Apresentação de artigo de Marcio Brotto

Presentation of Marcio Brotto's article

Aldaiza Sposati 1
Pontifica Universidade Católica de São Paulo, Brasil

Apresentação de artigo de Marcio Brotto

O Social em Questão, vol. 1, núm. 54, Esp., pp. 177-204, 2022

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Mayo 2022

Aprobación: 01 Junio 2022

Resumo: Dentre as homenagens aos 50 anos da Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro está demarcada a presença do estudo e da pesquisa no campo da política pública de seguridade social de assistência social. Sua presença trouxe a contribuição do Prof. Dr. Marcio Eduardo Brotto a essa comunidade acadêmico cientifica. A forte e dinâmica presença de Marcio Brotto2, já era demarcada na graduação em Serviço Social, na qual impulsionou a pesquisa de iniciação cientifica. Pesquisou, com resultados de altíssima qualidade histórica, as formas de presença da proteção social distributiva na Baixada fluminense. O jovem e brilhante professor nos deixou aos 42 anos de idade. Esta homenagem reafirma Marcio Brotto Presente!

Palavras-chave: Serviço Social, Pós-graduação na PUC-Rio, assistência social, Baixada Fluminense, proteção social.

Abstract: Among the tributes to the 50 years of Post-Graduation in Social Service of the Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro is the presence of the study and research in the field of public policy of social security and social assistance. His company has brought the contribution of Prof. Dr. Marcio Eduardo Brotto to this academic-scientific community. The strong and dynamic presence of Marcio Brotto was already marked during his undergraduate studies in Social Work, where he promoted the research of scientific initiation. With results of very high historical quality, he researched the forms of the presence of distributive social protection in the Baixada Fluminense. The young and brilliant professor left us at the age of 42. This tribute reaffirms: Marcio Brotto Present!

Keywords: Social Work, Postgraduate at PUC-Rio, social assistance, Baixada Fluminense, social protection.

Marcio Eduardo Brotto, um nome cativante e uma história de partilha ainda mais sonora. Cabe bem, falar de sonoridade sobre os encontros com Marcio. Seu sorriso se alargava da boca aos olhos e nos tornava repletos de alegria do encontro e da generosa acolhida. Carioca, nascido em 1974 sob o forte signo da Aries, reluzia sempre.

Sua formação solida em Serviço Social ocorreu entre a UFRJ, lócus de sua graduação, e a PUC-RIO que o titulou e o reconheceu Doutor em Serviço Social em 2012, com a tese História e Cultura Política da Assistência Social, em que desenvolve pesquisa histórica sobre elementos de presença de proteção social na simbólica cidade da Baixada Fluminense: Duque de Caxias.

Eu o conheci após seu ingresso na Prefeitura do Rio de Janeiro em novembro de 2003, quando fui convidada para uma das atividades inaugurais da Escola Carioca de Gestores da Assistência Social. Ele a implantou ao final de 2003 e a coordenou até 2008. Esse lócus trouxe-lhe uma marca que nunca mais abandonou: a dedicação em qualificar o conhecimento de trabalhadores tornando-os melhores consigo mesmo e com o outro.

Sua vivência foi uma batalha em disseminar conhecimentos e qualificar a prática profissional e, com ela, a qualificação da atenção nas políticas de assistência social e de saúde. Sabia pela experiencia e, não só pelos livros, pois como profissional pertencia à equipe do programa Estratégia de Saúde da Familia em Niterói. Desenvolveu ações acadêmicas de tutoria no Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), conduzindo equipes de profissionais do Hospital Miguel Couto (preceptores) e discentes em Serviço Social da PUC-RIO na execução do subprojeto “Processo de trabalho e educação permanente: pelo fortalecimento de serviços de urgência e emergência integrados e de qualidade”.

Na Prefeitura do Rio dedicou-se na década de 2000 à capacitação para cerca de 2000 dos trabalhadores municipais da política de assistência social. Produziu cadernos de orientação, organizou congressos municipais e colaborou na assessoria de seis encontros nacionais do Congemas-Colegiado Nacional de Gestores Municipais da Assistencia Social.

Seu traço desbravador, curioso, imaginativo o levou para o campo da pesquisa e aqui voltamos a nos encontrar. Quase uma década havia passado desde a experiência em que o conheci, na Escola Carioca de Gestores da Assistência Social. Foi professor na Unigranrio onde estive a seu convite ministrando conferências.

Ingressou como docente na PUC-Rio em 2012, consolidando-se como Professor Assistente do Departamento de Serviço Social da PUC-RIO. Tornou-se em 2013, bolsista produtividade de Pesquisa no CNPq. Na PUC-Rio realizou a coordenação departamental do Programa de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). Sua trajetória como pesquisador toma novo formato quando implanta na PUC-Rio, e em diálogo com o NEPSAS-Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social da PUC de São Paulo - grupo de pesquisas que coordenei desde 1985-, o Núcleo Integrado de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social (NIEPSAS). A pesquisa nos reaproximou e tivemos algumas atividades em parceria. Estive ministrando aulas em disciplina especial sobre a proteção social distributiva coordenada por Marcio na PUC-Rio.

Márcio foi ainda o idealizador e coordenador da Especialização em Assistência Social e Direitos Humanos da PUC Rio que ainda permanece como ele planejou. Ao final de cada turma há uma publicação de livro com os melhores artigos produzidos pelos alunos.

Marcio nos deixou em fevereiro de 2017 de modo súbito nos colhendo sob impacto. Um jovem com tanta vitalidade e sede de vida que nos abraçava com sorriso largo, foi retirado de nosso convívio. Um enorme choque. Sua presença resgatada nesta comemoração que inclui os 50 anos da Pós-graduação do Serviço Social da PUC-Rio comemorados neste 2022, reitera o quanto sua curta vida foi tão presente, e plena de contribuições.

Sobre suas contribuições cabem aqui destaques. Esta Revista, O Social em Questão, tem dois artigos de Marcio Brotto, o último de 2016, no nº 36, sob o título A gestão da assistência social e direitos humanos em Niterói - O Centro Pop e seus desafios.

