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O programa de ação afirmativa da PUC-Rio e o papel protagonista do Departamento de Serviço Social - Uma história contada por idealizadores e implementadores
Andréia Clapp Salvador
Andréia Clapp Salvador
O programa de ação afirmativa da PUC-Rio e o papel protagonista do Departamento de Serviço Social - Uma história contada por idealizadores e implementadores
Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro affirmative action program and the leading role of the Department of Social Work - A story told by creators and implementers
O Social em Questão, vol. 1, núm. 54, Esp., pp. 229-258, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: O presente artigo tem como principal objetivo analisar o processo de nascimento e constituição do programa de concessão de bolsas, de caráter afirmativo, da PUC-Rio. A PUC-Rio vem implementando a praticamente três décadas uma política de ação afirmativa, com objetivo de favorecer o acesso de camadas populares aos cursos de graduação, prioritariamente estudantes negros (as) e economicamente desfavorecidos. O Programa nasceu em 1994 e se deu a partir de um convênio estabelecido entre a Universidade e o Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC). O aluno do PVNC, quando aprovado no vestibular da PUC-Rio, recebia uma bolsa de estudo integral chamada “Bolsa de Ação Social”, que possibilitava ao aluno cursar a universidade. Uma política que retrata os caminhos percorridos por múltiplos atores e diferentes instituições, uma proposta que nasce de uma parceria entre a direção da universidade, professores, estudantes, ativistas sociais, movimentos sociais -raciais e de educação popular. Num primeiro momento, o artigo traz o depoimento de quatro personagens que foram fundamentais para a gênese do programa, Padre Jesus Hortal, Frei David, Professor Augusto Sampaio e Profa. Luiza Helena Nunes Ermel. No momento seguinte, examina o papel protagonista desempenhado pelo Departamento de Serviço Social da PUC-Rio na implementação do programa.

Palavras-chave: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Pré-Vestibular para Negros e Carentes, Departamento de Serviço Social, Programa Afirmativo, Bolsas de Estudo.

Abstract: The main objective of this article is to analyze the process of birth and constitution of the program for granting scholarships, of an affirmative nature, at PUC-Rio. PUC-Rio has been implementing an affirmative action policy for almost three decades, with the objective of favoring access to undergraduate courses for the lower classes, primarily Black and economically disadvantaged students. The Program was born in 1994 and was based on an agreement established between the University and the Pre-Entry Examination for Blacks and Needy People (PVNC). The PVNC student, when approved in the PUC-Rio entrance exam, received a full scholarship called “Bolsa de Ação Social”, which allowed the student to attend the university. A policy that portrays the paths taken by multiple actors and different institutions, a proposal that is born from a partnership between the university administration, professors, students, social activists, social-racial and popular education movements. At first, the article brings the testimony of four characters who were fundamental to the genesis of the program, Father Jesus Hortal, Frei David, Augusto Sampaio and Luiza Helena Nunes Ermel. Next, it examines the leading role played by the Department of Social Service at PUC-Rio in the implementation of the program.

Keywords: Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro, Pre-testing course for Black and Poor Students, Department of Social Work, Scholarships, Affirmative Action Program.

Carátula del artículo

O programa de ação afirmativa da PUC-Rio e o papel protagonista do Departamento de Serviço Social - Uma história contada por idealizadores e implementadores

Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro affirmative action program and the leading role of the Department of Social Work - A story told by creators and implementers

Andréia Clapp Salvador1
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
O Social em Questão, vol. 1, núm. 54, Esp., pp. 229-258, 2022
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Mayo 2022

Aprobación: 01 Junio 2022

A gênese da Política de ação afirmativa da PUC/RJ - Uma experiência contada pelos seus implementadores.

A Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro vem ao longo de sua história desenvolvendo uma política de concessão de bolsas de estudo. Essa prática vem sofrendo novos direcionamentos ao longo dos anos, especialmente a partir da década de 1960, e hoje aparece como um programa essencial da Universidade. Inicialmente, a concessão de bolsas de estudo era uma atividade que se caracterizava como uma ajuda oferecida à pessoas que, por razões diversas, não podiam pagar seus estudos ou por direito estavam isentos de pagamento. A oferta de bolsa era uma atividade pontual e eram destinadas a atender vários perfis e diversas solicitações, como, filhos de professores, alunos pobres, alunos de classe média, dentre outros. Clara Milman (1993), em seu estudo sobre alunos bolsistas da PUC, mostra que foi no anuário da universidade de 1960 que se declara pela primeira vez a prática de doação de “bolsas de estudo” por parte da Universidade Católica do Rio de Janeiro. O documento certifica que “para servir à comunidade a Universidade Católica concede bolsas de estudo a alunos capazes e de reconhecido merecimento no curso secundário que, entretanto, não possam arcar com as despesas de um curso superior”. No primeiro ano foram concedidas 76 bolsas, entre bolsas parciais e integrais.As primeiras iniciativas apareciam de modo ainda pouco sistematizado (Milman, 1993).

A partir da década de 1970, as bolsas de estudo da PUC RJ começam a sofrer algumas adequações, passando a ser chamadas de “bolsa-rotativa-reembolsável”. O aluno ao término do curso reembolsaria a Universidade, e o pagamento seria revertido a um novo aluno2.

Mas é na década de 1990, com a nova lei da filantropia, que a política de bolsa da PUC sofre maiores alterações. Segundo Márcio de Souza (2004), com a nova legislação (lei federal nº8742 de 1993), o programa de bolsa da PUC teve de sofrer um processo de reorganização. As bolsas de estudo passam a ser denominadas bolsas PUC, com diversas modalidades: bolsa coral, bolsa de funcionários e no campo de uma proposta afirmativa, constitui-se a bolsa de ação social. Essa bolsa3, objeto principal desse artigo, nasceu da parceria estabelecida entre a PUC-RIO e o Pré-vestibular para negros e carentes (PVNC), um programa de vanguarda, com caráter inovador e de cunho afirmativo4, que amadureceu e se reconfigurou ao longo dos anos.

O programa afirmativo da PUC-Rio constituiu-se basicamente em dois momentos: Em sua fase inicial (década de 1990) as alunas e alunos, especialmente oriundos do Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), após serem aprovados pelo vestibular tradicional, recebiam uma bolsa de isenção de pagamento das mensalidades durante o período cursado na universidade, a já mencionada bolsa de ação social. Durante os primeiros anos do programa, o grupo de estudantes bolsistas de ação social se ampliou e abrangeu também estudantes de outros pré-vestibulares comunitários, militantes dos mais diversos movimentos sociais-religiosos-políticos e moradores-lideranças das favelas e periferias do Rio de Janeiro. Essa bolsa tinha a seguinte peculiaridade: ao mesmo tempo em que possibilitava ao aluno cursar a PUC-Rio com bolsa de estudo integral, o estudante deveria continuar desenvolvendo sua atividade comunitária por meiode ações voluntárias nos próprios cursos ou em instituições sociais. O programa afirmativo era voltado para o “aluno-militante”, um sujeito comprometido com a questão social. Esse modelo de ação afirmativa é ainda implementado pela Vice-Reitoria Comunitária e vem se diversificando ao longo dos anos, com outros tipos de bolsa e público-beneficiário.

