Resumo: Neste artigo, objetivamos analisar diferentes aspectos que compõem a defesa do masculinismo enquanto uma invasão. Para tal, apresentamos o caso da invasão do Capitólio nos Estados Unidos da América em janeiro de 2021 como um exemplo demonstrativo e paradigmático que sustenta a tese aqui levantada. Elencamos seis eixos de análise que possibilitam um ensaio preliminar sobre camadas ético-políticas pouco evidenciadas pelos principais meios de comunicação que se propuseram a analisar o caso ao redor do mundo: gênero/sexualidade; branquitude; nacionalismo; colonialismo; antropocentrismo; e carnofalogocentrismo. Um ensaio combinado de tais aspectos possibilita uma avaliação preliminar atenta sobre os signos expressos na topografia (nostálgica) do masculinismo como uma estratégia de invasão.
Palavras-chave: Masculinismo, Invasão, Nacionalismo, Branquitude, Antropocentrismo.
Abstract: In this paper, we aim to analyze different aspects that are part of the defense of masculinism as an invasion. To this end, we present the episode of the Capitol invasion in the United States of America in January 2021 as a demonstrative and paradigmatics example of the thesis presented here. To this end, we list six axes of analysis that allow a preliminary essay on ethical-political layers little evidenced by the main media that proposed to analyze the case around the world: gender/sexuality; whiteness; nationalism; colonialism; anthropocentrism; and carnophalogocentrism. A combined essay on such aspects allows a careful preliminary assessment of the signs expressed in the (nostalgic) topography of the masculinism as an invasion strategy.
Keywords: Masculinism, Invasion, Nationalism, Whiteness, Anthropocentrism.
Artigos
O masculinismo como uma estratégia de invasão: um ensaio crítico1
The masculinism as an invasion strategy: a critical essay
Recepción: 01 Agosto 2022
Aprobación: 01 Octubre 2022
No dia 06 de janeiro de 2021 os canais de televisão e a internet pararam para assistir às manifestações de extrema direita estadunidense que culminaram na “invasão do Capitólio”, prédio localizado em Washington D.C e que abriga o centro legislativo dos Estados Unidos da América5. Um grupo de manifestantes, impulsionados pelo discurso de Donald Trump6, presidente prestes a deixar o cargo após perder a corrida eleitoral, carregavam bandeiras, entoavam gritos nacionalistas frente à Casa Branca, simulando aquilo que poderia ser lido como uma tentativa de golpe de Estado ou, pelo menos, uma encenação de ameaça democrática (MOITA-LOPEZ; PINTO, 2020).
Naquele mesmo dia, Donald Trump sinalizou concordância indireta com a invasão quando solicitou, em sua conta particular do Twitter, que seus apoiadores voltassem seguros para casa. Trump também reforçou o discurso de ter havido fraude na eleição presidencial dos Estados Unidos da América, da qual havia saído derrotado por Joseph Robinette Biden Jr. Algumas horas depois da publicação, a plataforma Twitter bloqueou a postagem de Trump, o que significava que sua postagem não podia ser curtida ou mesmo repostada por seguidores e apoiadores. Segundo o Twitter, a razão do bloqueio se dava em função da mensagem de Trump carregar informações falsas. Após algumas horas, o Twitter decidiu por uma medida ainda mais rígida e abrupta, suspender a conta de Trump por 12 horas7,8.
O fato é que o caso da invasão do Capitólio gerou muitos debates entre cientistas políticos, jornalistas e outros especialistas ao redor do mundo. Além disso, as imagens e vídeos da invasão rapidamente tomaram as redes sociais e estamparam todos os principais meios de comunicação em massa. Dentre todas elas, a figura de um homem, Jake Angeli – pseudônimo de Jacob Anthony Angeli Chansley; um manifestante apoiador de Trump que usava indumentárias que pareciam remeter à estética vikings – não somente chamou a atenção, mas se tornou ele mesmo o símbolo daquele episódio.
Imagem 1 – Na foto: Jake Angeli
Fonte: Getty Images
#ParaTodoMundoVer: (Na imagem, observa-se na parte central o rosto de um homem. Ele é branco e tem o seu rosto pintado em referência às cores da bandeira dos Estados Unidos da América – vermelho, branco e azul. Ele possui barba cheia e tem seu rosto inclinado para a esquerda. Seus olhos estão fechados e a boca aberta como se estivesse gritando. O homem usa um chapéu de pele animal de onde saem dois chifres. O fundo amarelado está desfocado e à frente do homem é possível ver a ponta do mastro de uma bandeira.)
Em uma entrevista para a BBC News Brasil, Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath, no Reino Unido, afirmou que a cena merecia um olhar atento uma vez que retratava aquilo que a autora denominou como “tribalismo masculino” ou “masculinismo”. Para Pinheiro-Machado:
o princípio desses grupos tribalistas masculinos, ou masculinistas, é primeiro um ódio às mulheres, uma ideia de que as mulheres são objetos para reprodução humana simplesmente. Muitos dos grupos masculinistas norte-americanos defendem que as mulheres têm que ser caçadas, literalmente, e que nós só servimos para reprodução (A SEITA, 2021).
A professora destaca, ainda, que a vestimenta que o manifestante usava, paramentada com couro, chifres e pele, hasteando a bandeira dos Estados Unidos da América, tinha como propósito reforçar dois pilares com os quais esse movimento está comprometido: virilidade e caça (A SEITA..., 2021). Ou seja, a imagem em questão carrega traços que expressam valores não somente conservadores, mas que aqui almejamos identificar como signos do Carnofalogocentrismo e branquitude que moldam uma concepção de nacionalismo estadunidense (GOSINE, 2010; GAARD, 2011; PUAR, 2017; BUTLER, 2018; GILLESPIE, 2020).
Neste trabalho, partiremos do conceito de masculinismo proposto por Pinheiro-Machado para lançar um olhar ecofeminista sobre o episódio da invasão do Capitólio. Procuraremos, portanto, não somente entender o masculinismo, mas analisar a iconografia masculinista da invasão do Capitólio à luz de um Ecofeminismo Queer. Desse modo, evidenciamos o Carnofalogocentrismo, o Antropocentrismo e a Branquitude como pontos centrais para a discussão ético-política em jogo na masculinização do episódio da invasão do Capitólio, dando enfoque à virilidade, raça e caça como fundamentos do nacionalismo enaltecido na referida ação.
