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Infâncias, cultura escolar na roça e docência masculina
Childhoods, school culture in the countryside and male teaching
O Social em Questão, vol. 1, núm. 55, pp. 13-36, 2023
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Artigos



Recepción: 01 Agosto 2022

Aprobación: 01 Octubre 2022

Resumo: O artigo explora as impressões de crianças que estudam em escolas da roça acerca da presença de professores homens em seu cotidiano. Mostra as implicações dessa presença no desenho de fronteiras entre o que é permitido e o que não é permitido em termos de circulação e abordagem de temas por conta das questões de gênero e sexualidade. Particularmente questões ligadas à corpo e intimidade são objeto de interdito na relação desses docentes com as alunas. Estabelece conexões entre a possibilidade de masculinidades plurais na docência e um ambiente democrático, que estimule a equidade de gênero.

Palavras-chave: Relações de gênero, Docência masculina, Cultura escolar, Roça, Infâncias.

Abstract: The article explores the impressions of children who study in rural schools about the presence of male teachers in their daily lives. It shows the implications of this presence in the drawing of borders between what is allowed and what is not allowed in terms of circulation and approach to themes due to gender and sexuality issues. Particularly issues related to the body and intimacy are an object of interdiction in the relationship of these teachers with the students. It establishes connections between the possibility of plural masculinities in teaching and a democratic environment that encourages gender equity.

Keywords: Gender relations, Male teaching, School culture, Farm, Childhoods.

Das infâncias possíveis: contextos políticos e densidade democrática

O que as preocupações com a ordem democrática têm a ver com as infâncias e, mais ainda, com a infância vivida na escola, ou com as masculinidades plurais? A democracia tem história curta no Brasil, embora nossos mais de 500 anos de existência enquanto espaço colonizado pelos europeus. É apenas em 1945, com o final da ditadura Vargas, que se abre um período de regime que podemos chamar de efetivamente democrático. Ele é marcado por eleições regulares e livres, por forte crescimento de movimentos populares e sua presença efetiva nos grandes debates nacionais, pelo ativismo cultural, pelas inovações no campo da educação com a circulação das ideias de Paulo Freire, por intensa organização sindical, crescimento econômico, diversificação no campo dos partidos políticos. Todo esse vigor democrático foi dando forma ao debate das chamadas reformas de base, no governo João Goulart, que tinham como objetivo diminuir as enormes desigualdades e disparidades sociais que desde sempre marcavam a sociedade brasileira. Elas eram a reforma agrária, a reforma bancária, a reforma fiscal, a reforma urbana, a reforma administrativa, a reforma universitária. A reforma educacional já vinha em curso, e a promulgação da nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1961, é um marco desse processo.

Como todo movimento político de ampliação da democracia, da inclusão social e que busca diminuir desigualdades, esse encontrou opositores fortes, especialmente da parte do capital bancário, dos grandes proprietários de terra, do imperialismo norte-americano, de grandes industriais que mantinham monopólios, dos proprietários da grande imprensa, de boa parte da religião católica, do que muitas vezes chamamos de família tradicional, e das forças militares. Essa foi a articulação que liderou o conhecido golpe civil-militar de 1964, que vai inaugurar um período de ditadura política, com o uso intensivo da censura cultural, educacional, aos movimentos populares, e uso expressivo da tortura. Este primeiro período democrático brasileiro, iniciado em 1945, durou quase 20 anos, interrompido pelo golpe militar de 1964. A ditadura militar aprofunda a desigualdade brasileira e se prolonga até 1985, quando, embora ainda por eleição indireta, se elege um civil como presidente da república. A nova etapa de regime democrático brasileiro se consolida com a promulgação da Constituição Federal de 1988, acompanhada de forte protagonismo dos chamados novos movimentos sociais, como movimento feminista, movimento negro, movimentos LGBTQIA+, movimentos de trabalhadores rurais sem-terra, movimentos sociais de luta pela moradia urbana, movimento ambiental ou ecológico, diferentes movimentos sociais das diferentes vertentes das culturas juvenis, dentre outros. Como resultado, o índice de desigualdade diminui sensivelmente no Brasil e o país, inclusive, deixa o mapa da fome. Algumas das frases que marcaram tal período são “até as empregadas domésticas estão indo visitar a Disney” ou então “aeroporto está parecendo rodoviária, pela quantidade de pobres embarcando”. Tais frases têm visível conteúdo classista e racista e indicam o incômodo dos mais abonados com o sucesso econômico das classes baixas. O processo de consolidação da democracia brasileira sofre um ataque com o golpe de 2016 que quebra a normalidade constitucional e retira a presidenta legalmente eleita do poder. E se aprofunda com a eleição do atual presidente, um inimigo declarado não apenas da Constituição Federal de 1988, especialmente de seus elementos de constituição cidadã, como também da democracia, e um aliado das forças militares. Não por acaso, o Brasil retorna ao mapa da fome, e os índices de desigualdade crescem de modo sensível, bem como a precarização no mundo do trabalho. Falta comida na mesa das famílias, mas o agronegócio exporta soja para ser transformada em ração animal nos países europeus. E o número de bilionários brasileiros no ranking anual da revista Forbes se amplia.

