Recepción: 01 Mayo 2022
Aprobación: 01 Junio 2022
Resumo: O artigo é fruto de reflexões coletivas entre os docentes que compõem a linha de pesquisa Violência, Direitos, Serviço Social e Políticas Intersetoriais do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, com o objetivo de apresentar a trajetória de sua organização teórico-política vinculada a temas relevantes para a intervenção de profissionais vindos de diferentes áreas do conhecimento em diferentes políticas setoriais. Buscou-se definir os principais conceitos e categorias que agregam diversas atividades e estudos acadêmicos na referida Linha de Pesquisa e que dão expressão aos projetos de extensão universitária relacionados aos grupos de pesquisa que a integram.
Palavras-chave: Violência, Direitos Humanos, Políticas, Serviço Social.
Abstract: This article is the result of joint reflections from professors who make up the research area of Violence, Rights, Social Work and Intersectorial Policies in the Post-Graduate Program in the Department of Social Work at the Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro. The objective is to show the trajectory of the research area’s theoretical/political approach connected to those terms relevant to professional interventions in different areas of knowledge and different policy sectors. It defines the principal ideas and categories which make up the diverse activities and academic studies in this line of study and which illuminate the university extension projects connected to research groups which it encompasses.
Keywords: Violence, Human Rights, Policies, Social Work.
Introdução
O texto ora apresentado foi elaborado para as comemorações de 85 anos do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e de 50 anos de seu curso de Pós-graduação em Serviço Social. Tem como principal objetivo sistematizar parte de um trabalho coletivo, iniciado por diferentes mãos que atravessaram a linha de pesquisa hoje intitulada “Violência, Direitos, Serviço Social e Políticas Intersetoriais”. Esses processos envolvem docentes e discentes, trabalhadores técnicos e administrativos, profissionais da rede de serviços das políticas públicas, pesquisadores colaboradores, militantes dos movimentos e lutas sociais por direitos, que contribuem e tecem as relações históricas de formação acadêmica do Departamento, seu compromisso com os valores democráticos e de justiça social.
Certamente, fizemos escolhas para que essa história pudesse ser contada em poucas páginas de um artigo. Trata-se de uma leitura possível e não de uma seleção do que seria mais relevante, pelo que assumimos total responsabilidade.
A trajetória histórica de constituição do Serviço Social brasileiro como profissão está atrelada a vários elementos que configuram a formação social e econômica do país em sua relação com o desenvolvimento do capitalismo global. É a partir da fase monopólica do capital que se abrem as condições necessárias para a intervenção pública nas expressões da questão social e nas lutas sociais travadas entre capital e trabalho no cenário nacional, o que implicou a necessidade da profissionalização de assistentes sociais, no intuito de formarem uma das categorias profissionais a intervir na realidade social e mediar os conflitos antagônicos de classe, ou seja, com uma funcionalidade na divisão social e técnica do trabalho na sociedade burguesa (NETTO, 1996).
A gênese da profissão no Brasil se vincula organicamente a um projeto de dominação e exploração de classes, em que outras estruturas foram acionadas para garantir a hegemonia dominante, como o racismo e o patriarcado. Um projeto nacionalista e conservador, que integrou economia, política e cultura, operado pelo Estado strictu sensu e pelo aparato dos aparelhos privados de hegemonia. Na década de 1930, há uma inflexão importante neste sentido com a constituição dos primeiros cursos de graduação em Serviço Social alavancados pela Igreja Católica, sendo na PUC-Rio o primeiro curso do estado do Rio de Janeiro e o segundo do país, em 1937.
Em um segundo momento historicamente expressivo, na década de 1970 houve grande mobilização de cursos superiores no país, como parte de um projeto desenvolvimentista do governo autocrático, e que viabilizou o crescimento de empresas privadas na educação. É neste contexto que em 1972 o curso de mestrado do Departamento de Serviço Social foi criado, sendo o primeiro credenciado pelo Conselho Federal de Educação, em 1976.
Neste espaço de tempo, encontramos nomes de alunas que construíram a história da profissão no Brasil e que passaram pelo curso de mestrado, como Balbina Otonni Vieira4, Ilda Lopes Rodrigues da Silva5, Maria Inês de Souza Bravo6, Maria Helena Rauta Ramos7, Marina Maciel Abreu8, além das professoras Anna Augusta de Almeida, Myriam Veras Baptista, Ana Maria Quiroga, Sueli Bulhões da Silva, dentre tantas outras.