Pensar a invasão nos remete, indubitavelmente, a refletir sobre os processos coloniais que submeteram povos originários e escravizados à expansão europeia sobre as Américas. Conforme aponta Ailton Krenak (2021), na introdução da obra Abya Yala! Genocídio e sobrevivência dos povos originários das Américas, organizada por Moema Viezzer e Marcelo G. Nadon, a invasão é um inventário de matanças que emoldura uma cartografia da morte, baseada, sobretudo, na ideia de civilização e humanidade. A civilização e a humanidade, neste sentido, seriam dois componentes fundantes da invasão enquanto uma ideologia que submete os territórios – feminilizados – e povos racializados às condições de propriedade daqueles que se autoproclamam descobridores e detentores do poder. Neste sentido, compete investigar a invasão enquanto um ritual de dominação masculinista e, sobretudo, supremacista branco9.
No caso da invasão do Capitólio, em especial, compensa compreender toda a cena que compõe o episódio, a fim de entendermos o corpo, o deslocamento e a indumentária que adentraram no prédio legislativo estadunidense. Ou seja, os signos do nacionalismo dispostos na figura de Jake Angeli, um homem branco que imprimia a ideia de uma cisheteronormatividade mítica, lendária; uma imagem que retrata uma nostalgia fantástica de um lado e, por outro, um desejode futuro.Para tal, neste primeiro instante, tentaremos relacionar o encontro entre autoras(es) dos estudos das masculinidades cujo propósito é o de nos auxiliar na imagem do episódio da invasão do Capitólio.
Compensa, ainda, registrar que o discurso da recusa do resultado das eleições e que, portanto, colocava em xeque a credibilidade dele, foi um dos aspectos motivadores10 que impulsionou os manifestantes na invasão do Capitólio. Muitos manifestantes carregavam faixas que comparavam Trump ao personagem cinematográfico Rambo, em que esse portava um fuzil.
Imagem 2 – Na foto: manifestante carrega uma bandeira de Trump caracterizado como Rambo
Fonte: BBC11
#ParaTodoMundoVer: (No canto direito da imagem é possível ver um homem branco usando óculos escuros e um gorro nas cores da bandeira dos Estados Unidos da América. Ele veste um casaco vermelho com capuz cinza e carrega uma mochila nas costas. Este homem carrega uma bandeira aberta, localizada do lado esquerdo da imagem. A bandeira é preta e possui no seu centro uma montagem na qual se vê a face do ex-presidente Donald Trump em um corpo musculoso portando uma arma. Ao fundo, observa-se alguns manifestantes com bandeiras dos Estados Unidos da América, e, na parte superior, o céu nublado.)
Diante da imagem anterior, podemos deduzir a força que os estereótipos que associam intimamente a masculinidade ao poder resultam na reafirmação do que Raewyn Connell (1995) chamou de masculinidade hegemônica como sendo o que possibilitou a hegemonia do homem branco ocidental. Tendo como marcadores, por exemplo, a branquitude e a heterossexualidade como reflexo dessa hegemonia sobre as outras masculinidades mencionadas pela autora, se propondo a explicar por que os homens oprimem as mulheres e outros grupos vulnerabilizados.
O rosto do ex-presidente dos Estados Unidos fixado no corpo do personagem cinematográfico Rambo sugere não somente uma nostalgia cultural, afinal, trata-se de um personagem icônico na cultura estadunidense dos anos 80, mas também traz para o epicentro da política estadunidense a ideia de um estado de guerra. A hipermasculinidade associada ao personagem, uma espécie de super-herói sem capa ou superpoderes, parece buscar aproximar Trump de Rambo, um personagem veterano do Vietnã e “programado para matar”12 seus inimigos.
Dentre os “invasores” do Capitólio estavam militantes da supremacia branca, como Jake Angeli, cujo nome é Jacob Angeli Chansley, membro do QAnon (grupo conspiratório da extrema direita nos Estados Unidos). Conhecido por estar com o rosto pintado com a bandeira dos Estados Unidos e vestindo um chapéu de pele com chifres, Chansley estampou os jornais pelo mundo afora, inclusive a imprensa brasileira. Diversos canais da mídia o apelidaram de “extremista Viking”13.
Segundo a CNN Brasil (2021), em matéria assinada pela jornalista Heloisa Vilela
O Congresso precisou ser evacuado para que os manifestantes fossem retirados e a votação pudesse prosseguir. Apesar disso, parlamentares republicanos chegaram a dizer que os invasores eram “turistas” visitando o Capitólio e negando a existência da invasão, o que levou um dos policiais depoentes a socar a mesa e gritar com congressistas (CNN, 2021, s/p).
Conforme mencionado na matéria, o fato de alguns parlamentares utilizarem a expressão “turistas” ao invés de “invasores” sugere a necessidade de compreensão dos significados dos corpos em trânsito no Capitólio. Ou seja, é preciso identificar o que faz com que alguns corpos, mesmo diante de um episódio considerado de invasão, não sejam lidos ou recepcionados enquanto invasores, mas turistas por agentes do Estado. Em um primeiro momento, poderíamos suspeitar que a figura do homem branco sustentando os signos do nacionalismo estadunidense seria uma espécie de cartão de entrada livre. Neste caso, não somente congressistas, mas o próprio centro legislativo recepciona cordialmente aquele corpo masculino e branco orgulhosamente nacionalista; algo impensável se formos considerar qualquer outro corpo queer. Em um segundo instante, compensa decifrar mais cautelosamente as próprias marcas que formam o Estado-nação.
Na obra Quem canta o Estado-nação: língua, política, pertencimento, de Judith Butler e Gayatri Chakravorty Spivak (2018), “o Estado diz respeito a estruturas legais e institucionais que delimitam certo território (embora nem todas essas estruturas pertençam ao aparato do Estado)” (BUTLER, 2018, p. 16). Assim, do Estado, espera-se que forneça a matriz que estabelece as obrigações e prerrogativas da cidadania.
Dessa forma, para Bulter (2018), o Estado é a fonte do pertencimento e, consequentemente, da produção de não pertencimento. Ou seja, o Estado agrega e destitui. Sendo assim, para a autora:
se o estado é o que ‘agrega’, com certeza é também o que pode desagregar e de fato desagrega. E se o estado agrega em nome da nação, evocando – forçosa senão poderosamente – certa visão de nação, então ele também desagrega, libera, expulsa e bane (BULTER, 2018, p. 17).
A esse processo, Butler (2018) dá o nome de “descontido”. Para a autora, descontido é uma formação particular de destituição, a qual se pertence através do despertencimento, ou seja, através de um conjunto de disposições que caracterizam um modo de não pertencimento (BUTLER, 2018). Em sequência a essa compreensão, Butler (2018) afirma que o Estado-nação é uma formação política que requer o banimento e a destituição periodicamente. Para a autora, é através dessa característica que o Estado-nação fundamenta sua existência e a legitima para si mesmo através do descontido das minorias políticas que o formam.
