Resumo: O estudo reflete sobre a política de assistência social no cenário de pandemia, destacando os desafios colocados à/ao assistente social. Realizamos pesquisa bibliográfica em livros, artigos e tese, que apontavam como direção teórico-metodológica o referencial teórico-crítico. Apresentamos análises oriundas da sistematização do exercício profissional, feitas a partir de relatórios da Coordenação de um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Niterói/RJ e de pesquisa documental em legislações, decretos e resoluções e ações emergenciais na pandemia. Verificamos o protagonismo da assistência social no processo de reprodução da classe trabalhadora brasileira, por meio de ações de combate à pobreza.
Palavras-chave: Política de assistência social, pandemia, assistente social, CRAS.
Abstract: The study aims to reflect on the social assistance policy in the pandemic scenario, highlighting the professional challenges faced by social workers. We carried out bibliographical research in books, articles and thesis, which have as a theoretical-methodological direction the theoretical-critical framework. We present analyzes from the systematization of professional practice, based on institutional reports of the Coordination of a Social Assistance Reference Center (CRAS) in Niterói/RJ and documental research on legislation, decrees and resolutions and emergency actions in the pandemic. It was verified that social assistance has an important role in the process of reproduction of the Brazilian working class, through actions to combat poverty.
Keywords: Social assistance policy, pandemic, social worker, CRAS.
Política de assistência social e pandemia: desafios à atuação profissional do/da assistente social no CRAS
Social assistance policy and pandemic: challenges to the professional practice of social workers at CRAS
Recepción: 01 Marzo 2022
Aprobación: 01 Junio 2022
Para realizar uma análise crítica a respeito da política de assistência social no contexto atual da pandemia, precisamos compreendê-la articulada ao processo histórico de reprodução das relações capitalistas e da acumulação do capital.
De acordo com a teoria social crítica, o modo de produção regido pelo capital tem como traço constituinte a Lei do Valor e a exploração do trabalho por meio da apropriação do valor excedente, a mais valia. De acordo com Marx (2018, p. 586). “A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, ela é essencialmente produção de mais-valia”. Por meio do trabalho, o ser humano transforma a natureza e a si próprio. Essa transformação das matérias naturais resulta em produtos que atendem as necessidades da própria vida humana (MARX, 2006, p. 211). No entanto, quando inserido no modo capitalista de produção, o trabalho torna-se alienado e explorado pela classe que detém os meios de produção.
A classe trabalhadora tem como única forma de sobrevivência a venda da sua força de trabalho. No entanto, no capitalismo, parcelas dessa classe não conseguirão compradores para a sua força de trabalho, ficando na condição de trabalhadores desempregados. Essa parcela populacional foi designada por Marx (2018, p. 743) como “exército industrial de reserva”. A taxa de desemprego pode variar, dependendo da formação histórica e econômica de cada nação capitalista. Ressaltamos as diferenças existentes entre países de capitalismo dependente e países centrais (FERNANDES, 1975).
De acordo com Marx (2018), esse grupo, denominado como “superpopulação relativa4”, adquire configurações diferenciadas, conforme o próprio processo histórico de transformação do capitalismo, do desenvolvimento das forças produtivas e dos efeitos da acumulação do capital perante à classe trabalhadora. Na base da “superpopulação relativa”, encontra-se ainda uma das esferas mais perversas do capitalismo. Há um grande número de trabalhadoras/es aptas/os para o trabalho, mas que não conseguem emprego, encontrando-se na condição de pobreza extrema. É justamente esse cenário que favorece a superexploração da força de trabalho, marcada pela precarização das relações de trabalho, processos que são agudizados no atual estágio da acumulação capitalista.
Nesse contexto, em um cenário de acentuada exploração do capital sobre o trabalho, temos o acirramento das manifestações da questão social, e, para o seu enfrentamento e no movimento histórico de luta da classe trabalhadora, as políticas sociais se constituíram e se constituem como ações organizadas dos diferentes estados nacionais capitalistas, marcadas por singularidades, conforme as particularidades da formação social, histórica, política e econômica de cada país, a partir do desenvolvimento do capitalismo em cada cenário.
Embora sejam consideradas conquistas históricas da classe trabalhadora em seus processos de lutas para a garantia de alguns direitos sociais, os quais auxiliam na reprodução dos trabalhadores e do próprio capitalismo, as políticas sociais possuem limites impostos pelo capital, pois não atuam no enfrentamento das desigualdades estruturais do capitalismo (BOSCHETTI, 2016).
