas, ao vir entregar algumas chaves de casa oriundas da Fundação da Casa Popular, teria feito a sugestão do nome em homenagem à padroeira da América Latina. A terceira talvez seja a mais intrigante. Ao consultar os arquivos da Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, encontramos um livreto no qual continha uma versão para a nomeação do bairro e não era nenhumas das anteriores: uma família católica do bairro, em 1947, procurou os Padres Agostinianos de Nossa Senhora das Graças, Marechal Hermes, para que celebrassem missa em seu lar. No dia 12 de dezembro, festividade de Nossa Senhora de Guadalupe, o Pe. Benedito celebrou essa missa. Ao fazer a anotação no livro de Missas, escreveu assim: ''Missa na Capela de Guadalupe".
A escolha em analisar o bairro de Guadalupe se dá pela sua riqueza histórica, muitas vezes invisibilizada na história da cidade e mesmo nos relatos sobre a atuação da Fundação da Casa Popular (FCP). Mesmo tendo recebido o maior número de empreendimentos da FCP, o bairro é pouco mencionado. Duas iniciativas são únicas de Guadalupe: o condomínio Getúlio Vargas e as Casas Iglus, essas últimas só foram construídas em Guadalupe. Entendemos que esses dois locais relativamente próximos apresentam importante significado na discussão sobre habitação social na cidade e mesmo no país, seja pela experiência de uma política de habitação levada a cabo pelo estado com os IAPIs ou a Fundação da Casa Popular, assim como, mais especificamente para o caso de Realengo, a existência de políticas de remoção de favelas não limitadas nas áreas centrais.
Construção de um lado, remoção do outro: o caso de Realengo
As ações do Estado podem ser consideradas enquanto elemento chave para a produção de moradia popular, sobretudo a partir do advento do Estado Novo quando se projeta a imagem do operário como peça importante para o desenvolvimento da nação. Ao mesmo tempo em que essa construção simbólica ganha corpo com a produção de conjuntos habitacionais, como os da FCP em Guadalupe ou o do IAPI em Realengo, por outro lado, nesse último bairro, é possível identificar importante luta por moradia, envolvendo habitantes da favela da Vila do Vintém e os poderes públicos.
Os anos 1940 marcam um intenso debate sobre habitação popular por meio da imprensa. Os jornais comunistas apresentavam grande volume de matérias sobre as condições de moradia dos trabalhadores nas principais cidades brasileiras. Os debates apontavam que o modelo produzido pelo mercado não era suficiente para responder à questão habitacional, sendo necessária a intervenção do Estado na produção e financiamento da casa própria. (BONDUKI,1998).
Esse mesmo autor demonstra que ao mesmo tempo em que engenheiros se empenhavam na indispensável redução dos custos na produção de moradias, profissionais de outras áreas6 trabalhavam no sentido de demonstrar que a obtenção de casas dependia também da vontade do trabalhador, devendo esse ser convencido a viver na periferia das cidades, ou seja, segundo essa ideia, era preferível viver em áreas ainda desprovidas de infraestrutura a habitar cortiços ou favelas nas regiões centrais.
O conjunto do IAPI, por exemplo, inaugurado no ano de 1943, pode ser considerado estratégico já que a aquisição de habitação fazia parte de um plano de construção de um universo urbano-industrial. O conjunto de Realengo era fruto do reconhecimento da importância do operário da indústria como peça importante do processo de industrialização (BOTAS,2011). Outro ponto importante sobre a escolha desse bairro como localidade que receberia o conjunto é justamente o esforço do Estado em ocupar novos espaços urbanos. Sua construção vinha acompanhada de outros serviços, funcionando como atrativo para os funcionários do instituto.
A Assistência Social deveria abranger um amplo elenco de atividades de cunho recreativo e de auxílio a necessidades diversas como: a escola primária, cursos de alfabetização de adultos, cursos profissionalizantes creches e cursos de puericultura e dietética infantil; festas e divertimentos populares, teatro operário, orfeão infantil e esportes diversos; socorros eventuais como distribuição de roupas, mantimentos e remédios, auxílios para registro de nascimento e expedição de certidões; promoção de concursos de fundo higiênico e educativo; entendimento entre vizinhos, com os patrões, com os sindicatos e outras instituições (...) (BOTAS, 2011, p. 193).