Não por acaso, as autoras Butler e Spivak se debruçam sobre o hino e os sentidos em torno do ato de cantar o hino nacional. Quem pode cantá-lo? Em qual idioma se pode cantar um hino nacional? Em outras palavras, as pensadoras estão se perguntando sobre quem pode pronunciar o Estado-nação. Spivak (2018), ao se referir especificamente ao hino nacional da Índia – que segundo a autora foi escrito em bengali e tem de ser cantado em hindi –, conclui que “o Estado-nação exige a língua nacional” (SPIVAK, 2018, p. 68).
Para Spivak (2018), o feminismo cumpre um papel preponderante no debate, pois ele:
poderia buscar reinventar o estado como uma estrutura abstrata, em um esforço persistente para mantê-lo livre de nacionalismos e fascismos. [...] A questão aqui é opor-se ao capitalismo desregulado, e não encontrar os delineamentos da utopia numa filiação não avaliada ao estado capitalista (SPIVAK, 2018, p. 70).
Diante disso, pensamos ser oportuno seguir a discussão proposta por Butler e Spivak no sentido de decifrar se o Estado-nação, além de uma língua e hino nacionais, não procura também determinar um corpo capaz de cantá-lo e, portanto, ser agregado e pertencido pelas/nas estruturas que o compõe. Para desvendar essa hipótese lançada e, sobretudo, na tentativa de compreender as nuances do masculinismo e sua operação na produção dos corpos e discursos que figuram e fundamentam a figura do Estado-nação, convocamos as contribuições de Jasbir K. Puar. Acreditamos que tal diálogo permitirá encaminhar nossos diagnósticos preliminares em busca de uma fundamentação crítica que exponha os significados em torno do caso da invasão do Capitólio e sua íntima relação entre masculinismo e nacionalismo.
Na obra Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times, Jasbin K. Puar (2017) defende que há um conjunto de ideologias que circulam e conduzem um sujeito específico ao chamado “sujeito de direito”. Para Puar (2017), a heteronormatividade seria uma ideologia que ampara e ajuda a manter uma dominação em termos de classe, gênero e raça na formação do Estado-nação, sendo, inclusive, plataforma de sustentação de uma homonormatividade que se expressa no homonacionalismo. Puar (2017) também vai situar todo esse discurso baseado no direito e no sujeito de direito como fruto do liberalismo afrodisíaco, destacando que sua intenção não é a de abandonar a importância do discurso do direito para o enfrentamento de injustiças sociais, mas a de revelar como o discurso do direito tem sido usado para estabelecer uma hierarquia entre nações desenvolvidas e nações atrasadas; culturas progressivas e culturais retrógradas.
Puar, no prefácio da obra, afirma que a proposta de seu livro é de compreender as conexões entre sexualidade, raça, gênero, nação, classe e etnicidade (PUAR, 2017, p. 19) em relação às táticas, estratégias e logísticas de guerra que compõem o imperialismo estadunidense e, consequentemente, o seu sentido e sentimento de pertencimento, ou seja, de nacionalismo. E o que Puar parece querer dizer com isso? Que, para a autora, raça, etnia, gênero, classe e sexualidade desagregam sujeitos gays, homossexuais e queer conacionais. Desagregam de que forma? Entre aqueles que se alinham com os interesses imperiais dos EUA e aqueles que são alocados nas formas de homossexualidade ilegítima.
Para Puar (2017), é possível afirmar a existência de uma biopolítica sexual neoliberal que cultiva os sujeitos adequados para a vida. E o faz através da inserção desses corpos no que ela chama de “virilidade de mercado’’ e ‘‘reprodutividade regenerativa’’. Esses aspectos, segundo a autora, são racialmente marcados e demarcados uma vez que, paralelamente, na criação desses mercados, inclusive os mercados “gay friendly”, há um aumento na segmentação (e segregação) de corpos racializados queer que não somente não acessam determinados espaços, como também estão disponíveis ao aniquilamento e à morte como fundamento das fronteiras-nações e, consequentemente, produzindo estrangeiros, inimigos e terroristas.
Para Puar (2017), o militarismo, secularização, guerra, terrorismo, império, tortura, globalização, fundamentalismo, sectarização, encarceramento, detenção, deportação e neoliberalismo formam o nacionalismo estadunidense. Em suma, Puar afirma que existem táticas, estratégias e logística de máquinas de guerra contemporâneas que produzem mecanismos bélicos que visam, sobretudo, a obtenção de adeptos, a partir da produção de um sentimento de pertencimento nacional e, em oposição, a necessidade de despertencimento nacional dos chamados “outros”. Por isso, segundo a autora, o nacionalismo estadunidense tem vivido principalmente, e sobretudo, a partir da eleição de novos inimigos, a partir da patologização dos corpos considerados terroristas.
Puar (2017) resgata o aspecto histórico que associou o corpo queer ao terror: homossexuais como traidores da pátria, comunistas, espiões, pessoas com deficiência etc., e destaca como que, para alguns conservadores, o “casamento gay” continua sendo visto como uma forma de terrorismo e os casais homoafetivos enquanto “terroristas domésticos”; ou seja, infiltrados em uma nação que não é deles.
Em diálogo com o pensador cubano José Esteban Muñoz, Puar (2017) procura compreender e chega a afirmar que a nação se constrói a partir das masculinidades do patriotismo; essas masculinidades operariam enquanto dispositivos de controle incorporados pelos cidadãos representantes da nação para disciplinar, incorporar ou banir os terroristas14.
Entendemos, portanto, que a chave de leitura articulada até aqui nos ajuda a compreender de forma mais aprofundada a figura de Jake Angeli e a invasão do Capitólio. Dessa forma, pretendemos unir tais provocações para pensar o Carnofalogocentrismo como termo catalisador que nos possibilita compreender o masculinismo enquanto uma seita e fundamento do Estado-nação. Antes disso, torna-se necessário, entretanto, identificar aspectos etnográficos que localizam o masculinismo no coração do Estado-nação.
Kathryn Gillespie (2020) é uma etnógrafa estadunidense que no artigo Placing Angola se propôs a analisar como o rodeio de Angola, realizado duas vezes por ano na Penitenciária Estadual da Louisiana, revela violências históricas marcadas pela colonização. Para a autora, o “rodeio de Angola” oferece uma face pública higienizada sobre o encerramento da histórica colonial nos Estados Unidos (GILLESPIE, 2020). Segundo Gillespie, torna-se, portanto, fundamental acionar os estudos animalistas pós-coloniais para analisar as consequências de uma lógica racista e antropocêntrica, permeando o imaginário e tradições estadunidenses.