A segunda etapa das ações afirmativas desenvolvida pela universidade ocorre a partir da implementação do Programa Universidade para Todos – PROUNI. Uma política do governo federal que passa, a partir do ano de 2005, a exigir das universidades privadas beneficentes um percentual de bolsas para alunos egressos do ensino médio da rede pública ou bolsista integral da rede privada. No caso da PUC-Rio, para concorrer às bolsas integrais, o candidato deve comprovar renda per capita familiar de até um salário mínimo e meio. A PUC-Rio, que é uma universidade de natureza privada, beneficente e sem fins lucrativos, teve que automaticamente abarcar o programa.

A PUC-Rio continua implementando as duas modalidades de ações afirmativas, o programa social originário da instituição, em consonância com o programa de política pública federal, o PROUNI. Uma proposta que se alargou e que durante a sua constituição foi se reestruturando, partindo de um programa institucional para uma política pública federal.

No que alude a PUC-Rio, os programas afirmativos vêm ao longo de praticamente três décadas, incluindo alunos de diversos segmentos socioculturais numa universidade reconhecida como centro de formação acadêmica da elite brasileira. Essa experiência vem trazendo resultados efetivos. Há, atualmente, um número bastante representativo de alunos bolsistas nos diversos cursos de graduação da Universidade. Conforme dados da Vice-Reitoria Comunitária, só no ano de 2021, 27,5% dos estudantes da universidade foram contemplados pelo programa de bolsas com critérios socioeconômicos.

Candau (2003: 212) ressalta o valor da experiência da PUC-Rio no processo de implementação de políticas de ação afirmativa e afirma que essa universidade tem manifestado em muitas ocasiões uma grande capacidade de iniciativa, criatividade e compromisso com a transformação social. Neste momento, em que as políticas de ação afirmativa são objeto de um intenso debate no âmbito nacional, essa experiência pioneira contribui para a construção de um projeto universitário mobilizador, que concilia excelência acadêmica, preocupação inerente à toda a trajetória institucional da PUC-Rio, com seu compromisso social. Tais dimensões se articulam por meiode uma visão histórico-crítica do conhecimento e da própria função da universidade de forma a incorporar o reconhecimento das contribuições das diferentes tradições culturais, potencializadora de relações interculturais e de construção de uma democracia plena na sociedade brasileira.

Os primeiros passos na criação da “bolsa de ação social” da PUC-Rio

A bolsa de ação social surge na PUC-Rio na década de 1990 com a finalidade de atender a alunas e alunos oriundos das classes populares, vinculados a projetos comunitários, devidamente cadastrados na Vice-Reitoria Comunitária e reconhecidos pela universidade por meiode convênios por ela firmados. Um programa de bolsa com a seguinte peculiaridade: esses alunos deveriam estar integrados a projetos de ação comunitária. Nasce então uma nova identidade do aluno bolsista da PUC: um estudante da classe popular e com compromisso social.

As mudanças ocorridas no programa de bolsa de estudo da PUC, ao longo das últimas décadas e, mais especificamente na década de 90, são bastante visíveis. Entretanto, é com relação à legitimação da concessão de bolsas direcionadas exclusivamente para alunos pobres e negros, que é o fato mais inusitado. A PUC-Rio passa assim a receber alunos moradores das periferias do município do Rio de Janeiro ou de outros municípios, moradores de favela, lideranças políticas, representantes de associações de moradores, ativistas de movimentos populares, assim como alunos oriundos do PVNC. O que antes era uma prática pontual se transforma numa política universitária. Segundo o Prof. Augusto Sampaio, Vice-Reitor Comunitário da PUC-Rio, o que era inicialmente uma proposta de algumas pessoas da universidade passa a ser “uma prática institucional da PUC”.

“Antes já havia alunos pobres. Com certeza, tinha muita gente (...) de comunidade estudando aqui, mas chegavam aqui por outro motivo. Faziam matrícula e o patrão pagava se era filha de uma doméstica, ou a patroa. Um dia ele aparecia aqui pobre, morava na favela e aí a gente dava bolsa. Era uma coisa esporádica, pontual, não era uma política sistemática” (Augusto Sampaio)5.

E Padre Hortal, idealizador e Reitor na época, ressalta a mudança de orientação na concessão das bolsas:

“Sempre tivemos uma porcentagem bastante alta de alunos bolsistas, mas quando começou um pouco mais, digamos assim, o movimento da consciência negra, fomos procurados pelo Frei David dos Santos, que estava começando a organizar vestibulares comunitários para alunos carentes. Essa nos pareceu que era uma política correta. Não simplesmente dar de graça por isto ou por aquilo, mas para as pessoas que se esforçam, para pessoas que mostram que tem mérito próprio. Claro que simultaneamente isso foi um apoio a certos segmentos da população. Por isso começamos a dar bolsas para os vestibulares de negros e carentes organizados pelo Frei David” (Padre Jesus Hortal).

Um programa com uma direção definida, voltado para alunos negros e pobres, nasce na PUC do Rio de Janeiro. Uma proposta que se origina da soma de ações desenvolvidas por determinados sujeitos da Universidade e, também, de outros espaços institucionais.

O programa nasce no ano de 1994, quando se estabelece um acordo entre a PUC-RJ e o Pré-vestibular para Negros e Carentes - PVNC. A primeira instituição era representada pelo Padre Reitor Jesus Hortal, e a outra por Frei David. O responsável por essa mediação foi Padre Edenio Valle.

Padre Edenio Valle, como presidente da Conferência dos Religiosos Brasileiros, envia uma carta para o Padre Jesus Hortal, já Reitor da PUC-Rio, apresentando o programa de Frei David e solicitando a essa Universidade a concretização de uma parceria direcionada para a concessão de bolsas de estudo para alunos do Pré-Vestibular de negros e carentes.

“O Padre Edenio Vale disse: faça uma carta dirigida a mim (Frei David). Aí eu pego sua carta vou fazer outra (...) dirigida ao reitor da PUC. Eu fiz a carta para ele, ele pegou a carta e fez outra encaminhada ao Reitor da PUC. E eis que o Reitor viu com simpatia :Não,não, não...manda vir. Manda eles fazerem o vestibular sim, e ao passar, a gente vai encaminhando isso” (Frei David).

