Resumo: O artigo tece reflexões no intuito de contribuir com estudos sobre a trajetória de formação e do trabalho em Serviço Social, destacando a formação oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio. Para tanto, adota como fio condutor a categoria trabalho, para o qual é destacado o aporte da teoria social marxista, e apresenta a produção intelectual sobre trabalho contida em teses e dissertações defendidas no âmbito do Programa. A análise está pautada no exame de documentos históricos do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, bem como em revisão bibliográfica sobre o tema, tomando como referencial a formação profissional e acadêmica crítica.
Palavras-chave: Serviço Social, Trabalho, Produção do conhecimento.
Abstract: The article aims to weaver reflections that can contribute to studies on the trajectory of training in Social Work, highlighting the training offered by the Postgraduate Program in Social Work at PUC-Rio, adopting the work category as a guideline, for which the contribution of Marxist social theory is highlighted. Presenting the intellectual production on work contained in theses and dissertations prepared within the scope of the Program, the analysis is based on the examination of historical documents from the Department of Social Work at PUC-Rio, as well as on a bibliographic review on the subject, taking as a reference the formation professional and academic criticism.
Keywords: Social Work, Work, Knowledge production.
Trabalho: categoria essencial na trajetória da formação e do trabalho profissional em Serviço Social na PUC-Rio
Work: essential category in the trajectory of training and professional work in Social Work at PUC-Rio
Recepción: 01 Mayo 2022
Aprobación: 01 Junio 2022
O Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) constitui-se em ampliação do mestrado acadêmico, criado em 1971 e implantado em 1972, o primeiro a ser oficialmente credenciado pelo Conselho Federal de Educação (Parecer 4.428/1976). O doutorado acadêmico foi instituído em 2002 (Portaria MEC n. 3.949/2002), com a implantação da primeira turma em março de 2003. Sua história se associa à história do Serviço Social brasileiro e sua consolidação como área de conhecimento e de pesquisa acadêmica, é responsável, também, pela formação dos primeiros mestres em Serviço Social no Brasil.
De acordo com Junqueira, Nestorov e Mendes (1994, p.1): “O curso foi iniciado com um certo atraso, pois deveria ter começado em março de 1971, depois de uma preparação consciente e cuidadosa da Direção do Instituto Social, entidade, naquele momento, ainda por ele responsável. [...]. Desde 1970, começara a ser pensado, planejado e estruturado”. Segundo as autoras, houve uma relutância das autoridades superiores universitárias da PUC-Rio, pois, na ocasião, ainda estava em discussão a integração do curso de graduação de Serviço Social do Instituto Social à estrutura administrativa e pedagógica da PUC-Rio no campus da Gávea5. Com isso, houve o atraso na divulgação do curso, seleção de candidatos/as e início das aulas, as quais só se concretizaram em março de 1972.
Coincidentemente, é interessante verificar que, também com seis meses de diferença, na década de [19]30, os cursos de graduação de Serviço Social das duas Universidades Católicas tiveram começo: o de São Paulo em 1936 e o do Rio de Janeiro em 1937 (JUNQUEIRA, NESTOROV, MENDES, 1994, p.1-2). Notadamente, essas duas instituições confessionais demonstravam atenção e interesse em contribuir com a busca de soluções para os problemas sociais, por meio da formação em recursos humanos especializados.
Merece registro o fato do curso de Mestrado da PUC-Rio ter sido criado após a Reforma Universitária brasileira de 19686, quando se requisitava a elevação do nível de professores/as no país. Ou seja, em pleno período da ditadura militar, já havia a preocupação de formar profissionais críticos e comprometidos com os interesses das classes populares. Os cursos de mestrado e doutorado se tornaram referência para a formação do quadro docente do país e, ao longo desses anos, o Programa vem acumulando experiência e mantendo o seu compromisso com a excelência na formação oferecida.
Na passagem dos 50 anos desde a criação do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e 85 anos do início do curso de Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, este artigo se propõe a tecer reflexões que possam contribuir com estudos sobre a trajetória do Serviço Social no país, tendo como eixo central a categoria trabalho, essencial para pensarmos sobre a formação de recursos humanos para atender a demanda de docentes e pesquisadores/as das instituições de ensino e pesquisa e a demanda de profissionais para órgãos públicos governamentais ou da sociedade civil, preparando-os para refletir e intervir criticamente na realidade social, desenvolvendo e difundindo novos conhecimentos relativos à articulação histórica do Serviço Social com a questão social, as políticas públicas e sociais e com os direitos sociais, contribuindo, assim, para o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro e das demais regiões onde os egressos se inserem ou atuam, bem como do próprio país e de países da América Latina, como propõe o nosso projeto político-pedagógico.