Cabe destacar alguns elementos histórico-topográficos do “rodeio de Angola”, cruciais para a análise de Gillespie. A Penitenciária Estadual da Louisiana, considerada a “mais sangrenta da América” (GILLESPIE, 2020, p. 256, tradução nossa), está situada na zona rural noroeste do Estado, o que, segundo a autora, aprofunda o isolamento dos sujeitos já privados de liberdade, tanto pelo posicionamento geográfico quanto pela dificuldade de acesso às instalações por parte dos familiares. Gillespie (2020) destaca também que ¾ da população encarcerada naquela penitenciária se autodeclara negra/afroamericana e que 70% do total de pessoas cumpre pena de prisão perpétua. Além disso, o nome dado ao presídio faz referência às origens das primeiras pessoas escravizadas na região.
Desde 1900, quando o Estado de Lousiana compra as terras do Major James Samuel, assume o funcionamento do presídio, expandindo, anos depois, a terra de 8.000 para 18.000 acres de terra. Neste momento, segundo Gillespie, o Estado assume a lógica e a geografia de plantation, cultivando o que, para a autora, “são um vestígio da escravização nas plantações” (GILLESPIE, 2020, p. 256, tradução nossa). É neste contexto que ocorrem os “rodeios de Angola”.
Gillespie (2020) informa que o “rodeio de Angola” começa como forma de entretenimento entre funcionários e encarcerados em 1965, sendo aberto ao público em 1967. Desde então, o evento acontece em abril e outubro de cada ano, tendo cada vez mais se popularizado como um espetáculo. Nesse espetáculo, o presidiário se candidata “voluntariamente” para participar diante de uma plateia majoritariamente masculina e branca, sobre a qual Gillespie avalia haver um componente explícito de voyeurismo. Segundo Gillespie, compensa destacar que, embora a participação no rodeio promova um componente de redenção diante da plateia – muitas vezes estimulado pelo narrador que incentiva a participação dos presidiários –, o perigo material da participação é real. Para a autora, trata-se de uma “reprodução da criminalização e encarceramento das pessoas de cor” (GILLESPIE, 2020, p. 259, tradução nossa).
Em diálogo com Sylvia Wynter, Gillespie considera muito importante entender como a categoria “humanidade” se apoiou na modernidade, na figura do homem branco e em oposição à animalidade. Portanto, para a autora, a relação binária homem x animal seria uma criação iluminista e ocidental que contrapõe outras formas de bem viver, como a indígena (GILLESPIE, 2020). Assim, racializar a discussão e vasculhar as origens do colonialismo nos Estados Unidos seria muito importante para entender como essa concepção iluminista colocou a figura do homem branco na condição de superioridade e, consequentemente, porta-voz das leis e regras. Para Gillespie, o colonialismo, o imperialismo e o antropocentrismo são lógicas de violências que promovem a racialização dos corpos não brancos e, consequentemente, estabelecem um pacto com a branquitude.
Segundo Gillespie (2020), torna-se premente observar como o antropocentrismo, portanto, opera como articulação tanto da racialização quanto do imaginário nacional nos Estados Unidos da América. Para a autora:
O Rodeio de Angola, pela sua localização na penitenciária das plantações do Sul, é mais obviamente um local onde a co-constituição da brancura, negritude e animalidade podem ser entendidas como formas de racialização e antropocentrismo que animam uma formulação particular do humano (GILLESPIE, 2020, p. 251, tradução nossa)15.
Gillespie, pretende, pois, localizar a violência do colonialismo e do genocídio colonialista que ocorre no “Angola Rodeio”, bem como apontar a abjeção da animalidade na construção desse terreno. Para a etnógrafa, “um projeto decolonial que não recupere ou redefina a violência do animal pode de fato deixar intacta uma parte fundamental de como essas lógicas racializantes e antropocêntricas se sustentam” (GILLESPIE, 202, p. 251, tradução nossa).
A autora nos chama atenção para a criação do imaginário do vaqueiro trabalhador como herói infantil e ícone do “Oeste Selvagem”, ilustrando uma masculinidade domesticada. A manutenção desta imagem se daria através dos rodeios contemporâneos que enaltecem a figura do homem branco capaz de dominar os animais enquanto cavalga, expandindo seu território sobre populações originárias.
Sendo assim, para a autora, o homem branco seria, ele próprio, possuidor de uma hipermasculinidade viril, exposta pela imagem da figura do vaqueiro. Ou seja, para Gillespie, essa imagem simboliza um projeto colonial branco, marcado por invasões dos colonos montados em seus cavalos a terras dos povos originários que ali se encontravam.
Segundo Kathryn Gillespie:
A hipermasculinidade e a brancura que definem o cowboy, então, tornam-se sinônimo de ideias nacionalistas sobre liberdade e o que significa ser humano. A brancura e humanidade deste vaqueiro icônico é importante porque é através desse tipo de corpo que a violência do colonialismo por povoamento foi entregue, consolidando a supremacia branca como a base do estado do povoamento dos EUA” (GILLESPIE, 2020, p. 254, tradução nossa)16.
Nesse sentido, o rodeio – junto com a pecuária – se tornam ferramentas importantes do colonizador para dar segmento à sua expansão imperialista. Gillespie, em diálogo com o pensador indígena Billy Ray-Belcourt, afirma que a instituição da pecuária (da qual o rodeio faz parte) “só possível por causa e através do apagamento histórico e contínuo dos corpos indígenas e do esvaziamento das terras indígenas para a expansão colonial de povoamento” (BELCOURT apud GILLESPIE, 2020, p. 254, tradução nossa)17.
Kathryn Gillespie tenta evidenciar, portanto, o quanto a figura mítica do homem branco hipermasculino e viril está intimamente correlacionada com a imagem de um dominador de animais que, por sua vez, se interliga com a nostalgia de uma invasão colonial.
Tais apontamentos realizados por Gillespie nos ajudam a pensar o corpo branco, cishetero, masculino e “animalizado” de Jacob no episódio da invasão do Capitólio. Reapresentamos, pois, o termo “invasão” em xeque ao perceber que esse ato pode significar, na verdade, uma tentativa de retomada territorial de um corpo hegemônico colonizador em um momento de eleição presidencial, no qual Donald Trump seria derrotado.
Aqui cabe, contudo, analisar especificamente a indumentária de Jake, composta por peles e chifres de animais considerados “selvagens”. A animalidade torna-se, neste episódio, elemento central para a compreensão do corpo que invade o Capitólio.
A vestimenta do invasor torna-se elemento de análise dado que, neste caso, o papel da animalidade remete à hipermasculinidade disponível a um corpo branco desbravador das terras colonizadas. O traje composto por fragmentos de animais mortos representa, pois, a vestimenta de um colono que confirma seu pacto com o antropocentrismo que, por sua vez, enaltece não a humanidade, mas aqueles que foram historicamente considerados “humanos”.