O conjunto construído em Realengo era composto de 2.344 unidades, levando em conta casas e apartamentos. Ficava localizado próximo a linha férrea e das estações de trem de Realengo e Padre Miguel (antiga estação Moça Bonita). Havia uma infraestrutura que contemplava rede de água, luz e esgoto e galeria de águas pluviais, também contava no seu planejamento inicial com serviços de caráter coletivo como escola primária, creche, ambulatório médico, quadra para prática de esportes, um templo católico e um horto florestal (Bonduki, 1998).
Imagem 1. Propaganda do IAPI em Realengo. Detalhe para a produção do bairro operário, da linha do trem que ligava rapidamente o bairro ao centro da cidade e do aparato de serviços disponíveis aos moradores do conjunto. Fonte: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 20 de set. de 1942, p.23. Edição 222.
O ideário do Estado Novo pretendia forjar consensos em torno da dimensão envolvendo o trabalho, logo, a figura do trabalhador disciplinado e atuando em coesão com o novo regime era não apenas valorizada, mas sobretudo incensada. Assim, nada melhor do que vincular a ética do trabalho a aquisição de moradia, tornando o trabalhador também um proprietário.
Todavia, mesmo que o acesso a moradia tenha contribuído para forjar essa espécie de trabalhador modelo, é preciso compreender que experiências como a do conjunto IAPI não foram suficientes para cobrir o déficit habitacional da época, inclusive porque esse sistema acabava por não contemplar o grande número de trabalhadores informais (GONÇALVES,2012). Nesse caso, aqueles que estavam fora dessa lógica, acabavam por construir sua própria moradia em atividades que ora eram toleradas, ora eram perseguidas e combatidas pelo próprio Estado.
Se, por um lado, a proposta do conjunto do IAPI situava a ideia do operário como motor da nação, sintetizando o desejo do Estado em ocupar novos territórios, vislumbrando a expansão da cidade rumo aos subúrbios, por outro, no mesmo bairro, a poucos metros de distância, a favela Vila do Vintém7 crescia de maneira vertiginosa e se manifestava como a outra face da política pública de moradia do período.
O relatório da SAGMACS8 (1960) assinala que a produção de moradias do conjunto de Realengo significou ao mesmo tempo a destruição de outras na Vila do Vintém. Segundo o documento, barracos foram demolidos para a construção dos apartamentos do conjunto IAPI, sendo os moradores transferidos para outros barracos construídos pelo próprio instituto no interior dessa favela. Houve forte reação, já que muitos deles não permaneceram no local, procurando abrigo em instituições filantrópicas. Outro aspecto importante citado por essa pesquisa é que por algum tempo ocorreram boatos de que o IAPI ergueria novas edificações no local, paralisando a melhoria das construções.
O caso da Vila do Vintém nos parece emblemático, já que além da questão envolvendo o conjunto do IAPI, ocorreu entre 1947 e 1955 contínuas tentativas de remoção de seus moradores. Esse caso trouxe consigo uma importante experiência de luta por moradia que envolve aspectos de conflitos e negociações com o poder público, bem como a eleição de outros canais de denúncia como jornais e o judiciário.
