Resumo: Este trabalho descreve e analisa a produção e tensão das masculinidades num contexto de prática de voleibol frequentado por mulheres e pessoas LGBTQIA+. Trata-se de uma pesquisa etnográfica desenvolvida no município de Vitória/ES. Para ilustrar tal questão, fizemos a seleção de três cenas que ilustram parte dos acontecimentos que têm ocorrido no campo. Verificamos tensões e ambiguidades na produção das masculinidades, pois percebemos movimentos de resistência ligados à performatização de masculinidades plurais e inclusivas e também movimentos de conformismo e de acomodação diante das normas de gênero e de sua segregação, especialmente, quando da participação de mulheres.
Palavras-chave: Esporte, Masculinidades, Lgbtqia+, Voleibol, Gênero.
Abstract: This paper describes and analyzes the production and tension of masculinities in a volleyball practice context attended by women and LGBTQIA+ people. It is an ethnographic research developed in the city of Vitória/ES. To illustrate this issue, we selected three scenes that demonstrate part of the events that have occurred in the field. We verified tensions and ambiguities in the production of masculinities because we perceived resistance movements linked to the performatization of plural and inclusive masculinities and also movements of conformism and accommodation to gender norms and their segregation, especially when women participate.
Keywords: Sport, Masculinities, Lgbtqia+, Volleyball, Gender.
Artigos
Inclusividade e segregação no voleibol LGBTQIA+: entre tensões e ambiguidades de masculinidades não ortodoxas
Inclusivity and segregation in LGBTIA+ volleyball: between tensions and ambiguities of unorthodox masculinities
Recepción: 01 Agosto 2022
Aprobación: 01 Octubre 2022
Falar de masculinidade é falar do mundo, já que a masculinidade, sobretudo branca e ocidental, é a norma do mundo, em especial do mundo esportivo, no qual valores vinculados à essa representação, como liderança, virilidade, agressividade, competição e tolerância à dor, são presentes (SEFFNER, 2021; DEVIDE, 2021). Ela é a regra, de modo que, assombra nosso cotidiano em uma série de pedagogias de masculinidades. Essa grande regra do mundo configura a norma, aquela que não precisa dizer de si, que conforma nossos corpos, identidades e relações (SEFFNER, 2021).
Na nossa sociedade há a produção e perpetuação dessa forma de compreender a masculinidade nas diversas instituições que fazem parte da sociedade. Para se ter uma noção do quanto isso nos toca, no ano de 2019 foi publicada uma pesquisa nacional3 sobre o tema das masculinidades com participação de mais de 40 mil pessoas (entre homens e mulheres). Essa pesquisa demonstrou alguns dados significativos: a cada dez homens, sete afirmam terem sido ensinados na infância e na adolescência a não demonstrar fragilidade; a cada dez homens, sete lidam com um distúrbio emocional, em algum nível; um em cada dez homens revela que durante a infância e adolescência foram ensinados a não se comportarem de modo que parecessem femininos. A pesquisa revela ainda que o machismo e misoginia estão expressos de diversas formas e através de incontáveis violências prejudicando não só as mulheres, mas também os homens.
Um dos principais dispositivos para a produção de masculinidades são as aulas de Educação física e as práticas esportivas (SEFFNER, 2021). Dispositivo esse que age de formas diversas. Por exemplo, quando um menino é obrigado a torcer por time de futebol, a ter habilidade com os pés e a ter interesse por práticas tidas como masculinas. Na escola, as escassas aulas de educação física muitas vezes têm como principal atrativo a prática de futsal; no clube, chuteiras e atitudes violentas e, na TV, o esporte é reduzido ao futebol. Tais questões remontam a uma pedagogia da masculinidade (MISKOLCI, 2012). Uma pedagogia que está vinculada a centralidade do homem heterossexual, branco e ocidental (e dos seus valores). Trata-se de um modelo de masculinidade que evidencia hierarquias e opressões e por outro lado oculta as múltiplas formas de ser homem. Modelo esse que poucos se enquadram. Quem não se enquadra vivencia um sentimento de não pertencimento social, que se junta ao medo de ser a vítima da vez das brincadeiras e provocações que têm marcado a cultura esportiva tradicional (CHAMBERS, 2003; MISKOLCI, 2009). Como consequência, a homofobia tornou-se uma atitude marcante nos esportes, sobretudo, considerados masculinos (ANDERSON, 2009).
