Autogestão na habitação e propriedade coletiva da terra: a experiência de uma cooperativa habitacional em Jacarepaguá-RJ
Self-management in housing and collective land ownership: the experience of a housing cooperative in Jacarepaguá-RJ
Autogestão na habitação e propriedade coletiva da terra: a experiência de uma cooperativa habitacional em Jacarepaguá-RJ
O Social em Questão, vol. 1, núm. 53, pp. 233-254, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Recepción: 01 Noviembre 2021
Aprobación: 01 Enero 2022
Resumo: Este artigo propõe reflexões sobre propriedade coletiva da terra e autogestão, a partir da experiência da cooperativa habitacional Esperança, Rio de Janeiro. Após um processo de organização e autogestão que durou mais de uma década, foi inaugurada em 2015, com financiamento do programa federal Minha Casa Minha Vida Entidades e é reconhecida como um exemplo virtuoso de construção por autogestão. O artigo se concentra nos impasses e dificuldades para a regularização das moradias que ainda são enfrentadas pelos moradores em 2021, assim como as perspectivas sobre um modelo que propõe a gestão coletiva da terra como alternativa de fortalecimento e solução de pendências jurídicas do grupo.
Palavras-chave: Autogestão, MCMV Entidades, Propriedade coletiva da terra, Cooperativa habitacional, Movimentos populares.
Abstract: This article analyzes collective land ownership and self-management based on the experience of the Esperança housing cooperative, Rio de Janeiro. After a process of organization and self-management that lasted over a decade, Esperança was inaugurated in 2015, with funding from the federal program Minha Casa Minha Vida Entidades, and is recognized as a successful example of construction by self-management. The article focuses on the impasses and difficulties in regularizing the housing units, an issue that residents are still facing in 2021. The analysis also looks at the perspectives that establish a collective land-management model as an alternative to strengthen and solve residents' legal pending issues.
Keywords: Self-management, MCMV Entities, Collective land ownership, Housing cooperative, Popular movements.
Introdução
As experiências de autogestão no campo da produção habitacional no Brasil nos anos 2000 foram consideravelmente impulsionadas pelos programas federais Crédito Solidário e Minha Casa Minha Vida Entidades (MCMV Entidades) - o primeiro criado em 2005 e posteriormente substituído pelo segundo, em 2009. Tais programas não foram formulados com o objetivo de representar alternativa à produção empresarial massiva, mas sim como um tipo de resposta às reivindicações dos movimentos populares de luta por moradia que, desde o processo constituinte, se organizaram para garantir a gestão democrática de um fundo nacional para financiamento da habitação popular no país (LAGO, 2015).
A Cooperativa Habitacional Esperança, construída com financiamento do MCMV Entidades, é parte dessa história. Formada por setenta unidades habitacionais e localizada em uma área pertencente à União, onde funcionou a antiga Colônia Juliano Moreira (atualmente denominado como bairro Colônia) em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, sua inauguração ocorreu no ano de 2015. O processo de construção contou com a articulação de diversos atores: a União por Moradia Popular do Rio de Janeiro (UMP-RJ), a assessoria técnica da Fundação Bento Rubião (FBR), e agentes do Estado – tanto no que se refere ao financiamento quanto à concessão da terra pública. Todo o processo de organização da cooperativa ocorreu de forma autogestionária e a construção das habitações se deu por meio de regime de mutirão.
O grupo Esperança tem sido mencionado como exemplo “virtuoso” de autogestão no que se refere à atuação de movimento de moradia na construção de habitações populares de qualidade. Os exemplos virtuosos na autogestão em habitação, conforme analisam Rizek, Barros e Bergamim (2003), são entendidos como aqueles nos quais os futuros moradores exercem um significativo controle e possuem acesso à gestão dos recursos envolvidos. Em 2017, o grupo recebeu o prêmio de “Melhores práticas em Gestão Local” da Caixa Econômica Federal2, em um reconhecimento também por parte do Estado desta virtuosidade na organização e construção de moradias com alto padrão de qualidade. Este elemento, aliás, é citado como o “trunfo” do MCMV Entidades: sua capacidade de produzir moradias com qualidade superior ao MCMV tradicional3.