O que tudo isso tem a ver com as infâncias, e o percurso dos infantis na escolarização? Pelo menos dois aspectos são importantes quando se comparam os quatro períodos indicados acima, dois com predominância de iniciativas democráticas e participativas (1945 a 1964 e 1988 a 2016) e dois em que o predomínio pendeu para o lado das restrições democráticas, em um deles com ditadura sem disfarces (1964 a 1985) e o outro, em que a erosão da democracia e dos processos de inclusão social é visível (2016 até os dias de hoje, 2022). O primeiro aspecto diz respeito ao investimento em educação. Nos períodos democráticos tivemos taxas mais elevadas de investimento em educação, com legislação que assegurava a distribuição dos recursos de modo mais igualitário e sem clientelismo, respeitando regras de necessidade social, e com repasses vinculados à projetos encaminhados por municípios ou estados. Nos dois períodos de ausência ou redução da democracia, tivemos um recuo sensível no investimento em educação, acompanhado do clientelismo mais declarado, com abandono de critérios técnicos.

O segundo aspecto nos interessa mais de perto. Viver a cultura escolar em períodos democráticos é completamente diferente do que viver a mesma cultura em períodos de restrição da democracia. O primeiro elemento dessa afirmação está ligado ao aspecto acima desenvolvido. Viver a trajetória escolar com garantia de merenda, materiais didáticos adequados, transporte escolar, professores e professoras bem remunerados, valorização da cultura escolar, prédios e salas bem construídos, limpos e com manutenção adequada, é completamente diferente do que percorrer a mesma trajetória sem a garantia de financiamento para tais equipamentos e serviços. Gostar da escola é algo que implica frequentar uma escola com qualidade, o que está em sintonia com o que a legislação indica, uma educação pública, laica, gratuita e de qualidade. O segundo elemento diz respeito tanto a sociabilidade no cotidiano escolar, quanto à possibilidade de estudar e discutir livremente temas em gênero e sexualidade, bem como outros temas polêmicos e questões sensíveis, e está em sintonia com o direito à educação, princípio constitucional. Em regimes democráticos, a liberdade de fazer perguntas e obter respostas, se amplia, permitindo que a escola cumpra seu dever de ensinar.

Em regimes democráticos, sempre mais inclusivos, a possibilidade de estudar em uma sala de aula com pessoas de diferentes pertenças religiosas, com opiniões políticas diversas, com diversidade racial, com possibilidade de livre expressão das identidades de gênero e sexualidade, com respeito aos diferentes conjuntos de valores culturais, é bem maior. Em contextos democráticos, há masculinidades plurais, há feminilidades plurais, a indicar os muitos caminhos para fazer seu gênero, e isso afeta a cultura escolar de modo positivo. Outro exemplo nos é dado pela família. A palavra família tem um poder evocativo muito forte, e a instituição família é central na vida das crianças. Em ambientes democráticos, como o Pós-Constituição Federal de 1988, tivemos um alargamento da noção de família, com a valorização das múltiplas configurações possíveis, o que inclui famílias extensas com avôs, avós e tios e tias morando juntos; famílias formadas por um casal adulto e filhos e filhas oriundos de casamentos anteriores dos cônjuges; famílias homoafetivas; famílias exclusivamente geridas por mulheres, dentre outros formatos. No período da ditadura militar, e nos últimos anos, com a erosão da democracia e a influência do conservadorismo cultural, valoriza-se a família no singular, formada exclusivamente por pai, mãe e filhos, um modelo de família branca, heterossexual, de classe média, cristã. Com isso, crianças podem vivenciar na escola uma desvalorização do modelo familiar em que vivem, com evidentes prejuízos em sua autoestima e consequência de exclusão na trajetória escolar.

Finalizamos este primeiro tópico com o conceito de densidade democrática, de Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2019, 2011, e PEREIRA & CARVALHO, 2008). Viver em uma democracia não é apenas cumprir o ritual anual das eleições. É necessário sentir sua presença, quase física, no dia a dia. Isso é a densidade democrática. É viver o dia a dia com a esperança do direito a ter direitos, inventar novos direitos a cada dia. É a garantia de não ser criminalizado pela expressão de suas ideias e opiniões, e ao mesmo tempo a percepção de que não se podem manifestar discursos de ódio como se fossem meras opiniões. Discursos de ódio são aqueles que revelam que, para que alguns vivam, outros devem morrer.

Uma democracia densa opera com o conceito de emancipação. Cada pessoa vive sabendo, e sentindo, que tem condições de se emancipar da situação em que está vivendo, e possibilidades de migrar para uma situação melhor. Há uma sensação praticamente física, e corporal, de se saber vivendo sem as ameaças de um estado de exceção, que suspende ou elimina direitos e instituições. A sensação de viver em um país com políticas públicas efetivas de proteção e cuidado é outra que se sente na pele, e diz sobre a densidade democrática. Proteção e cuidado dizem respeito, dentre outras, a segurança alimentar, essa claramente mais efetiva em períodos democráticos do que em períodos autoritários, é daquelas que se sente no corpo. Pensando na cultura escolar, a vida em uma democracia com densidade diz respeito a presença constante de estratégias de decisão coletiva, em que todos e todas podem dar sua voz, e se sentem incluídos e incluídas no desenho da solução apontada como a melhor. Um regime marcado por densidade democrática permite que as crianças e jovens, quando percorrem as etapas da escolarização, saibam que há um futuro para suas vidas profissionais e pessoais. O percurso escolar tem forte marca de preparação para o futuro. Se o sujeito vive em um contexto que lhe rouba o futuro, se o futuro é percebido como precário, de alta vulnerabilidade, sem esperanças de emprego e garantias de proteção social, boa parte do interesse pela cultura escolar se perde.