O exame da categoria trabalho, um dos eixos centrais da linha de pesquisa denominada Trabalho, Políticas Sociais e Sujeitos Coletivos, que compõe a estrutura do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, e da qual somos integrantes, assenta-se na crescente preocupação com as expressões da questão social no Brasil, e notadamente, na América Latina, em decorrência dos elevados índices de desigualdade social e pobreza, realçando a importância do Serviço Social contemporâneo em dar respostas para a apreensão e no trato das questões nacionais, regionais e locais. Neste aspecto, a intrínseca relação entre trabalho, questão social e Serviço Social deve ser destacada, pois as reflexões sobre trabalho e expressões da questão social, relações de trabalho, transformações contemporâneas no mundo do trabalho e suas repercussões no trabalho profissional do assistente social têm sido objeto de estudos elaborados por docentes, estudantes e demais pesquisadores que constituem a referida linha de pesquisa.
Nosso objetivo consiste, portanto, em apresentar algumas relações importantes entre trabalho, formação e trabalho da/o assistente social, tomando como fio condutor do debate a categoria trabalho, para o qual o destacamos o necessário aporte da teoria social marxista. Nossa reflexão está pautada, portanto, no exame de documentos históricos do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, bem como em revisão bibliográfica sobre o tema, tomando como referencial a formação profissional e acadêmica crítica, propositiva e de qualidade.
A aproximação da categoria trabalho pelo Serviço Social se dá com propriedade a partir do Movimento de Reconceituação e renovação da profissão ocorridos entre as décadas de 1960 e 1980, mais especificamente com o acesso à teoria social marxista. José Paulo Netto (1995) ao analisar esses processos, com base em documentos registrados nos encontros, seminários e congressos realizados à época, identifica três vertentes predominantes, já conhecidas pela categoria, a saber: modernizadora, fenomenológica e de intenção de ruptura com o conservadorismo. Netto (1995) se referia, sobretudo, ao conservadorismo tradicional de natureza religiosa, mas não só, se referia também às teorias que não investigavam os fundamentos das mazelas da ordem burguesa7.
A mudança fundamental ocorrida nesse processo de revisão teórica, metodológica e política da profissão está em situar o Serviço Social no contexto das relações sociais capitalistas, entendendo a sua organização estruturada por duas classes fundamentais e antagônicas: capital-trabalho. A classe capitalista, detentora da riqueza socialmente produzida, assume o lugar de classe dominante, e a classe trabalhadora, quem produz a riqueza, torna-se cada vez mais subordinada. Essa realidade, já conhecida por muitos assistentes sociais hoje, é essencial para entender as diferentes expressões da questão social, como resultado de processos históricos e não fruto do acaso ou de qualquer determinação natural ou sobrenatural.
Aqui se torna importante esclarecer que a nossa concepção de questão social está enraizada na contradição capital versus trabalho. Em outros termos, trata-se de uma categoria que tem sua especificidade definida no âmbito do modo capitalista de produção. A concepção de questão social mais difundida no Serviço Social é a de Iamamoto e Carvalho (1983). Vejamos:
A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão (IAMAMOTO; CARVALHO, 1983, p.77).
A questão social é, portanto, uma categoria que expressa a contradição fundamental do modo capitalista de produção. Contradição, essa, fundada na produção e apropriação da riqueza gerada socialmente: os/as trabalhadores/as produzem a riqueza, os capitalistas se apropriam dela. É assim que o/a trabalhador/a não usufrui das riquezas por ele produzidas. E os/as assistentes sociais trabalham, em seu cotidiano, com as expressões da questão social, ou seja, tais como os sujeitos as experimentam no trabalho, na família, na saúde, na assistência social, na educação, na habitação etc.
Ao reconhecer o caráter público da questão social, o Estado vai necessitar de profissionais qualificados para atender as demandas daí oriundas. É nesse contexto que a categoria trabalho vai se tornar importante para o Serviço Social, pois, ao vender sua força de trabalho em troca de um salário, temos a inserção profissional de assistentes sociais dentro das relações capitalistas, sendo também afetados pelas determinações e precarizações próprias do mundo do trabalho. Ao mesmo tempo em que lidam, no seu cotidiano profissional, com expressões da questão social nos diversos espaços socio-ocupacionais em que se inserem. É uma relação complexa e que exige mediações constantes para a sua apreensão e para o enfrentamento dos desafios e dilemas para as respostas aos problemas sociais que, diariamente, lhes são colocados.