Apesar de passados seis anos desde a inauguração da cooperativa habitacional e de seu reconhecimento como um exemplo exitoso, o grupo permanece buscando estratégias para sua regularização diante do poder público: o pagamento dos financiamentos das casas ainda não foi iniciado e esse é o principal elemento gerador de tensão para os moradores, que se sentem inseguros diante da não regularização. Desde o ano de 2019, surge uma possibilidade de apoio nesse processo de regularização: o grupo tem dialogado com uma Organização Não-Governamental que é representante da proposta do modelo de Termo Territorial Coletivo (TTC) no Brasil – conhecida nos Estados Unidos e outros países de língua inglesa como Community Land Trust (CLT)4. A possibilidade de criação de um TTC em Esperança tem sido encarada por moradores e lideranças do grupo como uma alternativa para a regularização das moradias, embora a formalização de uma terra coletiva e de propriedade de uma pessoa jurídica (TTC) seja também questionada e geradora de tensões.
O presente artigo é fruto de uma pesquisa de pós-doutorado desenvolvida entre os meses de agosto de 2020 e agosto de 20215. O objetivo foi compreender a proposta de construção do TTC no grupo Esperança, que é baseada na criação de uma pessoa jurídica que seria proprietária da terra onde a cooperativa está construída, configurando dessa forma uma propriedade coletiva. A pesquisa, por ter sido realizada durante o período da pandemia da Covid-19, contou com um percurso metodológico exclusivamente online: a observação participante se deu em reuniões realizadas por meio da plataforma Zoom (organizadas pela equipe do TTC) e entrevistas com lideranças, por meio da mesma plataforma. Cabe ressaltar que esta escolha metodológica impõe alguns limites: as dificuldades para a aproximação com os interlocutores e aprofundamento das entrevistas, por exemplo, se colocam como uma questão. A proposta, no entanto, é compreender como esse diálogo se constrói em meio à pandemia e a impossibilidade de reuniões presenciais.
A partir do material coletado nas reuniões e entrevistas são trazidas neste artigo reflexões sobre o problema da regularização como desdobramento de uma forma de operar do Estado em territórios populares e com relação a movimentos sociais. Também são suscitadas reflexões sobre a proposta do TTC como uma possível forma de fortalecimento/empoderamento do grupo. Por fim, é realizada uma análise acerca das perspectivas de moradores e lideranças de Esperança com relação a esse modelo como forma de solucionar a questão da regularização das moradias.
O problema da regularização e a opacidade do Estado
A construção de Esperança ocorreu 16 anos após o início da mobilização e organização do grupo. Este longo processo envolveu, inclusive, a assinatura de um contrato com o antigo programa federal Crédito Solidário6, que também previa a construção de habitações populares por grupos organizados, mas não resultou em nenhuma construção no Rio de Janeiro7. Em 2009, com a criação do Minha Casa Minha Vida – e sua vertente denominada como Entidades8 – o grupo migrou para esse programa, por meio do qual conseguiu acessar o financiamento necessário.
De acordo com os interlocutores de pesquisa – moradores de Esperança com participação na coordenação e comissões do grupo e lideranças da UMP-RJ que tiveram papeis importantes -, foram “16 anos de muita luta”: as dificuldades e empecilhos diante da burocracia dos diversos agentes do Estado foram diversas. Esse processo de construção autogestionária de moradias nas classes populares aparece sempre nas falas dos movimentos e de pesquisadores como sendo permeado por muitas dificuldades – as burocracias dos diversos agentes do Estado produzem empecilhos e gargalos que dificultam as construções.