Billy Ray-Belcourt (2015) sugere que entendamos o especismo a partir do conceito de ‘supremacia branca’, este último compreendido como um maquinário político que se funda a partir da expansão e usurpação territorial, em consonância à exploração e extermínio dos corpos indígenas e animais. Belcourt destaca, então, a branquitude inerente às estruturas político-econômicas que legitimaram a apropriação territorial e a invasão colonial sobre os corpos indígenas e animais.
Segundo Belcourt (2015), sob os pilares da supremacia branca estariam as culturas alimentares impostas pelo processo de colonização e redimensionadas pelo capitalismo colonial como forma única e exclusiva de homogeneizar as relações com os alimentos dos povos e territórios colonizados. Esse processo pode ser compreendido tanto pela apropriação da terra quanto pela imposição de um modelo de cultivo que passa a garantir não mais o modo de vida dos povos originários, mas a satisfação dos desejos dos colonizadores.
A esses elementos que conferem ao masculinismo a morada nostálgica de um colonialismo antropocêntrico branco daremos destaque ao Carnofalogocentrismo como síntese da cena posta no momento da invasão do Capitólio.
O termo Carnofalogocentrismo, cunhado por Jacques Derrida, aparece pela primeira vez na obra É preciso comer bem (2014) e se encontra em grande parte da obra filosófica do autor, em especial nas décadas de 1980 e 1990.
[...] Derrida critica a naturalização pela sociedade antro(andro)cêntrica de uma subjetividade pautada no masculino, no viril, no comedor de carne, no bem-falante e que é capaz de submeter e sacrificar aqueles que de alguma forma não compartilham tais atributos ou estão de fora desses padrões (ASSUMPÇÃO, 2020, p. 15).
Neste sentido, com o termo Carnofalogocentrismo, Derrida discorre sobre as práticas, discursos e instituições que privilegiam um conjunto de pessoas em situação de hegemonia em relação aos outros viventes, que por sua vez são identificados com características femininas, naturais ou animais. Haveria, neste sentido, um exercício de masculinidade carnívora, como o filósofo Derrida a chama, na forma como a ética e a política foram constituídas (especialmente desde os tempos modernos) em torno da figura do soberano. Há, portanto, não somente uma união entre homem e humanidade, mas se constrói e consolida uma autorização de submeter o “outro”, aquele que é linguisticamente figurado como não humano, a um tipo de submissão metafísica. Agora não somente a humanidade seria a única dotada de logos, mas a masculinidade resultante da união necessária entre homem e humanidade seria carnista. Aqui, embora Derrida não destaque, observamos que a branquidade compõe esse eixo de articulação que confere ao homem um ser partícipe dessa compreensão da humanidade.
Não por acaso, o pensador Matthew Calarco identifica na obra de Derrida um diálogo muito próximo às ideias estabelecidas pela ecofeminista Carol Adams na obra A política sexual da carne (2012). No prefácio da obra de Adams, Calarco é citado pela autora ao reconhecer as confluências entre a política sexual da carne e o Carnofalogocentrismo, destacando que:
[...] a relação mais óbvia entre seu trabalho (Adams) e o de Derrida diz respeito ao modo como ser carnívoro é compreendido por vocês dois como essencial à condição de sujeito...o carnivorismo que reside no centro das ideias clássicas de subjetividade, especialmente na da subjetividade masculina. No entanto, você (Adams) expõe esse ponto extensamente ao passo que Derrida trata dele apenas de modo esquemático e incompleto. O termo Carnofalogocentrismo de Derrida é uma tentativa de nominar as práticas sociais, linguísticas e materiais primárias que estão se tornando e devem permanecer um tema genuíno no Ocidente. Derrida mostra que para ser reconhecida como sujeito pleno, a pessoa precisa ser carnívora, do sexo masculino e ter um ego autoritário, que fala. O que A Política Sexual da Carne teve de tão convincente foi exatamente essa mesma percepção essencial...o consumo da carne não é um fenômeno simples, natural, e na nossa cultura está irredutivelmente ligada à masculinidade em vários aspectos materiais, ideológicos e simbólicos (CALARCO apud ADAMS, 2012, p. 16).
Logo, através das lentes ecofeministas do Carnofalogocentrismo seria possível identificar que a autoridade política no Ocidente estaria amparada em uma noção de humanidade que seria, ela mesma, incorporada pelo sujeito homem branco, figura representativa da humanidade masculina, que por sua vez seria o porta-voz da racionalidade e que a expressa através do sacrifício da carne dos grupos vulnerabilizados, vitimados pelo colonialismo presente nos signos do nacionalismo. Destaca-se, neste sentido, a necessidade de situar o aspecto que a raça cumpre ao se referir ao homem-macho associado a esse lugar e porta-voz da racionalidade. O homem-macho ao qual estamos nos referindo é o porta-voz da branquidade. Ou seja, o homem, branco, cisheterossexual, comprometido com a reprodução dessa nação, cuja situação se difere sobremaneira do homem racializado pela matriz colonial do Ocidente.
Neste sentido, cabe dizer que, embora Derrida e Adams não elaborem a questão da raça ao se referir à associação entre carno, logos e falo, um olhar que reconhece o racismo como operador de gênero nos ajuda a perceber outras nuances que merecem um olhar mais atento, criterioso e cuidadoso. Logo, relacionado a esse homem-macho, deve-se ter em conta a branquidade enquanto operador sistemático de hierarquização que humanizou, desumanizou e animalizou os corpos de seres humanos e não humanos.
Como Adams expõe em sua obra (2012), no ocidente existe uma aproximação muito forte entre o consumo de carne, seus “subprodutos” e as noções de masculinidade. A escolha da comida, da vestimenta, bem como dos locais a serem frequentados fomentam o carnivorismo e formam subjetividades em torno daquele espaço e na relação que se constrói com a carne enquanto alimento e símbolo de poder. Essas escolhas feitas, sobretudo pelos homens das classes dominantes, passam por ‘churrascarias’, clubes de strip tease, clubes de futebol, e no caso do Capitólio pelo cunho ideológico-religioso da seita Q’Anon.
Nestes escritos, tanto a autora como o autor nos descrevem os mecanismos pelos quais ocorre tanto a morte real como a simbólica e moral dos indivíduos tidos como inferiores pelo modelo patriarcal de sociedade. Sob essa perspectiva, o evento do Viking do Capitólio é uma narrativa em que estão postas performatividades tanto do modelo ideal de homem, aqui propositalmente subsumindo as outras subjetividades, bem como da apropriação das características dos animais cujos corpos jaziam na condição de vestimentas.