Por conta disso tudo, as infâncias possíveis de serem vividas guardam estreita conexão com a presença efetiva da densidade democrática, dentro e fora da escola. Não por acaso, é nos regimes democráticos que a cultura escolar incorpora as eleições para cargos de direção em seus regimentos, estimula a criação de associações estudantis, estabelece mecanismos deliberativos coletivos e com forte participação de todos os segmentos, escuta as culturas juvenis, encoraja alunos e alunas a participarem das discussões políticas do entorno social. Em sintonia com isso, ambientes democráticos oportunizam muitos modos de viver os atributos da masculinidade e da feminilidade, bem como as marcas de orientação sexual. E isso inclusive na docência masculina para crianças pequenas.

Das infâncias possíveis: contexto da cultura escolar

Uma criança quando começa a frequentar a escola passa a pertencer a uma cultura, a cultura escolar (JULIA, 2001), e a viver um cotidiano, o cotidiano escolar (VICTORIO FILHO, 2007). A cultura escolar é composta por um conjunto de regras, atividades, calendário anual, rituais de avaliação e progressão, ênfase na escrita, base na tradição científica e na transmissão do conhecimento acumulado, preocupação com a preparação para a vida futura, tanto no aspecto de formar um cidadão ou cidadã, quanto no sentido de lhe dotar de conhecimentos básicos necessários para o exercício profissional futuro, tais como as habilidades da leitura, da escrita, da interpretação de textos, do cálculo matemático, do conhecimento histórico e geográfico do mundo, dos saberes acerca das ciências naturais que lidam com a vida em seus aspectos químicos, físicos, biológicos e ecológicos. No interior desse leque de temas e questões, está o trabalho com os marcadores sociais da diferença gênero e sexualidade. Gênero e sexualidade são elementos estruturantes da vida social, e não meras questões de costumes. Se são elementos que estruturam o social, influenciam e são influenciados pelos contextos democráticos, ou autoritários. Estão presentes na cultura escolar, se manifestam de distintas formas, e precisam ser abordados e discutidos. Gênero e sexualidade são vividos no cotidiano escolar e podem ser vividos de modo mais produtivo quando em sintonia com densidade democrática. Passamos a palavra a uma cena literária:

Todas as crianças da classe estavam de lápis em punho desenhando cavalos, como a freira pedira – todas, exceto um menininho que, tendo terminado, deixava-se ficar em sua carteira sem fazer nada.

“Bem”, disse a freira, olhando o cavalo que o menino desenhara, “por que você não desenha mais alguma coisa, uma sela ou outra coisa qualquer?”

Poucos minutos depois ela voltou para ver o que o menino tinha desenhado. De repente, seu rosto ficou vermelho. O cavalo agora tinha um pênis e ele estava urinando no pasto.

Possessa, ela começou a bater no menino com as duas mãos. As outras freiras vieram correndo e também bateram no menino, derrubaram-no no chão, sem ouvir o que ele dizia, perplexo, entre lágrimas:

“Mas, mas... eu só estava desenhando o que eu vi, só o que eu vi!” (TALESE, 2004, p. 387)

A cena mostra como temas em gênero e sexualidade podem dar margem a pânicos no contexto de uma escola moralmente conservadora. As freiras deram sentidos praticamente pornográficos ao desenho feito pelo aluno. Não houve possibilidade de debater, sequer de escutar o que o garoto tinha a dizer. No contexto político brasileiro atual, um conjunto de movimentos de ordem reacionária, como "escola sem partido", "ideologia de gênero", “escola sem pedofilia”, movimentos contra o uso da linguagem inclusiva e outros colaboram decisivamente para obstruir o debate das questões em gênero e sexualidade na escola. Com isso, contribuem para ampliar a vulnerabilidade das meninas ao assédio sexual, dos alunos LGBTQIA+ à violência homofóbica e transfóbica, e colocam todos os jovens e todas as jovens em situação de vulnerabilidade em relação as infecções sexualmente transmissíveis. Se a escola não consegue ser o local para aprendizados acerca do corpo, do erotismo, da equidade de gênero, dos direitos humanos, da pluralidade dos modos de viver a masculinidade e a feminilidade, ela perde sua função, e o direito à educação, princípio constitucional, não se cumpre.

