Habitação social e políticas urbanas durante a Aliança para o Progresso no Recife na década de 1960
Affordable Housing and Urban Policy During the Alliance for Progress in Recife in the 1960s
Habitação social e políticas urbanas durante a Aliança para o Progresso no Recife na década de 1960
O Social em Questão, vol. 1, núm. 53, pp. 87-112, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Recepción: 01 Noviembre 2021
Aprobación: 01 Diciembre 2021
Resumo: Analisando a produção de políticas urbanas na América Latina durante a Guerra Fria, este artigo explora a construção estatal de conjuntos habitacionais no Recife, Pernambuco na década de 1960. Essas moradias populares foram construídas durante um período de efervescência de circuitos de ajuda econômica e assistência técnica estrangeira. Analisando similaridades e diferenças entre diferentes concepções de industrialização, urbanização e desenvolvimento, este artigo mostra como urbanistas, políticos, diplomatas e acadêmicos usaram, durante a Aliança para o Progresso, diferentes ideias econômicas, arquitetônicas e políticas por meio da provisão estatal de habitação para tentar moldar culturalmente a classe trabalhadora pernambucana.
Palavras-chave: Habitação Social, Urbanismo, Guerra Fria, América Latina, Brasil.
Abstract: Analyzing the production of urban policies in Latin America during the Cold War, this article explores the construction of state-sponsored housing projects in Recife, Pernambuco, in the 1960s. These housing projects were built in a period of abundant circuits of foreign economic aid and technical assistance. It also analyzes similarities and differences among different conceptions of industrialization, urbanization and development. In doing so, this article demonstrates how during the Alliance for Progress urban planners, politicians, diplomats and academics used different economic, architectural and political ideas in the state provision of housing. They did so to try to culturally shape Pernambuco’s working class.
Keywords: Affordable Housing, Urbanism, Cold War, Latin America, Brazil.
Introdução
Em 1963, após o governador de Pernambuco Cid Sampaio (1959-1963) se despedir de seu cargo inaugurando publicamente os conjuntos habitacionais do Alto do Jordão e Ibura, o seu sucessor e oposicionista, Miguel Arraes (1963-1964), junto com aliados, começava a construção da comunidade Cajueiro Seco; todos construídos pela agência estadual habitacional Serviço Social Contra o Mocambo (SSCM). Apesar do objetivo semelhante de fornecer moradia acessível para moradores de povoados informais, ambos apresentaram processos políticos, econômicos e arquitetônicos diferentes. Apesar desses modos de vida conflitantes terem sido enfatizados pela Guerra Fria, eles eram um produto da própria história local de Pernambuco e do Brasil. A longa história dos tradicionais mocambos pernambucanos como moradia informal desde o século 19 se estende pelo século 20 com a provisão estatal de habitação social tentando se tornar o principal tipo de abrigo da região. Para as autoridades e elites, se nas primeiras três décadas do século XX a habitação era vista como uma questão médica e sanitária de higiene, a partir da década de 1940 e mais enfaticamente depois de 1970, os esforços de produção em massa de casas e apartamentos se transformam mais em uma questão política-econômica. Este artigo foca no período entre essas duas datas e defende que, além de fornecer diretamente moradia especifica para a classe trabalhadora, a provisão de habitação social no Recife, durante a Aliança para o Progresso na década de 1960, se manifestou semelhante ao que afirma a pesquisadora Amy Offner sobre habitação na Colômbia; como uma forma de transformar “uma população indisciplinada, dotando os pobres de novas lealdades sociais e políticas que restaurariam a ordem ao país” (OFFNER, 2019, p. 82).
À luz da discussão elaborada sobre história urbana na América Latina por pesquisadores e pesquisadoras como Leandro Benmergui, Mark Healey, Amy Offner, and Gilbert Joseph, este artigo examina o papel das autoridades e elites na construção de habitação social no Recife durante o pico da Guerra Fria. Examinando ideias e práticas dos responsáveis diretos e indiretos pela construção de habitação durante a década de 1960 em Pernambuco, este artigo considera que o caso de Recife é diretamente relacionado aos casos de Bogotá, Colômbia; Buenos Aires, Argentina; e Rio de Janeiro, Brasil. Ao considerar a importância concreta da Aliança para o Progresso e da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) no desenvolvimento habitacional de Recife, o presente artigo é uma análise do que o historiador Leandro Benmergui chamou de “zona de contato” ao falar sobre o Centro Interamericano de Vivenda y Planeamiento (CINVA) em Bogotá e sobre o Programa de Habitação da Guanabara no Rio de Janeiro (BENMERGUI, 2009). Entretanto, enquanto o CINVA aparece como um exemplo de influência da Teoria da Modernização e da Aliança para o Progresso, o caso do SSCM aparece como um espaço de batalha entre projetos conflitantes e às vezes convergentes entre a Aliança e a CEPAL. Apesar de o caso de Recife ser parte dos circuitos globais de financiamento e conhecimento em estudos e práticas urbanas, ele é genuinamente um caso brasileiro, em que políticos e elites locais usavam conhecimento elaborado de fora e criavam uma prática própria baseada na realidade local.
