Resumo: A presente discussão buscou trazer de forma sucinta os paradoxos da relação entre Estado e Associações Cannabicas presentes no enfrentamento político pelo uso terapêutico da Cannabis e como o caráter de (des)proteção social corrobora para ampliação e manutenção da guerra às drogas. Para isso, buscamos apresentar um resgate do modelo de proteção social brasileiro, bem como o modelo proibicionista, assim como as Associações Cannabicas vem se articulando para suprir a ineficácia das políticas públicas junto as famílias. Por fim, apontamos como esse paradoxo burocrático contribui para prejudicar as famílias em situação de vulnerabilidade e como isso vem sendo debatido na contemporaneidade.
Palavras-chave: Proibicionismo, Associações Cannabicas, Proteção Social, Cannabis, Vulnerabilidade.
Abstract:
The present discussion sought to briefly bring the paradoxes of the relationship between State and Cannabic Associations present in the political confrontation for the therapeutic use of Cannabis and how the character of (dis)social protection corroborates for the expansion and maintenance of the war on drugs. For this, we seek to present a rescue of the Brazilian social protection model, as well as the prohibitionist model, as well as the Cannabic Associations have been articulating to supply the ineffectiveness of public policies with families. Finally, we point out how this bureaucratic paradox contributes to harming families in vulnerable situations and how this has been debated in contemporary times. Prohibitionism; Cannabic Associations; Social Protection; Cannabis; Vulnerability.
Keywords: Prohibitionism, Cannabic Associations, Social Protection, Cannabis, Vulnerability.
Proibicionismo e (des)proteção social: reflexões sobre os paradoxos da relação entre estado e associações cannabicas
Prohibitionism and (dis)social protection: reflections on the paradoxes of the relationship between state and cannabic associations
Recepción: 01 Marzo 2022
Aprobación: 01 Junio 2022
Por mais de um século, o uso de substâncias tidas como drogas passou a ser encarado como um “mal a ser combatido”, fato que levou à proibição de várias substâncias, dentre elas, a cocaína, a maconha e até o próprio álcool, e à perseguição e à criminalização de seus usuários/as e/ou entusiastas.
Assim como a violência, outras expressões da questão3 social, dentre elas o uso de substâncias (drogas), configuram-se como “o mal” que afligiu a humanidade no último século, dessa forma, muito do que se conhece sobre as drogas foi edificado com base no combate e enfrentamento a esse mal (LABATE et al., 2008).
Nesse sentido, conforme abordam alguns autores, esse proibicionismo foi um ato separatista meramente político-econômico que, com o passar dos anos (e por interesses de algumas minorias detentoras dos meios de produção), retirou algumas dessas substâncias do roll de produtos proibidos, a exemplo das bebidas alcoólicas, e disseminou campanhas internacionais de repulsa, criminalização e perseguição de outras substâncias e seus adeptos, como é o caso da Cannabis.
O chamado proibicionismo que surgiu em meados dos séculos XVIII e XIX nos Estados Unidos, começou então a movimentar políticas de repressão e perseguição aos usuários/as, na tentativa de exterminar “o mal”, praticando atos xenofóbicos e racistas, replicando a tônica de que o uso desses produtos, em especial a Cannabis (popularmente conhecida como marihuana), fosse associado aos criminosos e marginas, ou até mesmo que tal uso levaria à “loucura (RODRIGUES, 2004).
Com o intento de controlar aquelas pessoas que faziam uso de substâncias “proibidas”, apostava-se nos ensinamentos puritanos4, principalmente aqueles capazes de elevar a “moral e os bons costumes”; assim, a partir do início do século XX, foram adotadas medidas de contenção da “desordem social”, segundo as quais, pessoas e famílias que se encontravam em situação de vulnerabilidade social, que faziam uso de substâncias tidas como drogas, ou aqueles que não se enquadravam nas “normas” ditadas socialmente, eram tratados de forma higienista5, afim de restabelecer a “ordem”, criando a popular “guerra às drogas6” (COLOMBANI e MARTINS, 2017).
Rodrigues (2004) sugere que a complexidade do surgimento da proibição das drogas interfere diretamente na aplicação das políticas públicas, no decorrer da “guerra às drogas”, uma vez que normas de controle sanitário passaram a construir uma sociedade baseada nos saberes médico-científicos, caracterizando um “higienismo social”.