A cultura escolar se move em delicado equilíbrio entre expectativas da sociedade, desejos das famílias que ali matricularam seus filhos e filhas, demandas de grupos religiosos que fazem de gênero e sexualidade o mote de seus discursos morais, urgências em termos de saúde sexual e reprodutiva, cenários futuros em termos populacionais. A cultura escolar é mais diversa e heterogênea do que a cultura familiar ou religiosa. Isso deriva do fato que a escola é um espaço público. É importante para a criança transitar pelo percurso escolar, como ensaio para viver no espaço público. A escola não é uma continuação da família, ela é um ambiente de regras republicanas, no caso brasileiro. A escola tem autonomia, prevista na Constituição. Assim como famílias e instituições religiosas também têm autonomia. No caso da escola, é uma autonomia didático-pedagógica. O percurso escolar é regido por legislação, e atende a demandas de políticas públicas.

É natural que uma criança, ao ingressar na escola, se depare com um ambiente – regras, opiniões de colegas, jeitos de ser, conteúdos e rituais escolares – onde predomina a diversidade. Há crianças e jovens oriundos de famílias com configurações diferentes, e uma variedade de marcadores sociais da diferença: raça, classe, gênero, orientação sexual, pertencimento religioso, origem regional, ideário político, preferências partidárias, geração, deficiência, inserção em culturas juvenis diversas. O percurso escolar habilita a negociação das diferenças, ao exercício da alteridade, a prática da capacidade de construir acordos entre indivíduos e grupos cujas opiniões diferem (SEFFNER, 2015). Essa é uma das tarefas da cultura escolar, junto com a alfabetização científica. A cultura escolar é um local de extrema importância para que crianças e jovens percebam que o mundo é diverso, opiniões são diversas, costumes que parecem naturais em uma família são tidos como desconhecidos ou condenados em outra, e na escola esses jovens irão sentar-se um ao lado do outro e conviver por anos a fio, realizando tarefas escolares, trabalhos em grupo, exercícios de sociabilidade. A percepção de que o mundo é diverso é cognitivamente importante. Um ambiente democrático ajuda nessas negociações e permite a formação de sujeitos capazes de apreciar o espaço público como local de negociação das diferenças, exercício político dos mais importantes. Os regimes democráticos não são exatamente aqueles do consenso, mas são justamente aqueles nos quais as ferramentas para negociar os dissensos são as mais adequadas. A cultura escolar tem papel importante nisso.

Das infâncias possíveis: um contexto de docência masculina

As questões que tratamos nos tópicos acima encontram desfechos diversos na sala de aula. Tomamos aqui um recorte e apresentamos as falas de algumas crianças, com o objetivo de mostrar como elas se relacionam com o fato de ter um homem como professor nos Anos Inicias do Ensino Fundamental. Essa é uma questão que envolve gênero, sexualidade, masculinidades e educação, e permite saber como a cultura escolar é vivida, e como os tópicos que dão forma à democracia se materializam. Gênero e sexualidade são, no contexto político atual, fontes de pânico moral. A docência masculina para crianças, uma forma de masculinidade plural, também gera essa sensação. A produção de dados fez parte de pesquisa de mestrado de XAVIER (2017), em que a metodologia de inserção e diálogo com as crianças está mais detalhada. Reiterando o que acima já foi afirmado, buscamos saber como as falas das crianças refletem o contexto cultural no qual estão inseridas e suas produções de gênero. As escolas pesquisadas se localizam em ambiente da roça4 de um município do interior do Estado da Bahia. A conversa com as crianças seguiu sempre o mesmo roteiro, começando com perguntas mais gerais sobre a sua rotina, relação com a roça, até questionar sobre a escola e o fato de ter um professor homem. As crianças responderam as questões com gosto e boa vontade. O pesquisador que foi à campo é, como as crianças, baiano e da roça, e conhecido de algumas pessoas da região. Essas marcações identitárias facilitaram as pontes que foram construídas, com as crianças e com os adultos que também participaram da pesquisa (responsáveis pelas crianças, moradores da região, funcionários da escola, e os professores que eram os sujeitos centrais da investigação).

As entrevistas aconteceram após a assinatura do termo de consentimento dos responsáveis das crianças e da assinatura delas no termo de assentimento, explicação detalhada do que tratava o documento e sua contribuição para a pesquisa. As conversas com as crianças aconteceram depois de um período de conivência do pesquisador nas escolas. Essa convivência possibilitou a participação do pesquisador em reuniões dos professores com os responsáveis e as crianças, em brincadeiras no intervalo e conversas e momentos que não tinham roteiro estabelecido. O período de encerramento da pesquisa coincidiu com as festas do final do ano letivo, o que permitiu ao pesquisador, as crianças e aos responsáveis estarem juntos mais uma vez. Foi empreendido um cuidado ético para que nesse recorte da investigação a pesquisa se desse com as crianças, que elas fossem consideradas como sujeitos e produtoras de cultura, como nos ensinam as teorizações da Sociologia e Antropologia da Infância. No artigo O lugar das crianças como copesquisadoras: reflexões e provocações, (LEAL; LACERDA; SOUZA, 2021) chamam atenção para os cuidados políticos e éticos que devemos mobilizar em pesquisas que contam com a participação ativa de crianças,