O ponto de partida da apropriação da categoria trabalho, portanto, se refere à sua dimensão ontológica, como fundante do ser social, e a sua centralidade na vida humana até os dias atuais, pois a humanidade pode modificar o trabalho e as suas relações contratuais e de direitos, mas jamais poderá abdicar dessa atividade tipicamente humana. Portanto, as teses sobre o fim do trabalho desenvolvidas principalmente após a crise do capital desencadeada a partir de 1970 apresentam uma confusa interpretação sobre trabalho e emprego. Antunes (1995, 1999, 2018), entre outros pesquisadores, vem nos esclarecendo a importância da centralidade da categoria trabalho para a formação humana e o seu sentido para a manutenção da vida.
O que hoje conhecemos como ser social foi constituído a partir da relação estabelecida na transformação da natureza mediada por instrumentos – o trabalho. O seu desenvolvimento como um ser mais amplo em relação aos demais seres vivos se deu por meio dessa atividade. O trabalho, por mais que possa parecer individual em algumas formas de produção, é e sempre será uma atividade social.
Na sociedade moderna, as relações de produção e reprodução social se complexificaram nesse período histórico, e o trabalho assume a função principal de produzir mercadorias com valor de uso e valor de troca. Os trabalhadores, em grande medida, passam a ocupar um lugar subordinado e alienado do seu modo de ser na sociedade e, com isso, a condição de subordinação do/a trabalhador/a ao longo dos anos adquire características diferenciadas a depender da conjuntura política, econômica, histórica e posição social ocupada pelos países. As relações capitalistas estabelecem configurações de mercado de trabalho e de direitos sociais desiguais no mundo, influenciando o modo de vida dos sujeitos.
A complexificação do trabalho na sociedade capitalista originou relações sociais cada vez mais conectadas mundialmente e submetidas a padronizações políticas, econômicas e culturais. Isso indica que o modo de produzir riquezas está inserido numa espécie de engrenagem que envolve estruturas diversas. Nesse modo de produção e de reprodução social chamado capitalismo, os sujeitos passam a estabelecer relações desiguais submetidas à lógica da acumulação, do lucro e da concentração de riquezas.
Trata-se de um período histórico determinado, em que o trabalho, além de meio de sobrevivência, torna-se fonte de exploração e de subordinação humana, em que a própria força de trabalho se torna mercadoria, passando a ter um valor de mercado atribuído. Contudo, nem todos os/as trabalhadores/as podem vender a sua força de trabalho, criando o que Marx (1985), no capítulo XXIII de sua obra O capital, uma superpopulação relativa ou um exército industrial de reserva. Atualmente, essa população não seria exclusivamente uma reserva industrial, mas um conjunto heterogêneo de trabalhadores/as dispensados/as pelo mercado formal de trabalho e incluídos a partir de diferentes modos de precarização e informalidade do trabalho, entre eles, o mote do empreendedorismo, os prestadores de serviços controlado por plataformas digitais, como é o caso da Uber, Ifood entre outros.
A lógica adotada por essas empresas mencionadas, confirmam a tendência apontada por Marx (2006) no início do capitalismo, na Inglaterra, de expulsão da força de trabalho de seus postos, conforme ocorre a alteração da composição do capital8, entendida parcialmente como capital fixo ou constante (maquinário, prédios, trabalho coagulado) e capital variável (matéria-prima e força de trabalho) – elementos oriundos da natureza –, pode impactar nas condições de vida e sobrevivência dos sujeitos sociais.
Disso decorre que, no estágio atual do capitalismo, não se trata dos mesmos recursos da composição do capital do início do capitalismo, uma vez que estamos em uma era em que a tecnologia da informação e outros mecanismos de produção e controle do/a trabalhador/a são extremamente sofisticados e, além dos produtos físicos, há também um conjunto de serviços que se tornaram produtos vendáveis no mercado.
Neste ponto, torna-se importante esclarecer que o objetivo da investigação de Marx não é o valor (como fizeram Adam Smith e David Ricardo), mas a mercadoria, considerada essencial para desvendar os mecanismos de funcionamento da sociedade capitalista. E a mercadoria, forma particular em que se apresentam os produtos do trabalho no capitalismo, é a unidade de valor de uso e de valor de troca. Ao fazer a crítica à teoria do valor clássica, Marx (1985) qualifica o debate mostrando que não é o trabalho (na sua forma de produto, conforme anunciado pelos clássicos do liberalismo econômico) que está em contraposição ao capital, mas, sim, a força de trabalho, que é trocada com o capital por um valor capaz de garantir a própria reprodução dessa força de trabalho e produzir novos produtos.