No caso do Minha Casa Minha Vida Entidades essas dificuldades eram tantas e implicavam em um tempo de organização/construção tão longo, que esse processo foi nomeado por pesquisadores como a “novela da contratação” (SANTO AMORE; RIZEK, 2014). Esse cenário resultou no caráter de excepcionalidade de Esperança, que permaneceu como a única experiência de construção por meio do MCMV Entidades no Rio de Janeiro – embora em outros estados as experiências tenham sido mais numerosas. Assim, Esperança se consolida pelo êxito e pela excepcionalidade, que já poderia ser considerada como uma marca da modalidade Entidades, correspondente a aproximadamente 4% dos empreendimentos do programa federal MCMV (SANTO AMORE; RIZEK, 2014).
A categoria “novela da contratação” tem sido utilizada para fazer referência ao longo processo percorrido desde a busca pela assinatura do contrato até a finalização das construções nos empreendimentos que receberam recursos do MCMV Entidades. Ao resgatá-la aqui, propõe-se analisar o caso de Esperança, no qual é possível considerar que esta novela não se encerra com a finalização das construções. O emaranhado de empecilhos burocráticos não terminou no momento da inauguração e o grupo permanece lutando para que sua regularização seja efetivada e possam obter os títulos de suas casas. O que ocorre, portanto, poderia ser entendido como parte de determinada forma de operar do Estado diante das reivindicações e necessidades de populações pobres e movimentos populares. De acordo com moradores de Esperança há enorme dificuldade para acessar informações sobre a regularização das moradias – informações que eles só têm conseguido obter por meio da intermediação de técnicos e advogados voluntários que tem apoiado o grupo.
A exigência de conhecimento técnico para que se possa estabelecer diálogo com a população, assim postergando soluções e desqualificando suas demandas, é algo que ocorre com frequência em diversos âmbitos, e vem sendo investigado por outros pesquisadores que pensam as relações de movimentos populares com os diversos agentes do Estado. Haveria em jogo uma ilegibilidade (DAS, 2004) ordinária que é engendrada por um certo grau de opacidade nos planos e nas práticas governamentais (BIRMAN; FERNANDES; PIEROBON, 2014). As dificuldades para acessar informações referentes ao processo de construção da cooperativa e os diversos empecilhos burocráticos que são parte da novela da contratação aparecem nitidamente, portanto, como um modo de operar das instâncias do Estado com relação às populações pobres e movimentos populares. Esse modo de operar, estendido ao momento pós-construção se concretiza na vida desses atores por meio da perpetuação dessa ilegibilidade que aparece na negação da regularização das casas – a ausência dos títulos de propriedade coloca os moradores em uma zona de indeterminação criada com participação ativa do próprio Estado. Isso faria parte, portanto, das lutas travadas pelo movimento e os moradores em relação a esse modo de operar e evidencia o Estado por meio de duas faces: ator fundamental no processo de construção – como financiador do empreendimento e por intermédio da concessão de terra pública – e que ao mesmo tempo lhes nega o reconhecimento como proprietários legítimos.
A luta pela moradia, assim, se estende ao momento pós-inauguração no caso de Esperança: para além de uma novela da contratação, os moradores se encontram diante de uma novela para serem reconhecidos como proprietários de suas casas. As burocracias representadas por empecilhos jurídicos diversos apareceram durante a pesquisa de forma recorrente. Os representantes do movimento, na maior parte das vezes, conhecem bem esses caminhos, e constroem diferentes agências e agenciamentos (FERNANDES, 2015), no entanto, os empecilhos jurídicos são aqueles tidos como mais complexos: os moradores e as lideranças não possuiriam legitimidade para dialogar, sendo necessária a representação de um profissional da área de Direito, e uma vez que as casas já estão construídas, a urgência dessa demanda pode não ser reconhecida.
O TTC sob o ponto de vista dos proponentes: o empoderamento da comunidade
As primeiras experiências de TTC surgem nos Estados Unidos em meados da década de 1960. De acordo com Davis (2010) essas experiências se concretizaram em um contexto marcado pela luta por direitos civis no país, e foi inicialmente pensado para possibilitar a aquisição de terras agrícolas que garantissem a subsistência e desenvolvimento econômico de comunidades negras.