Muito da literatura brasileira sobre as cidades foca na provisão de moradia popular nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, após a década de 1970, devido a emergência de movimentos sociais pressionando pelo direito ao teto e à terra2. No entanto, pouco se fala no pioneirismo da construção estatal na cidade do Recife, sendo que a primeira agência de habitação brasileira, a Fundação A Casa Operária surgiu na cidade em 1924 (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 21 de maio de 1924). Enquanto a literatura prevalente foca em desvendar o impacto de recentes políticas urbanas no crescimento de favelas, este artigo questiona as origens e as razões históricas por trás dos esforços estatais de provisão de moradia popular no Nordeste. Analisando o período de 1950 a 1974, conjuntos habitacionais se proliferaram por Recife e pelo estado inteiro por meio da vontade de diferentes unidades governamentais de atender não só a demanda por teto, mas para concretizar suas próprias idéias. Neste contexto, este artigo insere o caso de Recife no que o pesquisador Adrián Gorelik (2003) chamou de a "construção cultural da cidade Latino-americana". A habitação estatal em Pernambuco durante a Guerra Fria significou muito mais do que somente providenciar um teto para a classe trabalhadora urbana emergente. Por meio de discursos e práticas que fomentavam anticomunismo, desenvolvimento e industrialização regionais e uma economia de crédito, autoridades e elites usaram a habitação social durante a década de 1960 especificamente para tentar moldar a identidade dos trabalhadores de Pernambuco e integrar o estado na economia nacional.
Antes de focar no período da Aliança para o Progresso, este artigo inicia discutindo o contexto de pós-guerra analisando políticas urbanas e econômicas locais, nacionais e hemisféricas. Ao passo em que a Guerra Fria se torna mais evidente, ansiedades com a expansão do comunismo pelo Brasil crescem e atingem o setor habitacional. Com o estado se tornando o principal promotor de moradia, novos meios de financiamento impulsionam a industrialização e o desenvolvimento do Recife e do Nordeste brasileiro. Em seguida, o artigo analisa os papéis de novas agências e institutos desenvolvimentistas e industrializadores. Neste sentido, ao examinar essas organizações ele também discute teorias econômicas como a Teoria da Modernização e a Industrialização por Substituição de Importação conectadas com circuitos globais de troca de conhecimento e financiamento que influenciaram a construção habitacional. Em seguida, o artigo foca nas ideias e práticas dos responsáveis pela moradia popular desenvolvida pela Aliança para o Progresso durante o governo estadual de Cid Sampaio (1959-1963). Por fim, mostramos como o estado mudou com o surgimento do regime militar após 1964 e como o estado reagiu quando o financiamento da Aliança para o Progresso cessou no fim da década de 1960.
Política, Economia e Desenvolvimento no Setor de Construção Habitacional do Pós-Guerra
A derrubada do presidente Getúlio Vargas (1930-1945) resultou na demissão de todas as autoridades Pernambucanas de seus cargos institucionais. Com o Marechal Eurico Gaspar Dutra na presidência (1946-1951), o estado brasileiro tentou ao máximo retirar de suas instituições apoiadores Varguistas. Entretanto, a linha política de eliminar a presença de comunistas ou simpatizantes do comunismo continuou. Depois do fim da Segunda Guerra mundial, as autoridades responsáveis por habitação social enfatizaram suas preocupações com atividades subversivas dentro dos conjuntos habitacionais e da principal agência estatal de construção deles no Recife, o Serviço Social Contra o Mocambo (SSCM). Ao afirmarem que moradores das vilas estavam desenvolvendo “intensa propaganda de seu credo político extremista," os novos responsáveis pela habitação social no Recife estavam preocupados com a presença de membros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) vivendo nas vilas do SSCM (SERVIÇO SOCIAL CONTRA O MOCAMBO, 30 de agosto de 1946). Devido as várias reclamações e suspeitas de que certos moradores eram comunistas, o Departamento de Reeducação e Assistência (DRA) do estado de Pernambuco determinou o fechamento do Centro Educacional do bairro de Areias e incitou todos os profissionais e os administradores de outros centros a reportarem sobre qualquer atividade suspeita de moradores subversivos (SERVIÇO SOCIAL CONTRA O MOCAMBO, 30 de agosto de 1946).
Em 1950, grandes jornais do estado de Pernambuco, como o Diário de Pernambuco, reforçavam a relação entre habitação social e atividades comunistas. Em um artigo, o jornal reclamava do oportunismo comunista ao tentar se beneficiar da provisão estatal de casas para disseminar suas idéias (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 4 de julho de 1950). Para os representantes do jornal, a "cultura do mocambo," habitação informal das camadas mais empobrecidas da região, era o resultado da crescente miséria em Pernambuco e necessitava ser tratada de maneira similar a uma doença como sífilis ou tuberculose. Em suas mentes, a única solução era a implementação de uma política pública democrática de habitação nacional para evitar “a destruição da sociedade pelo comunismo” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 12 de agosto de 1950).
Junto com esforços contra a presença comunista em moradia popular, as secretarias governamentais começaram a repensar jeitos de financiar a industrialização e urbanização brasileiras por meio da provisão de moradia. Pioneira nessa empreitada, a primeira agência estatal federal a repensar e tentar implementar essa mudança foi a Fundação Casa Popular (FCP), criada em 1946. Em 1953, a FCP tentou se transformar em um banco hipotecário (ANDRADE; AZEVEDO, 1980). Os líderes por detrás dessa ideia justificaram a criação de um banco devido a necessidade de garantir independência financeira e a dificuldade de angariar fundos por meio de impostos (ANDRADE; AZEVEDO 1980). O banco hipotecário da FCP previa diferentes fontes financeiras como lucro por transação e empréstimos privados (ANDRADE; AZEVEDO, 1980). Sem um apoio político massivo, o banco nunca realmente se estabeleceu como uma opção de centralizar as políticas habitacionais em uma só agência nacional de habitação; fato que somente foi atingido pelo Banco Nacional de Habitação em 1964.