Deve-se recordar que Marx (1985, 2006) inicia sua análise diferenciando valor de uso e valor de troca para, em seguida, distinguir o próprio trabalho (trabalho concreto e trabalho abstrato). Os valores de uso só se realizam com a utilização ou o consumo e constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela, além de serem, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor de troca. Já o valor de troca revela-se na relação quantitativa em que se trocam valores de uso de espécies diferentes, relação essa que muda constantemente no tempo e no espaço. Assim, como valores de uso, as mercadorias são de qualidades diferentes e, como valores de troca, só podem diferir na quantidade.
Marx (2006) esclarece, assim, que, na medida em que a composição do capital é alterada, o desemprego e a miséria aumentam. Trata-se, portanto, de uma construção histórica, não natural, tampouco resultados de uma crise que surge aleatoriamente. Essa dinâmica faz parte da estrutura básica do capitalismo que tende a se tornar aguda, caso nada seja feito para evitá-la ou suprimi-la.
Para a manutenção do modo de produção capitalista, algumas estratégias foram criadas ao longo da história. O modo de produzir as tecnologias e a relação com a natureza muito se alteraram, mas os elementos centrais do capitalismo se mantiveram: a propriedade privada, a exploração e a alienação. Trata-se de um modo de produção historicamente gerador de crises. Diante das crises, o capitalismo não apresentou em tempo algum uma solução efetiva, por não haver essa possibilidade. O que ocorreu, no máximo, em períodos de expansão, foi a criação de medidas de contenção dos problemas causados por diferentes “expressões da questão social”. De acordo com Mandel (1985), as crises são inerentes ao capital, embora não sejam naturais.
No período após a Segunda Guerra Mundial, nos países considerados de capitalismo central, e diante das ameaças do comunismo, resistências e lutas de movimentos operários, os/as trabalhadores/as fordistas alcançaram algumas conquistas com relação aos direitos sociais e ao acesso ao emprego. Numa lógica de pleno emprego, de produção em massa, havia a necessidade de o/a trabalhador/a produzir, mas, também, a necessidade de o capital ampliar o consumo das mercadorias. Trata-se de um momento permeado de tensões e contradições, mas foi um período de expansão capitalista que incorporou algumas demandas das classes trabalhadoras, proporcionando em alguns países a constituição do chamado Estado de Bem-Estar Social articulado ao modo de gestão fordista.
Na América Latina, essas conquistas sociais e expansão do capitalismo ocorreram de modo diferenciado. Foram alcançados alguns avanços, mas muito longe de alçar as conquistas dos países centrais em termos de proteção social do trabalho. A inserção na lógica do capital internacional se deu, na América Latina, de modo dependente e subordinado ao grande capital internacional.
Sendo assim, outra necessidade se impôs aos profissionais e pesquisadores do Serviço Social, para compreender as particularidades da sociedade brasileira como um país capitalista que assume uma posição subordinada na configuração geopolítica internacional. Pode-se dizer que, ao longo dos anos, a profissão vem acumulando saberes essenciais sobre a contradição capital-trabalho, políticas sociais e sobre a própria categoria profissional como um corpo heterogêneo que se unifica na diversidade, mas ainda possui muitos desafios de aprendizados e de enfrentamento da realidade nacional orientada por uma lógica capitalista cada vez mais nociva para todos e todas.
Tornou-se imperativo à categoria profissional do Serviço Social a apropriação dos traços essenciais da formação social e econômica do Brasil, bem como a constituição do mercado de trabalho, que nunca absorveu plenamente a força de trabalho brasileira, mantendo um grande índice de pessoas disponíveis para serem exploradas em níveis intensos. Essa disponibilidade, historicamente, tem facilitado a contratação de trabalhadores/as com baixos salários, ínfimo poder de compra e poucos direitos sociais.
Além desses elementos, outros reforçam as desigualdades de classe em nosso país e não podem ser esquecidos, antes necessitam ser superados. Destaca-se, neste aspecto, o racismo e as desigualdades de gênero (NUNES, 2021). A ênfase na grafia desses dois elementos se refere à urgente necessidade de aprofundamento da incorporação dessas análises, já iniciadas por muitas/os pesquisadoras/es no Serviço Social, mas que ainda carece de investimentos. Assim, pensar sobre o trabalho, requer também que se considerem as articulações de gênero, raça e geração com as contradições de classes inerentes ao capitalismo.