O ideário norte-americano de uma sociedade livre das drogas foi o grande responsável pela disseminação de violência e da perseguição as camadas menos abastadas, pois, numa campanha de total repressão aos usuários, principalmente de maconha, foi amplamente difundida a “guerra às drogas”, dirigida por Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, que declarava o tão somente uso como o “inimigo público número um dos Estados Unidos da América” e, para isso, decretou uma ofensiva total. Esse discurso do inimigo a ser combatido ultrapassou fronteiras e foi amplamente disseminado no Brasil, embora a proibição e perseguição a usuários fosse anterior a esse período (RODRIGUES, 2004).
Com isso, pessoas em condições de pobreza passaram a ser perseguidas atribuindo-se a elas a culpa pela sua condição, eximindo o Estado de suas atribuições reais frente às desigualdades produzidas pelo capitalismo, reforçando-se práticas proibicionistas e discriminatórias. Dessa maneira, as atribuições estatais acabam por se tornar meras ações compensatórias, residuais e focalizadas, apenas com intuito minimizador, as quais se refletem em uso autoritário da lei e da violência, como força de repressão, apenas para a manutenção da ordem (burguesa), denotando-se uma legítima desproteção social.
Assim como em outros países, o Brasil sofreu, e ainda sofre, as mazelas da desproteção estatal, essa que se reflete na má formulação e execução de políticas públicas, pois, quando o Estado se omite de responsabilidades fundamentais, a função protetiva estatal fica comprometida, evidenciando lacunas que forçam as famílias a buscarem seus direitos utilizando-se de todos os recursos disponíveis. Esses recursos vão desde processos de judicialização da saúde, com intuito de obter acesso a medicamentos e serviços, e chegam à ilicitude, por exemplo, quando uma família começa a plantar maconha clandestinamente porque o Estado não fornece e não dispõe de maneiras objetivas para tal acesso a quem precisa.
A relação entre família e Estado passa, então, a ser mediada pelo conflito, a partir do descaso e inoperância do Estado frente às necessidades protetivas das famílias; uma vez que as políticas públicas se materializam no campo da reprodução social, as próprias famílias são forçadas a suprirem suas demandas independentemente de sua condição objetiva.
Concomitantemente ao enfoque proibicionista, desencadeia-se no Brasil a partir de 1920/1930, a configuração de um sistema de proteção social, que, segundo Draibe (1990), perdurou até meados de 1970, caracterizado como Estado Intervencionista ou Estado Social. O sistema de proteção social emergiu espelhado ao modelo europeu, objetivando regular o processo de acumulação e as relações de trabalho, voltando-se essencialmente para a família, já que esta era de grande interesse do Estado e do capital, por ser reprodutora de operários e respaldar, por meio dessa reprodução social, o processo de industrialização e modernização. Cabe ressaltar que a família considerada “saudável” era aquela que não gerava “problemas sociais”; assim, com a união da Igreja e do chamado Estado Novo, nesse período, os interesses em padronizar e adequar comportamentos familiares e individuais, se sobressaiam em detrimento da real proteção social (TEIXEIRA, 2010).
Essa forma de condução da política pública caracteriza a abstenção do Estado de sua função protetiva e, concomitantemente, a responsabilização das famílias para integrar um movimento de proteção em que elas próprias são sobrecarregadas, pois o conceito de “proteção” que a família deve exercer extrapola o âmbito da segurança material e bem-estar econômico incorporando relações sociais, valores ideo-morais e o princípio formativo das particularidades de cada um. Dessa forma, configura-se aqui um tipo de proteção “familista”7.
De acordo com Campos (2015), isso passou a se configurar como o primeiro modelo de proteção social no Brasil, que também passou a apontar a família, não apenas como elemento para a sobrevivência dos indivíduos, mas também para a proteção, socialização e transmissão do capital cultural, do capital econômico e da propriedade.
O chamado Seguro Social, que mais tarde se tornou a Previdência Social, foi uma das primeiras propostas destinadas ao combate dos riscos sociais, por meio de transferência de renda feita pelo governo, desde que a família possuísse contrato de trabalho formalizado. Nesse sentido, percebemos que a família sempre foi a centralidade das políticas sociais, recaindo sobre ela a responsabilidade da manutenção e emancipação das necessidades, eximindo o Estado de tais atribuições (GONÇALVES, 2015).