A desigualdade estrutural do capitalismo se acirra nos momentos de crise econômica, agravando a miséria e as condições de vida da classe trabalhadora. Na realidade, as crises no capitalismo são de caráter estrutural, e é justamente nesse cenário que a condição do trabalho se torna mais precarizada, com a intensificação da exploração do capital sobre o trabalho.
No capitalismo contemporâneo, o capital, com o respaldo dos estados nacionais que atuam direcionados pelo ideário neoliberal, vem destruindo as regulamentações trabalhistas e as políticas sociais que foram instituídas por meio da histórica luta da classe trabalhadora. As funções do Estado são revistas de modo a privilegiar o capital financeiro, ao contrário de uma forte atuação nas políticas sociais.
Para a reflexão do impacto das medidas estruturais neoliberais nas políticas sociais em nossa realidade, é de fundamental importância a compreensão de que tais políticas não possuem as características dos sistemas de proteção social dos países de capitalismo central. O capitalismo tardio e dependente brasileiro se desenvolveu com diversas particularidades, devido às especificidades históricas, políticas e sociais de nossa formação, a destacar que, na realidade brasileira, “[...] nosso proletariado sempre se confundiu com a condição de precariedade, que é traço marcante de sua ontogênese” (ANTUNES, 2018, p. 61-62, grifos do autor). Por isso, ao ressaltarmos o contexto atual, precisamos recuperar as mediações históricas da formação do capitalismo no Brasil e compreender que os efeitos da crise sanitária, que se expandem na realidade brasileira, articulam-se à própria crise estrutural do capital, anterior à pandemia.
Segundo Soares, Correia e Santos (2021), percebe-se um terreno fértil para a disseminação da Covid-19 no Brasil devido a vários elementos articulados, como o não planejamento unificado do Governo Federal, promovendo uma fragmentação de decisões das esferas municipais e estaduais, além do não diálogo com as indústrias de vacinas, ocultamento de dados, demissão de ministros da Saúde que não concordam em submeter à ciência o projeto de poder do atual Presidente, naturalização das mortes, estímulo forçado à classe trabalhadora a se expor ao vírus a fim de não comprometer a economia, não articulação com a Organização Mundial da Saúde, entre outros.
Verificamos que as expressões da questão social se tornaram ainda mais alarmantes no auge do cenário pandêmico, o que pode ser comprovado com os dados do IBGE, considerando um ano de pandemia na realidade brasileira - março de 2020 a março de 2021 -, informados por Barros (2021), a quantidade de população ocupada foi reduzida em 7,3 milhões de pessoas no Brasil. O nível de ocupação foi de 49,4%, ou seja, menos da metade da população em idade para trabalhar tem acesso ao trabalho. Segundo os dados, a questão do desemprego afeta de maneira diferenciada a classe trabalhadora, apresenta especificidades de gênero, raça, idade e nível de escolaridade.
De acordo com o IBGE5, a taxa de desocupação entre os homens foi de 11,9%, enquanto a de mulheres foi 16,4%. Entre as pessoas pretas, a taxa foi de 17,2%, entre os pardos 15,8%, enquanto a dos brancos foi 11,5%. Além disso, pessoas com baixa escolaridade sofrem mais com a falta de trabalho, registrando-se 23,7% da taxa de desocupação entre as pessoas com ensino médio incompleto, em comparação com 6,9% entre pessoas com nível superior completo.
Em momento de ainda maiores necessidades, a classe trabalhadora brasileira se depara com políticas sociais fragilizadas pelo ideário neoliberal (ou “ultraneoliberal”6). A classe trabalhadora brasileira, distribuída entre empregos precarizados, flexíveis e informais, devido à necessidade de isolamento social, viu-se obrigada a parar de trabalhar ou, quando possível o exercício de alguma atividade laborativa, continuam em condições de superexploração.
Nesse contexto, foi realizada a expansão das ações assistenciais governamentais, as quais, embora tenham a sua importância no cenário atual do crescimento do desemprego e da pobreza, acabam por oferecer benefícios irrisórios, se calculadas as reais demandas da população. Em tal cenário, verificamos que a Assistência Social tem sido utilizada como estratégia de atuação do Estado brasileiro para a reprodução da força de trabalho a fim de não interromper o processo produtivo, conforme apontamentos de Boschetti (2016).