Destaca-se, também, o caráter fundamental da consciência de classe para as/os assistentes sociais que, apesar de serem reconhecidos como profissionais autônomos, são, na realidade, integrantes da heterogênea classe trabalhadora, disponibilizando a sua força de trabalho para venda, tal como fazem os demais trabalhadores/as, não obstante suas particularidades. Essa característica, já apontada por Iamamoto (2003, 2010) e outros/as pesquisadores/as, nos auxilia a situar o trabalho das/os assistentes sociais no contexto de transformações societárias oriundas das crises do capitalismo do final do século XX e início do século XXI como parte e expressão desses processos. Pois as/os assistentes sociais têm sido duplamente afetadas/os: 1) como profissionais que atendem a classe trabalhadora com demandas mais complexas e recursos públicos e sociais mais reduzidos ou focalizados na extrema pobreza; 2) como trabalhadoras/es que precisam acessar postos de trabalho, ter salário e condições gerais de sobrevivência.
No Brasil, alguns direitos foram implementados a partir da expansão da indústria e das reivindicações operárias e sindicais em processos e momentos contraditórios. Podemos citar as legislações trabalhistas, políticas de saúde pública, direitos previdenciários, educação, entre outras e, mais tarde, com a Constituição Federal de 1988, novas conquistas foram oficializadas. Direitos esses fortemente atacados pelos governos de orientação neoliberal, como destaque para os governos de Michel Temer (2016-2018) e Jair Messias Bolsonaro (2019-em curso)9.
O conjunto de contrarreformas, instaurado a partir da década de 1990 e intensificado mais recentemente, tem afetado imensamente os trabalhadores e trabalhadoras de todos os níveis de escolaridade e qualificação não poupando nem mesmo os/as profissionais com nível superior e pós-graduação, a exemplo das/os assistentes sociais que atuam em empresas (BOTÃO, 2015, 2020). Na ocasião da pesquisa realizada pela referida autora, foram identificadas mudanças nas contratações das assistentes sociais e de outros profissionais, sob o argumento da focalização em conhecimentos especializados, para terceirizar e quarteirizar serviços por intermédio das chamadas consultorias externas, já apontando uma tendência ao trabalho uberizado10, mesmo sem mencionar o termo, ainda pouco disseminado na ocasião de sua pesquisa.
Nesse modo de contratação, há um forte apelo à suposta neutralidade profissional, empreendedorismo, flexibilidade devido à possibilidade de customização dos serviços prestados, oferecendo maior economia para as empresas contratantes dos serviços e maior exploração dos trabalhadores contratados (BOTÃO, 2015, 2020).
Além de destituir direitos do trabalho e intensificar as atividades, apresenta uma série de problemas, como a hiperindivilualização dos atendimentos, que ocorrem na maioria das vezes por telefone, reforça a lógica do isolamento dos/as trabalhadores/as, reduz a autonomia reativa dos/as profissionais de Serviço Social e limitam as possibilidades de elaboração de programas e projetos mais efetivos no espaço de trabalho, levando a interpretação de que as expressões da questão social reveladas no cotidiano dos/as trabalhadores/as são de responsabilidade deles/delas, e a empresa contratante fornece um suporte para ajudá-los/as a superar seus problemas fora do espaço empresarial para que tenham maior privacidade, e o retorno desse investimento será o aumento da produtividade.
Outro exemplo importante, mais focalizado nas formas de contração e perda de direitos do trabalho, encontra-se em Santos e Stampa (2019), ao demonstrarem a realidade frágil dos contratos de trabalho em outra forma de contratação e acesso profissional ao emprego que se dá por processos de licitação, popularmente conhecidas como pregão. A lógica da contratação por pregão consiste na ausência de garantias do trabalho minimamente protegido, bem como no achatamento salarial, no qual o acesso ao mercado de trabalho se dá pelo menor custo da força de trabalho, prestado com aparente autonomia profissional.
Em sintonia com os processos sociais e o conjunto representativo da categoria profissional, o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, ao longo dos anos, vem buscando se atualizar permanentemente, revisando seus conteúdos, investindo em pesquisas que tratem da categoria trabalho na sua concepção original, assim como seus desdobramentos e implicações para o trabalho profissional e, consequentemente, para os/as usuários/as dos serviços sociais, comprometido prioritariamente com a classe trabalhadora. Na seção seguinte será possível visualizar quantitativamente e qualitativamente a produção sobre o trabalho e suas expressões realizada no referido Programa.