Esse artigo foi construído sob coautoria entre quatro autores e é dedicado à análise histórica do SUAS - Sistema Único de Assistência Social na cidade de Niterói, seus avanços e recuos entre as diversas gestões. O texto dedica-se, em especial, aos serviços de média e alta complexidade, subconjuntos das ações da proteção social especializada do SUAS, sob a coordenação de um CREAS - Centro de Referência Especializado em Assistência Social. O artigo caracteriza o público do serviço Centro Pop, indicando seus cidadãos usuários e suas procedências. Os autores do artigo sobrelevam a importância do processo de acolhida da população nesse serviço, e a forte necessidade de preparo dos que nele atuam. Concluem pela necessidade do entendimento de que aquilo que se faz na atenção da assistência social está determinado em lei como um direito humano e social. Tratá-lo de modo personalista ou fulanizado não afere a condição de direito posta desde a Constituição de 1988.

Um segundo artigo de autoria de Márcio Brotto está na Revista O Social em Questão, publicado no nº 30 de 2013 sob o título: Do passado ao presente: influências da história e cultura política na gestão democrática da assistência social em Duque de Caxias/RJ. Esse texto foi baseado em sua tese de doutorado defendida em 2012 e publicada pela editora da PUC-Rio: Reflexão, no ano de 2015, sob o título de Assistência Social: História e Cultura Política. Estudos e pesquisas de minha autoria sobre a política de assistência social não foram incluídos entre os autores de sua tese. Talvez por isso Marcio pediu que eu escrevesse seu Prefácio. Nessa ocasião ao ler seu texto pude entender o quanto a dimensão política, e a reminiscência cultural e histórica, são partes constitutivas da presença relacional na proteção social.

Nesse trabalho ele nos mostra a construção histórica da proteção social sob a liderança de políticos, dos grandes senhores de terras que os apadrinham em uma mistura de cordialidade, servilidade e cumplicidade. Ali escrevo “essa herança somada à história das práticas das irmandades religiosas ou das Igrejas, substitutivas da ausência de responsabilidade social do estado brasileiro tornam a trajetória da política de assistência social no Brasil uma batalha pelo republicanismo e pela democracia”.

Ali acresço:

“Sua obra deveria ser adotada como exigência no processo de formação de profissionais que atuam em políticas sociais públicas, sobretudo para assistentes sociais que operam exatamente nas relações sociais como expressões da questão social”.

ANEXO

Do passado ao presente: influências da história e cultura política na gestão democrática da assistência social em Duque de Caxias/RJ

Marcio Eduardo Brotto1

História e Cultura Política: fundamentos influentes no cenário democrático

Pensar a história e a cultura política como pontos de partida para uma aná- lise de determinado espaço social significa assumir o propósito de realização de um exercício reflexivo sobre a importância de estudos que tenham como objeto “temas políticos”, capazes de desvelar suas influências quando relacionados à execução de práticas políticas de cunho social. Dessa forma, intenta-se explicitar elementos que fundamentem o pensar sobre a abordagem desses temas, concen- trando, num primeiro momento foco na relação entre história, cultura e política. Neste sentido, convém destacar que comumente o termo política é utilizado como equivalência ao termo poder, cuja mudança na forma de ser concebido foi fundamental ao processo de revitalização, ou mesmo renovação, da história política. Essa mudança pressupõe ultrapassar o reconhecimento do processo lento e gradativo, de concepção singular, de poder vinculado a certos indivíduos e ins- tituições, atingindo uma ótica de natureza coletiva, concebida e determinada no contexto das relações sociais. Nesta lógica, que consolida uma significação plural da palavra poder, passando ao reconhecimento de “poderes”,

o estudo do político vai compreender não mais apenas a política em seu sentido tradicional, mas, em nível das representações sociais ou coletivas, os imaginários sociais, a memória ou memórias coletivas, as mentalidades, bem como as diversas práticas discursivas associadas ao poder (FALCON, 1997, p. 76).

Assim, torna-se evidente uma trajetória de avanços e recuos que acabam por delimitar o debate, a caracterização e a distinção entre uma velha e uma nova história política, demarcadas por processos de longa duração que consolidam ca- racterísticas culturais da política ao longo do tempo. De fato, o que pode colocar em questão é a natureza do político e o significado de suas relações com as demais esferas da realidade social.

Se nas três primeiras décadas do século XX, a história política tomou por base, e foi compreendida assim no mundo ocidental, a partir e por intermédio do Estado, desfrutando de posição de prestigio por se relacionar com fatos atinentes a monarquias, guerras e regimes políticos. Posteriormente, essa concepção perde seu caráter até então hegemônico, tendo o seu processo de declínio se tornado relevante, evidenciado a partir da fundação da Revista Annales que, publicada na França, no ano de 1929, se configurou como o epicentro das mudanças ocorridas no campo do conhecimento histórico, passando a defender uma concepção de história total, na qual o econômico e o social ocupam lugar fundamental. Logo,

seus pressupostos enfatizavam a longa duração como mais importante que os movimentos de ruptura – ou de curta duração. Privilegiaram a continuidade, as entidades coletivas, os fenômenos sociais e suas relações com o econômico e o mental, o mundo do trabalho, da produção e das relações sociais daí resultantes; enfim, a análise das estruturas “vistas de baixo”, a opinião das pessoas comuns e o interesse por toda a atividade humana (OLIVEIRA, 2007, p. 95).

A recuperação de prestígio dos estudos políticos deve-se, em grande parte, à renovação das perspectivas de abordagem, que possibilitaram não só desvendar novas problemáticas para análise, mas também o surgimento de novos conceitos e técnicas investigativas. Nesse sentido, “o alargamento da competência do Estado e a implementação das políticas públicas, assim como mais contato com a história com a ciência política, a sociologia, a linguística e com a psicologia, abriram novos campos de estudo” (HILÁRIO, 2006, p. 144).

Nessa direção, a nova história política deve ser compreendida como detentora de uma concepção flexível, por congregar múltiplas perspectivas de abordagem e por, também, buscar superar as barreiras metodológicas de seu estágio tradi- cional. Fala-se aqui na superação da ausência do próprio caráter histórico, que a caracterizava como restrita a tipificação de doutrinas e pensamentos, mas não ao estudo das racionalidades políticas existentes em determinado tempo.