Falamos da seriedade de um movimento científico que é político e ético, pois quando o/a pesquisador/a se relaciona com esse outro, que é a criança, assume a responsabilidade e o compromisso de efetivar nas pesquisas um mecanismo integrador delas com a sociedade. Trata-se de um esforço no qual se atenta para o específico, mas também para o transversal. Na medida que se propõe a “ir junto” com as crianças em investigações científicas, trabalha-se na luta pela efetivação do seu direito de estar presente produtivamente-reflexivamente-criticamente no mundo dos adultos, e, consequentemente, na cooperação para que aquelas sejam reposicionadas numa esfera maior, na sociedade como um todo (p.282-283)

De imediato, o que chamou a atenção foram as barreiras invisíveis que demarcavam o que é lugar de criança, e o que é lugar de adulto docente, dificultando diálogos educativos em gênero e sexualidade. Um tópico comum a todas as conversas foi certo estranhamento de terem um professor homem atuando na docência de crianças. Charone (2008) analisou os significados e sentidos dos discursos de um grupo de treze crianças da terceira série do Ensino Fundamental de uma escola pública do Pará, sobre profissão, atuação e gênero na docência. Os resultados apontaram que o principal sentido da docência feminina para as crianças entrevistadas está na combinação de atenção e paciência, e da docência masculina na autoridade. Pudemos observar a partir dos resultados da pesquisadora que as crianças reproduzem nos seus discursos as relações de gênero presentes no meio social que atrela a rigidez e a autoridade ao homem e o carinho e a paciência à mulher, o que coincide com nossos dados.

Em conversa com Angélica5, 9 anos, na Escola Bela Vista6, indagada sobre se teve professores homens, indica que é a primeira vez que isso lhe acontece. Sua escola fica distante do local onde mora, implicando subir ladeiras no deslocamento. Por conta disso, revela por vezes não gostar de estudar.

Tu tiveste outros professores antes desse professor? Só tive professoras em Jequié. Professoras mulheres? Foi. E como foi ter um professor homem pela primeira vez? Mudado. O que é mudado? Eu nunca tinha tido outro professor homem. E como foi chegar e descobrir que era um homem? Mais ou menos, eu fiquei com um pouquinho de medo. Medo por quê? Oxe, eu não conhecia ninguém. Mas se fosse mulher? Tu também ias ter medo? Não. Oxe, e por que não? Então tu ficaste com medo por que era professor? Por que o medo? (Silêncio. Lembramos que a menina poderia não responder, e encerrar a conversa, se assim desejasse. Mas ela permanece conversando após um curto silêncio.) É por causa que tem meu primo aqui, eu não gosto dele, ele é muito malvado, João (em tom que sinaliza que eu conheço o menino). Tu achaste que o professor também ia ser malvado? Não. Então, tu ficaste com medo do professor por quê? É por causa que no primeiro dia eu fiquei com medo... é por causa que aqui não tinha ninguém da minha família. Tá, mas e aí se fosse uma professora mulher, tu ias ficar com esse medo também? Não. Então qual é a diferença de um e de outro? (pausa demorada) Agora complicou. (rimos juntos) Te ajudo! Tu falaste que ficou com medo por ser um professor homem, mas e se fosse mulher não. Mas por que, se fosse mulher tu não terias medo? Porque mulher não dá medo? Oxe, por que eu sou mulher, sou uma menina e o professor é h-o-m-e-m (a palavra homem foi dita de modo a acentuar claramente as sílabas). (Angélica, estuda com o Prof. Jacarandá7)

O relato de Tulipa se aproxima da fala de Angélica. Ela conta que ao saber que seria um professor homem levou um susto. O motivo, segundo Tulipa, é que para ela homem não dava aula e nem gostava de estudar:

Tu sempre estudaste com professoras mulheres. A primeira vez que tu viste que ia ser um professor homem o que tu pensaste? Tomei um susto. Porque tomou um susto? Por que eu pensava que homem não dava aula. Você pensava que homem não dava aula, entendi. Você comentou com alguém sobre isso? Não. Seus pais também comentaram algo sobre isso? Não. Por que tu pensavas que homem não era professor? Sei lá, porque eu acho que homem não gosta de estudar. (Tulipa, 9 anos, estuda na escola Bela Vista com o prof. Jacarandá)

No decorrer da conversa, Tulipa diz preferir uma professora mulher, porque elas brincam com as crianças. O mesmo critério foi usado por Girassol. Um dia antes da entrevista gravada, estávamos no pátio conversando, e foi perguntado se ela gostava de ter um professor homem. Ela respondeu que não. Segundo ela, o professor era um chato, que só sabia brigar e que não brincava. Na conversa gravada ela no primeiro momento disse que gostava e que achava legal, mas ao recordá-la do que havia dito antes, parece que se sentiu à vontade, e disse “um saco!”:

Teve outro professor além desse? Não. Só a prô Nice. E o que tu achas de ter um professor homem? Muito legal. É? Ontem tu me disseste que não gostava. Eu sei [ri] Eu acho legal. Mas porque tu ontem disseste que não gostava? Pode dizer a verdade. Não, não gosto não. Um saco. Por quê? Porque não. Tu preferes ter uma professora mulher? É. Tu achas que tem diferença entre professor homem e professora mulher? Eu prefiro a prô Nice. Por quê? Ela deixa a gente brincar muito, dançar. E o professor não? Não. (Girassol, 7 anos, moradora de Flores Raras, estuda com o professor Ipê)