Frente às questões apresentadas, iremos focar nossa análise na configuração da Assistência Social no contexto de pandemia e nos desafios ao Serviço Social em tal cenário. Para tanto, realizamos pesquisa de natureza bibliográfica em livros, artigos e tese, que indicam como direção teórico-metodológica o referencial teórico crítico. Associado a esse debate, apresentamos análises oriundas da sistematização do exercício profissional realizada a partir de relatórios institucionais da Coordenação de um dos equipamentos de proteção social básica, o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), do município de Niterói, pertencente à região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Efetuamos, também, uma pesquisa documental em legislações, decretos e resoluções da política de assistência social e das ações emergenciais, com o objetivo de refletir sobre a condução da política de assistência social no contexto pandêmico7.
Sendo assim, realizamos na parte introdutória deste artigo uma reflexão da conjuntura brasileira contemporânea, para, em seguida, considerarmos as tendências da Assistência Social, ressaltando o momento de enfrentamento da pandemia da Covid-19, bem como os desafios profissionais postos ao Serviço Social, com destaque à atuação no CRAS.
A política de assistência social, assim como as demais políticas sociais, participa do processo de reprodução do capitalismo no Brasil, na medida em que integra o aparato estatal de intervenção para o enfrentamento das expressões da questão social, oriundas da relação contraditória entre capital e trabalho.
É importante ressaltar que, historicamente, a política de assistência social tem uma interface com o trabalho (BOSCHETTI, 2016), sendo tal relação acentuada frente à expansão e à heterogeneidade da superpopulação relativa num cenário contemporâneo de superexploração do trabalho. A trajetória histórica da Assistência Social no Brasil foi marcada pela forte presença de instituições filantrópicas na sua execução, além da marca caritativa e clientelista em suas ações.
É a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, [2021a]), no período da redemocratização brasileira, que a Assistência Social passou a integrar a seguridade social, em conjunto com as políticas de saúde e previdência social. Alcança, assim, o estatuto de política pública, de dever do Estado, com dotação orçamentária própria e com diretrizes de gestão, como a descentralização político-administrativa e a participação da população no exercício do controle social democrático. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), Lei nº 8.742 promulgada em 1993 (BRASIL, [2021b]), legitima a Constituição Federal (CF) ao trazer importantes definições em termos da sua gestão.
Atualmente, além da CF e da LOAS, a Assistência Social está organizada mediante os direcionamentos de relevantes documentos: Política Nacional de Assistência Social – PNAS, de 2004 e Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social – NOB-SUAS, de 2005 (BRASIL, 2009), que são os fundamentos para a alteração da LOAS, com a Lei do SUAS, nº 12.435/2011 (BRASIL, 2011). Outros documentos imprimem diretrizes ao funcionamento dessa política: Norma Operacional Básica de Recursos Humanos – NOB/RH (BRASIL, 2006), Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, de 2009 (BRASIL, 2014) e a NOB/SUAS de 2012 (BRASIL, 2012).
Conforme a PNAS citada, atualmente, a Assistência Social está organizada em dois níveis de proteção, básica e especial, sendo que a primeira envolve as situações em que os vínculos familiares não se romperam e a segunda são questões de maior complexidade vivenciadas pelas famílias. O foco de sua atuação são famílias em condição de “vulnerabilidade social e risco”, de modo a potencializá-las para superação de suas dificuldades. Os principais equipamentos públicos para atendimento da população são os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), que integram a proteção social básica, e os Centros de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), que constituem a proteção social especial.
De acordo com Schmidt (2015), as categorias teóricas utilizadas pela PNAS para a definição da população usuária da Assistência Social — vulneráveis e em risco — não contemplam a dimensão de classe trabalhadora dos sujeitos sociais que demandam o atendimento dessa política, por priorizar a atuação a situações específicas vivenciadas pela população, dificultando a análise dos elementos estruturais da relação capital-trabalho que produzem a desigualdade. Isso contribui para o entendimento das expressões da questão social apresentadas pelos sujeitos históricos, que são coletivas e oriundas da contraditória relação capital-trabalho, como questões individuais e familiares.