No Brasil, objetivamente ocorreu uma tentativa de Estado de Bem-estar Social, mas não chegou a ser considerado como o modelo europeu do Welfare State, o qual tinha como premissa alcançar a sua essência humanitária, baseada no princípio solidário do amparo social prestado pelo Estado, atrelado à égide do capitalismo, e que só seria possível em países considerados desenvolvidos. Desse modo, o disparo no crescimento populacional urbano, associado à massificação das atividades produtivas industriais corroborou para ampliar as expressões da questão social, criando uma espécie de “controle social”, o que se refletiu na ampliação da miséria, crescimento exacerbado das favelas e, consequentemente, o aumento dos “problemas sociais”, dentre eles, o uso e abuso de drogas (IAMAMOTO, 2008).
Esses fatores, associados a negligência do Estado colocavam a centralidade de superação das situações de vulnerabilidade nas próprias famílias, criando padrões que, ao invés de melhorar a situação das pessoas, pioravam, dadas as condições mercadológicas e capitalistas necessárias para tal superação. Sendo assim, Vieira, (2000), afirma que o crescimento econômico após a 2ª guerra mundial inexistiu em países como o Brasil, em que sua rede de proteção social atuou (e ainda atua) mais no sentido de “tapa buracos” e “desconjuntada”.
Assim, o Brasil constituiu seu sistema de proteção social público, cuja montagem, desenvolvimento e reestruturação são contraditórios e marcados pela reprodução das desigualdades sociais nas formas de inclusão. Além disso, tem como característica marcante e particular as interações com o sistema privado (mercantil e não mercantil) e com a família na prestação de bens e serviços. Em linhas gerais, essa fase - de introdução, consolidação, expansão do sistema de proteção social (até o final da década de 1970) - assume características que o assemelham, segundo Draibe (1990), ao regime de bem-estar social conservador, de acordo com a tipologia de Esping-Andersen (1991) (TEIXEIRA, 2010, p. 538-539).
Consequentemente, ampliaram-se as expressões de violência e o intento de disseminar a velha dicotomia da “guerra às drogas”, que, de acordo com Ferrugem (2019), se ergue sobre o discurso moralizante da proibição de comportamentos, evidenciando a perseguição sobre a população mais vulnerável, criando normas pra “ajustar os desajustados”, estigmatizando uma população historicamente marginalizada, devido ao contexto racial, classista e preconceituoso.
Quando se trata da proteção social, o estabelecimento da família como principal ator das políticas sociais em detrimento da desresponsabilização do Estado contribui para a manutenção da ordem capitalista vigente e ampliação da violência, entendida como uma das expressões da questão social.
Para Ianni (2002), foi possível observar uma ampliação no campo da violência, que não se concentra apenas na materialização físicas, inferindo consequências na contemporaneidade:
Não se trata de simplificar a problemática da violência, como se ela coubesse no conceito, ideia ou interpretação. Vista em toda a sua complexidade, em suas múltiplas manifestações coletivas e individuais, históricas e psicológicas, objetivas e subjetivas, é evidente que a violência é um acontecimento excepcional que transborda das várias ciências sociais; revela dimensões insuspeitadas da realidade social, ou da história, em suas implicações político econômicas, socioculturais, objetivas e subjetivas. A fúria do tirano, o terrorismo de Estado, a guerra, o massacre, o escravismo, o racismo, o fundamentalismo, o tribalismo, o nazismo, sempre envolvem 59 alegações racionais, humanitárias, ideais, ao mesmo tempo em que se exercem em formas e técnicas brutais, irracionais, enlouquecidas. Em geral, a fúria da violência tem algo a ver com a destruição do "outro", "diferente", "estranho", com o que busca a purificação da sociedade, o exorcismo de dilemas difíceis, a sublimação do absurdo embutido nas formas da sociabilidade e nos jogos das forças sociais (IANNI, 2002, p. 8).
De acordo com Souza (2015), a visão que as forças de segurança pública têm do possível criminoso/marginal se caracteriza nitidamente pela cor da pele, condição sociocultural e financeira, conotações da herança escravocrata, conforme Ferrugem (2019), levando sempre ao encontro de pessoas perfiladas no conjunto jovem, preto, pobre e periférico, personificando o “mal” a ser combatido, em sua maioria, com repressão.