Derrida explícita, ao falar sobre sexualidade e gênero, os elos entre logocentrismo e falocentrismo, sendo este o aspecto viril e masculino dos sujeitos, mas também das instituições e concepções de subjetividade promulgadas por ela. O Falogocentrismo vem para ressaltar a junção desses fenômenos e sugerir que o Carno deveria unir-se a esse conceito, apontando para o fato de que o consumo de carne implica uma dominação masculina e patriarcal que permeia processos de produção e disseminação ideológicas que se imbricam simbólica e materialmente.
A estreita conexão entre o Logocentrismo e Falocentrismo pode ser apreciada no modo especialmente brutal de como se deu a referida “invasão”: seus protagonistas, homens brancos héteros e histéricos, que tentavam perpetuar a forma de poder então vigente e que são os representantes do típico macho viril ocidental que resolve as questões no grito opressivo e na violência explícita.
Carregados de ódio, são capazes das maiores atrocidades para defender um tipo de sociedade na qual a soberania do mais forte faz existir um padrão de masculinidade pré-definido, em que – cujo sistema – cabe a humilhação, a violência e a morte dos que ousam transgredir suas regras. Dentro de um paradigma ecofeminista, podemos explorar e extrapolar os fatos acontecidos no Capitólio como uma tentativa de demonstração de um poder cada vez mais questionado e debatido nos círculos dos indivíduos que pensam em uma sociedade menos desigual.
Mas o que vem a ser exatamente o Ecofeminismo e como ele pode nos auxiliar? Chamamos atenção para uma análise das opressões, em que uma não exclui a outra, tampouco minimiza a capacidade de destruição das subjetividades destroçadas por seus efeitos. Ao contrário, assumimos aqui o Ecofeminismo enquanto um método de análise social que revela as interdependências entre os eixos de produção de desigualdades e assimetrias contra diferentes grupos sociais historicamente subalternizados.
Como apontam Adams e Gruen:
O ecofeminismo aborda as várias maneiras pelas quais o sexismo, a heteronormatividade, o racismo, o colonialismo e o capacitismo são informados e apoiam o especismo e como analisar as maneiras como essas forças se cruzam e podem produzir práticas menos violentas e mais justas (ADAMS; GRUEN, 2014, p. 1).
Desse modo, à luz de uma lupa ecofeminista, também podemos analisar como o masculinismo, enquanto Carnofalogocentrismo, perpassa e oprime todos os corpos que são considerados marginais, que estão fora do escopo dessa concepção de mundo patriarcal, misógino, racista, especista e binário.
O conceito de Carnofalogocentrismo torna-se, então, uma ferramenta valiosa e inovadora quando se trata de questionar o modus operandi das estruturas sociais e culturais de dominação, submissão e subjugação, uma vez que reúne em seu interior questões essenciais para se pensar um feminismo animalista “a partir da relação entre a dominação masculina e o sacrifício carnívoro” (LLORED, 2016, p. 63).
Neste sentido, com o Carnofalogocentrismo, Derrida dá conta de uma série de práticas, discursos e instituições que privilegiam um conjunto de “seres humanos”, colocando-os em uma posição de hegemonia em relação a todos os outros viventes, sendo esses identificados com as características do animal, do feminino ou da natureza. A força viril do macho adulto, pai, marido ou irmão (o cânone da amizade, vai mostrar em outro lugar, privilégios do regime fraterno) corresponde ao esquema que domina o conceito de sujeito (DERRIDA, 2007).
O feminismo animalista sobre o qual Llored aborda, e que aqui optamos por entendê-lo à luz do Ecofeminismo animalista, se funde necessariamente em conjunção aos estudos queer, sem os quais deixamos de entender uma série de outros marcadores que se interseccionam aos daqueles de gênero, raça e classe. A teoria ecofeminista queer, tal qual defende Greta Gaard, aponta para o alargamento das concepções acerca do heterossexismo, refletindo sobre:
os modos pelos quais nossa imagem de natureza é heterossexualizada e as conexões entre diversidade sexual e natureza não eram exploradas. Gaard afirma que a cultura ocidental é fundada em um medo ou repulsa não apenas de práticas homoafetivas, mas do erotismo como um todo (GAARD, 2011, p. 197).
Nesse sentido a autora, sinaliza para a rapidez com que a direita conservadora estadunidense reconheceu e assimilou os diversos movimentos progressistas em curso, com intuito de dissolver seus intentos e promover um retorno aos cânones do conservadorismo. Dessa forma, Gaard destaca que “parece que o futuro da organização progressiva pode muito bem depender da capacidade de acadêmicas/os e ativistas reconhecerem e articularem com eficácia as suas várias bases para coalizão” (GAARD, 2011, p. 198).
De acordo com a autora é necessário um “cruzamento” entre o Ecofeminismo e a Teoria Queer se quisermos construir as bases para uma sociedade verdadeiramente sustentável e democrática, que tenha como premissa o respeito e valorização das diversas identidades sexuais e do erótico. Um dos argumentos da interconexão queer-ecofeminismo diz respeito à desvalorização do erótico nas sociedades ocidentais dominantes: a chamada erotofobia. Tal desvalorização reflete na dominação das mulheres, da natureza e do queer; opressões essas que estão interrelacionadas e se reforçam mutuamente.
Ainda, segundo a autora:
o problema da opressão baseada na sexualidade não se restringe ao dualismo heterossexual/queer. Como teóricas/os queer têm mostrado, o maior problema é a erotofobia da cultura ocidental, um medo do erótico tão forte que apenas uma forma de sexualidade é abertamente permitida; em apenas uma posição; e somente no contexto de certas sanções legais, religiosas e sociais. A opressão de queers pode ser descrita de forma mais precisa, então, como o produto de dois dualismos que se reforçam mutuamente: heterossexual/queer e razão/erótico (GAARD, 2011, p. 202).
Essa abordagem permite, segundo Gaard, entender como as sexualidades queer foram e são entendidas como aquelas mais próximas de uma natureza selvagem, disponíveis aos comandos civilizatórios e, por isso, distantes da razão. Logo, estaria associado aos sujeitos cisheterossexuais a ideia de normalidade, saudável, civilidade entre outros. Historicamente, tal prática tem sido acionada para fundar a íntima e necessária associação entre a homossexualidade e o desvio, pecado, doença, transgressões.. Isso não quer dizer, contudo, que o queer não seja entendido como antinatural, e mais: como um ato contra a natureza. Se por um lado o queer será destituído de razão e, por isso, estaria mais próximo de uma natureza a ser dominada, por outro, o ato queer será entendido sempre como antinatural.