Além disso, atualmente, o SUAS convive com a implementação de programas paralelos, como o Programa Criança Feliz8, do Governo Federal, que se utiliza do aparato institucional do SUAS para a realização de suas ações e retoma práticas conservadoras à política de assistência social. Segundo o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS, 2017), alguns elementos se apresentam, como o reforço ao primeiro-damismo, à ênfase de uma perspectiva tradicional de família e de sua responsabilização por sua condição de pobreza e o incentivo à prestação de ações pela sociedade civil.
Ainda em tal contexto, ressaltamos, conforme Mota (2010) e Boschetti (2016), a articulação entre assistência social e trabalho, na lógica de reprodução do capitalismo na contemporaneidade. Essa relação ganha importância principalmente no contexto de trabalho precarizado existente no Brasil, acentuado neste momento da pandemia, no qual o Estado brasileiro tem em sua direção de atuação o campo assistencial, com ações focalizadas no combate à extrema pobreza, o que é comprovado pelo investimento estatal em tais ações (SCHMIDT, 2015) e no desinvestimento do próprio SUAS nos últimos anos (BOSCHETTI; BEHRING, 2021).
Neste contexto de crise estrutural do capitalismo que se agrava com a pandemia da Covid-19, acentuando as expressões da questão social na realidade brasileira, observamos o papel protagonista dado pelo Estado brasileiro à política de assistência social, pois, conforme Boschetti (2016, p. 175), ela possibilita “ao capital reduzir os custos da força de trabalho”, pois garante “minimamente a reprodução da superpopulação relativa”.
Yazbek (2018, p.106) destaca que “[...] as políticas sociais, em especial a Assistência Social, apresentam limites e constrangimentos, de ordem estrutural que agravam sua baixa efetividade.” Contudo, não se deve desconsiderar as possibilidades que essas guardam e que, “sobretudo, abrem espaços para o protagonismo e para a ação coletiva de atores políticos que lutam por outra ordem societária.” (Yazbek, 2018, p. 106). É nessa perspectiva colocada pela autora que ressaltamos as possibilidades de ações coletivas junto à população usuária realizadas por assistentes sociais nos equipamentos de proteção social básica, como os CRAS.
A pandemia oriunda da Covid-19 tem colocado novos desafios às administrações públicas e, desde então, leis, decretos e portarias vêm sendo publicados, dispondo de medidas para o enfrentamento dessa questão, inclusive no âmbito do SUAS9. Os municípios brasileiros, tendo em vista os preceitos constitucionais de autonomia administrativa, também se organizaram para o enfrentamento do cenário10.
Segundo as legislações, decretos e portarias que consideraram a política de assistência social como um serviço essencial na pandemia, o município de Niterói, por meio da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos11 (SASDH), manteve os serviços das Proteções Básica e Especial em funcionamento durante todo o período de pandemia, seguindo recomendações sanitárias, tais como: uso de EPI’s e álcool em gel, distanciamento mínimo entre os trabalhadoras/es e usuárias/os, teletrabalho para as/os servidoras/es e demais trabalhadoras/es maiores de 60 (sessenta) anos e para as/os que fazem parte dos grupos de risco em relação à Covid-19 e atendimento ao público com horário reduzido. Programas, serviços e benefícios foram criados e potencializados no contexto aqui abordado.
O CadÚnico tem sido utilizado como o principal instrumento do Governo Federal, dos governos estaduais e dos governos municipais para seleção e inclusão das famílias de baixa renda em programas, benefícios e serviços, e é no contexto da pandemia que o Cadastro Único ganha visibilidade em nível nacional, e não somente do público que tradicionalmente acessa ou acessava a política de assistência social.
Por meio da Lei 13.982/2020 (BRASIL, 2020d) e do Decreto 10.316/2020 (BRASIL, 2020e), o Governo Federal estabeleceu, para enfrentamento das situações sociais advindas da pandemia, o auxílio emergencial. O Artigo 2º da Lei 13.982 informava que, durante o período de três meses, seria concedido auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 mensais à/ao trabalhadora/os que cumprissem os critérios estabelecidos na legislação12.
Associado a essa iniciativa do Governo Federal, o município de Niterói criou o Programa Renda Básica Temporária enquanto instrumento de garantia de renda aos cidadãos de Niterói13. Tanto a coordenação quanto a operacionalização de tal Programa ficaram sob a responsabilidade da SASDH e um dos critérios estabelecidos para que as famílias fizessem jus ao benefício do programa municipal foi estarem em situação de “vulnerabilidade social” e inscritas no CadÚnico até 30 de março de 2020. A duração inicialmente prevista para três meses, teve seu prazo estendido até dezembro de 2020 e, em seguida, foi prorrogado até dezembro de 2021.