Apesar do futebol ser reconhecido como um dos grandes veiculadores de uma pedagogia da masculinidade viril e agressiva (BANDEIRA; SEFFNER, 2000) e do esporte ser compreendido como um dispositivo de produção dela, é possível encontrar linhas de fuga dentro dessas práticas. Dentro desse espectro, o voleibol se consolidou em nosso país como esporte muito praticado por mulheres e por meninos que fugiam ao padrão heteronormativo. Como resultado, esse esporte tem sido estudado como uma das possibilidades de constituição de um espaço-tempo para veiculação de outras masculinidades (ANJOS, 2014; BRITO, 2018; CARVALHO et al., 2017).
Se o esporte como dispositivo de masculinidades por muito tempo afastou e marginalizou corpos dissonantes de sua prática, o declínio da homofobia no século XXI, tem contribuído para a reversão desse cenário (ANDERSON, 2009). Segundo Eric Anderson (2009), em contextos esportivos mais recentes, homens heterossexuais desfazem suas perspectivas de gênero, aprendendo uma abordagem mais inclusiva. De acordo com o autor, essa mudança de atitude em relação à homofobia está tanto vinculada à presença de corpos dissonantes no esporte, como também às transformações culturais que atravessam o século XXI e produzem marcas na agência individual para a constituição de espaços mais inclusivos.
Pesquisas etnográficas como a de Anderson (2009) têm demonstrado inúmeras possibilidades e contextos em que o esporte contribui para desfazer a segregação de gênero e para a constituição de outras masculinidades mais inclusivas. Todavia, é preciso destacar que, em contextos latino-americanos, residem ainda lacunas sobre a forma como mudanças culturais vêm se desenvolvendo e o impacto das mesmas no esporte (PIEDRA et al., 2021). Por exemplo, no Brasil, a homofobia ainda se faz predominantemente presente no contexto de prática esportiva, sobretudo no futebol, implicando na reafirmação das masculinidades tradicionais (LAURINDO; MARTINS, 2021). Debruçando-nos sobre o caso brasileiro, esse artigo descreve e analisa a produção e tensão das masculinidades num contexto de prática de voleibol frequentado por mulheres e pessoas LGBTQIA+.
As últimas décadas têm sido fundamentais para se compreender como tem se dado essas questões, sobretudo quando se pensa no equilíbrio de poder entre homens e mulheres. O movimento das mulheres e o movimento gay e lésbico na década de 1970 lançaram as bases para os Estudos Críticos sobre Homens e Masculinidades (RALPH; ROBERTS, 2020). Os estudos sobre masculinidades podem ser descritos através de três ondas: primeiro, ocorreu a teoria dos papéis sexuais, depois as perspectivas estruturais em ligação com a teoria denominada de hegemônica e mais recentemente, as pós-perspectivas (WHITEHEAD, 2002).
Nos anos 1970, a teoria dos papéis sexuais se provou útil por questionar a inevitabilidade do gênero. Conceituar masculinidade e feminilidade como “papéis” destacou a natureza construída do gênero, em oposição a visão de que o gênero era inato e inevitável. A masculinidade consistia em distanciar-se das ideias de feminilidade e ser emocional, lutar pelo sucesso através da competição, estar no controle e agir agressivamente. Os críticos dessa teoria não discordavam tanto da descrição dos traços comumente associados à masculinidade, mas sim da estrutura teórica que sustentava essas descrições. Connell (1995) questionou a falta de qualquer explicação sobre o poder e os privilégios dos homens. Como resposta às limitações da teoria dos papéis sexuais, na segunda onda surge uma perspectiva estrutural (CONNELL, 1995). Baseando-se nas teorias do patriarcado e incorporando o conceito de hegemonia de Gramsci, pesquisadores dessa tradição teórica enfatizaram a posição estrutural de poder dos homens. Essa teoria tem sido a mais influente no campo da teoria social. Porém, ela tem sofrido muitas críticas. Dentre as quais, críticos ligados às tradições mais recentes (“pós-perspectivas”) questionam como que a teoria pode explicar o posicionamento contraditório e inconsistente que ocorre na conversa e na interação? Como é possível explicar a instabilidade das categorizações sexuais e as interdependências vinculadas às desigualdades, como vem sendo apontada pela teoria queer e pela perspectiva interseccional, se trabalhamos com a ideia fixa de grupos dominados e dominantes? (BERGGREN, 2012; 2013). Somado a isso, ao trabalhar com o conceito de hegemonia de Gramsci, Connell herda a contradição vinculada a tal questão por presumir uma estrutura fundamental imutável (WHITEHEAD, 2002), além de supor que grupos subalternizados buscariam tornar-se dominantes (FIALHO, 2006). Em resposta às críticas acumuladas contra as perspectivas estruturais, os/as pesquisadores da terceira onda tendem a recorrer às chamadas pós-perspectivas. Elas se concentram basicamente em como as normas e a subjetividade são constantemente negociadas em processos contraditórios e relacionais de poder (BERGGREN, 2014).