O primeiro TTC da história foi fundado na zona rural do estado de Geórgia, por Robert Swann (ativista social) e Slater King (militante por direitos civis, advogado e primo de Martin Luther King Jr.), e foi chamado de New Communities Inc. Após a aquisição de cerca de12.000 hectares de terra cultivável, foram feitos contratos de concessão (lease) com fazendeiros negros, que de outra forma não seriam capazes de adquirir a terra individualmente. A ideia era formar uma organização sem fins lucrativos que obtivesse a titularidade da terra e garantisse a permanência das comunidades rurais no local, a partir de concessões de uso por tempo indeterminado e com preços acessíveis (LITSEK, 2019, p. 30).
Atualmente nos Estados Unidos há mais de 250 TTCs criados, contam com apoio do poder público e possuem regulamentações próprias em diferentes estados (ONU, 2013; DAVIS, 2010). O modelo do TTC vem sendo também implementado em países da Europa como Reino Unido, Bélgica e França (UM-HABITAT, 2012). Na América Latina a única experiência se encontra em Porto Rico: o Fideicomisso de la Tierra Caño Martín Peña foi implementado em 2004 em uma favela em San Juan, capital de Porto Rico, e envolve cerca de 2.000 famílias (LITSEK, 2019). Esse é apontado como um caso de sucesso e paradigmático, considerando que é o único exemplo latino-americano. Assim, Martín Peña tem sido apontado pela equipe do TTC como a inspiração para a criação de um modelo similar no Brasil, dado o seu êxito no que se refere à regularização da posse e “fortalecimento da comunidade”:
Além da regularização da situação possessória dos moradores da área, o TTC pôs em prática diversos projetos de desenvolvimento local e recuperação ambiental, e fortaleceu a 44 organização comunitária na gestão do território, facilitando inclusive a comunicação e o poder de barganha com o governo local. Em 2015, ele recebeu um prêmio da World Habitat Awards, organização ligada à ONU que analisa iniciativas habitacionais, como modelo de moradia sustentável (LITSEK, 2019, p. 44).
O Termo Territorial Coletivo é apontado como uma estratégia possível na defesa da permanência de “comunidades vulneráveis” (ANTÃO; RIBEIRO, 2019) e aparece como uma proposta defendida pelas Comunidades Catalisadoras (Comcat) para solucionar questões ligadas à “insegurança da posse”. Cabe destacar que de acordo com a análise defendida por esses autores, a simples titulação – ações de regularização fundiária – não seria o suficiente para garantir a segurança da posse, podendo inclusive aumentar essa insegurança, pois favoreceria a ocorrência de “expulsões mercadológicas” (RIBEIRO; ANTÃO, 2020). Desta forma, o TTC aparece como uma alternativa mais vantajosa para os moradores do que a mera titulação individual, pois seria um instrumento capaz de fortalecer o grupo, regularizando suas propriedades, mas também oferecendo a segurança da posse.
A proposta que se apresenta ao levar a ideia de criação de um TTC em uma determinada comunidade9, como é o caso de Esperança, portanto, se baseia na noção de que o TTC representa uma ferramenta jurídica que teria a potencialidade de fortalecer a comunidade e impedir possíveis remoções e outras consequências da especulação imobiliária. É apontado, desta forma, como um “instrumento de resistência aos projetos urbanos neoliberais” (ANTÃO; RIBEIRO, 2019), considerando que o principal objetivo seria evitar os processos de mercantilização da terra. Além disso, um elemento relevante diz respeito ao histórico de mobilização e organização de Esperança, que faria do grupo uma possibilidade ideal de projeto piloto, visto que para implementação do TTC é necessário que haja um “processo maduro de organização comunitária”, de acordo com a equipe.