A primeira turma do doutorado foi implantada já no século XXI, em 2003, quando foi então registrado o nome do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. A área de concentração passou por mudanças nestes 50 anos: em 1972, Serviço Social de Casos e Trabalhos com Grupos; em 1986, Serviço Social Contemporâneo, seus Fundamentos e Políticas; e em 1997, Serviço Social, Questão Social e Direitos Sociais. Essas mudanças correspondem aos movimentos de revisões históricas da profissão e sua formação, que incluíram os currículos acadêmicos, o que demonstra as atualizações em uma construção dialética entre o Departamento de Serviço Social e a organização da profissão no âmbito nacional.
Este artigo é recortado para apresentar uma breve trajetória da organização teórico-política da linha de pesquisa Violência, Direitos, Serviço Social e Políticas Intersetoriais, vinculada a temas relevantes para a intervenção de profissionais vindos de diferentes áreas do conhecimento e que atuam em diferentes políticas setoriais, tanto no Brasil, quanto em outros lugares do mundo. Há um intenso esforço da universidade em garantir a internacionalização de seus cursos e esta tem sido uma das características na condução de disciplinas, no intercâmbio e parcerias com instituições de diferentes naturezas ao redor do globo. Buscou-se, portanto, levantar a produção e os temas mais relevantes durante as cinco décadas do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e definir os principais conceitos e categorias que agregam os estudos e trabalhos acadêmicos na referida Linha de Pesquisa e que dão expressão aos projetos de extensão universitária relacionados aos grupos de pesquisa que a integram.
Trajetória de Concentrações Temáticas
A apresentação e análise da produção adota o recorte a partir de 1997, com as primeiras dissertações de mestrado defendidas na então denominada Linha de Pesquisa Violência, Família e Direitos Sociais. Os primeiros temas circularam em torno dos direitos de crianças, adolescentes e idosos, saúde da mulher, além de experiências do trabalho profissional do Serviço Social em espaços socio ocupacionais de políticas públicas, orientados pelas professoras Ilda Lopes e Sueli Bulhões que permaneceram até a nova composição do quadro docente, com a chegada da professora Irene Rizzini em 2002.
No ano de 2010, foi realizado um processo de atualização do Programa de Pós-Graduação, quando ocorreram amplas mudanças na caracterização das linhas de pesquisa, no currículo e nos programas de discplinas, ocasião em que se adotou o título atual da linha: Violência, Direitos, Serviço Social e Políticas Intersetoriais. Logo em seguida, em 2011, houve a aposentadoria da professora Ilda Lopes e o ingresso do professor Antonio Carlos de Oliveira. A conformação atual do corpo docente da linha se deu com a saída da professorta Sueli Bulhões, em 2013, e a chegada da professora Ariane Paiva, no final de 2015.
No Gráfico 1 visualizamos como estão distribuídos os temas de pesquisa, produzidos ao longo dos anos, desde 1997, por décadas, até os dias atuais. Verifica-se uma concentração importante nos temas relacionados à infância e adolescência, violência de gênero e violência contra as mulheres, e o trabalho de assistentes sociais em políticas sociais. Esses são temas amplos, que abarcam processos de trabalho, elaboração e implementação de políticas sociais, relações de cuidado nas intituições públicas e nas relações familiares, bem como processos de institucionalização de grupos em situações de maiores vulnerabilidades, entre outros.
Gráfico 1: Temas com maiores tendências em Dissertações e Teses da PUC-Rio. Série histórica 1997-2021 (por década)
Fonte: catálogo de dissertações e teses defendidas na linha de pesquisa hoje intitulada “Violência, Direitos, Serviço Social e Políticas Intersetoriais”. Elaboração: Kelly Murat, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio
Famílias, Violências e Direitos
A concentração na temática de famílias na linha de pesquisa foi construída tanto em sua dimensão intragrupal – em suas ambiguidades de provedora de cuidados a seus membros, mas também de espaço de conflitos – como na condição de titular de proteção social, sobretudo em suas relações socio-históricas com o Estado. Assim que, no âmbito do grupo de pesquisa “Famílias, violências e políticas púlbicas”, se consolida mais de uma década de pesquisas sobre elementos centrais no processo de garantia de direitos de segmentos especialmente vulnerabilizados, com ênfase em desigualdades, diferenças, mudanças e permanências, sobretudo nas relações de geração e de gênero.