A partir desse documento concretiza-se a parceria. Esse passo foi fundamental no processo de implementação de um programa mais direcionado, legitimando uma ação efetiva, voltada para inclusão de alunos negros e pobres na Universidade. A nova parceria que se estabelece (PUC-Rio e PVNC) demarca então o início do processo de materialização dessa proposta na universidade, que se constitui e é legitimada por membros da própria Igreja Católica. Isso não significa que a ideia nasce na ou da Universidade. Ela é uma resposta aos anseios de Movimentos Sociais populares, mais especialmente do PVNC, um movimento social de educação popular e daqueles vinculados a Igreja Católica, que pode se materializar no espaço acadêmico.

A influência dos movimentos sociais e o protagonismo do PVNC – A experiencia da PUC-Rio

O movimento social protagonista dessa política no Rio de Janeiro foi o Pré-vestibular para negros e carentes, sendo seu principal representante, Frei David. O PVNC foi um movimento catalisador das ideias e propostas de vários outros movimentos sociais, vinculados à causa negra e principalmente ligados à Igreja Católica, que lutavam pela inclusão de determinados grupos sociais nas Universidades. Quando perguntado sobre a gênese do PVNC, Frei David faz o seguinte registro:

“A intuição nasce em 1986, a intuição ganha corpo em 1988,quando foi comemorado o centenário da lei áurea, quando a Igreja Católica do Brasil assumiu para refletir,o tema da fraternidade e o negro. A intuição ganhou corpo em 1988 e se transformou como pré-vestibular em 1991. A decisão foi em 1991, a organização em 1992, e o início da execução em 1993.”




Segundo Frei David, a verdadeira origem da proposta afirmativa implementada na PUC-Rio é mesmo anterior à constituição do PVNC, ela nasce a partir da ação de grupos Católicos, principalmente da Pastoral do Negro e da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) do Rio de Janeiro. Como ele afirma em sua entrevista:

“O nascer (do projeto) foi um grupo de pessoas, foi a pastoral do negro da Igreja Católica a grande gestora dessa possibilidade, foi também a comissão de religiosos e seminaristas e padres negros da CRB do Rio de Janeiro, (...) porque os religiosos foram os principais atuantes nesse trabalho inicialmente,(...) Irmã Luciana, Sérgio Marques, William e vários outros religiosos, Regina, tinham muitos religiosos no início, Imã Rita”.

A Ação da Pastoral do Negro (APNs) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)6, merecem aqui destaque. As CEBs e APNs eram grupos constituídos por sacerdotes e leigos, preocupados com a realidade dos “mais pobres” e, especificamente no caso da Pastoral do Negro, com a realidade do “povo negro”, bastante atuante nas décadas de setenta e oitenta. Entre tantos participantes, estava Frei David e outras pessoas, algumas citadas acima, que foram fundamentais para o nascimento do projeto. Outra importante referência também citada por Frei David foi a Campanha da Fraternidade de 1988.

“Como é que nasceu este programa: Em 1986, quando começamos a discutir a questão do negro na Igreja e na sociedade,é que começamos a lutar para que a Igreja Católica assumisse como campanha da fraternidade de 1988 o tema, a fraternidade e o negro. Naquele ano, discutimos muito sobre a exclusão do negro nas universidades, e um item desta exclusão discutida por nós foi a exclusão do negro das Universidades católicas”

Sendo assim, pode-se ver que a ideia do Pré-vestibular nasce influenciada pela organização Católica, principalmente dos grupos que defendiam uma “fé libertadora” e comprometida com a transformação da situação de exclusão vivida pelo “povo negro-pobre”. A formação do PVNC estaria diretamente ligada a esses dois aspectos: a Igreja Católica e a desigualdade racial, já que a concepção do PVNC nasce sob influência de organizações Católicas preocupadas com a questão racial.

Mas vai ser especificamente a partir da atuação do PVNC que o programa de ação afirmativa teve início. A parceria uniu dois espaços sociais distintos, de um lado a PUC-Rio, e na outra ponta, o Pré-vestibular para negros e carentes. Duas intenções que ao se unirem viraram um projeto político-pedagógico, voltado exclusivamente para a inserção de dois grupos historicamente excluídos do ensino superior, o aluno pobre e o aluno negro. Isso é confirmado pelo Padre Jesus Hortal, que quando perguntado sobre o início do programa, fez o seguinte registro:

“O programa (da PUC)(...) surgiu propriamente desta iniciativa dos vestibulares para negros e carentes”.

Idealizadores, implementadores e suas aspirações

As instituições se articularam, a parceria é efetivada, mas quem a implementou? Esse é um outro momento importante da gênese da política afirmativa, quando novos atores passam a fazer parte do processo de consolidação do programa dentro da Universidade, aqui chamados de implementadores. Na verdade, há um número significativo de pessoas preocupadas e interessadas no programa, mas alguns sujeitos7 foram referências no processo de implementação e consolidação do programa, como:

• Padre Jesus Hortal Sánchez, S.J.: Padre Jesuíta. Possui licenciatura e doutorado em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana e Doutorado em Filosofia pela Universidade de Santo Tomás. Professor da PUC-Rio durante os anos de 1986 a 1992 e Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro durante os anos de 1995 a 20108. Atualmente é professor emérito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

“Um fator que contribuiu, primeiro foi a Reitoria dar o verde. Nada disso teria acontecido sem a anuência do reitor (...). (entrevistado – Augusto Sampaio)

• Frei David, OFM – Frade Franciscano. É teólogo e filosofo. É idealizador e fundador do Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC). Atualmente é fundador e Diretor-executivo da EDUCAFRO9 (Educação e cidadania de afrodescendentes e carentes). Sua vida religiosa se combina com uma prática militante.

“Sim é exatamente com o PVNC, do Frei David dos Santos, que assinamos convênio assegurando bolsas de estudos”. (entrevistado – Padre Jesus Hortal)

• Professor Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio. É Economista. Leciona na PUC-Rio desde fevereiro de 1969 e desde 17/12/1992, atua como Vice-Reitor Comunitário. Sua atuação é reconhecida pelo forte ativismo em defesa das causas sociais.

“Augusto foi uma pessoa. Ele não idealizou, ele acolheu e deu direções, que só ele como Vice-Reitor e conhecendo Igreja como ele conhece. Só ele podia fazer isso. (entrevistada - Luiza Helena Nunes Ermel)

• Professora Luiza Helena Nunes Ermel: É Assistente Social. Lecionou na PUC-RJ no ano de 1978 até 2015 e foi Diretora do Departamento de Serviço Social durante os anos de 1990 até 2015. Sua trajetória acadêmica é atravessada pela militância política.