De modo expressivo, a nova história política apresenta análises sobre um con- junto de elementos que integram o jogo político, ocupando-se de estudos sobre a participação e em um conjunto de aspectos integrados a vida política. Seu inte- resse desloca-se para a esfera da história das formações política e das ideologias, passando a se firmar como uma área capaz de dispor de fontes palpáveis de quali- ficação e quantificação. Portanto,

[...] desejosa de ir ao fundo das coisas, de apreender o mais profundo da realidade, essa nova história sustentava que as estruturas duráveis são mais reais e determinantes do que os acidentes de conjuntura. Seus pressupostos eram que os fenôme nos inscritos em uma longa duração são mais significativos do que os movimentos de fraca amplitude, e que os comportamentos coletivos têm mais importância sobre o curso da história que as iniciativas individuais (FERREIRA, 1992, p.265).

Da mesma forma, torna-se possível considerar que a história se caracteriza como política quando, na esfera do político, conforma-se como o eixo de articu- lação do social e de suas representações.

Dentre as contribuições que permitiram o renascimento da história polí- tica, ganha destaque a influência do marxismo, que propiciou, dentre outros aspectos — a partir da concepção do econômico como elemento determinante nas relações de produção — a análise e compreensão das relações entre atores sociais no contexto da sociedade. Foram formuladas inúmeras criticas ao papel do Estado2, que passou a ser considerado um instrumento da classe dominante, sem qualquer margem de autonomia.

Da mesma forma, a influência marxista foi levada adiante por diversos autores nos séculos XIX e XX, como foi o caso de Antônio Gramsci (1891-1937) que, par- tindo da obra de Marx, legou à filosofia política a concepção de que o poder não reside apenas no aparelho repressor do Estado, mas também na hegemonia cultural e política da classe dominante, a partir da qual os governantes educam e submetem os governados (GRAMSCI, 1991). Sob esse aspecto, a concepção de hegemonia é fundamental para a compreensão do pensamento de Marx, uma vez que Gramsci opõe-se a uma leitura esquemática da obra marxista que leve à compreensão de que as superestruturas (moral, direito, religião etc.) têm uma mera relação de dependência mecânica com as estruturas (base econômica). Nesse sentido:

é precisamente a ideia de hegemonia assim entendida que distingue radicalmente Gramsci de toda forma de mecanicismo na interpretação do decurso histórico e de qualquer visão redutiva ou autoritária da função das velhas ou novas classes dirigentes. Se essas perdem a hegemonia cultural, ideológica ou moral, deixam de ser dirigentes e passam a exercer uma dominação destinada à decadência e ao colapso. Deste modo, Gramsci afasta-se de qualquer concepção de tipo tirânico da expressão ditadura do proletariado (TORTORELLA, 2008, s/p).

Outra importante contribuição na forma de pensar e abordar a história política decorre dos anos de 1970, tendo por base estudos sobre a microfísica do poder, através do qual se passou a considerar seu potencial autônomo, estando presente em diferentes esferas institucionais (escolas, fábricas, famílias, hospitais, hospícios, policiais, prisões), ou seja, nas mais diversificadas instâncias, defendendo-se, assim, a tese de que “o poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de Estado” (Foucault, 1989, p. 221).

Essa lógica de pensamento, que propõe um novo olhar no campo das ciências humanas, acabou sendo determinante para o surgimento fecundo de outras análises, com destaque para o surgimento do conceito de poder simbólico trabalhado por Bordieu (1998), que dirige ao poder um sentido relacional, isto é, a sociedade é compreendida como uma estrutura hierarquizada de poder e privilégio, determinada pelas relações materiais, bem como pelas simbólicas (de status) e/ou culturais.

Outros elementos de influência para renovação da história política referem-se ao redirecionamento dos estudos sobre revoluções, para estudos sobre rebeliões de caráter político e cultural, o que proporcionou o desenvolvimento de revisões historiográficas que acabaram por privilegiar o debate sobre cultura e movimentos sociais e, também, a sobreposição dos estudos direcionados às análises sobre o projeto democrático.

Na defesa de uma nova linha de análise, os estudos acerca da nova história política passam a se preocupar com as trajetórias das formações políticas e suas respectivas ideologias. Nesta perspectiva, resgatam a ação dos atores sociais no campo da política, dando visibilidade e reconhecimento à pluralidade e à longa duração dos fenômenos e, por conseguinte, a influência da cultura política na trajetória dessa história.

A proposta de renovação inclui o intercâmbio com elementos da ciência polí- tica, fazendo com que a participação na vida política seja um tema fundamental, que permite o desenvolvimento de análises sobre sociabilidades, discursos e aspectos histórico-culturais. Nesta ótica, a “nova história” política,

[...] ao se ocupar do estudo da participação na vida política, integra todos os atores, mesmo os mais modestos, no jogo político, perdendo assim seu caráter elitista e elegendo as massas como seu objeto central. Seu interesse não está voltado para a curta duração, mas para uma pluralidade de ritmos que combina o instantâneo e o extremamente lento (FERREIRA, 1992, p. 268).

Portanto, essa concepção de história defende que, para além de fatos que ocorrem em ritmo intenso, e que correspondem a datas precisas, existem outros que se inscrevem em uma duração mais longa, de continuidades no tempo. Consequentemente, as diferentes posições apresentadas em defesa dessa nova histó- ria, consideram o político como o lócus onde se articula o social e suas respectivas representações (ROSANVALLON, 1995)

Assim, ressaltar as variáveis políticas e culturais nas abordagens dos estudos históricos se torna importante para o reconhecimento da realidade social, buscando, com base no presente, ou motivado pelo futuro, reinterpretar o passado, analisando suas influências, pois

[...] as razões da continuidade e da revitalização da História Política se devem à importância do político no mundo moderno, principalmente às mudanças no cenário internacional a partir da década de 1980, exemplificadas nas críticas ao modelo soviético autoritário e no anseio da democracia, no reformismo, no sur- gimento dos movimentos nacionalistas e na reordenação da economia mundial (OLIVEIRA, 2007, p.99).