Este período também marca a disputa dos favelados por parte de grupos de esquerda e direita, tanto o Partido Comunista Brasileiro (PCB), influente mesmo após a sua cassação, quanto a UDN9 compreenderam que a questão envolvendo a favela ganhava os debates de caráter nacional e que seus moradores começavam a se constituir enquanto importante capital político10. Seria justamente o PCB, por meio do jornal Tribuna Popular em 4 de fevereiro de 194711, que a “mais nova favela do Rio de Janeiro” era apresentada:
A Vila do Vintém é a mais nova das Favelas do Rio de Janeiro. Está nascendo agora. São centenas e centenas de trabalhadores escorraçados da cidade pela crise de moradia. Gente cujo salário insuficiente não lhe permite, sequer, morar numa “cabeça de porco”. Naqueles terrenos que a princípio diziam ser da prefeitura e, agora, já afirmam ter outro dono a viúva Pinheiro Machado, a favela cresce espantosamente com o trabalho diário dos moradores. Não custa nada, é só chegar armar quatro esteios de bambu, cobrir com folhas de zinco e pronto, está construída a nova moradia.
A reportagem da Tribuna Popular ainda chama a atenção para o que denominam de “Crise das Torneiras”, ou seja, o verdadeiro suplício pelos quais passavam os moradores para conseguir água potável. A tribuna popular, a partir de tom bastante crítico ao então Prefeito Hildebrando de Araújo Goes, aponta que problemas similares ocorrem no Morro de São Carlos e na Mangueira e encerra a matéria com uma frase de uma moradora da recém-criada Vila do Vintém: “Essa vida de miséria tem que acabar! Para isso é que existe o Partido Comunista e uma maioria de vereadores do povo na câmara municipal!”.
Todavia, mais precisamente no ano de 1948, o jornalista e futuro governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, escreve uma série de artigos no jornal Correio da Manhã intitulados como “A batalha do Rio”. Em artigo publicado em 09 de maio desse ano, Lacerda aponta para a necessidade de maior atuação do poder público nas favelas visando justamente evitar o aumento da influência comunista nesses lugares.
Melhorar uma favela não é contribuir para mantê-la, desde que melhorá-la significa dar aos seus habitantes melhor oportunidade e possibilidade de comer melhor, de educar-se, de ter mais saúde, etc, dando-lhes assim forças para sair da favela.
Segundo Gonçalves (2013), no caso específico da aposta de Lacerda não se tratava de consolidar as favelas no tecido urbano, mas de fazer algumas concessões, esperando a sua supressão definitiva, ou seja, promover pequenas melhorias visando fortalecer os seus moradores para que eles buscassem o seu futuro fora dali. Neste caso, as favelas eram vistas como um problema, uma espécie de chaga sob a cidade que deveria ser removida o quanto antes.
No plano ideológico, a aposta de Carlos Lacerda por meio da Batalha do Rio de Janeiro, expressava uma preocupação que tinha como base a pretensa ameaça comunista12 junto às favelas, além de fortalecer o nome do jornalista enquanto principal nome da oposição de direita no Rio de Janeiro, e mesmo em âmbito nacional. O futuro governador da Guanabara se apresenta como alternativa política a influência trabalhista e comunista nas favelas (SILVA, 2005). Nesse caso, também é preciso considerar que a campanha empreendida pela “batalha” acaba por estabelecer uma retórica junto à opinião pública no sentido de legitimar projetos de intervenção e modificação do espaço urbano carioca (OLIVEIRA, 2021).
Nesse bojo e sob influência da campanha levada por Lacerda, a gestão na prefeitura do Rio de Janeiro pelo prefeito Mendes de Moraes (1947-1951) precisa ser levada em consideração. Segundo Lima (1989), foi desenvolvido nessa gestão um plano de erradicação das favelas, incluindo uma tentativa de retorno ao campo por parte dessa população, a transferência de pessoas com mais de 60 anos sem condições de sobrevivência para asilos, a proibição de residência nas favelas para aqueles que ganhassem salários superiores a um salário mínimo e a alocação de favelados contribuintes nos IAPIs.
Logo, uma série de ações começam a atingir a Vila do Vintém, ganhando amplo destaque na imprensa da época. O ano de 1948 iria apresentar-se enquanto início de uma série de tentativas de extinção dessa favela, e a partir dali organizava-se também o momento da resistência dos moradores. A reportagem do Correio da Manhã, de 10 de agosto de 1948, noticia que nessa data representantes da Associação Pró-melhoramentos da Vila do Vintém entravam com um mandado de segurança contra a Prefeitura, uma vez que essa havia mandado derrubar barracos daquela Vila.