Preocupado com a industrialização e o crescimento populacional de Recife, engenheiros como Antônio Bezerra Baltar começaram a entender a cidade como uma região metropolitana em expansão (SOUZA, 2007). Seguindo o pensamento de fomentar um desenvolvimentismo para além do centro de Recife, indicado por Getúlio Vargas em sua segunda administração, o interventor-governador Agamenon Magalhães aprovou, em 1952, a criação da Comissão de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (CODEPE). Junto com o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDE), a CODEPE surgiu como parte de um projeto de nacional-desenvolvimentismo que se espalhou por todo o Brasil durante a década de 1950 incentivado pela CEPAL. Baseado nos estudos do padre católico francês Louis Joseph Lebret sobre desenvolvimento e industrialização, a CODEPE focava no “desenvolvimento econômico do estado, mirando no progresso geral e no bem-estar de suas comunidades” (INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO DE PERNAMBUCO, 1981). Liderado pelo governo do estado em parceria com industrialistas e seguindo as idéias do padre Lebret, CODEPE propôs um desenvolvimento metropolitano equilibrado de Pernambuco usando matéria prima local e obedecendo a cultura e a ecologia de cada parte do estado. Tentando concretizar o plano de desenvolvimento do estado, CODEPE financiou e organizou uma turnê de Lebret por todo Pernambuco entre 4 e 17 de agosto em 1954. (INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO DE PERNAMBUCO, 1981).
A criação dessas agências e instituições regionais e nacionais no Brasil seguiu a tendência econômica latino americana liderada pelo economista Raúl Prebisch e seus colegas na CEPAL. A CEPAL propôs que os estados interviessem no desenvolvimento de seus países por meio do fomento de industrialização e urbanização interna. A proposta da CEPAL foi baseada na premissa que cada país precisava tentar reduzir sua dependência estrangeira por meio da produção local de produtos industrializados ao invés de exportar matéria-prima para nações mais desenvolvidas (TENÓRIO; WANDERLEY, 2019).
Entre 1951 e 1954, o presidente Getúlio Vargas tentou guiar o governo federal para o enquadramento econômico planificado do nacional-desenvolvimentismo por meio de políticas públicas inspiradas na CEPAL. A posição econômica da CEPAL influenciou a América Latina, o Brasil e especificamente o Nordeste brasileiro. O principal parceiro de Prebisch era o economista nordestino brasileiro, Celso Furtado. Em 1953, Furtado era o presidente do Grupo Misto de Estudos que combinava CEPAL e BNDE, alinhando a América Latina e o Brasil em uma tentativa de mesma direção econômica. Junto com Furtado e Lebret, o recifense Antônio Bezerra Baltar surgiu como um engenheiro regional pioneiro que formulou um conceito adaptado de cidade integrada na região. Baltar se tornou reconhecido por fundar o Movimento Humanista Econômico (MEH) e criar o Centro de Planejamento Urbano Regional, CEPUR (PONTUAL, 2011).
Baltar foi inspirado pelas ideias do padre Louis-Joseph Lebret que combinavam o humanismo com o urbanismo e formulava as primeiras linhas gerais para um planejamento urbano-industrial regional de Recife em 1950. Com a ajuda da CEPAL e de Prebisch, Baltar ajudou a organizar a turnê do padre Lebret por todo o estado de Pernambuco e também colaborou na escrita do guia de Lebret para o desenvolvimento industrial de Pernambuco em 1954 (PONTUAL, 2011). Em 1958, Baltar, junto com o engenheiro Mário Laranjeiras de Mendonça e o arquiteto Newton Oliveira, participou do Seminário de Técnicos e Funcionários em Planejamento Urbano do Centro Interamericano de Vivienda y Planeamiento (CINVA) em Bogotá, Colômbia. O seminário disseminou as idéias humanistas e contou com pesquisadores de todo o mundo como o sociólogo das Nações Unidas Sakari Sariola, o urbanista Peruano Luís Dorich, o professor da Universidade da Califórnia Francis Violich e o diretor da CINVA, Eric Carlson (PONTUAL, 2011). Baltar contribuíu diretamente no seminário ao participar em todos os debates e presidir uma das comissões (PONTUAL, 1999).