Diante destes aspectos, o processo de ressignificação da história política aponta para algumas orientações (GOMES, 1996). São elas:

(1) ela não se reduz a determinante de qualquer outra natureza, não se configurando um reflexo superestrutural, pois goza de ampla autonomia influenciando a realidade social em sua dinâmica global;

(2) a necessidade de ser pensada como mutável podendo assim se expandir ou se contrair, ou seja, se modificar no tempo e no espaço;

(3) sua relação com outros campos da realidade social, com forte influência de questões culturais, visto que suas interpretações envolvem tanto fenômenos sociais conjunturais, demarcados na ocorrência de determinados eventos, quanto fenômenos sociais de longa duração, a exemplo de estudos sobre a cultura política de determinados grupos;

(4) privilegia os acontecimentos, recebendo a demanda social de incorporar estudos sobre o tempo presente, embora não se esgote nesse campo de abordagem;

(5) sofre o impacto relativo ao uso de novos instrumentos e metodologias de análise, sobretudo quando vinculada a estudos sobre a história cultural.

Neste Contexto, unem-se as dimensões contempladas pela história e cultura política, onde refletir sobre experiências, a partir de um conhecimento pautado na dimensão de uma história política renovada, permite desvelar quais elementos históricos perpetuam-se por conjunturas distintas, através de traços e fatos presentes em processos de longa duração, caracterizadores da cultura política.

Assim, pensar em cultura política, suas formas e expressões, remete-nos a correlações estabelecidas entre valores, normas e atitudes que permeiam e integram — num movimento de fluxo e refluxo de conjunturas históricas — os comportamentos, direções e diretrizes políticas na sociedade.

Desta forma, a trajetória histórica brasileira permite constatar que “a maior parte das iniciativas de combate à desigualdade social acaba se transformando em políticas assistencialistas que não alcançam o objetivo inicial de geração da igualdade social” (BAquERO, 2008, p.393). Nesse cenário, contribui significativamente a perpetuação de uma cultura política conservadora, atingindo diversas políticas públicas, a exemplo da política de assistência social que, ainda, apresenta marcas decorrentes do elitismo, clientelismo, centralismo e outras práticas que deveriam ter sido superadas.

Com base nas diferentes concepções teóricas, as reflexões apresentadas neste artigo, toma por base um conceito de cultura política como meio pelo qual se perpetuam, por conjunturas distintas, através de traços e fatos presentes em processos de longa duração, determinadas características em uma sociedade. Por outro lado, a cultura política apresenta-se como a manifestação de um poder estabelecido “entre classes e segmentos sociais que se relacionam (econômica, política e ideologicamente) e materializado numa ‘práxis’ cristalizada (ação e correlação) que organiza, encaminha e realiza interesses de classes e segmentos sociais” (SEIBEL e OLIVEIRA, 2006, p.1). Nesse sentido, trata-se de compreender a cultura política articulada ao conceito gramsciano de hegemonia política que resulta em um “modelo político-cultural abrangente pelo qual as elites dirigentes procurariam exercer influência e poder na sociedade” (MOISÉS, 2005, p. 89).

A partir dessa compreensão, torna-se importante conhecer de que forma essa manifestação de poder, influencia e articula a gestão democrática e as políticas de descentralização preconizadas pela Constituição Federal de 1988, especialmente no que se refere às políticas sociais implementadas em diferentes municipalidades. Nestes termos, a superação da histórica cultura política autoritária e centralizadora, envolve a apreensão de seus conteúdos e a identificação de suas manifes- tações, o que fundamenta o olhar investigativo sobre a gestão da assistência social no município de Duque de Caxias/RJ.

História, Cultura Política e “gestão democrática” da Assistência Social: reflexões sobre a realidade do município de Duque de Caxias/RJ

Os impactos e a permanência de uma determinada cultura política em Duque de Caxias puderam ser compreendidos a partir da análise histórica de determinados aspectos políticos, sociais e econômicos do município. Por essa razão destaca-se, a importância de resgate, a partir da figura deTenório Cavalcanti, líder político caxiense nas décadas de 1940 a 1960, de todo um conjunto de práticas, usos e modos de operar a política local, cuja permanência desafia, ainda hoje, a perspectiva democratizante da Constituição Federal de 1988, presente na análise da trajetória e da atuação política local.

Para além das análises focadas em líderes locais, importa reconhecer, na permanência de certas práticas, a continuidade de traços determinantes da cultura política local, baseada no autoritarismo, centralização, clientelismo e, também, na violência e no medo. Consequentemente, as expressões de continuidade no campo político caxiense remetem à constatação de que a história do município é marcada por relações conservadoras e autoritárias, expressas em diferentes for- mas. Nesse sentido, a prática da “troca de favores” é um elemento presente não só na relação entre políticos e a população desassistida, mas também entre políticos, gestores e profissionais da rede socioassistencial. O uso do poder político e de gestão é utilizado para garantir a cooptação e a persuasão de representantes da sociedade civil que, dependentes de convênios e verbas, veem-se impedidos de questionar ou refutar pautas pré-definidas.

Os traços determinantes dessa cultura não impactam somente a esfera do “fazer política”, refletindo-se na realidade social e econômica de Duque de Caxias. Nessa concepção, de forma integrada às características da trajetória da política caxiense, agregam-se outros aspectos, expressivos para o entendimento da realidade local. Sobre o assunto, a investigação revelou a existência de uma profunda contradição na realidade econômica atual do município, qual seja, ao lado de investimentos industriais de grande porte, que agregam tecnologia de ponta e geram recursos fiscais para o governo local, convive-se com o risco ambiental e com altos índices de marginalização, pobreza e desassistência.

Assim, a contradição entre essas “duas Caxias”, uma pobre, e outra rica, tem como síntese a compreensão de que o modelo de desenvolvimento do município está pautado na predominância do fiscal sobre o social, conforme demonstrado pelo fato de que, em 2011, os investimentos em assistência social representaram apenas 0,11% do PIB municipal. Isso explica porque, de um lado, Duque de Caxias ostenta a posição de segundo maior PIB estadual, e décimo quinto do país e, de outro lado, apresenta um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,753, inferior à média de 0,764 obtida pelo Estado do Rio de Janeiro, ocupando a 52ª posição entre os municípios fluminenses. Deste modo, Duque de Caxias, em que pese apresentar altos níveis de arrecadação fiscal, praticamente limita as suas ações — no campo da assistência social — àquelas organizadas, criadas e financiadas pela esfera federal e estadual.