As redações dos jornais se configurariam como parte importante da estratégia dos moradores da Vila do Vintém visando a permanência no local. Não foram poucas as vezes em que esses iam diretamente à sede dos periódicos para denunciar as violações das quais estavam sendo vítimas. Um exemplo disso é a reportagem do Diário de Notícias de 7 de agosto de 1948, nela consta que procurou a redação desse jornal uma comissão de moradores com o intuito de reclamar da demolição de seus barracos, mesmo com um mandado de manutenção de posse expedido em favor desses, foram demolidos ao todo 46 barracões com a participação da Polícia Municipal. Os moradores segundo a reportagem tiveram que pedir abrigo na casa dos vizinhos.
Outro ponto importante foi a escolha da Câmara dos Vereadores enquanto tribuna que funcionava como uma espécie de caixa de ressonância das reivindicações dos moradores. Nesse caso, chama atenção um abaixo assinado organizado pelos moradores e lido pelo Vereador Leite de Castro no sentido de pedir providências para que fosse interrompida a derrubada de suas casas, conforme relata o Jornal do Commercio em reportagem de 11 de agosto de 1948.
Os abaixo assinados, moradores da favela Vila do Vintém, em Moça Bonita, vem mui respeitosamente, pedir providências para que cessem a derrubada de seus barracões, dos quais já foram derrubados 46, no dia 4 do corrente por dois choques da Polícia Municipal, e ao mesmo tempo ordenar providências em benefício dos favelados.
A denúncia aos jornais, o apelo ao judiciário e a eleição de representantes passam então a configurar-se como importantes estratégias dos moradores na luta pelo direito a permanecer nos locais eleitos como moradia. Além disso, Silva (2005) aponta que os moradores continuaram com uma prática que obteve êxito desde 1930, ou seja, utilização de canais legais com a obtenção de sentenças favoráveis dos juízes, inserindo a questão da favela no campo legal, foçando o seu reconhecimento.
Os anos 1950 marcam um período de constante batalha no campo jurídico-político. É criada no ano de 1955 a CPI das favelas13, havendo uma intensa mobilização envolvendo lideranças de diversas localidades do Rio de Janeiro no aspecto da luta por moradia. Neste contexto, e a partir dos trabalhos desenvolvidos pela CPI, é emitido um parecer que decide pela desapropriação do terreno onde se localiza a Vila do Vintém.
Nesse caso, a década de 1950 apresenta uma mudança naquilo que tange as tentativas de erradicação das favelas, à medida que junto com as lutas por moradia que tinham os favelados como protagonistas, começa a tomar vulto uma série de ações judiciais que visavam a reintegração de posse dos terrenos. Logo, com o possível impacto social que remoções poderiam causar em áreas ocupadas por milhares de pessoas, a prefeitura acabava resolvendo por desapropriá-las14, congelando o conflito de maneira temporária, uma vez que em muitos casos a ausência de pagamento por parte da prefeitura fazia com que a disputa permanecesse por muitos anos (GONÇALVES,2012).
Por fim, é interessante notar que a ação do Estado nessa região específica da cidade obedece a lógicas contraditórias, mas que estão intimamente interligadas. Essas distintas formas de ação se exemplificam na construção de moradias para os operários no IAPI, ao mesmo tempo em que os moradores da Vila do Vintém tiveram que se organizar para manter suas casas. Neste caso, é preciso considerar que mesmo que condenadas e precariamente toleradas, (Gonçalves, 2013), as favelas foram se tornando, junto com a produção estatal de moradia dos IAPIs e da Fundação da Casa Popular, uma opção de acesso à casa própria.