No contexto global da década de 1950, Raúl Prebisch, Celso Furtado, Getúlio Vargas e CEPAL, apesar de suas diferenças, convergiam de uma certa maneira ao redor da proposta econômica da Industrialização pela Substituição de Importações (ISI). Uma proposta que contrastava diretamente com a política econômica de industrialização orientada para exportação (HIRSCHMANN, 1968). Descartando se a CEPAL realmente atingiu seus objetivos ou não, o fato é que o Brasil durante a década de 1950 se tornou um lugar de tentativas de implementação de políticas diretas relacionadas a um rápido e sólido desenvolvimento de indústrias de aço, químicos e bens materiais combinado com tentativas de oferta de capital e da emergência de uma ideologia desenvolvimentista (HIRSCHMANN, 1968). Sendo o ápice dessa época o governo federal de Juscelino Kubitschek (JK) (1956-1959) com o seu Plano de Metas. Ao elaborar a promessa de 50 anos de desenvolvimento em 5, JK abraçou a política de rápida industrialização por meio de um nacionalismo-desenvolvimentista com ênfase na indústria básica inicialmente incitado pela CEPAL, mas com uma forte ajuda do capital privado internacional e com um protagonismo compartilhado entre capital privado e o Estado. Assim, JK impulsionou o uso de políticas de crédito para desenvolver indústrias-chave como a de produção de veículos e automóveis (SKIDMORE, 2007).
No começo dos anos 1960, em oposição as políticas de Furtado e Prebisch e para domar os efeitos da Revolução Cubana a proposta econômica da Teoria da Modernização espalhou-se como política externa dos Estados Unidos pela América Latina por meio da Aliança para o Progresso. Sua introdução na região se deu principalmente por intermédio de viagens de diplomatas, elaboradores de políticas públicas, políticos e tecnocratas responsáveis pelo acordo econômico da Aliança, elaborado pelo governo dos Estados Unidos de John F. Kennedy e assinado por 22 países latino-americanos. Alinhada com ideas formuladas por políticos brasileiros como Carlos Lacerda do Rio de Janeiro, Aluízio Alves do Rio Grande do Norte e Cid Sampaio de Pernambuco, a Aliança para o Progresso foi criada e disseminada por teóricos da Teoria da Modernização como Daniel Lerner, Lucian Pye, Paul Rosenstein-Rodan, Walt Whitman Rostow, Max Milikan e Talcott Parsons (LATHAM, 2000). O propagandista mais conhecido e ativo da Teoria e diretamente ligado a Aliança foi Rostow. Inspirado pelas idéias de Parsons, Rostow entendia que para a América Latina atingir ao nível de desenvolvimento de países como os Estados Unidos era preciso impulsionar um estado de bem-estar social por meio de investimento em necessidades básicas associadas com valores democráticos e capitalistas que fomentariam o crescimento de indivíduos e famílias (TURNER, 1993). Assim, a Aliança para o Progresso, criada em 1961, se tornou o meio no qual especialistas e políticos tentaram impulsionar uma modernização na América Latina.
A década de 1950 mostrou um nordeste brasileiro vivendo o crescimento de ideias comunistas pela a insurgência de associações de trabalhadores rurais que criticavam o modelo de latifúndio, como as Ligas Camponesas, a eleição de políticos de esquerda e comunistas, e a influência da Revolução Cubana de Fidel Castro em 1959. Assim, com o intuito de domar o crescimento do comunismo no nordeste brasileiro, os Estados Unidos assinaram acordos diretos com estados brasileiros para efetivar projetos da Aliança para o Progresso com aliados locais. Em um mundo de pós-guerra altamente polarizado, políticas econômicas atreladas à urbanização disputavam corações e mentes de políticos e elites locais e faziam da Guerra Fria, um conflito concreto na América Latina.
Aliança para o Progresso e Habitação no Recife (1960-1964)
No contexto de práticas e teorias urbanas, nada representa melhor a batalha da Guerra Fria do que a construção estatal de moradia popular em Recife entre 1960 e 1964. Os três principais conjuntos habitacionais construídos na cidade durante esses anos foram o Alto do Jordão, Ibura e Cajueiro Seco. Enquanto Cajueiro Seco representou a autoconstrução de uma comunidade baseada na participação direta de famílias de baixa renda no processo de construção apoiado por políticos e urbanistas progressistas e de esquerda brasileiros, o Alto do Jordão e Ibura surgiram como uma produção de casas padronizadas baseadas em autoconstrução dirigida pelo Estado divulgada pela política externa financiada pelos Estados Unidos por meio da Aliança para o Progresso.
Financiadas pela Aliança para o Progresso e gerenciadas pelo estado de Pernambuco através de suas agências habitacionais Fundação Promoção Social e Serviço Social Contra o Mocambo, as comunidades do Alto do Jordão e Ibura foram projetos de autoconstrução dirigida (DIÁRIO DE PERNAMBUCO,15 de agosto de 1963). Parte do “Programa de Habitação Popular” do governador de Pernambuco Cid Sampaio, as construções do Alto do Jordão e Ibura foram elaboradas e feitas em 1962 por um grupo de técnicos, economistas, sociólogos, engenheiros, urbanistas e assistentes sociais das mais variadas entidades como CODEPE, CINVA, SSCM, Fundação Promoção Social, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o Instituto de Arquitetos do Brasil de Pernambuco e a Fundação Casa Popular (FCP) (GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO, 1962).