Gaard (2011) associa a erotofobia à colonização da natureza e a sexualidade queer, reconhecendo na instituição do cristianismo e dos impulsos de expansão dos Estados-nação, através do militarismo, o berço imperialista no qual “ismos” de dominação dos mais variados foram sendo gestados.
Nesse caso, Gaard visa a analisar e correlacionar como o cristianismo tem sido utilizado para autorizar a exploração das mulheres, as culturas indígenas, os animais, o mundo natural e as/os queers. Ela menciona, mas não aprofunda em estudos feministas e ecofeministas que sustentam a ideia de que a separação humano x natureza ocorreu no período neolítico, quando então as culturas matrifocais, agrícolas e a adoração às deusas foram sendo substituídas por uma figura transcendente, separada da natureza, divina e masculina. Tais afirmações se baseiam em registros antropológicos e não necessariamente fatos históricos sólidos. Ainda assim, muito tem se desenvolvido nesse âmbito.
Segundo Gaard (2011), os apelos à natureza têm sido muitas vezes utilizados para justificar as normas sociais em detrimento das mulheres, natureza, queers e pessoas não brancas. A gama de ataques à sexualidade é a razão pela qual a autora denomina a perspectiva do colonizador de erotofóbica ao invés de simplesmente homofóbica. Para Gaard (2011), esta erotofobia colonial permaneceu intacta através da chegada dos peregrinos, a criação dos Estados Unidos e as ondas de expansão que se seguiram para o Oeste. No século XX, segundo Gaard, as narrativas de colonialismo e exploração continuaram a ostentar o selo de erotofobia.
Toda essa compreensão vai sendo moldada com o tempo, segundo Gaard, visando a garantia da construção de uma identidade nacional. Segundo ela, “as narrativas registradas pelos exploradores mostram “a identidade nacional estadunidense como sendo essencialmente aquela de um homem branco” (GAARD, 2011, p. 215).
Nesse caso, o nacionalismo seria “um conjunto de ideias que aguçam as distinções entre “‘nós’ e ‘elas/es’. É, aliás, uma ferramenta para explicar como foram criadas as desigualdades entre ‘nós’ e ‘eles’” (GAARD, 2011, p. 215). Gênero, sexualidade e raça tornam-se pilares da construção do nacionalismo, que Gaard prefere chamar de Nacionalismo Colonial.
Nesse caso, a partir da perspectiva ecofeminista queer, fica evidente para Gaard que as noções de sexualidade estão implícitas na categoria de gênero, as quais modulam o Estado-nação. Ou como ela diz: “a masculinidade dos colonizados e a identidade mestre de Plumwood não são nem homossexuais, bissexuais e/ou transgêneras. A heterossexualidade está implícita” (GAARD, 2011, p. 216). Os povos originários são, portanto, erotizados, mas também ‘queerizados’ e animalizados, pois seus comportamentos sexuais estão considerados fora do padrão considerado “natural”. Logo, ele é estranho e sub-humano.
Andil Gosine (2010) também entenderá que o que está em jogo é a negação do erótico. Apoiando-se na afirmação de Greta Gaard de que o anti-erotismo e a heterossexualidade hegemônica não apenas fazem parte das ideias dominantes ocidentais de natureza, mas também estão interligados com a degradação ambiental e dos modos de viver que não aqueles estabelecidos pela cultura hegemônica branca e cisheternormativa, o autor afirma que a razão pela qual o debate sobre a reprodução da população e erotismo – tanto de pessoas não brancas quanto de pessoas homossexuais – são entendidas, para ele, como tóxicos à luz da nação branca. Para Gosine, isso é resultante do pacto da branquitude e seu caráter fundante para a reprodução concreta e simbólica do nacionalismo.
Gosine afirma, portanto, que o:
[...] sexo heterossexual e potencialmente reprodutivo entre pessoas não brancas e o sexo homossexual, eu argumento, ameaçam as ambições colonial-imperialista e nacionalista. Ambos são “atos queer” na medida em que desafiam as normas declaradas de colaboração com narrativas coloniais de raça, sexo e gênero, através das quais formações modernas da natureza foram constituídas (GOSINE, 2010, p. 150, tradução nossa)18.
Ou seja, para Gosine, a erotofobia articulará e determinará quais atos serão considerados queer dentro de um Estado-nação, cuja narrativa colonial prevalece. Além disso, o autor observa como tal centralidade tem sido fomentada pelo debate ambiental no norte global. Mais uma razão para a introdução de uma perspectiva ecofeminista queer.
Para Gosine, é importante frisar que:
Em contextos culturais predominantemente euro-americanos, dois tipos de sexo foram (são) ditos serem tóxicos para a natureza: sexo reprodutivo entre pessoas não brancas e sexo entre homens. Desde a origem com os preservacionistas-conservadores até a canonização de Al Gore no século XXI, com sua eco-cruzada global, liderando o movimento ambiental norte-americano, têm-se investido na produção e circulação de discursos sobre “superpopulação” que colocam a culpa pelo desastre ecológico global na reprodução dos pobres do mundo; Fato devido à fácil colaboração do capitalismo com o patriarcado e o racismo (GOSINE, 2010, p. 149, tradução nossa)19.
Dessa forma, poderíamos deduzir que o masculinismo aqui opera enquanto uma ecologia dos corpos e dos desejos que atribui aos atos queer de pessoas racializadas e cisheterodiscordantes um papel antinatural e, consequentemente, prejudicial e perigoso para o Estado-nação. Para além disso, segundo Gosine, os atos queer serão vistos como tóxicos. Isso significa que o discurso ambiental adotado pelo Estado-nação conduzirá as emoções políticas dos conacionais, visando à higienização dos atos queer e seus corpos capazes de agir.
Imagem 3 – Manifestantes invadem o Capitólio
Fonte: G120
#ParaTodoMundoVer: (Na imagem é possível observar um grupo de homens no interior do Capitólio. No centro está Jacob, um homem branco, sem camisa, tatuado, com o rosto pintado com as cores da bandeira dos Estados Unidos da América. Ele veste um chapéu de pele do qual saem dois chifres. Ele segura uma bandeira dos Estados Unidos da América e um megafone nas cores branco e vermelho. Do lado direito da imagem, ao lado de Jacob, um homem veste uma roupa camuflada de exército. Ele veste um chapéu preto de cowboy e uma touca preta – estilo ninja – que cobre todo o rosto, deixando apenas os olhos à mostra. Na imagem também se observa outros manifestantes, e no canto esquerdo, de costas, um policial parece conversar com os manifestantes.)