Diante disso, tem-se a violência como componente essencial da própria estrutura do sistema social e econômico da sociedade moderna e se manifesta nos modos de produção e reprodução social, segundo Ianni (2002), incidindo diretamente na produção da sociabilidade, tanto do ponto de vista social e cultural, como também no ordenamento econômico e político. Com o uso exacerbado da força, o controle sobre o uso de substâncias, portanto, configura-se como um marco histórico coletivo que apenas intensificou a perseguição a usuários/as como se esses fossem o problema, tendo como base a reunião sobre o Ópio em Xangai, em 1909, e a Primeira Conferência Internacional sobre o Ópio, no ano de 1912, em Haia, as quais marcam os primeiros mecanismos que mais tarde tornam-se a “guerra às drogas”.
De acordo com Arima (2020), o que subjaz ao controle proibicionista do uso de substâncias não legalizadas, não é a preocupação com a saúde de seus usuários, uma vez que o maior número de casos de hospitalizações, conforme levantamento de dados realizados por pesquisadores e pelos próprios veículos de transmissão de informações8, são por drogas lícitas (como bebidas alcoólicas e cigarro). Desse modo, o proibicionismo torna-se a centralidade do problema, e não propriamente o efeito das substâncias, o que, desloca ou camufla o cerne real da questão: um problema de política pública de saúde, passa a ser tratado como problema de “polícia” (ou de segurança pública). Para Arima (2020), a questão da saúde pública nunca foi posta como deveria, pois, a própria Lei 11.343/06, conhecida como a Lei de Drogas Brasileira, tem servido como agravante dessa situação de descaso com a saúde pública9, mostrando a necessidade de ser reavaliada e amplamente discutida.
O caráter proibicionista e de seletividade sempre foi mero mecanismo de controle social, ou seja, embora tivesse como premissa controlar e reduzir o uso de substâncias ilícitas, fez nascer a “guerra às drogas”, assim como o preconceito às demonstrações culturais e/ou religiosas, principalmente as expressões de matriz africana, as quais muitas vezes utilizavam substâncias para ir ao encontro de sua espiritualidade; ritual que, sob olhar da divisão de classes, não eram “bem visto”, resultando em violência, controle e perseguição das pessoas que praticavam tais rituais e faziam uso de substâncias para tal10.
Muitas substâncias psicoativas (drogas) fazem parte de nossa sociedade (como medicamentos, alimentos, dentre outras), consideradas lícitas ou ilícitas; algumas já utilizadas há tempos, proibidas em detrimento de interesses particulares ou de grupos segregacionistas por anos, e que atualmente regressam à centralidade dos debates, como possíveis terapêuticas utilizadas pela medicina alternativa, reconceituando-se suas formas de uso, como é o caso da Cannabis.
No entanto, apesar do avanço dos estudos acerca dos benefícios dessas substâncias nos tratamentos de saúde, famílias enfrentam a violência burocrática do Estado, quando ocorre a dificuldade e a morosidade no acesso à saúde, a violência física, financeira e psicológica, tanto em virtude do contexto proibicionista, como dos próprios valores para tal acesso; esses que geralmente são importados e demasiadamente caros, inviabilizam, do ponto de vista financeiro, sua aquisição “legal”, dentro das prerrogativas do Estado.
Para não se tornarem reféns da desproteção estatal, muitas famílias começam a plantar Cannabis, a fim de extrair o óleo (medicinal) para o tratamento de patologias que as acometem11, dentro de um contexto de desobediência civil pacífica, segundo a qual, cometem “delito” para garantir o direito de acesso12. Entretanto, essas pessoas estão sujeitas a denúncias, à subjugação, às forças policiais e ao medo de serem incriminadas por tráfico, levando em consideração o contexto de plantio de algo ilícito, o local de cultivo e as próprias características físicas das pessoas, já que não raro, isso influencia no contexto utilizado pelas forças policiais para indicação de possíveis criminosos.
A proibição dificulta em vários pontos o acesso à saúde, pois, sendo substâncias com derivados da Cannabis, necessitam de autorização especial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, dessa forma, por conta dessa burocracia, os valores e custas fazem o acesso ser inviabilizado para famílias vulneráveis, pois não conseguem pagar. Assim, o proibicionismo e a Lei de Drogas brasileira, quando usados como instrumentos de violação de direitos dentro do Estado, por não permitirem o cultivo da Cannabis de forma mais descriminalizada, por exemplo, projetam a “guerra às drogas”, a qual vira política de extermínio, ampliando as expressões de violência, que podem ser burocráticas, a violência física, financeira ou psicológica (FERRUGEM, 2019; NUNES, 2020; ARIMA, 2020).