Tendo como foco central inicial a temática de famílias e violências, discussões e resultados de pesquisas, projetos de extensão e consultorias a programas de atendimento deflagraram o interesse em estudar as condições e as formas plurais de cuidado em família. Essa perspectiva teórico-metodológica tem se mostrado muito produtiva como leitura complementar à circunscrição prevalente de famílias de baixa renda como autoras prioritárias de violência, tensionando sobremaneira sua relação com a violência estrutural, característica de uma sociedade tão desigual como a brasileira.
A temática da violência se caracteriza por sua complexidade, polissemia e diversidade de abordagens. Seu emprego é definido ora como recurso racional e deliberado – como no caso do monopólio do uso da força legítima, exercido pelo Estado –, ora enunciado como efeito das relações estruturantes e de modos de sociabilidade, com destaque para processos de legitimação e manutenção de desigualdades historicamente construídas. Assim que suas variadas expressões – foco de interesse da linha de pesquisa – se revelam em estreita relação com marcadores sociais igualmente diversos, como classe social, gênero, raça e etnia, origem territorial e geração.
Contudo, apesar de considerada presente em todas as sociedades, a violência não remete ou se justifica por uma pretensa natureza humana, se constituindo a partir de características filogenéticas, senão resultante das condições materiais de existência erigidas por cada sociedade, perpassada pelas dimensões política, econômica e social, nas relações humanas e institucionais (MINAYO, 1994).
De modo que o estudo da violência não permite a pretensão de se postular conceito único, conhecendo tentativas de definição em diversos campos de produção de conhecimento, à medida que envolve “manifestações coletivas e individuais, históricas e psicológicas, objetivas e subjetivas” (IANNI, 2002, p. 8).
Em análise da violência como característica fundante da sociabilidade brasileira, Adorno (1995) afirma que as recorrentes violações dos direitos humanos, calcadas na profunda desigualdade social que marca a sociedade brasileira, constituem elementos sem os quais não se pode avançar em qualquer abordagem consistente e profunda de suas manifestações. Para o autor, no processo sócio-histórico brasileiro, a violência é constitutiva do tecido social, instituída pelos colonizadores – e reificada pelos sucessivos segmentos dominantes ao longo dos séculos – como forma naturalizada e legítima de resolução de conflitos, tanto em questões propriamente de antagonismo de classes como nas relações cotidianas e interpessoais.
Assim que a abordagem da violência, como herança história e em suas diferentes manifestações, tem sido realizada, na linha de pesquisa, a partir de distintas perspectivas teóricas; no entanto, tendo sua dimensão estrutural como condição primeira de sua análise, estudo e compreensão, expressa - no desigual acesso - as conquistas da sociedade por distintos segmentos da população. Deste modo, resulta-se em crescente processo de vulnerabilização dos grupos priorizados nas pesquisas realizadas.Em movimento similar, a partir de achados decorrentes de estudos com recorte em direitos humanos de crianças e adolescentes, a análise foi se ampliando na dimensão inter e transgeracional, abarcando outros segmentos etários, como mulheres e idosos. Tais inflexões devem muito ao permanente diálogo extramuros universitários, mantendo estreita relação com práticas de mais de décadas em trabalhos de consultoria, em formulação de políticas públicas (sobretudo para crianças e adolescentes) e qualificação da intervenção de equipes multiprofisssionais, com ênfase em programas governamentais de atenção a famílias, crianças, adolescentes, mulheres e idosos em situação de violência e violação de direitos. Dito isso, observa-se que, à formação de discentes em níveis distintos – iniciação científica, especialização, mestrado e doutorado – como pesquisadores/as, aliam-se práticas de qualificação em formulação e implementação de políticas públicas, em ativa interlocução com os processos macrossocietários, na perspectiva de que o conhecimento produzido esteja em diálogo com a vida cotidiana de cidadãs e cidadãos brasileiros.
Políticas intersetoriais como foco
As políticas intersetoriais passaram a compor o título da linha de pesquisa na revisão curricular realizada em 2010, quando este era um dos principais temas de estudo que envolviam as políticas públicas, desde a década de 1990, em especial as políticas sociais. Além da preocupação em conceituar intersetorialidade, a linha ainda se ocupa com experiências práticas no planejamento e execução de políticas e ações que se objetivem intersetoriais.