Considerando que Recife absorvia 20% da população do estado, ⅔ de seus residentes viviam em abrigos anti-higiênicos como mocambos, e o governo já tinha uma agência de habitação ativa, Pernambuco se tornou o lugar ideal para receber a Aliança para o Progresso (GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO, 1962). Pensando na construção do Alto do Jordão e de Ibura, o Banco Interamericano de Desenvolvimento convidou uma equipe do governo pernambucano em setembro de 1962, para participar de um curso de adestramento em autoconstrução no CINVA (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 16 de setembro de 1962). Detalhando estimativas de preços de material de construção, terra e força de trabalho, o projeto do Programa de Habitação Social serviu para o estado como um pacote de aplicação para receber o financiamento da Aliança para o Progresso e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Nesse documento ao estado constava a necessidade de construir mercado de alimentos, Centros Educacionais dos Trabalhadores (CET), centros médicos, escolas e bibliotecas, tudo dentro das comunidades do Alto do Jordão, Ibura e um par de outros pequenos projetos de autoconstrução na região metropolitana do Recife. Projetos esses que, de acordo com o documento, significavam objetivos Cristão e Humanista que poderiam consolidar o melhoramento da habitação e da segurança para a constituição de núcleos familiares (GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO, 1962). No entanto, o número de casas, os serviços e equipamentos urbanos prometidos nunca foram completamente construídos durante a existência da Aliança para o Progresso.
No começo de 1962, o estado de Pernambuco fechou o acordo de financiamento com os Estados Unidos após a conversa do governador Cid Sampaio com o presidente americano John F. Kennedy em Washington D.C. Sampaio fechou, por meio da Aliança para o Progresso, um investimento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (USAID) para construção de conjuntos habitacionais no seu estado (SAMPAIO, 1962). Para financiar esta empreitada, o BID exigiu que o estado pernambucano formasse um escritório para habitação contando com um "generalista em habitação" e um sociólogo (SAMPAIO, 1962). O plano previa a construção de 7 mil unidades habitacionais para todo o estado. Entretanto, durante a existência da Aliança para o Progresso no governo de Sampaio, somente a ajuda econômica dos Estados Unidos construíu 700 casas, 150 para Ibura e 550 para o Alto do Jordão. Visando tentar entregar o maior número possível de unidades, o estado de Pernambuco ainda financiou outras 400, totalizando a construção de 1.100 casas populares das 7 mil inicialmente prometidas, para mais ou menos 3.500 pessoas de famílias de baixa-renda no custo de $3 milhões e 860 mil dólares americanos (JORNAL DO COMMERCIO, 18 de Agosto de 1962; DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 29 de janeiro de 1963). Todas as 150 casas de Ibura foram destinadas para a polícia militar de Pernambuco que mais tarde vieram a ser parte da Vila Aliança (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 11 de dezembro de 1962). Dois dias antes de Cid Sampaio deixar o cargo de governador, no dia 29 de janeiro de 1963, Alto do Jordão e Ibura foram inaugurados (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 5 de maio de 1963). O projeto contou com dois tipos de casas, uma de 2 quartos e outra de 3 quartos, sendo a última considerada mais adequada para o padrão das famílias da região com um grande número de filhos (PROJETOS SOBRE HABITAÇÃO DO SSCM e BID, Caixa 48).
Assim, a autoconstrução dirigida do Alto do Jordão e Ibura pelo Serviço Social Contra o Mocambo (SSCM) em Recife surge como mais um exemplo de zona de contato como Leandro Benmergui definiu o caso do CINVA em Bogotá. Com influência da política externa dos Estados Unidos e a expertise arquitetônica e econômica adquirida durante o CINVA, o SSCM surgiu como um lugar no qual o “conhecimento externo foi absorvido pelo local e recebeu novos significados por meio de trocas e empréstimos de um diverso mundo de comportamentos e discursos” (JOSEPH, 1998, p. 5). Os dois projetos habitacionais foram elaborados por especialistas brasileiros como o engenheiro Israel Feldman do Departamento de Obras e Fiscalização do Serviço Público (DOFSP), Ivan Romanguera do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Pernambuco (IPSEP), Paulo Rangel Moreira e Otaviano Oliveira Dias do SSCM, e o economista da CODEPE Antônio Germano Rodrigues, que participou da troca de conhecimento na Colômbia (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 9 de junho de 1961) Com a participação direta de autoridades como o governador Cid Sampaio, o chefe de estado de Pernambuco Jordão Emerenciano, o advogado do SSCM Reinaldo Camara, o recém-eleito presidente do SSCM Cláudio Rodolfo de Paiva Lima, o responsável pelo Centro Educacional do Trabalhador, Odívio Silva, o presidente da Fundação Promoção Social, Luís Fernando Guedes Pereira e o consul dos Estados Unidos no Nordeste Brasileiro, Douglas Elleby (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 30 de janeiro de 1963).
Mudando a Política: CEPAL e a Habitação no Recife (1963-1964)
Em um espectro político diferente dos projetos habitacionais do Alto do Jordão e Ibura da Aliança para o Progresso, o projeto de autoconstrução do conjunto habitacional Cajueiro Seco surgiu na região metropolitana do Recife em 1963. A história de Cajueiro começou ao mesmo tempo em que Miguel Arraes se tornou governador de Pernambuco e Gildo Guerra se tornou o presidente do SSCM. Com rebeliões explodindo no estado, movimentos organizados como as Ligas Camponesas e ocupações de terra demandavam o direito a possessão de terras. No mesmo ano, um grupo de pessoas ocuparam e estabeleceram um acampamento informal em uma terra histórica onde em 1640 ocorreu a famosa Batalha de Guararapes; um conflito armado que ocorreu entre 1648 e 1649 e resultou na expulsão da colonização Holandesa de Pernambuco. Depois da ocupação, o exército Brasileiro se deslocou para proteger a área que pertencia ao governo federal. Entretanto, o governo estadual com agentes do SSCM como o seu presidente Gildo Guerra e o arquiteto Acácio Gil Borsói decidiram aproveitar a oportunidade para implementar um experimento habitacional no qual eles transferiram as 500 famílias do terreno ocupado de Guararapes para uma nova área que ficou conhecida como Cajueiro Seco (BORSÓI, online 2019).