A equipe do TTC tem trabalhado também em torno da construção de um Projeto de Lei que regulamente o TTC no Brasil, embora se afirme a possibilidade de construção de um TTC mesmo sem legislação específica por meio de instrumentos já existentes no direito brasileiro. O conceito do TTC presente no projeto de lei em construção está definido como: “um instrumento urbanístico de gestão territorial caracterizado pela gestão coletiva da propriedade da terra, pela titularidade individual das construções e pela autonomia de ingresso, visando à sustentabilidade da habitação de interesse social”. Assim, estão enfatizadas a propriedade coletiva da terra e a titularidade individual das construções como a base de construção do TTC.
A equipe do TTC afirma que esse modelo pressupõe algumas características básicas, que seriam:
• a adesão espontânea dos moradores;
• a propriedade coletiva da terra: o TTC, enquanto pessoa jurídica, seria proprietário e gestor da terra, não poderia vendê-la;
• as casas de propriedade individual nas quais os moradores possuiriam total liberdade para investir ou vender, destacando que se manteriam com preço acessível por conta da não inclusão da terra no preço;
• controle comunitário por meio da criação de um Conselho do TTC, formado por moradores, mas também por apoiadores externos;
• acessível para a perpetuidade, ou seja, a garantia de que o TTC seja capaz de garantir moradia acessível de forma permanente, uma vez que a terra estaria “fora do mercado imobiliário”.
Há uma importante argumentação em torno da construção do TTC que se sustenta, por parte da equipe do TTC e de pesquisadores que defendem sua implementação no Brasil, que gira em torno de sua potencialidade para impedir processos de mercantilização da terra, portanto, seria um modelo capaz de enfrentar o modo de operar das sociedades capitalistas e a financeirização da terra. Poderia haver nesse ponto um paradoxo: mesmo se considerando um modelo capaz de enfrentar o capitalismo, se baseia na propriedade privada das casas para se sustentar, sendo somente a terra uma propriedade coletiva.
A proposta de construção de um TTC em Esperança também leva em consideração algumas condições que devem existir. A primeira delas diz respeito ao que a equipe vem denominando como “comunidade consolidada e com alto grau de pertencimento”, desta forma, o longo processo de organização e mobilização de Esperança já os colocaria em um lugar privilegiado no que se refere a essa condição. A segunda menciona a alta porcentagem de famílias sem o título da terra: a não existência de formalização por meio de títulos de propriedade seria, portanto, compatível com a realidade de Esperança. Cabe destacar que os TTCs em outros países geralmente são construídos em favelas ou assentamentos irregulares. Neste sentido, Esperança apresenta uma situação peculiar. A terceira aponta a “chance razoável de adquirir a terra”. Considerando que Esperança foi construída em uma terra pública formalmente cedida e não se trata de ocupação informal, a chance de adquirir a terra é considerável. A equipe aponta ainda outras duas condições: a “percepção/experiência com ameaça de deslocamento ou remoção” e “processo maduro de organização comunitária”. A penúltima não parece se enquadrar nesse caso, embora moradores apontem rumores sobre possíveis ameaças que serão analisadas no próximo item.
A proposta de um TTC em Esperança, dessa forma, parece bastante apropriada para um projeto piloto no Brasil, de acordo com os moldes que a equipe busca: trata-se de um grupo com histórico de organização, embora isso não signifique que se trata de uma “comunidade coesa”. Divergências e desentendimentos em relação à organização do grupo, assim como dificuldades de mobilização após a inauguração da cooperativa são situações relatadas pelas lideranças, que também será desenvolvido no ponto seguinte.
Autogestão e propriedade coletiva da terra: organização, discordâncias e expectativas de moradores e lideranças
A perspectiva de autogestão defendida pela União por Moradia Popular se baseia no modelo uruguaio, em que a propriedade coletiva é reconhecida legalmente e o padrão adotado10 (GHILARDI, 2017) – o mesmo não ocorre no Brasil. As primeiras experiências de cooperativas habitacionais autogestionárias no Uruguai datam da década de 1960, sob iniciativa do Centro Cooperativista Uruguayo (CCU). No entanto, somente com a aprovação da Lei Nacional de Moradia, nos anos de 1970, o sistema cooperativo é instituído e a produção habitacional sob essa modalidade cresce de forma expressiva (GHILARDI, 2017).