“É lógico que desde o começo um ator fortíssimo foi o Departamento de Serviço Social, através da Luiza Helena. Foi fortíssimo e decisivo, pois ela iria dinamizar o departamento e ela teve a capacidade profética de ver, em uma parceria com este projeto, um instrumento fantástico de dar dinamismo, vida, nova luz ao Serviço Social do Brasil” (entrevistado - Frei David).

• Professores voluntários: “Na 2ª etapa do trabalho, os grandes atores foram todos os professores voluntários dos pré-vestibulares populares10 (...). Teve, portanto muita gente, muitos voluntários na coordenação e muitos voluntários como professores”. (Frei David)

Os idealizadores e implementadores do programa afirmativo da universidade, aqui apresentados,tinham uma variedade de intenções, mas um objetivo comum, almejar uma sociedade mais justa e inclusiva.

Augusto via a possibilidade de promover a “inclusão” de alunos pobres na PUC-Rio. Para o padre reitor, essa proposta obedecia a missão de uma Universidade Católica com sua “vocação inclusiva”. Para a Professora Luiza Helena, esse era um programa de inclusão social capaz de dar voz às classes populares. Já para Frei David, esse era um projeto capaz de incluir alunos negros e pobres nos bancos universitários e de implementar um programa de ação afirmativa.

Os depoimentos mostram uma forte preocupação dos entrevistados com a exclusão sistemática dos segmentos negros e pobres dos bancos universitários. A intenção comum é a proposta de inclusão social.

Augusto Sampaio: Eu sempre me preocupei muito com a ausência de pessoas carentes. Sempre achei que a PUC deveria ter uma presença significativa de pessoas pobres aqui. (...). Eu me lembro, na década de 70 tinha um aluno negro na PUC, no CCS. (...) O que a gente pode fazer para permitir uma pessoa que vem pra PUC, que passa pelo sistema de mérito, pelo vestibular? O que eu podia fazer para oferecer um programa de bolsa? Quando surge o PVNC enfim, do Frei David, a outra ponta surge.(...) . Acho que eu sempre quis fazer alguma coisa, sempre lutei pela inclusão e tive essa chance. (...) Sempre tive, não sei por quê, uma preocupação com o social muito grande. Eu sou muito sensível à miséria, à fome, ao problema dos outros.

Pe. Jesus Hortal: Veja que a PUC, pela sua própria natureza, por ser uma universidade que nasceu dos anseios da comunidade Católica, sempre teve uma vocação inclusiva. Porque isso é o característico, eu diria da própria Igreja Católica, do próprio objetivo católico. Significa muito mais do que universal e geográfico, significa exatamente global, inclusivo. Porque Católico vem do grego, que significa em relação ao todo, e não a uma parte. Então por isso a PUC sendo uma Universidade Católica, tinha sempre essa Vocação e por isso emprega uma política de bolsas para alunos carentes, sempre bastante forte.

Luiza Helena: Contexto década de 90. Primeiro (...) havia um grande problema na época, (...) que era o povo não tem voz.

Frei David: O que me levou foi a convicção de que a exclusão do negro beirava o escândalo e que a Igreja Católica e todas as instituições Católicas não tinham o direito de ficar omissas. (...) Nossa intenção sempre foi criar uma política pública de inclusão do negro e outros pobres, em todas as universidades do Brasil.

Frei David e suas aspirações

A questão racial é à base de toda a narrativa de Frei Davi. Um dos pontos marcantes no seu depoimento foi com relação ao tema das políticas de ação afirmativas, consideradas por ele, como importante instrumento de reparação. A reparação é “um argumento de grande apelo moral que justifica medidas compensatórias tanto para descendentes de africanos, os quais foram trazidos para este país à força e escravizados, como para indígenas e seus descendentes, que foram em grande parte dizimados ou, às vezes escravizados” (Feres, 2006, p.55).

Com relação às políticas afirmativas de corte racial, Frei David faz a seguinte colocação:

“as cotas nas universidades equivalem a uma corrida,imagine que você tem uma corrida. Imagine que duas pessoas vão fazer uma corrida. Para uma pessoa você dá tudo, você dá médico, dá treinador, dá máquinas para treinar, dá boa alimentação balanceada, dá muito líquido para essa pessoa, dá tudo para essa pessoa. Pra outra pessoa você não dá médico,não dá treinador, não dá equipamento, não dá alimentação, e ainda você amarra uma pedra na perna dele. Em seguida você dá o tiro, dá largada pra corrida. Quem é que vai vencer? E todo mundo falou, esse cara que recebeu tudo. Pois é, esse cara que recebeu tudo é o cara da classe média, que tem escola boa ... O cara que está aqui com a pedra é o negro que foi escravizado. Isso me fez lembrar que a lutas pelas cotas foi uma luta muito sofrida. Foram 20 anos para conseguir ver as primeiras vitórias. E a perseverança portanto para mim foi a grande marca da comunidade negra, por ter perseverado nessa meta, nessa garra, nessa luta”.




Frei David Santos - 04/2022. Fonte: http://www.educafro.org.br/site/tag/frei-david/

Foi a partir da realidade desigual e injusta vivida pelos negros brasileiros, que Frei David convoca diversas instituições, principalmente as Católicas, para que deixassem de se omitir frente ao quadro de injustiça racial e participassem do processo de reversão dessa situação. A principal aspiração do Frade, que o motivou a lutar em defesa dos negros e pela consolidação de um programa de ação afirmativa na PUC-Rio, foi o desejo de reparação dessa realidade. O anseio pela reparação da condição dos negros e a pressão para que instituições católicas não se omitissem, são principais argumentos de Frei David:

“O que me levou foi a convicção de que a exclusão do negro beirava o escândalo e que a Igreja Católica, e que todas as instituições Católicas, não tinham o direito de ficar omissas”

O argumento da reparação, pautado num discurso de discriminação racial e dívida histórica, se originou nos movimentos negros, e é uma das justificativas centrais, para a gênese dessa política. Um discurso no qual a questão racial é destacada remete à própria identidade do entrevistado, a de um sujeito religioso e militante da causa negra.

As aspirações de Augusto Sampaio.

As principais aspirações presentes nas declarações de Augusto Sampaio, Vice-Reitor Comunitário da PUC-Rio, são permeadas por princípios de justiça social, de preocupação com a pobreza e com o desejo de ser agente de mudança social.