Em um contexto de mundialização do capitalismo (CHESNAIS, 1996), no qual as condições de precarização do trabalho, do mercado de trabalho e o processo de segmentação da classe trabalhadora estão expressos nas relações contraditórias que o envolvem, e necessitam cada vez mais de uma reflexão acurada, torna-se importante colocar no centro do debate acadêmico seu significado e sua articulação com os processos produtivos, com as políticas de gestão e com a organização e ação política dos/as trabalhadores/as, temas importantes e que vem ganhando expressão na produção do Serviço Social.
O Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, ao longo da sua história, vem demonstrando capacidade inovadora nos campos de ensino, da pesquisa e da extensão, sempre conectados aos novos desafios teórico-metodológicos, ético-políticos e técnico-operativos postos à profissão. Inscrito no conjunto das Ciências Humanas e Sociais, possui uma trajetória de formação de docentes e pesquisadores, cujas atividades estiveram vinculadas às sucessivas áreas de concentração que direcionaram suas propostas: em 1972 - Serviço Social de Casos e Trabalhos com Grupos; em 1986 - Serviço Social Contemporâneo, seus Fundamentos e Políticas e, finalmente, em 1997 – Serviço Social, Questão Social, Direitos Sociais até a presente data. Neste contexto, o programa produziu, ao longo dos 50 anos de existência, 572 dissertações de mestrado e 67 teses de doutorado, muitas delas transformadas em livros, capítulos de livros e artigos publicados em reconhecidos periódicos científicos.
A linha de pesquisa Trabalho, Políticas Sociais e Sujeitos Coletivos foi assim constituída e nomeada em 2007, tendo em vista os processos sociais em curso, favorecendo a compreensão acerca dos processos que compõem a questão social, bem como as respostas sociais que são dadas às suas manifestações ao longo da história. Nesse sentido, a linha propõe-se a ser um espaço de formação de pesquisadores que tenham como objeto de estudo tanto questões histórico-conceituais como análises empírico-teóricas relativas aos temas dos grupos e núcleos de pesquisa que sustentam a linha.
Buscando compreender como esta área temática se refletiu na produção científica (bibliográfica e técnica) do Programa até o ano de 2021, foi realizado um levantamento na relação de teses e dissertações defendidas pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, cujo acesso é disponibilizado no site do Departamento de Serviço Social11. Para tal mapeamento, utilizou-se como descritores de busca, por meio dos títulos das teses e dissertações, as seguintes palavras-chaves: “trabalho”; “trabalhador/a”; “trabalhadores/as”; “trabalho profissional”, “exercício profissional”; “trabalho do/a assistente social”, “precarização”; “terceirização”; “reforma trabalhista”; “saúde do/a trabalhador/a”; “sindicato”; “sindicalismo”; “assessoria”; “reestruturação produtiva”; “responsabilidade social”; tendo sido localizadas 153 produções (138 dissertações de mestrado e 15 teses de doutorado).
Das 138 produções de mestrado, selecionadas dentre as 572 produzidas na totalidade, desde o início do Programa, temos a seguinte representação:
Quadro 1 - Produção por década – Dissertações de Mestrado
Fonte: elaboração das autoras, 2022.
Nas duas primeiras décadas do Curso de Mestrado da PUC-Rio (1972–1989), o Serviço Social apresentava demandas diferentes e os temas recorrentes eram sobre a história do Serviço Social brasileiro e da América Latina, práticas profissionais e formação profissional. Merece ênfase o fato de que esse período foi marcado pela repressão da ditadura militar no Brasil (1964-1985), que trouxe questionamentos à profissão e influenciou no seu processo de renovação. A contextualização histórica favorece compreender acerca das temáticas abordadas nas dissertações do período, que traziam questões alinhadas às demandas da época. Assim, destacam-se temas relativos ao trabalho profissional de assistentes sociais em seus diversos campos de atuação no período circunscrito e, em uma perspectiva mais teórica, as produções que versavam sobre o Movimento de Reconceituação do Serviço Social.
Apenas na década de 1980, contudo, com a apropriação da teoria marxiana (não mais velada pelos ditames da ditadura militar), a profissão vem construindo uma hegemonia norteada pela crítica. No processo histórico, o Serviço Social foi (e vem) se renovando, negando as práticas voluntaristas e filantrópicas, partindo para um direcionamento ético e político comprometido com os interesses da classe trabalhadora, na luta pelo acesso aos direitos e pela legitimação de outros segmentos sociais.
Nesse contexto de renovação e crítica ao Serviço Social tradicional, passa-se a compreender a natureza da profissão e seus objetivos na sociedade, norteando-a com princípios e diretrizes interventivas, fundamentadas e determinadas por uma direção social que tem na liberdade e compromisso com as classes populares o seu valor central. Além de refletir sobre si mesmo, o Serviço Social passa, principalmente na década de 1990, a produzir conhecimentos sobre o trabalho profissional, a realidade brasileira e as políticas sociais.