Em menos de uma década a promoção habitacional via cooperativas consolidou um modelo que aportou medidas inovadoras no modo de se produzir o habitat para as camadas populares. No Uruguai, essas inovações se expressaram na adoção da propriedade coletiva e criação de modalidades de participação dos usuários no processo construtivo via ajuda mútua ou poupança prévia, na constituição de Institutos de Assistência Técnica, na organização de federações de cooperativas, assim como na construção coletiva de equipamentos urbanos (GHILARDI, 2017, p. 2)
As lideranças da União mencionam que foi um intercâmbio com o Uruguai na década de 1990 que os fez organizar o movimento de moradia no país, sendo uma das principais influências para a defesa da autogestão na habitação. No Brasil, no entanto, não há respaldo jurídico para o reconhecimento da propriedade coletiva e tampouco para o cooperativismo habitacional. Embora as lideranças do grupo e alguns moradores mais próximos da organização afirmem que esta proposta corresponde ao que o grupo propôs desde o início com uma cooperativa habitacional, a ideia traz desconforto. Cabe destacar que embora o grupo tenha se organizado e se denomine como “cooperativa habitacional”, diante do poder público esse reconhecimento não existe. Nos contratos com a Caixa Econômica Federal, referentes ao financiamento, as moradias são registradas como condomínios, não havendo diferença entre o contrato do MCMV tradicional e o Entidades. Esse é nitidamente um ponto de embate entre os movimentos e o poder público: embora se reconheça o êxito da organização do grupo e das construções realizadas, há além da ausência dos títulos, o não reconhecimento legal do trabalho coletivo realizado.
A cooperativa habitacional Esperança foi construída em regime de mutirão e autogestão, como mencionado anteriormente. O processo de organização e construção se deu com protagonismo da UMP-RJ, vinculada à União Nacional por Moradia Popular (UNMP). A UNMP se tornou um dos movimentos populares de luta por moradia que mais contratou projetos por meio do programa MCMV Entidades em todo o país, o que possivelmente se deu devido à inserção desse movimento em relevantes espaços institucionais, tais como o Conselho Nacional das Cidades (ConCidades) e no Conselho Gestor do Fundo de Habitação de Interesse Social. Ao lado de outros movimentos populares como o Movimento Nacional de Luta de Luta por Moradia (MNLM), a Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM) e a Central de Movimentos Populares (CMP), a UNMP “possui assento no Conselho Nacional das Cidades” (PANDOLFI; SANTO, 2014). A UNMP se consolida então como um movimento que dialoga com o poder público, ocupando espaços institucionais, em uma dinâmica de “luta por dentro do Estado” (TATAGIBA, 2011).
As categorias “mutirão” e “autogestão” são extremamente importantes para a afirmação do caráter político da cooperativa habitacional e é destacada como parte fundamental da luta dos moradores para construir suas moradias. A luta, como dito em outro momento, permanece após a inauguração das casas: os moradores e sobretudo as lideranças de Esperança, seguem preocupados e buscando estratégias que possibilitem a regularização de suas moradias. A sensação de insegurança também se conecta com o contexto político do país. Uma das lideranças e moradora de Esperança, em entrevista, afirmou seu receio de que os contratos não sejam respeitados, pois “mudou tudo na Caixa Econômica!”. O desmantelamento do MCMV Entidades se coloca como uma questão preocupante, assim como a falta de diálogo dos governos com os movimentos populares de luta por moradia após o golpe de 2016.
Durante a realização das pesquisas o receio de “perder as casas” aparece de forma recorrente nas falas de lideranças: “não somos donos das nossas casas”. Embora não haja histórico de ameaças concretas de expulsão ou remoção, por exemplo, o receio de perder a casa por conta do não cumprimento do contrato é reafirmado nas falas dos interlocutores de Esperança. Durante a construção das casas havia a circulação de boatos sobre uma possível ocupação das casas de Esperança antes da inauguração por grupos externos. Esses boatos podem ser analisados pela perspectiva dos rumores, discussão que vem sendo fomentada na Antropologia para compreender alguns eventos específicos e os padrões de comunicação que circulam em determinados territórios, sobretudo os marcados por transformações e em um contexto de imprecisões e incertezas (GUTTERES, 2016; MENEZES, 2014).