Nesse contexto de profunda desigualdade social, adotou-se, neste artigo, uma perspectiva contra-hegemônica para a qualificação da democracia, enquanto forma sócio-histórica capaz de romper com diretrizes estabelecidas e de instituir novos padrões de participação política. Nesse sentido, não é somente através de rupturas e de outros “grandes eventos” que a trajetória histórica e a cultura po- lítica podem ser alteradas. Assim, a democracia é compreendida não tanto como um método de autorização de governos, mas como uma forma de exercício coletivo do poder político, que permite que modalidades democráticas participativas ganhem visibilidade e evidência. Nesses termos, a investigação do processo democrático brasileiro destaca o papel chave das políticas voltadas para a descentralização do poder estatal, que devem passar a fundamentar uma nova lógica de relações entre Estado e sociedade civil.

A descentralização governamental e, posteriormente, das políticas municipais surgem, assim, voltadas para uma valorização das instituições democráticas, garantindo autonomia às estruturas de gestão local. Neste sentido, a descentralização de programas sociais caracteriza-se, no Brasil, como uma tendência atual, sendo reafirmada como a principal força de reordenação e dinamização de novas políticas, de viés democrático e participativo. Para que se consolidem, contudo, é necessária uma orientação clara, contínua e coordenada que permita estabelecer a adequada simetria entre seu caráter fiscal e de competência e encargos, o que somente pode ser alcançado por intermédio de sistemas ágeis e transparentes de monitoramento, avaliação e informação.

Desenvolve-se, dessa forma, uma “nova” cultura vinculada não só a garantia de direitos sociais inscritos na Constituição Brasileira, mas também a participação de um conjunto significativo de atores sociais que, por vivenciarem o cotidiano das lutas por melhorias sociais, passam a se tornar fundamentais na reorganização da esfera pública e de seus valores.

Contudo, sobre esse aspecto, é possível observar que, em Duque de Caxias, o controle social desses programas ainda é incipiente. Em regra, as estruturas e órgãos de controle já foram criados, mas a atuação dos mesmos encontra-se, ainda, condicionada a relações hegemônicas estabelecidas e mantidas pela coação ou, mais frequentemente, pelo “apadrinhamento”. Da mesma forma, verifica-se que a insuficiência técnica dos representantes da sociedade civil nesses órgãos fragiliza, quando não impede, o seu funcionamento adequado. Esse desconhecimento contribui, também, para a falta de aplicabilidade do Plano Municipal de Assistência Social. Neste aspecto, constata-se que este se limita a compilar as ações previstas no Plano Nacional, sem especificar de que forma serão executadas em âmbito local.

Ainda no que se refere à qualificação dos atores envolvidos no campo da as- sistência social, em Duque de Caxias, a abordagem empírica permite reconhecer uma realidade preocupante. Na esfera governamental, fica evidente que a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos — instância administrativa que tem por função implementar o Plano Municipal de Assistência Social — não possui quadro técnico apropriado. De fato, a qualificação profissional é baixa, re- fletindo o pouco investimento do governo municipal na formação de seus agentes e a ausência de uma política de recursos humanos para o órgão. Por outro lado, no que se refere ao vínculo empregatício desses profissionais, verifica-se que a Secretaria possui um inexpresivo quantitativo de funcionários estatutários, mantendo, atualmente, vinculações através de cargos comissionados ou por convênios e/ou contratações, o que reforça ainda mais as práticas clientelistas no município.

Por outro lado, a discussão sobre a descentralização dos programas sociais em Duque de Caxias envolveu a análise da trajetória da assistência social, demarcada por diversos tipos de organização e de regulação. Atualmente, têm-se como referencial nacional a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), aprovada em 1993 e alterada em 2011, pela Lei 12.435, com o objetivo evidente de superar práticas que, até então, caracterizavam a assistência social como um campo conservador e burocrático, voltado para a repressão, para a segregação e para o disciplinamento.

Contudo, na contramão desses preceitos, é possível perceber que a área vem sendo influenciada por uma filantropia democratizada, que busca promover a organização de esferas de expansão de estruturas de defesa de direitos, como conselhos, organizações civis e outras estruturas, reguladas por legislações e normativas específicas. Nesse sentido, a aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e o estabelecimento do Sistema Único de Assistência Social (SuAS) parecem indicar a consolidação e o aprofundamento do projeto democratizante e descentralizador da LOAS.

No que se refere ao SuAS, cabe ressaltar que sua criação reacendeu o debate sobre a ampliação de investimentos na assistência social e de reestruturação neste campo, para responder com qualidade e de forma efetiva aos agravos nas situações de vulnerabilidade social. Superar ranços históricos locais, presentes no campo da assistência social, continua sendo o principal desafio para a sua efetiva consolidação como política pública.

Esse quadro sugere o aprofundamento de um modelo de ação pública no campo da assistência social, através do qual são criados canais e/ou mecanismos de participação social, a exemplo dos conselhos municipais, conferências e outras instâncias deliberativas, propiciando a interlocução entre os atores de distintas representações. Diante do exposto, foi possível verificar que o propósito evidente da atual PNAS é romper as amarras de um tradicionalismo institucional, que manteve a assistência social numa posição secundária no âmbito das ações estratégicas do Estado brasileiro. A PNAS busca e legitima o fortale- cimento da assistência social como política pública, capaz de superar culturas políticas que reproduzem o clientelismo, o assistencialismo e o mandonismo local, que demarcam relações de subalternidade e de dependência de governados em relação a governantes.