Neste sentido, cumpre destacar, ainda, a importância do curso de Mestrado da PUC-Rio na história do Serviço Social brasileiro. Por ter sido o primeiro curso no Estado do Rio de Janeiro e o segundo do país, grande parte do corpo docente das universidades públicas do Rio de Janeiro e de outras regiões do país foram formadas ou iniciaram sua formação pós-graduada stricto sensu neste curso, com reflexões prenhes de elementos que contribuíram (e continuam a contribuir) para a consolidação do Serviço Social como profissão e como área de conhecimento.
No que concerne à temática trabalho, objeto específico desta reflexão, observa-se, a partir do mapeamento realizado utilizando os descritores supracitados, que 24% da produção contida nas dissertações elaboradas e defendidas no curso de Mestrado, no período de 1972 até 2021, dialogou com o tema. Observa-se, também, o crescimento da produção no decorrer das décadas seguintes, conforme apresentado no Quadro 1, demonstrando a importância da temática para a profissão.
Com relação a produção do Doutorado, ao longo dos seus vinte anos de existência, a temática do trabalho correspondeu a 22,3% das produções do Programa, afirmando o interesse do debate sobre o tema no processo de ensino e pesquisa, ou seja, para a formação oferecida.
Destacamos que as duas primeiras teses elaboradas no Programa e defendidas em 2007, foram: Educação superior, trabalho e cidadania da população negra: o que aconteceu com os estudantes provenientes dos pré-vestibulares comunitários e populares em rede beneficiários das ações afirmativas da PUC-Rio após sua formatura na graduação?12; e o estudo intitulado E agora companheiros? Ação sindical dos ferroviários do Rio de Janeiro e a reinvenção da política13. Ambas trouxeram a temática do trabalho como elemento medular para a reflexão realizada, o que demonstra a centralidade desta categoria para o Serviço Social e para as pesquisas desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, chegando a corresponder a 50% das produções nos anos iniciais do Programa, conforme se observa no Quadro 2, a seguir.
No decorrer do período, destaca-se a diversidade de temas que vêm sendo objeto de reflexão nesta linha de pesquisa: contratação de assistentes sociais por pregão, seguro-desemprego, trabalhadores/as ambulantes nos trens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, precarização nas condições de trabalho, dentre outros.
Quadro 2 - Produção por década – Teses de Doutorado
Fonte: elaboração das autoras, 2022.
Importante informar que esse percentual não reflete a totalidade de dissertações e teses elaboradas e defendidas em grupos de pesquisa que constituem a linha de pesquisa Trabalho, Políticas Sociais e Sujeitos Coletivos, mas a totalidade das teses produzidas no Programa até o ano de 2021. No âmbito da produção envolvendo essa temática, nos últimos cinco anos, destacam-se algumas dissertações e teses pela proximidade maior com a temática trabalho: Saúde, organizações sociais e trabalho: os limites do “novo” modelo de gestão da saúde no Rio de Janeiro; As expressões da precarização do trabalho na assistência social do Município de Duque de Caxias-RJ; Autonomia de Voo: transformações recentes do capitalismo e incidências para o Serviço Social no Departamento de Controle do Espaço Aéreo; Trabalho terceirizado de limpeza em shopping center: vitrine da precarização na “catedral das mercadorias”; Fashionismo às Avessas: expressão da precarização do trabalho nos bastidores da moda; Tijolo com tijolo num desenho trágico: condições de trabalho na construção civil após as demissões em massa no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (COMPERJ); O Brasil sob a terceirização: reforma trabalhista e corrosão estrutural do trabalho (2016-2018); A política de saúde do trabalhador em debate: elementos históricos e contraditórios no contexto da administração pública federal; A informalidade do trabalho no Brasil: um traço persistente em sua história; Contratação por pregão: formas atípicas de contratação de assistentes sociais no Brasil recente; A produção científica sobre o Programa Seguro-Desemprego brasileiro: tendências e consensos; Trabalho e resistência: experiências dos trabalhadores ambulantes nos trens da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
A relevância da categoria trabalho como mediação para o entendimento dos processos sociais que redefinem a questão social e problemas derivados das relações tecidas no âmbito das novas configurações que o trabalho assume na atualidade, sublinha a questão da pobreza no epicentro dessas expressões que envolvem processos ligados às relações de produção, à relação capital-trabalho e à intervenção reguladora do Estado.