Os rumores permanecem em Esperança mesmo após a finalização das construções: ameaças hipotéticas de uma remoção por parte do Estado ou outros grupos. De acordo com uma moradora, mesmo havendo um contrato há a sensação de insegurança, porque considerando que os financiamentos não começaram a ser pagos, esses contratos não estão sendo cumpridos. Assim, o não reconhecimento legal gera essa zona de indeterminação em contexto de imprecisões produzidas pelo próprio Estado (DAS, 2004).
A proposta da propriedade coletiva da terra é algo que também gera uma série de tensões e até mesmo desconfianças. Os receios sobre o reconhecimento do terreno da cooperativa como uma propriedade coletiva passam pela desconfiança em relação à possível “perda de liberdade”, mesmo havendo a afirmação recorrente de que o TTC não impediria que os moradores fizessem com suas casas o que desejassem: investir, vender, alugar ou deixar como herança. Destaco aqui outro ponto de divergência: o grupo foi constituído sob o argumento, por parte do movimento e das lideranças, de que as casas não deveriam ser vendidas após a construção. Aliás, este se coloca como um dos maiores receios por parte do movimento: a venda posterior coloca em xeque a ideia de construção coletiva e de que o regime de autogestão e mutirão construiria uma comunidade “para além das moradias”. Além disso, o argumento de que estas construções seriam reconhecidas por seu valor de uso e não seu valor de troca, também se perde (MINEIRO, RODRIGUES, 2012).
A venda posterior da casa parece colocar em xeque o caráter político do projeto e seu compromisso com o bem-estar coletivo. A venda, aparentemente traz à tona a lógica do interesse individual e destrói – segundo os argumentos do movimento, lideranças e técnicos - o projeto da cooperativa enquanto algo construído coletivamente, e que opera por uma lógica diferente da lógica de mercado. Observemos que a narrativa que constrói a cooperativa habitacional como um exemplo virtuoso é justamente baseada na noção de poder popular e autogestão, operando com o objetivo de garantir o bem-estar coletivo, por meio da mobilização e articulação da sociedade e não visando o benefício material, opondo-se, portanto, à lógica do mercado. Assim, a venda, sobretudo uma venda que seja superior ao valor pago inicialmente pelo morador original, estaria de acordo com princípios mercadológicos e contra os princípios da cooperativa. O privilegiamento da lógica de mercado que opera em nossa sociedade em torno da moradia está na base deste conflito: a habitação é compreendida como um ativo financeiro também para as classes populares (RIZEK, BARROS, BERGAMIN, 2003; ROLNIK, 2015a; MINEIRO, RODRIGUES, 2012).
A característica denominada pela equipe como TTC como “adesão espontânea” também suscita outro debate que gera desentendimentos no grupo Esperança: haveria, a partir desse princípio, a possibilidade de que nem todos os moradores aceitem aderir ao TTC. Desta forma, o modelo poderia ser implementado somente para alguns dos 70 moradores. Essa possibilidade gera tensões sobre uma divisão do grupo, e vem sendo discutida com regularidade nas reuniões realizadas. As divisões no grupo e as dificuldades para mobilizar todos os moradores em prol de um objetivo nesse momento se coloca como desafio, o que aliás, não se configura como uma novidade. As dificuldades de mobilização são frequentes em movimentos de luta por moradia e o processo de Esperança também se deparou com esse tipo de questão.