Parte-se da compreensão do corte e fragmentação das políticas sociais no enfrentamento das expressões da questão social, como forma inerente de resposta do Estado capitalista e de instituições privadas aos problemas estruturais e consequências da dinâmica da ordem burguesa. Os estudos que se debruçam sobre as políticas de saúde, educação, assistência social, ou que se dedicam a temas transversais como o cuidado de idosos, a política humanitária para acolhimento de refugiados, a proteção de crianças e adolescentes, dentre outros, levam necessariamente à interface com a incompletude das ações públicas.
Há, para os estudos que dizem respeito à formação ou às práticas da profissão do Serviço Social, um vínculo muito estreito com as políticas sociais, visto seu surgimento simultâneo e o desenvolvimento da profissão que ocorre paralelamente aos avanços e retrocessos dos processos tensos e contraditórios das formulações e implementações das políticas sociais no Brasil (PASTORINI, 2009), sendo essas políticas espaços de ocupação profissional e também mediações na execução do trabalho de assistentes sociais.
Após 1988, com a valorização da descentralização político-administrativa na condução das políticas públicas no território nacional, e da municipalização inscrita na Constituição Federal da República, a intersetorialidade ganhou visibilidade nos estudos das experiências das gestões municipais. A perspectiva de intersetorialidade veio acompanhada dos ideais de ampliação da democracia e participação nos espaços decisórios das políticas setoriais e de gestão das cidades. Também o discurso da necessidade de otimização de recursos e novas formas de gestão pública com a finalidade de enxugamento da máquina estatal, baseadas na reforma administrativa neoliberal da década de 1990, contribuíram para que a intersetorialidade se tornasse um dos principais eixos de boas práticas das políticas sociais, considerando métricas de eficácia e eficiência.
Os processos de municipalização não ocorreram de forma homogênea e as transferências de recursos das esferas federal e estadual aos municípios para execução de ações ainda hoje é complexa, burocratizada e cheia de percalços político-partidários. Há muitas variações nas experiências que se querem intersetoriais, inclusive instituindo diferentes concepções sobre o termo, dentre as quais: interação entre as diversas ações setoriais (JUNQUEIRA, 1998); integração de arranjos institucionais (LOTTA e FAVARETO, 2016); articulação entre sujeitos de setores diversos (WARSCHAUER e CARVALHO, 2014); etc.
O desenvolvimento das políticas sociais a partir da década de 1990 levou em consideração os aspectos da intersetorialidade, vinculados ao modelo de ações divididas pelas territorialidades, garantindo assim, pelo menos nos documentos oficiais dos governos, que a população de determinado território tivesse suas necessidades e demandas atendidas a partir de ações integradas. Para isso, foram e são formuladas engenhosas formas de gestões integradas por comitês ou comissões; novas tecnologias de registros e levantamento de dados com georreferenciamento e cartografias; propostas de reuniões e grupos específicos para decisões territorializadas; dentre outras tantas formas, quer inovadoras ou nem tanto.
Durante este longo tempo de pesquisa, identificam-se tendências nas formas de gestão intersetoriais de territórios, com rede de serviços precarizadas e sobrecarregadas, sem, contudo, haver mudanças radicais nas organizações hierarquizadas dos órgãos gestores e que revelam as relações desiguais de poder e interesses políticos e econômicos na gestão das cidades, o que envolve as políticas públicas e sociais.
Com esse balanço avaliativo sobre as produções da linha de pesquisa, apesar do entendimento consensual de que as políticas e instituições precisam de ações articuladas e/ou integradas, e que existem experiências pontuais interessantes para o atendimento de demandas sociais específicas, há como expectativa de que, em uma proposta de revisão do Programa de Pós-Graduação, a categoria “políticas intersetoriais” deixará de compor o título da linha, principalmente devido às suas imprecisões conceituais e por se constituir, efetivamente, como práticas a serem investigadas em contextos maiores das políticas públicas.
Direitos Humanos e suas perspectivas para o Serviço Social
A análise da construção histórica, social, jurídica e política dos direitos humanos, incluindo ideologias colonialistas que consolidaram seu desenvolvimento, constitui importante foco de estudo da linha de pesquisa Violência, Direitos Sociais, Serviço Social e Políticas Intersetoriais. A despeito da difusão global do discurso dos direitos humanos como vetor para maior equidade e justiça social no escopo das forças neoliberais do capitalismo contemporâneo, sua hegemonia é frágil, como afirma Boaventura Santos, ao apontar contradições presentes nos discursos e práticas dos direitos humanos à medida que a maior parte da população experimenta constantes violações de seus direitos (SANTOS, 2014; MOYAN, 2018).