O experimento Cajueiro Seco foi uma comunidade rural construída em uma área urbana com ex-moradores rurais. Usando casa de taipa para construir a comunidade significou a criação de um sistema rústico de painéis estruturais pré-fabricados feitos de palha entrelaçada e lama, e equipamento sanitário barato que formava um repertório tradicional de construção e usava matéria prima encontrada no local (BRUAND, 1981). A produção dos painéis consistia em alinhar a palha, arame farpado, pregos de ferro, e feno em um formato de folha de papel e com um telhado de palha ou junco (BORSÓI, 1984). Esse processo consistia em duas fases: a fabricação e a montagem. A primeira fase era a linha coletiva de fabricação da estrutura e a segunda uma montagem individual de acordo com cada família da estrutura pré-construída (BIERRENBACH, 2008). Desta maneira, os idealizadores do Cajueiro Seco pensavam na construção de casas semelhantes as habitações dos mocambos, entretanto com um formato mais higiênico em que pudessem ter janelas e portas amplas e um sistema sanitário; aspectos arquitetônicos que não existiam nos mocambos.
A mudança política no planejamento urbano de Pernambuco que se manifestava no experimento Cajueiro Seco aparecia como um retrato da mudança nacional em direção a Reforma Urbana influenciada pelo Movimento Economia e Humanismo liderado pelo padre Lebret e pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs). Essa mudança também foi encabeçada nacionalmente por meio de debates e revistas como Arquitetura, produzidos pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Entretanto, mesmo representando uma mudança, com novos participantes em comparação com o governo de Cid Sampaio, Cajueiro Seco, o projeto encampado pelo governo Miguel Arraes, ainda era, em parte, resultado das trocas de experiências no projeto CINVA, organizado pelos Estados Unidos na Colômbia. Neste sentido, independente da influência de governos com posições políticas diferentes como Cid Sampaio e Miguel Arraes, com influência do CINVA e da CEPAL, o SSCM atuou durante a Guerra Fria como uma zona de contato providenciando encontros de conhecimentos e especialistas em habitação, e promovendo práticas transformadoras.
Compartilhando das idéias de planejamento regional de Lebret, a planta de Cajueiro Seco e sua localização se encaixavam no conceito de Cidade Satélite descrito por Antônio Baltar enquanto discutia em 1951 a necessidade de industrializar e desenvolver Recife. De acordo com Baltar, Cidades Satélites seriam um grupo de Unidades de Bairro preenchidas com equipamento urbano adequado como sistemas sanitários, redes de eletricidade, telefone e transporte público, tudo organicamente organizado ao redor do centro da cidade (BALTAR, 1951). Nas palavras de Baltar, essas Unidades de Bairro seriam “comunidade auto-sustentáveis compostas por um centro local que concentraria todos os tipos de comércio para as necessidades diárias das famílias, além de igrejas e escolas primárias" (BALTAR, 1951, p. 98-99).
Em sua dissertação de mestrado sobre Cajueiro Seco, Diego Beja Inglez de Souza corroborou com a ideia de que a comunidade planejada se encaixa perfeitamente na descrição funcional de Baltar de Cidades Satélites como a expansão da cidade do Recife em direção a pequena cidade de Jaboatão de Guararapes (SOUZA, 2010). A ideia hegemônica que corria dentro do Instituto de Arquitetos do Brasil valorizava o papel do arquiteto em conectar a arquitetura com problemas sociais e desenvolvimento econômico (PONTUAL; RIBEIRO, 2009). Essa ideia distanciava os arquitetos de uma arquitetura tradicional que era até então implementada e que focava nos aspectos estéticos da profissão (PONTUAL; RIBEIRO, 2009). Ao promoverem os ideais da Reforma Urbana, Baltar e Guerra entendiam a habitação como um direito, uma maior participação direta do estado na construção de moradia popular e uma maior interferência de arquitetos em decisões políticas do mesmo assunto.
As ideias de um urbanismo humanista e da Reforma Urbana espalharam-se pela América Latina junto documento da Carta de los Andes, escrita por membros do Seminário de Técnicos e Trabalhadores em Planejamento Urbano do CINVA em 1958 (FELDMAN, 2014). O ano da inauguração de Cajueiro Seco, 1963, foi especial em definir novas políticas de habitação no Brasil. A aprovação nacional do conceito de Reforma Urbana por estudiosos das cidades veio depois do Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU) organizado por especialistas urbanos em coalizão com movimentos sociais no Rio de Janeiro e São Paulo (FELDMAN, 2014). O resultado desse seminário defendeu as Reformas Básicas do presidente João Goulart com um grupo de medidas sociais e econômicas que promoviam uma maior intervenção estatal na educação, uma maior taxação e a implementação das reformas urbana e rural. Em Recife, Cajueiro Seco aparecia como um exemplo concreto dos planos carregados pelos conceito de Reforma Urbana; um conceito que propagava urbanização por meio de um planejamento baseado nas vontades dos próprios moradores da habitação social.