Segundo o dicionário Michaelis, uma seita é formada por “grupo de pessoas que seguem determinados princípios ou doutrinas diversas dos geralmente aceitos no respectivo meio” e que geralmente são compostas por um “conjunto de indivíduos que defendem a mesma causa, facção, partido”21. Segundo a mesma fonte, uma seita também seria um “grupo dentro de uma comunhão religiosa principal, cujos aderentes seguem certos ensinamentos ou práticas particulares”. Com um dogmatismo que lhe é intrínseco, toda seita dispõe de um corpo de ideologias que a suporta. O masculinismo, nesse sentido, seria embasado pela ideologia masculinista, fundada no ódio às mulheres e nos signos de uma suposta “masculinidade ancestral” dominadora que aqui se revela como uma ritualística nacionalista.
Embora não tenhamos visto na entrevista com Rosana Pinheiro-Machado acerca do masculinismo, entrevista que ensejou a escrita deste presente trabalho, uma definição objetiva do que seja uma seita, podemos inferir, perante o exposto, que se trata de um grupo de indivíduos que compartilham de uma ideologia rígida, com regras pré-definidas e que impedem o ingresso de pessoas que não se coadunem com elas. Nesse sentido, podemos afirmar que tal definição flerta com o dogmatismo.
Em diversas notícias de jornais encontramos a informação de que o chamado “Viking do Capitólio”, bem como seus pares que estiveram presentes no dia da invasão, integram movimentos da extrema direita estadunidense que propagam ideais e ritos de ódio. Segundo Rosana Pinheiro-Machado (A SEITA..., 2021)22, algum desses movimentos fazem parte de um dos mais extremos eixos do masculinismo, explicitando uma adoração à estética masculina da virilidade. Tal adoração inclui o sexo entre homens ao mesmo tempo que há explícita rejeição à homossexualidade. Para a antropóloga, os participantes desse eixo “não se consideram gays, mas mantém relações sexuais com homens. Isso é um aspecto paradigmático e extremo dos masculinistas” (A SEITA..., 2021, s/p).
Representando um dos maiores ícones desse masculinismo, Jack Donavan, autor do livro Androfilia, de 2007, faz diversos ataques à comunidade gay, chamando-os de “inimigos da masculinidade”. O autor, por outro lado, justifica que a prática sexual com outros homens poderia compor um ideário masculino. Em seu livro, Jack Donavan resgata o vocábulo grego Androfilia que significa o amor romântico ou sexual por homens. O autor, no entanto, faz uso do termo para enfatizar a masculinidade, e exaltar no outro igual, aspectos físicos e comportamentais que reforçam e retroalimentam as características perseguidas da hipervirilidade, evocando, pois, para si, a nomeação de tribalismo masculinista.
Como nos aponta Rosana Pinheiro-Machado em sua entrevista à BBC News:
Há uma devoção e um amor à estética masculina continua a professora. [...] Mas a interpretação de uma identidade gay ou homoerótica seria um sinal de fraqueza. Então, é um ato sexual bruto em devoção a esse corpo que é a própria imagem. Mas sem associar isso ao feminino ou a uma identidade LGBTQ (A SEITA..., 2021, s/p).
No contexto da fraternidade masculinista em questão, pode-se observar um completo desprezo pelas mulheres, as quais serviriam apenas para fins de reprodução da nação branca, conforme aponta Gosine (2010). Observamos nos discursos dessas alas de extrema direita, o incentivo ao discurso de ódio direcionado às mulheres, pessoas LGBTQI+, negras, indígenas e todas as pessoas consideradas inferiores ao projeto de reprodução do Estado-nação branco.
Podemos afirmar, portanto, que Jacob flerta e apela ao sentimento de nacionalidade do povo estadunidense, traz em seu corpo a reafirmação da noção de nação como supremacista branca, evidenciando, pois, o Carnofalogocentrismo como elemento constitutivo do Estado-nação. Essa ritualística e simbologia das performances masculinistas do corpo de Jacob, por sua vez, reafirmam, pois, o masculinismo característico de uma branquitude hegemônica, supremacista e antropocentrada. Jacob, com as performances que seu corpo representa e signos que carrega, reafirma um pacto de cumplicidade misógina, racista, cisheteronormativa e antropocêntrica de uma nação erotofóbica.
Nesse sentido, a invasão do Capitólio aparece como uma performance nostálgica que busca a reafirmação de um poder que se vê ameaçado à medida que outros grupos historicamente perseguidos e excluídos conquistam direitos básicos. Jacob, ao evocar uma performance de gênero masculinista e supremacista branca, retoma e faz acender uma masculinidade hegemônica enquanto expressão de um cidadão nacional. Podemos observar, portanto, na cena descrita, a presença de uma estrutura sacrificial na constituição dominante da subjetividade posta, que não é unicamente humana e racional, mas sobretudo erotofóbica, misógina, racista, antropocêntrica e, por tudo isso, colonial.
A “invasão” ao Capitólio só é possível, portanto, devido à estrutura do Estado-nação ser aliada à ideologia fortemente masculinista, branca, cisheterossexual a qual está associada necessariamente à concepção do cidadão, ou seja, do sujeito nacionalista. Há, portanto, uma ritualística de gênero intimamente associada à branquitude, que se reflete na reivindicação nacionalista que apela para o Estado-nação enquanto território por direito; enquanto morada. É neste sentido que o Estado-nação vai sendo moldado enquanto uma estrutura que garante a manutenção de uma permanente invasão colonial e, consequentemente, o assujeitamento dos corpos e sujeitos não reconhecidos como homens, cisgêneros, brancos e heterossexuais. Essa composição forma a concepção de humanidade que visa a garantir os processos de desumanização e animalização que se formam com o intuito de expurgar pessoas racializadas, mulheres e populações cisheterodiscordantes que não condizem com o desejo de perpetuação da comunidade representante dos valores tradicionais dessa ideia de nação.
Queremos evidenciar, pois, a existência de um pacto cujo propósito é de um firmamento permanente entre o masculinismo e o Estado-nação que privilegia, assim, os fantasmas coloniais da branquitude masculina cisheterossexual como elemento constitutivo daqueles considerados cidadãos e, por isso mesmo, membros permanentes da hegemonia. Entendemos que, para isso, torna-se premente investigar, através das lentes de autoras ecofeministas e teóricos(as) queer, o papel desempenhado pelo Carnofalogocentrismo, pelo Antropocentrismo e pela Branquidade como eixos catalisadores desse pacto – que aqui se traduz enquanto parte da lógica da dominação permanente, ou seja, em colonialidade.
Deste modo, verificamos no episódio da invasão do Capitólio uma coreografia e topografia colonial que se reafirma a partir de uma ritualística de gênero, do pacto com a branquitude, da exaltação de um antropocentrismo carnofalogocêntrico e erotofóbico que espelha o ideário de reprodução do referido Estado-nação. Resta-nos defender a tese de que, sim, o masculinismo é uma estratégia de invasão.