O bairro de Guadalupe e a criação da Fundação Casa Popular
Guadalupe é um bairro localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, no extremo do subúrbio carioca e é uma das áreas mais pobres da cidade. Apesar da importância do subúrbio para a construção da identidade carioca, ainda é um espaço relativamente pouco trabalhado na reflexão urbana da cidade15. Normalmente, o termo subúrbio está associado a uma região localizada nas periferias dos centros urbanos, com alta densidade demográfica e tem sua função social associada à ideia de dormitório dos trabalhadores. O subúrbio, no Rio de Janeiro, não se limita aos pontos acima, mas apresenta também um caráter afetivo e de pertencimento de sua população.
Não existe resolução administrativa definindo territorialmente o subúrbio. Defendemos que apesar de ser geograficamente identificável, o conceito de subúrbio carioca é mais amplo do que seus contornos propriamente espaciais. Normalmente, delimita-se espacialmente o subúrbio carioca, aqueles bairros situados na Zona Norte do Rio de Janeiro e se encontra dividido por vias de transporte de massa, seja elas os ramais de trens, a linha 2 do metrô ou a Avenida Brasil. Ele é cortado pela linha auxiliar do ramal de trem Belford Roxo e faz divisa com o ramal Deodoro tanto em Marechal Hermes como em Deodoro, mas o trem não é um eixo central de transporte do bairro.
Na tentativa de descrever então o que seria o subúrbio carioca, Nelson da Nobrega Fernandes (2011, p.34-35) nos traz sua visão do carioca sobre:
1) A posição periférica e extramuros é invariante em sua história, garantindo uma homologia mínima entre a realidade e a palavra, o que é completamente abstraída quando convertida no conceito carioca de subúrbio. Essa perda de sentido, locacional e espacial o insólito aspecto urbano de nossos subúrbios visto por Lima Barreto é uma característica essencial do modo como é usada no Rio de Janeiro;
2) O segundo aspecto que conforma o conceito carioca de subúrbio é a sua referência exclusiva e obrigatória para os bairros ferroviários e populares do Rio de Janeiro;
3) O terceiro aspecto do conceito carioca de subúrbio consiste na não utilização desta palavra para designar os setores periféricos ocupados e identificados com a classe média e alta.
Segundo Torres (2018), a partir dos anos 40, com a abertura da Avenida Brasil, o fluxo para o subúrbio não era mais guiado apenas pelos “trilhos do trem” ou dos bondes. O bairro de Guadalupe está localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, é cortado pela Avenida Brasil e com linhas de trem em suas adjacências. Além disso, a população tem forte pertencimento ao local com grande mobilização para alcançar recursos e serviços coletivos diante da ausência dos poderes públicos no bairro.
Guadalupe está situado a cerca de11 km do bairro de Realengo e foi também um centro importante de construção de moradias populares. A Fundação da Casa Popular fez do bairro o centro de suas iniciativas em produção de moradia no pós-segunda-guerra16. O Conjunto Getúlio Vargas, entregue em 1956, é um marco da arquitetura modernista. Ele é composto por 26 blocos e 1314 apartamentos (Diniz, 2007) e que, como principal destaque, temos o bloco 19, prédio em formato de serpente, semelhante ao famoso Pedregulho, porém, maior, com 350 apartamentos (Manoel, 2016, p. 7).
Do outro lado da Avenida Brasil, a Fundação da Casa Popular construiu o conjunto Carmela Dutra com 1450 casas e seis tipos de construção: Balão, alumínio, madeira, eternite, de placas de concreto e de alvenaria de tijolos17. Nesse conjunto de casas, podemos citar um modelo pioneiro e audacioso, as chamadas “casas balão” ou “casas iglus”. Na sua formação original, eram compostas por sala e quarto ou sala e dois quartos, cozinha e banheiro, sendo o único tipo de construção da antiga Rua 3, hoje denominada Calama.
Imagem 2. Casa Balão - Diário de Notícias.Rio de Janeiro. 18 Jan 1948. p. 30 Edição 07741
Para atingir esse modelo arquitetônico de casa, enchiam um balão de lona plástica e as portas e as janelas eram marcadas com fôrmas de madeira. Após esse processo tudo era revestido por uma tela metálica e recoberto por cimento. Na parte interior da casa tem paredes abauladas, o que faz com que os moradores tenham alguma dificuldade na disposição de móveis. As paredes que dividem os cômodos são retas, mas não chegam ao teto.