As novas perspectivas enxergam a categoria masculinidade como plural, contestando modelos essencialistas em torno do masculino e evidenciam que os homens também são vítimas das opressões patriarcais (HEILBORN; CARRARA, 1998). Isso desencadeia em uma crise de identidade do masculino favorecendo então a desconstrução do imaginário tradicional quanto a tal. Assim, percebe-se que a masculinidade é culturalmente situada e está articulada a contextos históricos e sociais diferentes.
No campo esportivo, as masculinidades se tornam objeto de estudo a partir das críticas feministas aos diferenciados papéis sexuais, ao dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 2005) e ao caráter patriarcal e sexista dos esportes. Muitos dos trabalhos desenvolvidos nesse campo, abordaram a natureza das relações entre esportes, homens, gênero e a forma como os esportes têm sido utilizados na produção das masculinidades. Na Europa dos idos de 1990, as pesquisas indicam que os esportes se relacionam às masculinidades em função de estarem intimamente ligados ao nacionalismo e ao militarismo (BANDY, 2021). No entanto, o maior expoente no campo de estudos sobre masculinidades é Raewyn Connell. Para ela, os homens heterossexuais lutam por uma posição dominante, buscando estar hierarquicamente acima de mulheres e outros grupos (como gays). O sucesso nos esportes põe o homem em uma posição de destaque no seio da sociedade. Tradicionalmente esse se constitui como um dos principais domínios masculinos (DUNNING, 2014).
Usando o esporte coletivo como ferramenta de análise, Eric Anderson (2008;2009) aponta que esse pode promover uma forma ortodoxa de masculinidade. Essa envolveria atitudes socio negativas (sexistas, misóginas e antifeministas) em relação às mulheres. Tais atitudes estão fortemente influenciadas pela segregação que tende a promover apenas aqueles que se conformam ao ethos esportivo ortodoxo (os homens). A masculinidade ortodoxa percebe a feminilidade de forma depreciativa e, portanto, ajuda a reforçar o patriarcado. Com a presença da masculinidade ortodoxa entre os homens nos esportes coletivos, a performatização de feminilidade por esses, é considerado algo perigoso com possibilidades de penalização.
Em oposição a esse tipo de masculinidade e questionando a tese defendida por Connell, uma teoria muito utilizada no campo é a teoria das masculinidades inclusivas (ANDERSON, 2005; ANDERSON; MCCORMACK, 2018). Há nas últimas décadas uma mudança no padrão de comportamento, relações e atitudes envolvendo homens. Isso é particularmente percebido em sociedades ocidentais menos desiguais. Muitas dessas tendências ocorrem dentro das instituições esportivas (MAGRATH et al., 2015). Dado que o esporte é frequentemente considerado o produtor da hipermasculinidade, os praticantes de esportes dificilmente seriam vistos como promotores de mudanças. No entanto, o que se tem visto são mudanças em relação à atração pelo mesmo sexo (e o “coming out”), incluindo uma mudança da aceitação para o apoio aberto a colegas e amigos gays, e uma expansão de comportamentos aceitáveis e até estimados relacionados à intimidade física e emocional entre homens. A Teoria da Masculinidade Inclusiva se baseia fortemente em sua conceituação de Homohysteria. Em sociedades homohistéricas, ocorre uma 'caça às bruxas' para expor homens gays e, ao mesmo tempo há um medo de ser considerado homossexual por causa de um comportamento que é considerado atípico em termos de género. Nesse contexto os homens são forçados a aderir a expectativas tradicionais e comportamentos codificados como masculinos para evitar suspeitas homossexuais (ANDERSON, 2005). Porém, quando uma sociedade reconhece coletivamente que a homossexualidade é uma sexualidade legítima (em vez de um desvio), qualquer um pode ser abertamente homossexual. Ou seja, diz-se que essa sociedade não é homohistérica.