Sob o ponto de vista dos moradores as questões mais preocupantes, para além dos títulos de propriedade, são outras pendências jurídicas nos contratos. Há ainda a necessidade de substituição de famílias nos contratos com a Caixa Econômica Federal pelos mais diversos motivos: óbitos, separações, e mesmos nomes que precisavam ser substituídos desde a transição do Crédito Solidário para o MCMV Entidades, por conta de diferenças entre os programas. Desta forma, uma visão positiva do grupo a respeito da equipe do TTC também se coloca por conta do oferecimento de um apoio jurídico voluntário, uma vez que a entidade organizadora tem passado por dificuldades que impactaram em sua infraestrutura e equipe e não conseguem mais oferecer o apoio que o grupo necessita.
Considerações finais
A proposta do TTC para Esperança permanece em processo. As reuniões da equipe com os moradores ainda tem sido realizadas, e portanto, este artigo pretendeu oferecer um recorte específico para a reflexão sobre a questão. Trata-se, assim, de um processo ainda em curso e em etapa inicial. Não há expectativa de que o TTC seja construído em um prazo curto, e a equipe costuma frisar em suas reuniões que é necessário um longo tempo de organização para que o TTC seja implementado – como foi o caso do exemplo de Porto Rico.
O caráter de excepcionalidade e êxito de Esperança solta aos olhos: a única construção do MCMV Entidades no Rio de Janeiro, que apesar de todas as dificuldades durante seu longo processo de organização resultou em casas com padrão de qualidade superior ao MCMV tradicional. A zona de indeterminação, no entanto, permanece: a ausência de títulos de propriedade se sustenta como problema não resolvido. Essa questão precisa ser analisada à luz do contexto político atual no Brasil: desmantelamento de políticas públicas e os retrocessos vivenciados, principalmente desde o ano de 2016. O processo de desresponsabilização do Estado se acelera, e para Esperança resta depositar suas expectativas de regularização e solução de burocracias em um novo ator, representado por uma organização não governamental, e que oferece serviços voluntários.
De acordo com o material analisado é possível afirmar que existe ainda uma divisão do grupo Esperança em relação à aceitação do TTC e a possível percepção desse instrumento como algo positivo. Os moradores que também exercem papeis de liderança no grupo tendem a reconhecer a possibilidade como útil para a tão esperada regularização das moradias, que poderia ter também como resultado a denominada “segurança da posse”. Para o grupo de Esperança que apoia o TTC, os títulos de propriedade representam algo fundamental para que se sintam seguros, embora a equipe afirme que o mais importante para esta segurança seria a lógica de empoderamento da comunidade por meio da propriedade coletiva da terra.
Trata-se, dessa forma, de um campo permeado por tensões. Há uma parcela de moradores de Esperança que ainda demonstram considerável desconfiança em relação à proposta. Foi possível perceber não apenas um desconforto diante da ideia de propriedade coletiva da terra – alguns tentam ainda buscar soluções individuais para a titulação, sem sucesso – mas também desconfianças em relação aos representantes do TTC, que no histórico de Esperança representam atores novos e que surgem com uma proposta que pode ser percebida como elemento gerador de tensões: a criação de uma pessoa jurídica que seria a proprietária do terreno onde suas casas estão construídas.
Como reflexão o artigo também propõe pensarmos as diferentes perspectivas em relação à proposta: a equipe do TTC busca a mobilização e aceitação dos moradores no que se refere ao modelo proposto, na tentativa de implementarem um projeto piloto no Brasil. Esperança, de acordo com as características e princípios definidos, parece um grupo ideal, considerando o seu histórico de organização e também por não ser um grupo tão numeroso. Para os moradores do TTC o apoio jurídico oferecido é o que parece mais importante. Aparentemente não há por parte deles um engajamento político em relação a esse modelo, mas sim a aceitação da proposta por significar a resolução de pendências jurídicas que eles não conseguem solucionar por outras vias. Há uma parcela menor de moradores, os que possuem um histórico maior de participação nas comissões e coordenação, que enxergam no TTC, para além de uma possibilidade de regularização, também uma forma de valorizar o aspecto coletivo da cooperativa, e mesmo dar mais visibilidade ao grupo, que se tornaria o primeiro modelo desse tipo no Brasil.
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Notas
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