A dimensão das mudanças que vêm sendo operadas na sociabilidade capitalista, com a emergência de novos modelos de produção, das consequentes crises daí decorrentes, da precarização do trabalho, da exclusão de grande parte da população das atividades laborativas despontam desafios a serem enfrentados no debate atual. Esses elementos reforçam a importância das produções desenvolvidas no Programa, em como a necessidade da continuidade e aprofundamento de estudos sobre a temática, dada a sua relevância para a compreensão das expressões da questão social em tempos de condições aviltantes de trabalho, o que repercute diretamente nas condições de vida e de sobrevivência das classes trabalhadoras, sobretudo em países de capitalismo periférico, como o Brasil.
Tanto a formação quanto o trabalho profissional de assistentes sociais encontram-se profundamente atravessados por desafios e dilemas próprios do nosso tempo. Isso impõe para a categoria profissional a necessidade de construir formas de enfrentamento que não se restrinjam à dimensão técnico-instrumental, pois ela não dá conta das complexas exigências que se colocam diuturnamente para a profissão, embora seja elemento essencial, para, junto com a dimensão teórico-metodológica, responder a esses desafios.
Assim, a produção de conhecimento sobre esses aspectos é ferramenta indispensável para a apreensão da realidade complexa em que estamos inseridos/as, seja como trabalhadores/as, seja como profissionais que precisam construir respostas às expressões da questão social, tal como se apresentam no cotidiano profissional nos diversos espaços socio-ocupacionais.
No decorrer dessas produções, que também determinam a existência da profissão, surgem consensos e dissensos em relação a algumas temáticas, o que propicia um debate profícuo e bem fundamentado entre autores/as que servem de referência para a categoria profissional. Esse debate, tanto em espaços políticos como em produções teóricas, adensa os conhecimentos já existentes e cria novos. Uma das questões que está instalada no interior da categoria diz respeito ao trabalho. Refletir sobre isso se faz importante, pois nos leva a compreender, dentre outros elementos, como os/as assistentes sociais concebem a história e a profissão. E o tema não está esgotado, antes, as produções da área apresentam o nível de intensificação da reflexão acumulada pelo Serviço Social nos últimos anos e o desenvolvimento de sua relação com o conjunto das Ciências Humanas e Sociais.
O exame das dissertações e teses elaboradas e defendidas no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, desde a sua implantação, em 1972, até os dias atuais, nos levam a concluir que tanto a formação como a análise do trabalho profissional de assistentes sociais requerem um entendimento do trabalho a partir dos processos históricos, enfocando as alterações na produção e reprodução das relações capitalistas que determinam mudanças nas condições e relações de trabalho.
Pesquisas e produções sobre o trabalho e o trabalho profissional de assistentes sociais, seu estatuto de assalariamento, as configurações do mercado de trabalho, dentre tantos outros temas relevantes, são questões que contribuem para o entendimento da profissão nos espaços socio-ocupacionais, que, mesmo diante de suas particularidades, comungam dos mesmos ditames do sistema sociometabólico do capital, como nos ensina Mészáros (2011).
Em tempos de negacionismo científico e avanço de conservadorismos de toda ordem, torna-se necessário lembrar o que já parecia óbvio: a contenção da propagação do fim do trabalho como eixo explicador do surgimento do ser social, com reflexões sobre temas contemporâneos que explicitem a realidade em que se vive, precisa estar na ordem do dia. Pode parecer ultrapassado produzir e pensar sobre a ontologia do ser social, seu fundamento e seus desdobramentos. Mas engana-se quem considera a discussão sobre o trabalho algo ultrapassado e de menor valor, pois nenhuma outra produção e categoria científica conseguiu analisar, explicar e determinar o surgimento do ser social, das relações produtivas e reprodutivas da sociedade de modo geral, senão pelo trabalho, embora outras mediações também sejam necessárias e urgentes.
As produções do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio, somadas a tantas outras da mesma área de conhecimento e de áreas afins, nos colocam desafios para refletir sobre o Serviço Social na contemporaneidade, tendo como direção a apreensão do local que ocupa na produção e reprodução da vida material, no circuito de produção e reprodução social. Em tempos de aprofundamento de políticas de corte neoliberais, persistir na defesa intransigente dos princípios éticos de uma atuação profissional pautada e fundamentada em valores democráticos e humanos, tendo como horizonte a construção de uma nova sociabilidade, é um desafio que não pode ser tomado como missão exclusiva da categoria dos/as assistentes sociais, mas, sim, deve se articular com um projeto societário que lute pela emancipação humana, na construção de uma sociedade sem exploração e dominação de classe, raça/etnia, gênero, geração e diversidade sexual.