“Primeiro é uma insatisfação. (...) é não estar satisfeito com o mundo, com o meu país” (...)“Acho que eu sempre quis fazer alguma coisa, sempre lutei pela inclusão e tive essa chance” (Augusto Sampaio).

“O que eu posso fazer, enquanto Vice-Reitor Comunitário? Acho que foi isso que pensou o David: o que eu frei franciscano posso fazer, enquanto um homem religioso? Acho que Luiza Helena, também como uma professora de Serviço Social, uma Assistente Social. Agora essas pessoas têm uma trajetória de preocupação, de fazer coisas, de acolhimento. Eu acho que basicamente é querer um país mais justo. (...) Mas sempre tive essa motivação, que é a vontade de mudar” (Augusto Sampaio).




Prof. Augusto Sampaio (centro), com o Reitor Padre Josafá Siqueira, S.J. (esquerda) e Prof. Renato Callado Ferreira (azul), com os estudantes integrantes das chapas eleitas para os CAs e o DCE.

Fonte: Acervo do Núcleo de Memória da PUC-Rio (cg0132_003)

Há uma forte influência dos valores religiosos na fala de Augusto, principalmente aqueles identificados com a Ação Católica, constituída a partir da década de 50 que, segundo Ângela Paiva (2003), nessa nova perspectiva católica, o cristão deve ser um sujeito inserido no mundo e preocupado com questões relativas à justiça social. É a “ideia de justiça social que vai levar esse cristão a ser solidário, é que vai levá-lo a uma participação social muito mais intensa”. (p. 196) É o que reforça Augusto Sampaio:

Incomoda-me essa PUC, me incomoda muito a PUC que só é a PUC da balada. (...) Essa Puc que é vista como a Universidade onde se forma a fina flor da sociedade econômica do Brasil,isso me incomoda. (...)

Entretanto, quando surge a possibilidade de reverter esse quadro, por meio da implementação do projeto proposto por Frei David, Augusto encontra resposta para suas maiores inquietações.

“O que eu podia fazer para oferecer um programa de bolsa? Quando surge o trabalho de Frei David, a outra ponta surge” (...)

“Esse convênio que nós criamos com os pré-comunitários passou a ser uma coisa da instituição, anunciada pelas pessoas que trabalham com isso. Isso abriu a porta”.

As motivações do Padre Jesus Hortal

Os fatores que motivaram Padre Jesus Hortal a participar da implementação de uma política afirmativa na PUC-RJ foram diversos.A principal base de sua motivação é instituída na perspectiva Católica, diretriz da própria universidade11. Ou seja, com uma administração sob a “inspiração da tradição humanístico-cristão da Igreja Católica”.O programa, para o Padre Jesus Hortál, se justificou por ser direcionado para as classes populares, um dos compromissos da Igreja Católica e que consta do marco referencial da universidade12.

“Veja que a PUC pela sua própria natureza, por ser uma universidade que nasceu dos anseios da comunidade católica, sempre teve uma vocação inclusiva. Porque isso é o característico, eu diria da própria Igreja católica, do próprio objetivo católico. Então por isso a PUC sendo uma Universidade Católica, tinha sempre essa Vocação e por isso emprega uma política de bolsas para alunos carentes, sempre bastante forte”.

O programa é considerado um caminho viável para inclusão de estudantes oriundos de classes populares na PUC-Rio. Nas palavras de Padre Hortal: “Realmente como nós tínhamos o programa de bolsas, nós sempre tentamos ajudar as pessoas carentes”. Porém, a universidade tinha dificuldade para atrair esse perfil de alunado, devido alguns empecilhos, como a localização da universidade, o preço, o aluno habitual, entre outros aspectos. Desta forma a parceria PUC-Rio e PVNC favoreceu a concretização da missão universitária.

Entretanto, a preocupação do Padre Reitor não se deu apenas com relação à inclusão de estudantes pobres na universidade, mas também, com a formação que estava sendo oferecida aos alunos “tradicionais” da PUC-Rio. Como afirma o Padre Reitor:

“Tudo isso é claro que me entusiasmou, porque também havia um outro aspecto, que não é só olhar para estes alunos, mas era também olhar para os alunos que eram tradicionais da PUC, que viviam uma realidade social um tanto artificial. Não era a realidade social da cidade do Rio de Janeiro. Era necessário que entrassem em contato também com populações diferentes daquelas do seu entorno familiar, e por isso a mim me alegrou muito ver essa presença maciça de alunos carentes provenientes dessas outras comunidades.

Mais uma vez aparece aqui a missão universitária da PUC-Rio, que se propõe a formar profissionais que estejam “inseridos na realidade brasileira e formados para colocar a ciência e a técnica sempre a serviço do homem, colaborando através dos conhecimentos adquiridos na Universidade para a construção de um mundo melhor, de acordo com as exigências da justiça e do amor cristão”. (http://www.puc-rio.br/sobrepuc/historia/index.html#) Isto é, logo que assume o Reitorado da PUC-Rio, Padre Hortal se defronta com o seguinte problema: como abraçar a missão universitária, no sentido da formação de futuros profissionais inseridos na realidade brasileira e preocupados com a construção de um mundo melhor, se os estudantes dessa universidade são em sua quase totalidade, oriundos da mesma classe social e raça?Se estes alunos não vivenciam uma realidade mais ampliada? E como resolver esse problema?

A implementação desse programa contribuiu para concretização de suas aspirações, colaborando na solidificação de uma universidade mais plural, real e justa. Conforme sua fala: “Isto me parece que é a principal conquista. Porque isso dá a Universidade uma cara muito mais condizente com a sociedade brasileira, com a sociedade do Rio de Janeiro. Então isso a mim me deu muita satisfação” (...)




Padre Jesus Hortal com alunos e professores da PUC-Rio em visita a campo do projeto “Favela Limpa” e “Cooperativas de trabalhadores de materiais reciclaveis”

Fonte: Acervo do Nucleo de memória da PUC-Rio/ak0006_063 (2005)

As aspirações de Luiza Helena e o papel protagonista do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio na constituição do programa de “bolsa ação social”

Luiza Helena, inicia sua carreira docente na PUC-Rio no ano de 1990, mas foi como Diretora do Departamento de Serviço Social, com a ajuda de algumas professoras, que formula uma nova política para o Departamento, que passa a ter como principal objetivo a formação de lideranças comunitárias, alunos do PVNC, religiosas, dentre outras. Começa assim a ser implementada uma nova política Departamental, vinculada à nova política universitária. Algumas professoras do DSS foram atuantes e colaboradoras no processo de implementação do programa de “Bolsa de ação social”, como: Profa. Sueli Bulhões da Silva, Arlete Alves lima, Maria Adelaide Ferreira Gomes, Eliza Regina Ambrozio. Merece especial destaque, a Profa. Rosa Irene Vera Fernandez (in memória), que foi grande parceira de Luiza Helena e colaborou ativamente no processo de implementação do programa no DSS e uma forte articuladora junto às organizações populares e sociais.