Com objetivos de suprir uma demanda que o Estado não dá conta, ampliar seus conhecimentos sobre a Cannabis em termos de plantio e tratamento, bem como obter respaldo e orientação jurídica e médica, algumas pessoas, em sua maioria familiares e/ou pacientes, unem-se para criar pequenos grupos coletivos que objetivam propiciar acesso aos direitos ora camuflados pela morosidade e políticas ineficazes. Surgem, dessa forma, as Associações Cannabicas, entidades pessoa jurídica (PJ) comprometidas com a causa das famílias que necessitam acessar a Cannabis e seus derivados, assessorando nas documentações necessárias para importar, comprar ou até mesmo plantar de forma “autorizada”, ou de maneira “permitida”, dentro de um contexto de proibição. Assim, essas instituições, consideradas Organizações Não Governamentais (ONG’s), assumem compromisso de auxiliar essas famílias diante do abandono estatal, formando uma rede alternativa de apoio com objetivo de suprir algumas necessidades como o acesso à saúde por meio de mecanismos jurídicos que, de certa forma, “obrigam” o Estado a resolver o problema, reforçando o desmonte das políticas públicas.
Segundo Rosa (2017), as mudanças na política de saúde mental deram maior visibilidade à realidade das famílias cuidadoras de pessoas com transtorno mental (e outros transtornos e patologias), assim, esses cuidados no âmbito domésticos são caracterizados por experiências, vivências, ensaios, erros e acertos, já que as próprias famílias precisam buscar o conhecimento para atender as demandas não supridas pelo Estado.
Objetivando essa troca de conhecimentos e informações a respeito de uma particularidade semelhante, grupos e indivíduos e/ou familiares se unem para somar esforços e massificar suas lutas cotidianas, colocando-se na condição de enfrentar o Estado e a violência na forma de direito negado, para propiciar um alento aos acometidos de patologias e enfermidades.
Para Kornis (2012), o surgimento de inúmeras indústrias farmacológicas, principalmente no pós-segunda guerra mundial, e o crescimento da indústria farmacêutica norte americana, focou na sintetização química, deixando de lado a fitoterapia que advinha dos saberes populares e da cura pelo poder medicinal das plantas. De acordo com o autor:
[...] o cenário mundial, após a Segunda Guerra, serviu de berço para a empresa farmacêutica moderna, com incremento da competividade das empresas através de estratégias de internacionalização de suas atividades. As indústrias conquistaram posição de liderança no desenvolvimento das estruturas corporativas e práticas de marketing e vendas. Tal fato garantiu o retorno dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento e a lucratividade da indústria farmacêutica em todo mundo (ANTUNES; MAGALHÃES; BOECHAT, 2008, p.3).
Com a inércia do Estado em relação à proteção social, as famílias acabam por assumir o protagonismo, criam grupos que se unem para formar associações (como as Associações Cannabicas, supramencionadas), que atuam de diferentes formas possibilitando acesso aos direitos dos/as usuários/as e seus familiares. Assim, ao vincular-se a uma Associação Cannabica, as famílias ganham mais força para a luta e os embates, pois, essas instituições buscam estreitar esse caminho burocrático entre a “doença e o tratamento/cura”, objetivando caminhos legais, por meio de ações judiciais rápidas, nas quais se assume o papel de proteção social negligenciado pelo Estado.
Mas, se de um lado as associações são criadas com o objetivo de suprir a “falta” do Estado, o qual se exime de sua função protetiva, forçando o protagonismo familiar a buscar a judicialização para pressionar e conseguir o acesso aos direitos, de outro, há um conformismo estatal diante do movimento das associações, já que elas estão suprindo a demanda negada, e resolvendo tudo por meio do associativismo, entende-se como “questão superada”, não necessitando mais da interferência estatal.
De acordo com Lüchmann (2011), o debate sobre formas alternativas de representação política e suas contribuições à democracia e à representação, em especial a conselhista, ampliam os benefícios democráticos, caracterizando legalmente em sua funcionalidade e no que tange seus mecanismos de constituição. De acordo com Lüchmann (2011), o debate sobre formas alternativas de representação política e suas contribuições à democracia e à representação, em especial a conselhista, ampliam os benefícios democráticos, caracterizando legalmente em sua funcionalidade e no que tange seus mecanismos de constituição.