O município de Niterói concedeu ainda o Benefício Emergencial de Cesta Básica14, cujo público-alvo são famílias que não estavam inscritas no Cadastro Único e que se encontravam em situação de “insegurança alimentar”, “risco social” por desemprego ou impedidas de exercerem suas atividades laborativas, identificadas pelas unidades de CRAS, CREAS, Centro Pop, unidades de acolhimento, unidades escolares ou equipes de médico de família. Coube à SASDH a avaliação socioeconômica das famílias e das pessoas para concessão desse benefício.
Observamos, assim, a tendência contemporânea já apontada neste artigo, da política de assistência social se concentrar em ações de prestação de benefícios assistenciais que contribuam para a reprodução da classe trabalhadora brasileira, de modo que ela não ultrapasse as condições mínimas de continuar a se reproduzir e, portanto, vender a sua força de trabalho, num cenário de superexploração do capital.
Verificamos que as medidas adotadas alteraram substancialmente a rotina dos profissionais que atuam nos equipamentos de Proteção Social Básica, em especial os/as assistentes sociais, tornando-se a principal demanda apresentada pelos usuários nos meses que se seguiram.
Alguns dos desafios que os profissionais do SUAS de Niterói enfrentaram e ainda enfrentam no seu cotidiano de trabalho: equipes reduzidas devido ao afastamento de trabalhadoras/es do grupo de risco, instalações com pouca ou nula ventilação e espaços físicos que não garantem o distanciamento social recomendado, falta de EPIs adequados no início da pandemia, ausência ou insuficiência de auxiliar de serviços gerais nos equipamentos, desgaste físico e mental dado o volume de atendimentos diários, medo de contaminação pelo vírus e o afastamento de trabalhadoras/es contaminados. A pandemia acentuou limitações estruturais que a política de assistência social já possuía antes desse advento.
Com o anúncio dos programas municipais, o que presenciamos foi uma verdadeira corrida dos usuários aos CRAS, pois, diariamente, as filas passaram a se formar nas portas das unidades. Observamos, ainda, que a procura pela inscrição no Cadastro Único atraiu uma população que chegava à unidade com um discurso muito comum de que não sabiam o que era o CadÚnico, porque nunca precisaram de benefício do Estado, referindo-se principalmente ao benefício de transferência de renda do programa bolsa família.
Chamou-nos a atenção o aumento de trabalhadores que buscaram o atendimento no CRAS e que, segundo a definição de Marx, integram parte da superpopulação relativa. Muitas/os usuárias/os relataram, durante os atendimentos, que nunca necessitaram buscar a política de assistência social com o objetivo de obter algum benefício. Embora com ocupações irregulares e/ou informais, antes da pandemia, essas/es trabalhadoras/es conseguiam obter rendimentos para o provimento das necessidades básicas de suas famílias. Mas o isolamento social reduziu drasticamente as possibilidades de rendimentos dessas pessoas que recorreram aos programas de transferência de renda, auxílios e benefícios emergenciais para o seu sustento e de sua família. Tornou-se comum ouvir das/dos usuárias/os que o auxílio emergencial era a única fonte de renda de suas famílias.
Raichelis e Arregui sinalizam que “A pandemia ocorre em uma conjuntura em que já tínhamos um quadro cumulativo e alarmante de informalidade, desemprego e desproteção laboral no mercado de trabalho brasileiro [...] (RAICHELIS, ARREGUI, 2021, p. 140), o que foi comprovado pela realidade apresentada pela população usuária que acessava o CRAS.
Todos os elementos apontados incidem na atuação da/do assistente social frente à política de assistência social que integram as equipes de proteção social básica e especial, atuando tanto no atendimento direto à população como na gestão dos equipamentos públicos e do próprio SUAS.
A redução das equipes de referência nos equipamentos, devido ao afastamento dos profissionais do grupo de risco para a Covid 19; o aumento significativo de usuários diariamente e, a busca de orientações, associado ao desgaste físico, mental e emocional dessas/desses profissionais dificultaram, consideravelmente, a realização de um trabalho educativo de orientação, organização e mobilização da classe trabalhadora neste contexto tão imprevisível.