No decorrer da investigação, também ganha destaque o papel dos centros sociais em Duque de Caxias, sendo possível afirmar que eles ocuparam lacunas deixadas pela “inoperância do poder público”. Nesse sentido, destacou-se que a insuficiência da rede socioassistencial pública manifesta-se de variadas formas, desde a ausência de equipamentos socioassistenciais até a má distribuição no território municipal. Da mesma forma, os centros sociais são, frequentemente, utilizados por políticos que, em busca de dividendos eleitorais, mantém equipamentos socioassistenciais até mais sofisticados do que aqueles oferecidos pelo poder público. Paradoxalmente, esses Centros Sociais são, em regra, mas de forma escamoteada, financiados pelo poder público. Essa constata ção permite identificar a existência, em Duque de Caxias, de um ciclo vicioso, no qual o vereador passa a não desempenhar o seu papel de fiscalizador e propositor de melhorias, investindo, ao contrário, nas lacunas e limitações da atuação do Estado para intervir de forma pontual e eleitoreira, na tentativa de suprir as lacunas existentes e, assim, ser reconhecido como “benfeitor”.

É nessa concepção que se apoiam os discursos das representações políticas detentoras de centros sociais que, ao invés de aprovarem a ampliação e destinação de verbas públicas para a implantação e execução de serviços sociais básicos, visando à melhoria da qualidade de vida da população, acabam se beneficiando dessa situação para fortalecer o seu poder local. A transcrição de trechos de entrevistas feitas com vereadores de Duque de Caxias confirmam as assertivas feitas:

[...] eu não deixo de atender ninguém, eu atendo todo mundo, todos os dias, eu ajudo lá o trabalho social; político não é pra ter centro social desde que o poder público atingisse a necessidade do povo, mas o poder público não chega até elas, não atende, não resolve os grandes problemas e nem os pequenos [...] aí o vereador tem que tá tirando de seu dinheiro [...] porque todo dia tem uma mãe, tem um pai, tem uma pessoa, um vizinho na sua porta, no seu gabinete pedindo ajuda pra comprar um remédio, pra comprar o gás, pra comprar uma cesta básica, pra fazer um exame que não pode pagar e o vereador que tem um coração bom, que pensa e se preocupa com o povo, ele acaba absorvendo [...] ele vai lá e consegue, pois isso aqui é pra defender o povo, é pra fazer realmente as coisas que o povo necessita [...] (VEREADOR A, em 10/05/2011).

Os centros sociais existem por inoperância do poder público, pela inoperância do Executivo, porque se o Executivo, se a Prefeitura, se o Governo do Estado, eles fizessem as suas atuações básicas na saúde, na educação, não existiriam os centros sociais. Por que se abrem centros sociais? Se abrem, é porque não existem dentis tas na localidade, não existem fisioterapeutas [...]. Meu sonho é que um dia não se tenha mais nenhum centro social, que a Prefeitura e o Governo do Estado façam todo esse trabalho. [...] Espero acabar com isso, assim que eu for prefeito, se Deus quiser vai ter os centros sociais da Prefeitura e ai tá resolvido. (VEREADOR B – Presidente da Câmara, em 27/04/2011).

[...] a gente tem que ser honesto a ponto de colocar que há um vácuo muito grande deixado pelo poder público nesse sentido, então a gente vê hoje aí vários locais da cidade com centros sociais se proliferando em função da falta do poder público. Aí o eleitor, que tem necessidade de um atendimento médico, levando o candidato a vereador, prefeito, associação de moradores e até mesmo o vereador que já tem mandato a abrir uma portinha para aquele atendimento [...] passando assim a fazer a troca do serviço pelo voto, mascarando o dever que na realidade é do Executivo municipal, que vem deixando um vazio muito grande neste sentido (VEREADOR D, em 14/05/2011)

Eu acho que era desnecessário ter social (centro). Eu tenho essa instituição que eu ajudo, mas se eu pudesse, eu não teria, porque isso é obrigação do poder público, não é obrigação do vereador, não é obrigação do deputado [...] Mas se não tivesse essa instituição, como seria? Porque, você imagine, quantos sociais (centros) têm no Estado do Rio de Janeiro e que beneficiam a população por uma ausência do governo? [...] aí os vereadores e deputados que têm e fazem para ajudar a população ainda são penalizados, dizem que fazem assistencialismo. O maior assistencialismo que eles (governo) fazem é não investir, é maltratar as pessoas. Pra mim não tem problema nenhum mandar fechar, eu boto uma faixa lá no Jardim Gramacho e digo que a justiça determinou que fechasse [...] Manda eles fazerem uma pesquisa ao povo, à população, pergunta se tem que acabar e eles não vão querer que acabe e sim que bote muito mais coisas [...] (VEREADOR F, em 17/05/2012).

uma leitura atenta dos conteúdos desses depoimentos permite observar que os centros sociais caracterizam-se como eficientes estruturas, ou “máquinas”, para a captação de votos, onde, na maioria das vezes, os políticos assumem uma posição de ambiguidade. Junto à população reforçam os vínculos que estabelecem a partir dos serviços que prestam, mas, frente às instituições públicas, sobretudo as fiscalizadoras, passam a se intitular meros colaboradores, doadores ou patronos desses centros sociais. Essa mudança de postura objetiva manter a imagem de políticos que não infringem a lei e, por conseguinte, não estão envolvidos no esquema de troca de votos por ações assistencialistas diversas. Para as necessidades sociais da população local, a gestão pública municipal deveria garantir atendimen- to, conforme previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), no Sistema Único de Assistência Social (SuAS) e nas demais normas que regulam as políticas de seguridade social no país. Portanto, a reprodução das práticas assistencialistas que permeiam a história de Caxias é parte do traço clientelista local que ainda se mantém.

A valorização desse tipo de prática, referenciada por políticos, e reconhecida pela própria população como um serviço necessário que acolhe a comunidade, é constante e, em Duque de Caxias, encontra-se presente na própria trajetória de cada vereador, o que pode ser verificado nos dados públicos que aparecem divulgados no ambiente virtual da Câmara Municipal, onde exercem seus mandatos. Ou seja, parece ser um aspecto valorizado para o “currículo” dos vereadores que, em lugar de fiscalizarem o poder Executivo, cobrando e legislando a respeito da garantia de acesso a serviços parametrizados pela le- gislação nacional, acabam se transformando em “donos das comunidades” de origem; “salvadores da região” ou “amigo dos pobres”.