Da mesma forma, para Zanatto (2020), as associações assumem papéis importantes na sociedade ocupando e organizando os povos negligenciados pelo Estado e pelo capital, elevando o chamado associativismo como ferramenta importante na construção de um novo modelo de gestão da política, principalmente no contexto das nuances da famigerada “guerra às drogas”.
Cohem e Rogers (1995), afirmam que algumas relações entre as associações e o Estado proporcionaram o ideal do bem comum, algo realmente efetivo, aumentando o poder das associações e da eficiência do Estado e do mercado, com fortalecimento da democracia, já que as associações são entendidas como reprodutoras de informações, espaço de voz e voto das minorias e que proporcionam virtudes cívicas e políticas, as quais são essenciais para a formulação de governanças alternativas. Entretanto, esse mesmo movimento evidencia uma apropriação, por parte do Estado, da autonomia das associações, que dificultam e atrapalham o desenvolvimento das atividades como cobranças administrativas por exemplo, que reforçam o intuito de suprir a “falta” do Estado eximindo-o de sua função protetiva.
Se assim o é, o protagonismo familiar associativista, ao buscar a judicialização para pressionar o Estado a cumprir sua função protetiva, ao mesmo tempo em que garante o direito à vida e à saúde (no caso dos habeas corpus concedidos judicialmente para o plantio e uso medicinal da Cannabis), também promove uma acomodação do próprio Estado diante dele, o que poderia retroalimentar a negligência estatal. No entanto, ainda que seu protagonismo na luta pelos direitos e pela satisfação de suas demandas, possa reforçar o descompromisso do Estado em relação à proteção social dos indivíduos e das famílias, as associações cannabicas são mecanismos necessários e estratégicos de luta pela vida; esta, negada especialmente às populações mais vulneráveis, as quais são invisibilizadas pela ausência do Estado.
As associações são, portanto, recursos imprescindíveis para a produção e a oferta de informações, pois estão estrategicamente inseridas dentro das comunidades vulneráveis, executando política que deveriam ser de responsabilidade estatal e equalização da representação política, oportunizando e coletivizando as vozes e demandas dos indivíduos e de seus familiares (COHEM e ROGERS, 1995, p. 43 apud LÜCMANN, 2011, p. 160-161).
O surgimento das Associações Cannabicas no Brasil ocorreu por um caminho árduo de ruptura e de enfrentamento ao negacionismo do Estado proibicionista, e hoje elas assumem esse papel aliado aos movimentos militantes pelo uso da Cannabis, formulando “[...] redes de interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos e/ou organizações, engajados em conflitos políticos ou culturais e com base em identidades coletivas compartilhadas” (DIANI, 1992, p.1, apud LÜCHMANN, 2011, p. 141).
O Brasil conta com cerca de 40 Associações Cannabicas devidamente constituídas e registradas, além dos inúmeros coletivos e movimentos sociais que apoiam uma legalização e uma regulamentação legítima e justa. Dessas associações, aproximadamente 34 fazem parte da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica – FACT, que é um movimento que surgiu da necessidade de unir e coletivizar as várias frentes existentes em relação à Cannabis, baseadas na saúde, na educação e na pesquisa13.
Com o advento e a popularização da terapia com Cannabis, famílias vislumbravam uma possibilidade de tratamento de seus familiares enfermos, entretanto, esbarraram na burocracia Estatal, sendo necessário acionar juridicamente órgãos competentes a fim de resguardar direitos constitucionais, como o acesso à saúde, por meio de um contexto de Desobediência Civil Pacífica.
Para Pereira (2003), cada vez se tornam mais escassos os serviços estatais públicos, externalizando o abandono e a desproteção social do Estado frente as necessidades das populações mais vulneráveis, evidenciando o conformismo com a maneira paliativa que muitas instituições, assim como as Associações Cannabicas, empregam para proporcionar e garantir direitos ao seu público-alvo.
Diante de todo esse contexto paradoxal concernente à relação entre Estado e família/associações cannabicas, no que tange à (des)proteção social, é necessário refletir sobre os limites já demarcados dessa relação, para poder superá-los. Isso implica que o protagonismo associativista vislumbre e atue para além da judicialização e das medidas protetivas paliativas, e recupere nessa atuação a luta política, mediada por um projeto societário de superação de um Estado proibicionista e policialesco; negacionista em relação ao acesso e efetivação de direitos; negligente ao cumprimento de seus deveres em relação à proteção social dos indivíduos e das famílias; e conivente com a produção e reprodução da desigualdade social e da criminalização das populações mais vulneráveis.