A demanda por inclusão de novas famílias no Cadastro Único, a atualização de dados das famílias já inscritas e orientações sobre os programas e auxílios emergenciais criados em virtude da pandemia, concentram a tônica do trabalho do Serviço Social nas unidades de proteção social básica, em especial nos CRAS.
Essa perspectiva de atuação fragiliza uma direção ético-política de práticas profissionais “[...] voltadas ao fortalecimento dos sujeitos coletivos, educação, mobilização e organização popular, em sintonia com os movimentos sociais e instâncias de organização política dos segmentos subalternos.” (IAMAMOTO, 2018, p. 83). Na medida em que o foco de ação das/dos assistentes sociais se concentram em atividades individualizadas e burocratizantes perante à população, de modo a atender as demandas emergenciais apresentadas, não se alcança no cotidiano profissional um momento posterior de reflexão coletiva e crítica junto ao público usuário e, assim, uma prática de mobilização e educação popular.
As/Os assistentes sociais, como trabalhadoras/res assalariadas/os e inseridas/os na dinâmica do mundo do trabalho, atendem também as requisições institucionais, as quais têm se acentuado nesse momento da pandemia, no atendimento às solicitações emergenciais da gestão municipal que envolvem o CadÚnico e as ações sociais focalizadas realizadas pela Secretaria que são impostas pela gestão. Isso dificulta a sistematização da prática profissional, os processos de planejamento, a leitura crítica da realidade social e das demandas das/dos usuárias/os e de articular outras possibilidades interventivas junto à população.
Outra tendência que podemos ressaltar, conforme o CFESS (2011, p.22) é a redução do CRAS “como um ‘grande plantão de emergências’, ou um serviço cartorial de registro e controle das famílias para acessos a benefícios de transferência de renda”. Tais aspectos dificultam o estabelecimento desses equipamentos públicos em seu potencial territorial junto à população atendida, em uma perspectiva de organização coletiva e mobilização das lutas e da atuação da/do assistente social nesta direção ético-política.
A teoria social crítica de Marx nos permite a compreensão de que a crise, estrutural e inerente a esse modo de produção, associada à crise sanitária, acentuou, no Brasil, os níveis de pobreza, precarização do trabalho e da condição de vida de seus trabalhadores, tornando as expressões da questão social ainda mais alarmantes.
As formas de enfrentamento do Estado brasileiro frente ao cenário apresentando apontam a falta de planejamento na condução das ações de combate à Covid-19 frente ao SUS, já anteriormente desmontado em termos de política pública, bem como a atenção em ações focalizadas no combate à pobreza, com as prestações assistenciais via SUAS, que também tem sido precarizado progressivamente nos últimos anos. O quadro exposto vincula-se a um processo maior de desmonte das políticas sociais operadas no país por meio do ideário (ultra) neoliberal.
Em tal cenário, a política de assistência social se vê elencada no rol de serviços essenciais, a fim de dar conta da reprodução da classe trabalhadora, sobretudo da superpopulação relativa estagnada, nos termos de Marx (2018). É essa superpopulação, composta por trabalhadores informais, terceirizados, sem direitos trabalhistas garantidos, que chega ao atendimento nos CRAS dos municípios brasileiros, em uma verdadeira corrida para acesso aos benefícios já citados e o mais recente Auxílio Brasil15.
Com as fragilidades da política de assistência social municipal, anteriores à pandemia, as equipes profissionais precisaram se reinventar em seu fazer profissional para dar conta das demandas apresentadas pela população. Muitos foram os desafios enfrentados, em especial para as/os assistentes sociais. Um dos maiores desafios foi organizar uma rotina que desse conta do volume de atendimentos diários, que não poderiam ser realizados de forma coletiva, o que dificultou um trabalho educativo e com algum grau de mobilização da classe trabalhadora e de reflexão crítica sobre esse contexto tão imprevisível, instalado pela pandemia. O volume de atendimentos furtou o tempo que seria relevante para identificar expressões da questão social que estavam para além da imediaticidade da demanda espontânea dos sujeitos.
Historicamente, a assistência social atua na linha de frente do enfrentamento às expressões da questão social, no atendimento direto às necessidades da população. Portanto, é uma política fundamental que precisa ser fortalecida enquanto direito da classe trabalhadora e dever do Estado, com financiamento público, e as/os suas/seus trabalhadores/trabalhadoras precisam ser valorizadas/os e ter condições concretas para a realização do seu exercício profissional no direcionamento ético-político de garantia de direitos à população.