Neste sentido, com a aliança entre o presidente João Goulart (1960-1964), os prefeitos de Recife Miguel Arraes (1960-1963) e Pelópidas da Silveira (1963-1964), mais o novo presidente do SSCM Gildo Mario Porto Guerra, o arquiteto e deputado Artur Lima Cavalcanti, e os arquitetos Acácio Borsói e Antônio Baltar, o projeto do Serviço Social Contra o Mocambo do início da década de 1960 foi em uma direção oposta a dos últimos 20 anos ao promover mais autonomia aos moradores dos conjuntos habitacionais para decidir e participar na construção de sua própria comunidade. Essas alianças políticas que surgiram entre 1960 e 1964 formaram um corrente de força que conseguiram mais ou menos manter uma postura coesa de diferentes setores do estado e entregaram experimentos político-urbanistas como o conjunto habitacional de autoconstrução Cajueiro Seco. Entretanto, essa coesão foi desfeita com o golpe de abril de 1964.
Pós-1964: Domando o Comunismo e Reconfigurando a Economia Habitacional
Após o golpe de 1964, o novo regime militar reconfigurou as instituições nacionais, incluindo a provisão de habitação social. Assim, ideias e práticas de Cajueiro Seco e da Reforma Urbana foram retiradas da pauta e os sindicatos trabalhistas tiveram suas influências reduzidas. Com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), o governo federal centralizava a produção habitacional para a classe trabalhadora e reduzia a influência dos sindicatos no assunto. No dia 30 de abril, durante uma reunião com todos os novos ministros, o ministro extraordinário de Coordenação e Planejamento, Roberto Campos, apresentou para o novo presidente do Brasil, Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco um plano de moradia popular focado no desenvolvimento do setor privado industrial e na criação do primeiro instituto federal de habitação (JORNAL DO BRASIL, 30 de abril de 1964). Pouco tempo depois o Instituto foi renomeado para Banco Nacional de Habitação (BNH) — a mais poderosa agência de habitação social da história do Brasil. Assim como Getúlio Vargas em 1952, a primeira presidente do BNH, Sandra Cavalcanti, entendia que “A casa própria, sonho de todo trabalhador brasileiro e de todo chefe de família, trazia em seu bojo a noção correta de propriedade privada. Nada melhor, portanto, para combater com êxito as fumaças de uma pregação socialista nativa…” (CAVALCANTI, 1978, p. 42). Cavalcanti seguia a linha política do novo governo militar e traduzia-na para o setor de construção de habitação social. Essas mudanças e manobras políticas foram replicadas em diferentes setores do governo e da sociedade por toda a década de 1960.
Nos primeiros meses depois do golpe de 1964, o novo regime expulsou, deteve, prendeu, demitiu e processou diversos políticos, servidores públicos do Serviço Social Contra o Mocambo em Pernambuco e moradores da comunidade do Cajueiro Seco na região metropolitana do Recife (COMISSÃO CENTRAL DE INVESTIGAÇÃO DO SSCM, junho de 1964). No dia 12 de maio de 1964, o novo governo de Pernambuco criou a Comissão Central para investigar e analisar se servidores públicos do SSCM e do Departamento de Reeducação e Assistência Social (DRAS) eram comunistas (SERVIÇO SOCIAL CONTRA O MOCAMBO, 26 de junho de 1964). A Comissão Central pressionou todos os membros do SSCM e do DRAS suspeitos de atividades políticas conectadas com o comunismo e “pessoas com tendências esquerdistas” também (COMISSÃO CENTRAL DE INVESTIGAÇÃO DO SSCM, maio 1964). A maioria destes suspeitos eram parte do projeto Cajueiro Seco. Presidentes e secretários do SSCM, assistentes sociais, arquitetos, técnicos, líderes de centros comunitários e moradores do bairro foram investigados e acusados durante toda a segunda metade do ano de 1964 (SECRETARIA de SEGURANÇA PÚBLICA de PERNAMBUCO, 1964).
Entre as vítimas pernambucanas de perseguição política estavam o governador do estado Miguel Arraes, o prefeito de Recife Pelópidas da Silveira, e o arquiteto e presidente do SSCM, Gildo Guerra. O término do experimento habitacional do Cajueiro Seco e a prisão de seus planejadores depois de 1964 surgiu para acabar com o tipo de urbanismo e políticas urbanas renegados por autoridades conservadoras e implementados entre 1961 e 1963 por Miguel Arraes, Acácio Borsói e seus aliados. Entretanto, a perseguição de comunistas ativos no setor de habitação popular já era um hábito que acontecia desde o primeiro governo de Getúlio Vargas e do interventor estatal de Pernambuco, Agamenon Magalhães (FISCHER, 2016).
Com a Aliança para o Progresso perdendo força no Brasil a partir de 1970, o estado fomentava a criação de novas agências e bancos de desenvolvimento interno, de planejamento econômico, além de agências urbanizadoras federais e estaduais. Esses pequenos e médios bancos junto com esses institutos e autarquias ganharam ao longo da década de 1970 mais visibilidade e estabeleceram-se como as autoridades governamentais principais por detrás das políticas de habitação após 1970. Alinhada com o novo regime, a Federação Industrial de Pernambuco (FIEPE) elogiava o golpe como uma revolução que trouxe uma oportunidade para reformas e novos valores para o país (VITA; MELLO, 1966). Para os militares no poder, a FIEPE e o BNH eram atores principais em seus planos econômicos. No ano de 1971, o BNH se tornou uma companhia que financiava o desenvolvimento urbano das maiores cidades e expandia seus projetos para cidades periféricas. Entendendo que a urbanização determinava a expansão de mercados, o BNH vendeu o urbano como uma condição obrigatória para o crescimento do Brasil como uma nação integrada (BNH, 1972).