Para a consolidação desse projeto político-pedagógico departamental Luiza Helena foi uma influente mediadora do processo. Sua função era trazer alunas e alunos para o curso de Serviço Social, principalmente estudantes do PVNC, lideranças políticas e comunitárias, ativistas da pastoral e Freiras.

Luiza Helena: Eu ia aos locais para trazer o aluno, mobilizar o aluno para fazer o vestibular. Eles não acreditavam. Para eles estudar na PUC era inacreditável (...) Tanto que o Padre veio. O pessoal da baixada só veio em massa por causa do frei David, porque senão, não vinha não.Então eu ia lá em todas as reuniões mensais do PVNC. Eu participei de todas. Lá eu dizia da importância do Serviço Social, falava que o Serviço Social é hoje uma profissão fundamental na sociedade (...) Era uma marqueteira do Serviço Social. E que a Puc dava condições para ele fazerem (...) Com isso eu trazia o aluno para a PUC. Esse movimento de trazer era muito difícil, era um movimento constante dentro da Igreja, dento da comunidade eclesial de base, das ONGs ....

(...) Então eu tenho que ter muito claro na minha cabeça, quem eu quero de aluno. Eu vou buscar o meu aluno, então eu quero dos movimentos sociais, eu quero o aluno do PVNC, eu quero os alunos que estão inseridos nas ONGs desenvolvendo trabalhos sociais. Quem eu quero, e eu vou buscar. Minha função era buscar (...).

Desta forma passa a ocorrer uma forte articulação política entre Universidade/Departamento de Serviço Social e organizações de base, tendo Luiza Helena como importante mediadora do processo. As primeiras articulações ocorrem em 1993 na Comunidade do Borel, por intermédio das Freiras.

Luiza Helena: Os primeiros alunos a virem na realidade foram os alunos transferidos, em 1993. Havia um movimento da Igreja Católica, muito forte por causa das Comunidades Eclesiais de base, quando as irmãs saem de seus redutos de elite e vão morar nos morros. E fazem os trabalhos nos morros. Eu era muito encantada com aquelas irmãs, que tinham um nome, irmãs inseridas.(...) E eu achava que eu tinha que capacitar aquelas irmãs, porque a realidade delas era tão difícil(...). Então eu começo por um movimento, onde estão essas irmãs? Então vou descobrir que tem um grupo significativo no Borel. (...) A outra era no morro São Carlos (...) E eu começo a andar atrás dessas irmãs inseridas. Essas irmãs diziam que o maior problema delas é que elas não tinham estudo. (...) Então eu proponho a elas, porque aí eu já tinha falado com o Augusto (...) Aí fomos para a Baixada que o movimento lá era grande (...) Porque eu acho que a gente como igreja tem que capacitar as religiosas.

O trabalho de Luiza Helena, como mediadora do processo foi tão intenso que na fase inicial do projeto algumas pessoas acreditavam que a política era exclusiva do curso de Serviço Social. Segundo Augusto: “eu acho que a primeira etapa (do projeto) ele é um programa do Serviço Social. Eu diria que eram alunos que vinham fazer vestibular para Serviço Social. Isso é uma fase bem marcante”.

Luiza Helena tinha diversas aspirações. O principal motivo alegado pela professora foi com relação à ausência de autonomia das classes populares no campo das reivindicações sociais. Em seu depoimento demonstrou a preocupação que tinha com o contexto político e social da década de 90, principalmente no que se referia a organização das classes populares e seus espaços legítimos de reivindicação. Segundo a entrevistada a população estava organizada, no sentido de luta por direitos sociais, mas não encontrava caminho para ser ouvida. Essa problemática é trazida de forma veemente na fala de Luiza Helena:

“Por mais que tivesse o povo organizado na favela, (...) não existiam mecanismos políticos que transformassem aquela sua necessidade em reivindicação política e conseguir aquele serviço. Você não tinha isso. Então essa era a situação, o povo se organizava, mas não tinha voz. (...) Primeiro o contexto social, que eu via o povo organizado e sem voz. Era o pessoal da associação de moradores, os próprios partidos políticos. A organização política era recente por causa da ditadura. (...) Você tinha as comunidades eclesiais de base, muito fortes, você tinha os movimentos de favelados (...) E uma luta enorme para se fazer ouvir”.

Luiza Helena também trata dos escassos mecanismos de reivindicação da população, principalmente no período de redemocratização. A população estava organizada em associações de moradores, partidos políticos, pastorais e movimentos sociais, mas os caminhos democráticos que permitam que os grupos organizados fossem ouvidos eram ainda insuficientes, impossibilitando a reivindicação dos direitos sociais. Como ela mesma diz: “o povo se organizava, mas não tinha voz”. Ou seja, a sua insatisfação era com a impossibilidade que os grupos populares tinham de participar efetivamente dos espaços políticos, como cidadãos autônomos, e sua maior motivação era buscar novos caminhos que possibilitassem uma participação legítima e efetiva.

É com relação a essa nova conjuntura política que Luiza Helena mostra seu profundo descontentamento, reafirmando por meio de seus depoimentos um compromisso preferencial com as camadas populares, pela autonomia e libertação desses sujeitos das várias formas de opressão.

“Eu achava aquilo um absurdo (...) eles - sujeitos externos- passavam a empregar aquelas pessoas para desenvolver o projeto para eles. (...) ele era meu parceiro, depois passou a ser meu patrão. E a minha grande preocupação é que aquelas pessoas continuavam sem voz (...)”.

O novo direcionamento político que se disseminava pela esfera social e política foi um dos principais fatores mobilizadores da participação de Luiza Helena no processo de implementação do projeto afirmativo da PUC. Sua preocupação refletia a experiência como militante e Assistente Social, na procura de alternativas que garantissem a autonomia das classes populares. A sua maior utopia era poder contribuir com o processo de independência e autonomia dos grupos populares, oprimidos e silenciados.