Essas práticas, bem explicitadas na história de Duque de Caxias, a partir da análise das trajetórias políticas de Tenório Cavalcanti e de José Camilo “Zito” do Santos Filho, são demarcadas pelo clientelismo e pela constituição de redes sociais pautadas em laços de amizade, lealdade, patronagem, proximidade e/ou parentesco que, decorrentes de vinculações por deferência, dependência ou reciprocidade. Legitima-se, assim, a manutenção do status quo. A lógica da dádiva e do favor torna-se conteúdo de vínculos políticos e sociais, operando nas esferas da vida particular e privada as questões que, numa sociedade de direitos, deveriam ser tratadas como de caráter público (SEIBEL e OLIVEIRA, 2006). O clientelismo, ao filtrar demandas sociais, compromete os princípios clássicos de universalidade e de equidade.

Para os vereadores, a postura que adotam com a criação de centros so- ciais, justifica-se como sendo para a defesa da população “carente”, sem fins eleitoreiros ou de ganhos financeiros. No entanto, não é o que se constata nas diferentes localidades onde funcionam os centros sociais. Ficam explícitas, no discurso dos políticos, a visão assistencialista e a crença numa perspectiva de atuação que responsabiliza totalmente o Executivo local pela ausência de serviços, o que acaba por se caracterizar como uma postura contrária ao papel legislativo, que, conforme referido, é o de fiscalizar as deliberações administrativas e financeiras do Executivo e propor projetos e emendas que permitam melhorias para a população do município.

Se, de um lado, o SuAS prevê a fiscalização das entidades socioassistenciais definidas através de diretrizes que integram o conjunto das legislações vigentes, de outro, os centros sociais não sofrem qualquer tipo de monitoramento, por não serem reconhecidos e nem se enquadrarem nas modalidades pré-definidas para atendimento socioassistencial. Nesse contexto, alguns aspectos destacam-se como intrigantes e estão relacionados à ausência de dados concretos que permitam dimensionar o tamanho da rede de serviços oferecidos por essas estruturas, bem como a origem de seus recursos e a qualidade dos serviços ofertados.

A dificuldade em mapear a quantidade de centros sociais reside em diversos aspectos: uns só funcionam próximos das eleições; a manutenção de seu funcionamento depende da eleição do candidato mantenedor; os locais de funcionamento vão de grandes estruturas a simples espaços em fundos de quintal; o aumento no uso de “laranjas” como responsáveis pelo serviço, dentre outros.

Além disso, a organização dessas instituições, em grande parte, sequer atende a qualquer tipo de registro, limitando sua identificação. E isso se confirma nos da- dos do mapeamento realizado pelo Ministério Público Estadual (MPE), realizado para servir de base para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) fiscalizar propagandas eleitorais irregulares em 2010, identificou vinte e dois (22) centros sociais, comandados por oito (08) vereadores, em Duque de Caxias. Em contraponto, as atividades e articulações no campo empírico da pesquisa de origem deste artigo que, iniciadas em 2011, permitiram identificar a existência de quarenta e sete (47) estruturas desse tipo, sendo trinta e quatro (34) vinculadas a atuais vereadores, quatro (04) a deputados estaduais; dois (02) a ex-vereadores e oito (08) a lideranças comunitárias, que provavelmente almejam acessar o cargo público.

Verifica-se, assim, a instabilidade no quantitativo de equipamentos, com crescimento considerável em períodos próximos às eleições, sendo possível constatar que dos vinte e um (21) vereadores do município de Duque de Caxias, quinze (15) possuem ligações diretas com funcionamento de centros sociais e, por conseguinte, com a execução de práticas assistencialistas e clientelistas – abrangendo assim, 71% das representações da Câmara Municipal.

Em razão da evidente ligação entre políticos locais e centros sociais, outro aspecto que chama a atenção na oferta de “serviços assistenciais”, refere-se à origem dos recursos financeiros aplicados que têm por fonte doações de empresários e de outros membros da sociedade local, desejosos de colaborar com a continuidade do trabalho social, bem como de apoiar a ascensão política de determinada liderança. Contudo, verificou-se como significativo o uso de recursos previstos para o pagamento de cargos comissionados nos gabinetes dos vereadores, que determinam que parcela significativa deva ser doada para o centro social. Essa é uma forma indireta de utilizar o fundo público destinado ao pagamento de salários, o que demonstra abuso de poder e vinculo de dependência, desvirtuando a devida relação funcional do cargo de confiança. Outra modalidade, na destinação de recursos, estabelece-se pela aprovação de dotações in- cluídas no orçamento do município, através de emendas, pelos próprios vereadores.

Esses e outros aspectos colaboram para afirmativa de que a maior parte dos recursos, que propiciam a sobrevivência dos centros sociais, provém dos representantes do Legislativo Municipal e do próprio Governo. Essa compreensão parece estar respaldada no fato de que, até 2008, os centros sociais possuíam convênios firmados com a prefeitura para realização de atividades e serviços complementares à rede de serviços “oficial”, como se instituições credenciadas fossem.

Na atualidade, apesar de proibida a realização de convênios com esse tipo de estrutura, alguns entrevistados garantiram a permanência da prática, ainda que de forma escamoteada. Nesse sentido, citaram expressamente a vinculação de um político local, que exerceu o cargo de secretário municipal de assistência social e possui um centro social.

Importante, também, perceber que, apesar de pouco expressiva, ocorre indicações de possível recebimento de recursos provenientes de práticas ilícitas de traficantes e milicianos, o que demonstra a tendência atual de ocupação dos espa- ços públicos e representativos por representantes vinculados ao crime.

De todas essas possíveis vinculações é possível extrair que os centros sociais, comandados por vereadores, ou por pessoas de sua confiança, tentando apropriar-se das necessidades apresentadas pela população, atuam de forma paralela aos serviços públicos e executam um grande número de ações, qualificadas em sua grande maio- ria como vinculadas ao campo das políticas de Assistência Social e Saúde.