A reclamação dos professores homens não brincarem foi recorrente nas falas das crianças e também registrada no caderno de campo. Os professores que participaram da pesquisa não realizam esse movimento, brincar não faz parte da rotina de nenhum dos três. Em artigo sobre essa mesma pesquisa (XAVIER, SEFFNER; SILVEIRA, 2020) discutimos detidamente as questões das masculinidades e como essas construções atravessam os aspectos pedagógicos e didáticos dos três professores. Evidenciamos que foi possível observar como a cultura e normatizações sobre as masculinidades, sexualidade e gênero têm reflexo direto na atuação dos professores que realizam movimentos para não serem lidos como docentes de crianças pequenas, tratando-as e lidando com elas como adultos. Os três professores alegaram nas entrevistas que eles próprios achavam melhor que as crianças pequenas tivessem professoras mulheres, por, segundo eles, elas terem mais facilidades com a criatividade, com o cuidar, com lúdico e por diferente deles, elas não terem suas sexualidades vigiadas e questionadas. Elementos que foram compreendidos por nós como causadores de um prejuízo à infância, considerando que não deve haver uma ruptura drástica entre a Educação Infantil e os Anos Iniciais, assegurando que as crianças nessa fase escolar tenham garantidos seus direitos de acesso ao lúdico, ao cuidado, ao sensível, conforme prevê o parecer sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 9 anos (BRASIL, 2010). Nessa direção afirmamos que

O elemento mais destacado em nosso ver é que a operação pedagógica posta em ação para garantia das masculinidades dos três informantes constituía fortemente na tentativa de criar o aluno, na contramão da criança, enquanto um aluno já adulto, sem possibilidade de conjugar ser aluno e ser criança, comprometendo com isso a qualidade pedagógica das aulas. (XAVIER; SEFFNER; SILVEIRA, 2020, p. 385)

Tal apontamento contrasta com outras pesquisas, como Flores (2000) na qual há o registro dos professores homens jogando futebol com as crianças (inclusive são empurrados pelos/as colegas para esse espaço); de um professor que participou da pesquisa de Sayão (2005) que brincava com as crianças e até mesmo fabricava brinquedos com elas; e de Alegre (2014) que sinalizou que a figura do professor homem, além da ordem, se associa às atividades recreativas e físicas. O estranhamento em ter um professor homem, na explicação de outra criança, se dá não somente por ter tido apenas professoras mulheres antes. Mas evoca a experiência da mãe que nunca teve um professor homem na universidade.

Tu já tiveste outros professores antes desse? Tive, a pró Joana que eu estava no primeiro ano, depois eu tive a professora Cleide quando eu estava no segundo ano e agora eu tenho o professor Jacarandá. Então sempre foram professoras mulheres? Isso. E o que você acha de ter um professor homem? Como foi que tu viste essa novidade, quando ele chegou? (pausa longa) eu não, eu não sei ainda. Como foi, tu sempre tiveste professoras mulheres, aí chegou um professor homem, como foi que tu reagiste? Foi um pouco estanho, sabe por quê? A minha mãe nunca estudou com um professor homem, só estudou com um, que só foi em uma faculdade um dia. Aí, não tinha o costume de estudar com um professor homem, aí estou aqui me acostumando aos poucos. Aos poucos? Ainda não se acostumou? Ainda não. (Pétala, 9 anos, moradora da comunidade Bela Vista e estuda com o Prof. Jacarandá)

É possível depreender do relato o quanto a ausência de referência da imagem de um professor homem na vida escolar da mãe alimentou esse espanto, a ponto de, embora nesse momento da pesquisa já estivéssemos no segundo semestre do ano letivo, ela ainda não havia se acostumado com a ideia de ter um professor homem. Se até o século XIX homens eram figuras comuns nas salas de aula, com a feminização do magistério e a generificação das profissões os professores homens que rompem essas fronteiras são vistos com estranhamento, por parte de toda comunidade, incluindo as crianças. Isso nos fala de um contexto em que o acesso a profissão docente não se encontra democratizado. Outro ponto apresentado por Pétala é a aproximação entre as meninas e a professora, o que segundo ela não pode acontecer com o professor homem. Ela diz: “Olha bem, por que assim, as mulheres, a gente fica sempre junto com as professoras, de primeiro a gente sempre ficava juntas. Agora com homem a gente não pode ficar muito perto”. Nessa mesma direção comenta:

Então tu começaste estudar com um professor homem e percebeu que era diferente. É diferente. Por quê? A professora mulher, a gente abraça mais e o professor homem a gente não abraça. Abraça quando ele está fazendo aniversário, quando na musiquinha depois de orar. Mas quem disse que não pode abraçar o professor? Pode, mas sei lá... as meninas não gostam de abraçar ele. (Tulipa)