O uso da habitação social como uma ferramenta para integrar o Nordeste ao resto do Brasil já era sonho de outras autoridades como o ministro do Trabalho Franco Montoro do governo federal de Tancredo Neves entre 1961 e 1962 (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 5 de abril de 1962). As linhas gerais propagadas pelo Banco promoviam junto à iniciativa privada um “desenvolvimento harmônico do país para obter, o mais rápido possível, um padrão alto de bem-estar social para o povo Brasileiro” (BNH, 1972). Para eles, as três principais razões para investir no BNH e no setor de construção eram que: 1) ambos surgiram como grandes criadores de postos de trabalho, 2) o governo precisava prover habitação para a população urbana que crescia 6% por ano e 3) a aquisição da casa própria era uma “legítima aspiração natural” da família Brasileira (BNH, 1972). De fato, com o comparecimento em massa de chefes de família em busca de empréstimos para aquisição de um apartamento ou uma casa em um conjunto e com o fortalecimento de movimentos sociais lutando pela casa própria, as falas de Sandra Cavalcanti e o discurso do panfleto do BNH, parecerem corresponder à realidade brasileira. Isso porque famílias que eram parte de movimentos por moradia como Movimento Terras de Ninguém (MTN) e Brasília Teimosa demandavam o reconhecimento pelo Estado do status de proprietárias de terras e o direito de terem uma casa3.
Conclusão
Apesar da Aliança para o Progresso ter sido dissolvida entre 1971 e 1974, seu financiamento de obras urbanas já estava sendo cortado no Brasil a partir de 1968 (UNITED STATES COMMITTEE ON GOVERNMENT OPERATIONS, 1968). De acordo com congressistas americanos diretamente envolvidos no programa, entre 1961 e 1968, os Estados Unidos gastaram cerca de 21 milhões e 383 mil dólares em projetos de urbanização e infraestrutura no Brasil (UNITED STATES COMMITTEE ON GOVERNMENT OPERATIONS, 1968)4. Assim, a partir da década de 1970, já sem o apoio da Aliança para o Progresso, o Banco Nacional de Habitação, por meio da Companhia de Habitação de Pernambuco (COHAB-PE) e o Conselho de Desenvolvimento de Pernambuco (CONDEPE), o novo nome do antigo CODEPE, impulsionava uma tentativa mais autônoma de eliminar o déficit habitacional. Esse processo de reestruturação interna contemplou planos de ajuste para um futuro baseado em computação eletrônica, independência financeira sem ajuda internacional e construção em massa de prédios baseando-se em financiamentos à longo prazo (COHAB-RECIFE, 1971). O plano do CONDEPE na década de 1970 promoveu projetos de interiorização do complexo industrial e fortalecimento do setor agrícola para atrair novos investidores para a matéria-prima local. A par das novas empresas industriais, o CONDEPE preocupou-se com a promoção das exportações e a construção de centros de distribuição de grandes empresas nacionais e estrangeiras (CONDEPE, 1975). Assim, o estado de Pernambuco se concentrou em impulsionar sua produção industrial por meio de uma estratégia de planejamento urbano regional.
Examinando a construção de infraestrutura habitacional e o desenvolvimento de políticas urbanas junto a discursos e práticas, este artigo entende que, a provisão estatal de habitação social no Recife por meio do Serviço Social Contra o Mocambo durante a Guerra Fria serviu como uma ferramenta para autoridades e elites tentarem moldar a classe trabalhadora em uma identidade específica. Uma identidade atrelada a um anticomunismo histórico, ao desenvolvimento e industrialização regionais, e uma economia de crédito baseada em financiamentos a médio e longo prazo. Identificando o SSCM como uma zona de contato (BENMERGUI, 2009) serve então para entendermos que a provisão de moradia social em Recife fez parte do processo de produção da cidade latino-americana como construção cultural entre 1950 e 1970, muito debatido pelo pesquisador Adrián Gorelik (2003). Assim, entende-se que Recife fez parte de uma época onde existia um ambiente intelectual efervescente na América Latina iniciada em 1940 em que os esforços teóricos e práticos de assistentes sociais, sociólogos, arquitetos, urbanistas, e economistas estavam focados em moldar as cidades em direção a objetivos políticos-culturais específicos e autoridades e instituições estavam implementando-nos ou tentando implementá-los (GORELIK, 2003). Neste sentido, entende-se que autoridades e elites nacionais e internacionais usaram habitação social não somente para prover um teto, como também para espalhar seus valores econômicos, sociais e culturais. A habitação serviu como uma ferramenta para acalmar ânimos subversivos, e impulsionar hábitos econômicos e culturais considerando a realocação dos moradores de assentamentos informais dos mocambos para casas com melhores equipamentos atreladas à rede de esgoto sanitário e eletricidade.
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Notas
Notas de autor