Dessa forma, suas ações, também colaboram para descaracterizar as ações pú- blicas na conjuntura local. Como forma de atrair e ligar a população aos serviços, muitos centros sociais oferecem serviços inexistentes no setor público ou que, ainda que existam, apresentam longa espera para sua realização. As modalidades de serviços são diversas, destacando-se as academias de ginástica, a assistência ju- rídica, a assistência médica geral, a auriculoterapia, o balcão de emprego, a biblio- teca, o corte de cabelo, o tratamento odontológico, a emissão de documentos, a escola de música, os exames laboratoriais, a fotografia, a ginástica para terceira idade, a farmácia comunitária, a fisioterapia, a fonoaudiologia, a ginecologia, a pediatria, a psicologia, o transporte comunitário, dentre outros.

A oferta desses serviços ocorre em estruturas bem equipadas, que reforçam a ideia de sucateamento do setor público e servem para demonstrar a “preocupação” do vereador com a população. Entram em competição, assim, com estrutu- ras públicas que deveriam ser referência para a população de Duque de Caxias, mas que, por motivos de falta de adequação à legislação, recursos para ampliação de estruturas e equipamentos, contratação de profissionais ou por outros motivos, acabam por se constituírem em número limitado, e nem sempre em regiões próximas e de fácil acesso a população. Nesse sentido, é compreensível que os usuários acessem os serviços dos centros sociais de forma espontânea.

Com base nessas percepções, dentre os fatores com maior influência na pro- cura da população pelos centros sociais, está, de um lado, a proximidade de suas residências e, de outro, a possibilidade de estarem em contato com autoridades locais, pessoas que se tornam conhecidas e acolhem suas demandas.

Esses aspectos evidenciam tanto a falta de um planejamento na organização territorial dos serviços socioassistenciais, quanto à simbologia de representação do vereador como aquele que convive no local sendo, por isso, capaz de acolher as demandas, como se elas as atingisse também.

Mudar para Permanecer? Tecendo breves considerações finais

Diante do exposto, seria possível considerar que o quadro da assistência social, em Duque de Caxias, apresenta limitações e restrições perpetuadas nos últimos anos. De fato, as investigações realizadas indicam a manutenção de uma cultura política perversa que se adapta formalmente a princípios e diretrizes democráticos sem, contudo, sofrer modificação em seu conteúdo.

Ainda assim, é preciso apontar que também foram identificados avanços, mesmo que poucos, cabendo mencionar a elaboração da última versão do Plano Municipal de Assistência Social de Duque de Caxias, constituída por uma comissão composta por representações do governo e da sociedade civil, com posterior aprovação do Conselho Municipal de Assistência Social. Nesse sentido, é possível reconhecer que novos espaços democráticos (ainda que imperfeitos) vêm sendo abertos, permitindo a participação da sociedade civil no debate sobre a política de assistência social em Duque de Caxias. Destaca-se, neste aspecto, a experiência do Fórum de Assistência Social, que é caracterizado como um movimento independente da gestão municipal, sendo explicito que sua força está condicionada a participação das instituições sociedade civil, que os financiam.

Assim, o processo histórico ocorre em meio a contradições, avanços, recuos e permanências. Em Duque de Caxias, o quadro apresentado indica que a assistência social local conserva traços de um modelo conservador, pautado, por um lado, na ausência de registros e de dados qualificados e, de outro, em posturas políticas conservadoras e na ausência de investimentos para o setor.

Posto isto, “mudar” significa alterar práticas, empreender novas estraté- gias e caminhos capazes de fortalecer o sistema público garantidor de direi- tos. Mudar não significa permanecer preso e refém de práticas que continuam beneficiando aqueles que detêm o poder. Não obstante as possíveis limitações desta abordagem, os resultados compilados, bem como as questões que suscitam, longe de serem conclusivos, revelam a necessidade de que novos estudos e aprofundamentos sobre o tema sejam realizados.

Portanto, o tratamento dado ao tema busca expressar o compromisso com a construção de conhecimentos, capazes de qualificar as políticas sociais e permitirem a adoção de princípios e diretrizes democráticos para a consoli- dação da assistência social, como política pública e garantidora de direitos, seja em Duque de Caxias ou em diferentes localidades brasileiras que apresentam problemas e complexidades semelhantes.

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Notas

1 Assistente Social, professora titular sênior da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. Pesquisadora do CNPq. Autora de diversos livros artigos e pesquisas sobre a proteção social distributiva, nº Orcid 0000-0003-3999-1844. E-mail: aldaiza@sposati.com.br
2 Graduado em Serviço Social pela universidade Federal do Rio de Janeiro (1996), possui Mestrado em Serviço Social pela Pontifícia universidade Católica do Rio de Janeiro (1998-2000), onde também realizou seu Doutorado (2008-2012), desenvolvendo estudos no campo da Seguridade Social, em específico sobre Assistência Social e Saúde. Atualmente é Professor Assistente do Departamento de Serviço Social da PUC-RIO onde é coordenador departamental do Programa de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) e líder do Núcleo Integrado de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social (NIEPSAS), desenvolvendo pesquisas de Iniciação Científica e sendo Bolsista de Incentivo a Produtividade, desde 2013. Também desenvolve ações acadêmicas de tutoria no Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), conduzindo equipes de profissionais do Hospital Miguel Couto (preceptores) e discentes em Serviço Social da PUC-RIO na execução do subprojeto “Processo de trabalho e educação per- manente: pelo fortalecimento de serviços de urgência e emergência integrados e de qualidade”. Tem experiência na execução e gestão de ações profissionais em Serviço Social, com ênfase nas áreas de Saúde Pública/Saúde da Família e Assistência Social. Email: meb.brotto@uol.com.br.
3 Essas críticas partiram não somente do campo teórico marxista, mas também de outras correntes filosóficas, como foi o caso dos seguidores do anarquista Pierre Joseph Proudhon (1809-1865), autor de “O que é a Propriedade? Pesquisa sobre o Princípio do Direito e do Governo” (1840).

Notas de autor

1 Assistente Social, professora titular sênior da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. Pesquisadora do CNPq. Autora de diversos livros artigos e pesquisas sobre a proteção social distributiva, nº Orcid 0000-0003-3999-1844. E-mail: aldaiza@sposati.com.br
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