Cerimônia de entrega da Medalha Dom Helder Câmara. Profa. Luiza Helena Ermel recebe a medalha do Reitor Pe. Hortal S.J.-Fonte: Acervo Núcleo de Memória da PUC/Rio cg0097_050

Fonte: Acervo Núcleo de Memória da PUC/Rio cg0097_048

Para Luiza Helena, a parceria PUC-Rio e PVNC tornou possível a concretização de sua maior aspiração: capacitar as lideranças populares para que pudessem legitimamente voltar a ocupar os espaços de liderança. A partir da consolidação da política afirmativa, a PUC-Rio e nesse caso, mais especificamente o DSS, passam a ser então um espaço, agora legitimado, de capacitação desses sujeitos políticos. A formação universitária daria subsídios para que esse aluno fosse o próprio intercessor junto a instituições públicas e privadas, garantindo assim o acesso da comunidade a órgãos de fomento e prestadores de serviço, por meio de seu próprio representante.

O diploma universitário daria a essas lideranças a autoridade de falar pelas comunidades e mediar os próprios processos. A formação universitária prepararia o morador de comunidade de baixa renda, o morador da periferia e a liderança comunitária, para reassumir o papel de porta-voz das próprias demandas. Sendo assim, segundo ela não seria mais necessária a atuação de atores externos. E ainda faz uma ressalva: os “novos alunos” que viriam estudar na PUC-RJ teriam que ter algo em comum, além de representar a comunidade também seriam responsáveis pela garantia dos direitos de seus próprios grupos sociais. O aluno do programa de ação afirmativa deveria ser um “sujeito político” compromissado com a transformação de sua própria realidade.

Uma outra preocupação apresentada por Luiza Helena foi referente à crise financeira vivida pela PUC, também na década de 90. Com a crise universitária tornou-se urgente realizar severos ajustes na própria instituição. Uma das soluções encontradas seria o fechamento de Departamentos de pequeno porte, dentre eles o departamento de Serviço Social, que tinha um número bastante reduzido de alunos, considerado, assim, deficitário. Quando começa a crise na Universidade, Luiza é convidada por professores do Departamento a assumir a Direção, tendo em vista seu perfil atuante e dinâmico. A professora aceitou o desafio.

Luiza Helena tinha nesse momento duas principais inquietações: de que maneira os grupos populares organizados poderiam ter autonomia? e o que fazer para buscar alunas/os que desejassem estudar Serviço Social? Luiza Helena encontra no trabalho desenvolvido pelo Frei David uma alternativa para as duas demandas.

“Como eu conhecia a Baixada Fluminense, consegui localizar frei David. Isso foi de 1993 a 1994. (...) Quando eu chego à baixada, para conhecer frei David, eu levei um susto. Frei David estava na Igreja da Matriz e todo PVNC tinha 90 alunos. Aí ele me explicou sua lógica: o que ele queria, era o ingresso de negros na Universidade. Eu vi uma organização, ou seja, aquilo era um movimento.

Pode-se extrair dos depoimentos anteriores que os fatores de maior motivação para o engajamento de Luiza Helena no novo programa da PUC, foram a possibilidade que o projeto oferecia de capacitar profissionalmente lideranças comunitárias e populares, preferencialmente como assistentes sociais e evitando o fechamento do Departamento de Serviço Social, já que o aluno-militante escolhia preferencialmente fazer o vestibular e cursar Serviço Social na PUC-Rio. Esse passou a ser o novo perfil de aluno do curso de Serviço Social.

A capacitação favoreceria a realização de uma ação profissional mais qualificada, nas comunidades e periferias da cidade, e o diploma universitário legitimaria esta ação. A diplomação desta liderança facilitaria a materialização de projetos sociais e a ampliação de contatos, sem que fosse necessária a mediação de sujeitos externos. O que motivou a participação de Luiza Helena foi a natureza do próprio projeto, seu caráter pioneiro e transformador, capaz de contemplar suas aspirações e angústias.As motivações foram várias, mas o motor responsável pela dinâmica do processo, foi o projeto em si.

Algumas considerações

Várias aspirações que se uniram e formaram uma política de inclusão de alunos pobres e negros numa universidade comunitária do Rio de Janeiro. Entretanto, esses protagonistas da política da universidade, com suas motivações na década de 1990, não previam os resultados do cruzamento dessas propostas.

Embora as motivações possam parecer distintas, na verdade elas são convergentes, e levam todos os protagonistas dessa história a um lugar comum: a indignação com a desigualdade social e o desejo de que essa situação fosse revertida. Uma diversidade de intenções que conseguiu unir esses sujeitos em prol de um projeto político-pedagógico. Essa convergência de desejos, sonhos e motivações foram responsáveis pela constituição do programa de ação afirmativa desenvolvido na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Hoje o programa faz parte da política institucional e é um aglutinador de novas práticas sociais. A PUC-Rio continua tendo um número bastante representativo de alunos bolsistas, que são moradores de periferias e favelas, ativistas sociais e procedentes de pré-vestibulares populares distribuídos por bairros e municípios do Rio de Janeiro, tais como: EDUCAFRO, Pré-vestibular Ser Cidadão, Pré-vestibular Popular Bonsucesso, PVNC Vila Operaria, Pré-vestibular popular + Nós, Pré-vestibular comunitário SejaMais, PreparaNEM, Rede Emancipa entre outros mais. Um programa que se inicia com o PVNC e com o passar dos anos, amplia as suas parcerias com outras organizações sociais, especialmente com Pré-vestibulares populares. Hoje há um número significativo de cursinhos pré-vestibulares populares, também conhecidos como pré-vestibulares comunitários e sociais, que tem proximidade com a PUC-Rio.

Em recente levantamento feito em plataformas digitais13, identificou-se o funcionamento de 97 núcleos no município do Rio de janeiro e 46 núcleos espalhados em 11 municípios da Baixada Fluminense. Do total dos 143 cursinhos populares, identificou-se a existência de 66 núcleos que funcionam em formato de rede, quer dizer, diversos núcleos atuam de forma integrada, com propostas pedagógicas e princípios comuns. Tais dados evidenciam que ao longo das últimas décadas houve um aumento no número de cursinhos de pré-vestibulares populares, que se constituem de diversas formas e que mantem o compromisso com a formação de estudantes das classes populares e moradores de periferias, possibilitando um maior acesso às Universidades Brasileiras. Um cenário que reafirma a importância das organizações sociais voltadas para a educação popular no processo de democratização do ensino superior.

A PUC-Rio mudou e o Departamento de Serviço Social da PUC-Rio também mudou e se tornaram espaços mais plurais, diversos e menos desiguais, uma mudança que se deve à implementação de um programa afirmativo, nascido a partir da parceria estabelecida com os movimentos sociais, especialmente com o movimento social de educação popular, o PVNC e que hoje se ampliou.