O último modelo de habitação popular foram os apartamentos das antigas ruas zero e um. Eles tinham 3 andares, com 2 apartamentos cada. Eram colados um no outro, porém não interligados e ficavam dispostos à margem da Avenida Brasil.
A Fundação da Casa Popular foi o primeiro órgão de âmbito nacional que se dedicou exclusivamente a construção de unidades de habitação popular destinados a população de baixo poder aquisitivo, conforme explica Botas e Koury:
Apenas em 1946 com a Fundação da Casa Popular, que foi criado um órgão federal com fundos unificados e com o único objetivo de produzir moradia urbana e rural para os trabalhadores brasileiros. Seu projeto original previa a reunião dos recursos dispersos nos institutos previdenciários criando, assim, as condições desejáveis para empreender uma política universal fazendo frente à expansão da crise de moradia em meados de 1940 (Botas e Koury, 2014 p. 147-148)
Apesar de fortes investimentos do Estado na construção de habitação social, esses não se manifestaram na implementação de serviços públicos. Acreditamos, assim, que parte da constituição da identidade suburbana de Guadalupe passa também pela perspectiva de estar às margens do Estado.
Em entrevistas realizadas em pesquisa anterior, observa-se muitos relatos de mutirões para levar água, adequar o recolhimento de lixo, construção de escolas e equipamento de saúde18. Isso tudo permitiu a emergência de movimentos, que levaram a construção de laços sociais importantes. Apesar do bairro ter recebido também projetos habitacionais dos IAPIs e posteriormente do Banco Nacional da Habitação (BNH), entendemos que a compreensão da singularidade da Fundação da Casa Popular passa necessariamente na compreensão do impacto de suas construções no local onde mais recebeu unidades dessa Fundação e foi determinante inclusive para a fundação do bairro de Guadalupe. Tanto em Guadalupe quanto em Realengo, a produção de moradia popular teve um papel central na consolidação do subúrbio carioca.
Considerações Finais
A provisão de moradia popular sempre foi um tema central para o desenvolvimento das cidades brasileiras, sobretudo se levarmos em consideração o Rio de Janeiro, então capital federal. No que diz respeito à política de habitação, a virada para os anos 1940 marca uma tentativa de flexibilizar o pacto liberal anterior, colocando o Estado enquanto indutor das ações nesse campo. Entretanto, esta ação não ocorreu sem problemas e contradições, visto que a entrada do país em um novo estágio urbano-industrial provocava ao mesmo tempo um processo de desenvolvimento que vinha acompanhado de um acirramento da questão social, exigindo novas respostas e formas de intervenção.
As políticas de habitação, expressas nos casos dos IAPIs e da FCP, configuraram-se enquanto importantes inciativas, sendo o subúrbio palco destas inovações. É preciso considerar que a provisão de moradia popular nesses casos auxiliou na construção de determinada identidade aos bairros de Realengo e Guadalupe.
É interessante sublinhar também que a luta por moradia se manifestava na provisão informal de moradia, como mencionamos no protagonismo de moradores de uma favela da região, a Vila do Vintém. Assim, ao mesmo tempo em que o subúrbio fazia parte de um plano mais amplo de desenvolvimento e de construção de moradias, é preciso considerar que as favelas também cresciam em bairros do subúrbio e suscitavam tensões, como foi o caso da tentativa de remoção da Vila do Vintém.
Este artigo procurou finalmente mostrar como a atuação ambígua do Estado ocorreu tendo o subúrbio como pano de fundo, uma vez que propostas inovadoras como os IAPIs e a Fundação Casa Popular não lograram responder ao déficit habitacional e vieram acompanhadas de um discurso de criminalização de formas informais de produção de moradia. A luta pela permanência dos moradores de favelas não se limitou aos bairros centrais, mas também nos subúrbios cariocas.
Referências
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Notas
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