É inegável a relevância do referencial de direitos humanos internacionalmente, ao buscar estabelecer princípios humanizadores e inclusivos por meio da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, em um contexto de profundo flagelo em decorrência de duas grandes guerras mundiais. O discurso dos direitos humanos assumiu uma dimensão global em pouco tempo ao final do século 20, sendo apropriado por diferentes forças, tanto para manutenção das relações hegemônicas de poder, que se nutrem das desigualdades em todos os níveis, como para subsidiar as lutas de diversos grupos que se posicionam como resistência, sobretudo no escopo dos movimentos sociais.
O Código de Ética mais recente do Serviço Social, datado de 1993, representa a direção dos compromissos assumidos pela profissão nas últimas décadas, sendo um dos elementos fundamentais na direção do Projeto Ético-Político do Serviço Social. Nele, observa-se uma perspectiva crítica à ordem socioeconômica estabelecida e a defesa dos direitos dos trabalhadores. Dentre seus 11 princípios fundamentais, destacamos para fins desse texto:
(...) defesa dos Direitos Humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo, ampliação e consolidação da cidadania, compromisso com a qualidade dos serviços públicos prestados à população, posicionamento em favor da equidade e da justiça social, empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, articulação com as entidades do Serviço Social e com os movimentos de outras categorias, e com a luta geral dos trabalhadores na defesa dos Direitos Humanos (FORTI, 2012, p.274).
Ao mesmo tempo em que se contrapõem aos interesses e valores da ordem do capital, o Código de Ética do Serviço Social tem como princípio a defesa dos direitos humanos. O que poderia representar uma contradição, do ponto de vista liberal, considerando a gênese dos DH nas lutas burguesas pelo declínio do absolutismo feudal, pode ser entendido a partir das mudanças ocorridas em sua configuração a partir do século XIX. Desde então, movimentos em defesa dos DH lutam pela ampliação de seus limites em uma história de lutas populares específicas progressistas que se intercruzam com outros tipos de luta. As Declarações assimilaram parte de suas reinvindicações ao longo do tempo, como a de 1948, que incorporou direitos sociais, econômicos e culturais aos direitos civis e políticos, fruto das lutas do movimento operário nos séculos XIX e XX. Avanços foram alcançados também por meio do Estado de Bem-Estar Social e, nos anos 1960, nos âmbitos civil e político no bojo dos movimentos de lutas específicas (BARROCO, 2008).
Contudo, os DH sofrem de contradições: universalidade, que esbarra nos limites estruturais da sociedade capitalista; democracia e cidadania, que encontra limites nos contextos políticos e socioeconômicos dos diferentes países; propriedade como direito natural, que favorece a defesa de direitos privados frente a uma universalidade abstrata; mesmo vinculado a interesses privados, o Estado não pode se restringir ao uso da força e da violência e, por isso, incorpora reivindicações populares em busca de legitimidade e hegemonia (BARROCO, 2008).
A crise capitalista e suas estratégias de superação, que incluem a restruturação produtiva e a implantação do ideário neoliberal, aprofundaram ainda mais essas contradições, impactando os direitos dos trabalhadores e os mecanismos de regulação da relação entre capital e trabalho. O aumento da desigualdade social e da pobreza e o enxugamento de recursos públicos para áreas sociais, dentre outros fatores, afetam profundamente o campo de atuação da/o assistente social. Além de vivenciarem, como trabalhadores/as assalariados/as, essas adversidades, profissionais têm sua trajetória histórica vinculada à questão social e às políticas sociais, com foco sobre a garantia dos direitos de populações socialmente segregadas, e adotaram um projeto profissional dissonante dos valores hegemônicos da sociedade atual, marcadas pela desumanização e pela criminalização da pobreza.