Material suplementario
Referências
CANDAU, V. M. Universidade, diversidade cultural e formação de professores. Rio de Janeiro: PUC-Rio/CNPq, 2003.
CLAPP SALVADOR, Andréia. Ação afirmativa na PUC-Rio: A inserção de alunos pobres e negros. Rio de janeiro, Ed. PUC-Rio, 2011. Disponível em: http://www.editora.puc-rio.br/media/ebook%20acao%20afirmativa%20puc%20rio.pdf
FERES JUNIOR, J. Aspectos normativos e legais das políticas de ação afirmativa. In: FERES JUNIOR, J.; ZONINSEIN, J. (Orgs.). Ação afirmativa e universidade – experiências nacionais comparadas. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2006.
GOMES, J. B. B. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:SANTOS, R. E; LOBATO, F. (Orgs.). Ações afirmativas: políticas públicascontra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
MILMAN, C. O aluno bolsista da PUC-Rio: sua visão sobre o programa de bolsas. Rio de Janeiro, 1993. Dissertação de mestrado (Mestrado em Serviço Social) – Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
PAIVA, A. R. Católico, protestante, cidadão. Belo Horizonte: Ed. FMG, 2003.
ROCHA, J. G. da. Teologia & negritude. Rio de Janeiro: [s. n.], 1998.
SOUZA, M. de. O perfil do aluno com bolsa PUC: uma referência para uma ação propositiva do Serviço Social. Rio de Janeiro, 2004. Monografia (TFG em Serviço Social) – Curso de graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Notas
Notas
1 Assistente social e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora adjunta do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio e coordenadora do Grupo de Pesquisa de Políticas de Ação Afirmativa e Reconhecimento (GPAAR). Leciona na graduação e na pós-graduação e coordena pesquisa no campo das políticas de ação afirmativa e dos pré-vestibulares populares. E-mail: aclapp@puc-rio.br. Orcid nº0000-0002-4501-6714.
2 A mudança ocorre na própria diretriz da proposta. O novo direcionamento se pauta na seguinte perspectiva, “abandonar o processo paternalista até então adotado na concessão de bolsas, passando-se para um processo educativo” (Souza, 2004: 26)
3 A bolsa de ação social é atualmente identificada como bolsa de estudo comunitária-tipo filantrópica. As bolsas tipo filantrópica podem ser integrais ou parciais, cuja renda familiar mensal percapita não exceda o valor de 1 salário mínimo (bolsas integrais – 100%) ou o valor de 3 salários mínimos (bolsas parciais – 50%). Disponível em: http://www.puc-rio.br/sobrepuc/admin/vrc/bolsas_tipos.html (acesso julho de 2022)
4 Segundo Joaquim B. Gomes (2003: 27), “ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas (...), concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e o emprego”.
5 Todas as entrevistas aqui citadas foram colhidas durante nossa pesquisa de doutorado pelo Departamento de Serviço Social da PUC-Rio, orientada pelas professoras Ângela Maria de R. Paiva e Vera Maria F. Candau). Defendida em 2008, a tese foi publicada em formato livro pela editora PUC-Rio (Clapp Salvador, 2011). Todas as entrevistadas foram realizadas no ano de 2006.
6 Os Agentes da Pastoral do Negro (APNs) foi um grupo que se fortaleceu no contexto dos movimentos sociais, apoiados na ação pastoral da Igreja,principalmente, nas Comunidades Eclesiais de Base. “Os grupos negros ressurgem na Igreja a partir desta tomada de consciência de pessoas participantes nas CEBs” (Rocha, 1998: 69).
7 Para a realização da pesquisa, inicialmente busquei referências que me ajudassem a identificar as pessoas fundamentais no processo de implementação e consolidação do programa. Essa identificação preliminar foi sendo confirmada por meio das entrevistas realizadas com os implementadores, e, também, com ex-alunos oriundos do programa. E cruzando as referências dos próprios entrevistados, destacaram-se os mencionados personagens.
8 Licenciado em Teologia pela Faculdade de Teologia do Colégio Cristo Rei, em Filosofia pela Universidade Pontifícia de Comillas, e em Direito pela Universidade de Salamanca. Na PUC-Rio foi diretor do Departamento de Teologia entre 1986 e 1992, Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos entre 1992 e 1995,
9 Seguindo o site da EDUCAFRO, o objetivo geral dessa associação de educação é “reunir pessoas voluntárias, solidárias e beneficiárias desta causa, que lutam pela inclusão de negros, em especial, e pobres em geral, nas universidadespúblicas, prioritariamente, ou em uma universidade particular com bolsa de estudos, com a finalidade de possibilitar empoderamento e mobilidade social para população pobre e afro-brasileira”. Disponível em: https://www.educafro.org.br/site/quem-somos/
10 Frei Davi e Augusto Sampaio ressaltam a importância do papel desempenhado por professores e coordenadores dos pré-vestibulares populares, no processo de consolidação da política de “bolsa de ação social” na PUC-rio. Elementos sobre a atuação e participação dos professores e dos primeiros estudantes do programa da bolsa da PUC-Rio, podem ser lidos no cap 4 do livro: Ação afirmativa na PUC-Rio: A inserção de alunos pobres e negros. Disponível em: http://www.editora.puc-rio.br/media/ebook%20acao%20afirmativa%20puc%20rio.pdf
11 Conforme o marco referencial da PUC-Rio, “A Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro é uma instituição dedicada ao ensino, à pesquisa e à extensão. É uma universidade particular e confessional, que tem ademais um caráter comunitário, enquanto está ligada a um grupo social que aceita a inspiração da tradição humanístico-cristã da Igreja Católica e, ainda, enquanto em sua atuação se concebe como uma instituição prestadora de um serviço de interesse publico”. http://www.puc-rio.br/sobrepuc/marcoreferencial/principal.html
12 Consta do marco referencial da PUC-Rio, alguns objetivos e compromissos, referentes a questão da justiça social, tal como: A PUC-Rio “almeja encarnar a opção pela pessoa humana que a caracteriza desde a sua origem, e que hoje implica o compromisso de colaborar na construção de uma sociedade baseada no respeito e na promoção de todos, de modo especial dos mais pobres e marginalizados”
13 Os dados referentes aos pré-vestibulares populares do Rio de Janeiro fazem parte da pesquisa: Análise da atuação e alcance dos Pré-vestibulares populares da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Um olhar sobre a democratização do acesso ao ensino superior, desenvolvida no ano de 2020.
Notas de autor
1 Assistente social e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora adjunta do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio e coordenadora do Grupo de Pesquisa de Políticas de Ação Afirmativa e Reconhecimento (GPAAR). Leciona na graduação e na pós-graduação e coordena pesquisa no campo das políticas de ação afirmativa e dos pré-vestibulares populares. E-mail: aclapp@puc-rio.br. Orcid nº0000-0002-4501-6714.












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