Na continuação da conversa com Tulipa indagamos da possibilidade de trocar o professor homem por uma professora mulher. Ela, no primeiro momento, diz que não, mas logo se corrige e diz preferir mulher. Diz que se sente mais à vontade para falar de “coisas íntimas” com uma professora e relata uma história que o professor já havia contado ao pesquisador. Segundo Tulipa, eles não contaram o ocorrido para o professor, por ele ser homem, e elas não se sentirem à vontade. Sem saber o conteúdo da conversa um do outro, o professor contou o mesmo episódio e a mesma justificativa dada pelas meninas não terem lhe contado. Ao que parece a compreensão generificada do afeto, do acolhimento e do ouvir sensível é compartilhada entre adultos e crianças. É possível compreender que “ao longo do seu desenvolvimento mediante a diversidade de situações e comportamentos que implica com seus iguais, a criança aprende nos jogos dos gêneros os comportamentos que ela significará como masculino ou feminino” (CAETANO, 2016, p.193). O episódio referido se deu quando uma colega comentou que um menino havia passado o lápis nas genitálias de uma menina (o professor e Tulipa se referem como partes íntimas, talvez isso justifique ela associar depois íntimo a corpo). Toda a fala de Tulipa é marcada por uma visão bem binária em relação aos gêneros. Para ela não é possível falar com o professor pois “coisas íntimas é feminina”:

E se você pudesse mudar, você preferia estudar com professora mulher ou com professor homem? Qualquer coisa, mas acho que a professora é melhor para ensinar do que o homem. O que tu percebes que é melhor? Deve ser porque ela é mulher e o professor é homem e a gente fica com vergonha, às vezes os meninos aprontam com a gente, a gente conta para a mãe e não fala com o professor, aí as mães vêm. Apronta como? Oxe apronta, faz um monte de coisa. E o que é um monte de coisa? Me dá um exemplo, uma história que já tenha acontecido. Eu mesmo, aí Pedro e Talita, Fernanda que inventou. Aí Fernanda falou que Pedro pegou o lápis e passou nas partes intimas de Talita, aí ela falou para a mãe e aí veio aqui e falou com o professor. E porque não falou direto para o professor? Deve ser que tem... eu tenho vergonha, eu falei direto para Talita. Você tem vergonha por quê? Por ele é homem. Mas ele é o professor. É... mas para professora a gente fala tudo. Por quê? Porque a professora é mulher, eu acho que os meninos homens, eles falam para o professor e as meninas falam para a professora. Então se pudesse escolher professora ou professor tu preferias? Professora. Por quê? Por que eu, a gente falava as coisas para ela. Mas alguém disse que não pode conversar algumas coisas com o professor? Então. Eu tenho vergonha... É que coisa intima é feminina. E o que é coisa feminina? Intimidade, coisa da gente, do corpo. Entendi.

Considerando intimidade enquanto vinculada a relato de si, emoções, segredos, redes de amizade, podemos questionar qual discurso não dito está por trás dessa ideia de que os professores homens não podem ouvir intimidades. O argumento de Nolasco ajuda a entender como esse discurso está atravessado pela relação de gênero: “[...] Em nossa cultura, a denominação ‘intimidade’ está associada ao universo da mulher: íntimo, que está muito dentro; que atua no interior, muito cordial, afetuoso; ligado por afeição e confiança” (NOLASCO, 1997, p. 20). Há nesse processo uma relação entre público/privado, sendo historicamente o privado considerado da ordem do feminino e lugar do íntimo, assim, essas meninas reproduzem a compreensão de que determinados assuntos só se podem falar para as mães ou para alguém que culturalmente é apresentada como sua equivalente, a professora. Os argumentos de Carvalho (1999) nos ajudam a compreender tais fronteiras dos gêneros e sua repercussão no trabalho docente:

Nos termos da polaridade hegemônica entre masculinidade e feminilidade, o trato com as emoções e a ênfase nas relações interpessoais é terreno feminino, o que nos permite apreender uma das dimensões da feminização da escola primária e seu ensino, percebidos como instituição e ocupação de gênero feminino, independentemente do sexo de quem os corporifica. (CARVALHO, 1999, p. 21)

A mãe de Pétala, com quem dialogamos, afirmou que não havia problema a sua filha estudar com um homem. Posteriormente, comentou ter refletido, e que ficou pensando como seria se o primeiro sangramento de Pétala ocorresse na sala com um professor homem, e que ela tinha concluído que nessas situações seria melhor uma mulher como professora. A questão da menstruação também apareceu na fala de outra mãe: “Optaria por uma mulher. Por quê? Por que as crianças dialogam melhor. Como? Por que quando chega assim, quando chega assim em certa fase, tipo assim período menstrual, entendeu? A professora explica com mais detalhe, tá entendendo?” (Margarida, mãe de uma das crianças). Os professores Eucalipto e Jatobá também abordaram essa questão, relataram que duas meninas tiveram o primeiro sangramento em suas aulas. Eucalipto disse que não se dirigiu a criança pois sabia que ela “ia morrer de vergonha”, então ele saiu da sala e chamou uma colega docente. Jatobá chamou uma vizinha da escola, ou seja, alguém sem nenhum vínculo com a instituição e muito provavelmente sem formação docente. Os dois educadores disseram que não ficavam à vontade em tocar no assunto. Esse afastamento pode ser interpretado como uma afirmação das suas masculinidades, ao manterem-se distantes das ‘coisas íntimas’, e também refletem o pânico em torno do contato corporal quando é professor homem:

[...] nas ações do cuidar, há restrição apenas para os homens, pois as professoras não representam nenhum tipo de ameaça para as crianças na medida em que trazem consigo a vocação para a maternidade e elas são, por natureza, quem protege e cuida dos filhos com desvelo e são incapazes de cometer maldade contra crianças. (RAMOS, 2011, p. 10)

Na fala do professor Jacarandá é possível observar que o seu entendimento se aproxima daquele das meninas. O educador fala “alguns fatos específicos de mulher, elas não vão se abrir com nós professores homens, né”, quando relata o episódio contado por Tulipa. Com a presença de professores homens em sala de aula o contato com o corpo, ou o simples falar sobre o corpo, é visto como um problema. A maioria das pesquisas que abordam essas questões foram realizadas com foco na Educação Infantil, na qual a possibilidade de contato corporal entre o professor e as crianças, na relação do cuidar, é mais provável, uma vez que precisa ajudar no banho e no banheiro e em outras situações. Nos Anos Iniciais as crianças já apresentam certa autonomia, mas as conversas sobre o corpo, as curiosidades que compõem essa fase da vida ao lado do contato físico aparecem como pontos de tensão quando se tem um homem como professor. Ser professor de adolescentes, embora o estranhamento seja menor, também é passível de comentários, como apontaram Jatobá, Eucalipto e a Profa. Hortência, ao pensar a proximidade de um homem mais velho com meninas adolescentes. O mesmo não acontece com as mulheres, que inclusive podem chamar seus alunos de “meu amor” e “meu lindo”, segundo a Profa. Hortência. O Prof. Eucalipto, que leciona em séries maiores, relatou já ter sido chamado na secretaria da escola por suposto envolvimento com uma adolescente. O professor explicou que isso se deu apenas pelo fato dele ser atencioso com seus alunos e alunas. Assim, ao que parece, o homem só não causa estranhamento quando leciona para adultos, mas fora desse espaço há questionamentos, estranheza e vigilância. Isso diz de uma sociedade em que a ordem do gênero não é democrática, e é vivida em profunda situação de desigualdade. Tal situação constrange o desempenho masculino a rígidas definições.

As boas trajetórias da infância escolarizada são aquelas marcadas pelo respeito à diversidade, pelo convívio fraterno entre diferenças, pela capacidade de diálogo na busca de soluções coletivas. Uma cultura escolar marcada por tais valores é uma cultura escolar em sintonia com a democracia. No que se refere a questões e aprendizados em gênero e sexualidade, situações em que um dos gêneros – o masculino – provoca constrangimento em sala de aula, como acima analisamos, indicam baixa densidade democrática, e podemos até mesmo afirmar que se constituem como uma recusa ao direito à educação, pois impedem que as meninas dialoguem com um professor homem acerca de questões em gênero e sexualidade. A desigualdade entre os gêneros, marca importante da sociedade brasileira, precisa ser enfrentada na escola. Para tanto, a cultura escolar precisa ter políticas públicas de incentivo à abordagem de tais temas em seu currículo. Isso diz de uma sociedade, e de um governo, que se dispõem a este enfrentamento, que se dispõem a construção de um regime de equidade de gênero. Isso diz de uma proliferação dos modos masculinos de ser.

Referências

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CARVALHO, Marília Pinto de. No coração da sala de aula: gênero e trabalho docente nas séries iniciais. São Paulo: Xamã, 1999.

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NOLASCO, Sócrates Álvares. Um homem de verdade. In.: CALDAS, Dario (Org). Homens. São Paulo: Ed. SENAC, 1997

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RAMOS, Joquim. Um estudo sobre os professores homens da educação infantil e as relações de gênero na rede municipal de Belo Horizonte - MG. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.

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Notas

1 Professor na área dos estudos em gênero, sexualidade e educação, vinculado ao PPGEDU UFRGS, coordenador do GEERGE. E-mail:fernandoseffner@gmail.com. Nº http://orcid.org/0000-0002-4580-6652.
2 Licenciado em Letras, Mestrado em Educação, Doutorado em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: jeffersonbxavier@hotmail.com. ORCID nº http://orcid.org/0000-0001-9177-4914.
3 www.contioutra.com/o-viajante-clandestino-mia-couto/ Acesso: 18 maio 2022
4 A roça foi compreendida enquanto lugar que apresenta seus próprios discursos nas construções de gênero e sexualidade, que por sua vez se relacionam com as produções discursivas em torno da presença dos professores homens. Rios (2008) defende roça como uma categoria teórica por carregar em si toda uma polissemia e uma construção histórica/epistemológica. Roça diferencia ainda de uma ideia romântica que a nomeação campo muitas vezes carrega.
5 Os nomes das crianças são fictícios, e designam flores típicas da região.
6 Os nomes das escolas são fictícios.
7 Os professores foram nomeados com designações de árvores do contexto local.

Notas de autor

1 Professor na área dos estudos em gênero, sexualidade e educação, vinculado ao PPGEDU UFRGS, coordenador do GEERGE. E-mail:fernandoseffner@gmail.com. Nº http://orcid.org/0000-0002-4580-6652.
2 Licenciado em Letras, Mestrado em Educação, Doutorado em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: jeffersonbxavier@hotmail.com. ORCID nº http://orcid.org/0000-0001-9177-4914.


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