O debate acerca dos direitos humanos pode contribuir para a viabilização da atuação de assistentes sociais e outros profissionais que buscam a linha de pesquisa, visando assegurar conquistas arduamente alcançadas pelos trabalhadores. Eles podem contribuir para identificar e denunciar a desigualdade e as diferentes formas de exploração vivenciadas pela maioria da população, desde que contextualizadas nos marcos da luta de classes, denunciando os limites da legalidade e da universalidade liberal-burguesa (CFESS, 2012). Para além da concepção liberal, que naturaliza a propriedade e a protege dos não-proprietários, é possível traçar estratégias e efetivar ações profissionais compatíveis com sua concepção ampla, visando proteger todos aqueles afetados por violações de direitos (humanos), como os
vitimados pelos acidentes de trabalho, pelo desemprego, pela desregulamentação do trabalho, pelos baixos salários, pelos crimes financeiros, pela violência doméstica, pela ação repressiva do Estado, pelos sistemas penitenciários, de saúde e educacional, grande parte, ineficientes e/ou desqualificados, pelo latifúndio, pelos crimes na internet, ou seja (...) às vítimas das misérias da nossa sociedade (FORTI, 2012, p.279).
Neste sentido, o tema dos Direitos Humanos, apesar de não estar explícito no título da linha de pesquisa, alicerça boa parte das pesquisas empreendidas. Ele foi escolhido para o VII Seminário anual9 ocorrido em 2021, quando reafirmávamos que esse ainda era um referencial importante, diante das atrocidades cometidas por vários governos durante a pandemia por COVID-19 iniciada em 2020, principalmente analisando as respostas do governo de extrema-direita brasileiro (Jair Bolsonaro 2019-2022). No escopo da práxis do Serviço Social no Brasil, onde predomina lidar cotidianamente com violações de direitos das populações mais profundamente afetadas pelos processos excludentes e injustos em curso, o referencial de DH tem um papel importante de proteção, como forma de resistência a esses processos avassaladores, principalmente para quem dispõe de parcos recursos para lutar por seus direitos. Aqui nos referimos aos grupos mais expostos a fatores como pobreza, violência, racismo, discriminação, entre outros, sobretudo diante da intensificação da governança privada-corporativa e da redução do Estado na função de proteção social.
Afirmamos o referencial de DH tendo por base transformações significativas que se deram a partir de sua defesa. Pensando no caso brasileiro, citamos o exemplo das mudanças de paradigmas ocorridas no âmbito dos direitos da população infantil e juvenil, área de fundamental importância em nossa linha de pesquisa, como se pode constatar no quadro de maiores tendências temáticas anteriormente apresentado, com 39 dissertações e teses produzidas ao longo de três décadas. As mudanças presentes na Constituição Federal de 1988, no artigo 227 sobre os direitos das crianças e dos adolescentes e posterior promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente são um divisor de águas entre o passado e o presente. Tão profundas mudanças em tão pouco tempo não teriam sido possíveis sem o referencial de DH (RIZZINI, 2010).
Por fim, citamos a relevância dos estudos decoloniais contemporâneos para aprofundar o debate sobre os DH e sobre a lógica eurocêntrica e torná-lo mais crítico, à medida que desmistificam leituras e versões oficiais da construção das relações globais de poder vigentes (BRAGATO 2014; ZEIFERT, 2019). As análises de diversos autores oriundos de países fortemente atingidos por discursos e práticas colonialistas, sobretudo na América Latina, África e Ásia, são importantes contribuições para a reflexão crítica sobre os direitos humanos e a lógica eurocêntrica (SANTOS 1997; SEGATO, 2006; CASTRO-GOMÉZ, GROSFOGUEL, 2007; MIGNOLO, 2010; BALISTRIN, 2013; NDLOVU-GATSHENI, 2013).
Perspectivas atuais e futuras à guisa de conclusão: Violação de direitos humanos, violências e lutas sociais
Prospectivamente, a proposta da linha de pesquisa tem seu processo ancorado na análise das produções docente e discente dos últimos cinco anos e nas pesquisas desenvolvidas pelos professores-pesquisadores que a integram.
Essa análise se fez presente nas pesquisas voltadas especialmente para o estudo da violência doméstica, de práticas de cuidado e políticas de proteção de crianças e adolescentes em situações e contextos que os vulnerabilizam. Os resultados demonstram adensamento de investigações próprias de políticas públicas voltadas para diferentes grupos sociais, cujos direitos vêm sendo violados (mulheres, crianças, adolescentes e jovens, idosos, pessoas com deficiências e transtornos mentais, refugiados, migrantes, entre outros), com ênfase nas relações entre direitos humanos, Estado (sobretudo os Poderes Executivo e Judiciário) e proteção social. O Serviço Social, como um dos eixos da área de concentração do Programa, se faz presente por sua interrelação com as políticas sociais e com sistemas de proteção social, nos estudos desenvolvidos, constituindo-se em uma categoria relevante de análise, principalmente quanto à sua contribuição para a elaboração e implementação de políticas voltadas para os segmentos acima mencionados, com ênfase em uma abordagem interdisciplinar e intersetorial, em âmbito nacional e internacional.
Assim que reafirmamos o compromisso da linha de pesquisa em aprofundar a compreensão sobre os temas da violência, dos direitos e das formas de proteção social, tendo por base as complexas relações históricas entre Estado e sociedade no modo de produção capitalista e suas particularidades em diferentes países, em especial no Brasil.
O tema da violência, em suas múltiplas expressões, encontra-se presente nos mais diversos processos relacionais e pode ser estudado sob diferentes prismas considerando os contextos familiar, institucional e comunitário. Por articular elementos de diferentes naturezas, seu estudo indica a necessidade de se estabelecer distinções entre suas dimensões, desde a violência estrutural à violência interpessoal, mantendo-se uma temática importante de estudo e pesquisa do ponto de vista teórico-conceitual e das análises empíricas das práticas sociais.
A violência, citada por Marx como potência econômica, é determinante na constituição da questão social e determinada por ela. A violência está associada às diferentes formas de expropriação, exploração e opressão a que são submetidos diferentes segmentos da sociedade, considerando os marcadores das desigualdades estruturantes do modo de produção e reprodução da vida social, como classe, gênero, geração, raça/etnia e nacionalidade. Tem ganhado visibilidade pública por meio de denúncias e mobilizações de diferentes atores nacionais e internacionais, que tensionam as políticas de governos para sua prevenção e enfrentamento, em uma perspectiva ampliada de defesa dos direitos humanos.
A análise das trajetórias histórica, social, jurídica e política dos direitos humanos, incluindo ideologias colonialistas que consolidaram seu desenvolvimento, constitui foco fundamental de estudo desta linha, permanecendo sua relevância e centralidade na definição de seu escopo. A despeito da difusão global do discurso dos direitos humanos como vetor para maior equitatividade e justiça social no escopo das forças neoliberais do capitalismo contemporâneo, sua hegemonia é frágil, à medida que a maior parte da população experimenta constantes violações de seus direitos.
O outro eixo articulador da linha de pesquisa é a proteção social, compreendida como os processos sociais, econômicos, políticos e culturais que constroem as formas de organização da proteção aos membros de cada sociedade, o que inclui a proteção integral aos direitos humanos, tomados em sua dimensão de indissociabilidade. De tal maneira que abarca as obrigações primeiras do Estado quanto ao provimento de condições dignas de vida e de segurança a todas/os/es, mas as extrapola, incluindo questões relativas a todo o aparato de proteção sócio-historicamente construído e sustentado. Assim, as abordagens adotadas nas pesquisas partem da compreensão dos processos de desproteção social como expressão de violência e grave violação de direitos.
Neste sentido, a linha se propõe a refletir criticamente sobre o debate, nacional e internacional, sobre proteção, defesa e garantia de direitos, que vem apontando significativos avanços e, ao mesmo tempo desafios que precisam ser enfrentados na formulação e na implementação das diversas políticas públicas nesta fase de desenvolvimento do capitalismo. Sabe-se que o tratamento setorializado para as expressões da questão social, que vem demarcando as políticas públicas e privadas nas sociedades capitalistas, possui limitações para responder à complexidade das situações vividas pelas classes subalternizadas e nos interessa analisar suas formas de participação, de lutas e resistências para o exercício da cidadania.
O Serviço Social, situado no conjunto das Ciências Humanas e Sociais, historicamente articulado às formas de intervenção nas manifestações da questão social, em sua interrelação com a luta e defesa dos Direitos Humanos, constitui um campo privilegiado para o desenvolvimento de pesquisas relacionadas ao estudo das várias formas de violência, das violações de direitos e sobre as organizações e resistências de sujeitos, grupos e instituições. De tal maneira a oferecer subsídios para elaboração, implementação e avaliação de políticas públicas e sociais que possibilitem a criação de estratégias inovadoras de ação, considerando experiências intersetoriais e interinstitucionais e favorecendo o desenvolvimento de processos democráticos, produzindo conhecimentos que ampliem a interlocução com outros campos de saber.
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Notas
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