Dessa forma apresentamos uma perspectiva contemporânea como possibilidade para se pensar a masculinidade. Essa perspectiva trabalha através da dimensão discursiva: compreende-se que há assim uma atribuição cultural de masculinidade aos corpos lidos como “homens”. No entanto, os discursos são sempre contestados e permanentemente instáveis. Nenhum desses discursos consegue fixar completamente o sentido, mas um sujeito politicamente consciente deve esforçar-se por recusar o posicionamento oferecido pelo discurso da "masculinidade" (BERGGREN, 2014). Dentro desse cenário encontram-se as novas masculinidades, reconhecidas como queers. Elas se constituiriam enquanto masculinidades dissonantes distanciando-se do modelo unívoco que marcou o esporte (CAMARGO, 2012; BRITO, 2021). Nesse ínterim, para Wagner Camargo as masculinidades queer não são homogêneas, mas apresentam certo denominador comum e não podem ser hierarquizadas. Já Leandro Brito compreende a noção de masculinidade como uma iteração4 do que está presente na teoria da masculinidade hegemônica. Pensa, portanto, a masculinidade a partir de seus significados contingentes.
Para descrever a produção das masculinidades e de suas tensões num contexto esportivo, realizamos uma pesquisa etnográfica com um grupo que pratica voleibol amador no contexto de lazer em uma quadra pública em um bairro de classe média situado na parte continental de Vitória/ES5. A etnografia (GEERTZ, 1989; PEIRANO, 2008) que deu origem a esse texto considerou diversas fontes para produção deste artigo, com o objetivo de interpretar os fenômenos culturais e compreender e reconhecer os comportamentos dos sujeitos que estão situados nesse espaço a partir da convivência e colaboração com essas pessoas em campo.
A inserção no campo permitiu a interpretação das relações e sentidos subjacentes àquele local a partir dos aspectos simbólicos que são compartilhados pelos sujeitos em um contexto específico, tendo a/o pesquisador/a a função de fazer uma descrição densa do que foi observado (GEERTZ, 1989). Para as práticas esportivas, a etnografia pode contribuir para conhecer os sentidos e as apropriações que as pessoas fazem do esporte coletivamente no espaço-tempo de convivência, de modo a evidenciar também usos não normativos (STIGGER, 2002). Deste modo, um dos autores se inseriu nesse contexto de prática e permaneceu por 15 meses desenvolvendo observação participante e produzindo um diário de campo (com caráter descritivo/reflexivo)6 com o objetivo de registrar as práticas sociais dos sujeitos em seu contexto, assim como os diálogos que aconteciam no espaço (LOURENÇO, 2010).
A comunidade que participou da pesquisa é composta tanto por pessoas oriundas da universidade pública dos arredores do bairro (aluno e ex-alunos) quanto de outros contextos (pessoas que foram se incorporando ao grupo através de convite dos participantes). O grupo se encontra semanalmente nos sábados à noite. A despeito de se tratar de um bairro de classe média, somente um dos participantes do grupo é morador do local. O grupo investigado é heterogêneo e grande parte dos membros estão vinculados à organização civil de natureza política conhecida como LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais, assexuais, entre outros). O primeiro contato com o grupo se deu no final de 2020 e desde então, com idas e vindas motivadas pelas regras de distanciamento social, advindas da pandemia de COVID-19, que suspendiam os encontros coletivos para práticas esportivas, já se completaram 15 meses de convivência multissituada em campo. Esse trabalho de campo multissituado (MARCUS, 1995) envolve ainda a participação no grupo de WhatsApp, nos espaços pós-vôlei (intensificação dos processos de sociabilidade e interação) e na produção de conversas com os participantes que se mostraram abertos a falar de suas experiências.
Para ilustrar a produção e tensão de masculinidades nesse contexto esportivo, fizemos a seleção de três cenas, que ilustram parte dos acontecimentos que têm ocorrido no campo e que poderiam nos ajudar a potencializar o debate em torno desse tema. Integram essas cenas 4 pessoas participantes da pesquisa e uma convidada7. Sassá identifica-se como homem cis Negro/pardo, Homossexual, proletário e tem 33 anos. Regla identifica-se como homem cis Preto, Panssexual, classe baixa e tem 27 anos. Sylla identifica-se como homem cis Preto, bissexual, favelado, de classe baixa e tem 28 anos. Kasiely identifica-se como mulher cis branca, bissexual, classe baixa e tem 23 anos.
Algumas pesquisas têm investigado as masculinidades em tempos-espaços esportivos indicando alguns horizontes para o tema. Trazemos aqui as contribuições de autores que pensam a questão a partir do voleibol praticado por jovens atletas (BRITO, 2018) e a partir da análise de competições mundiais LGBT’s (CAMARGO, 2012). Leandro Brito descreveu os jovens atletas como transgressores ao desestabilizarem os sentidos normalizadores impostos nos espaços-tempo do voleibol especialmente por meio de enunciações subversivas e paródias de gênero. Já Wagner Camargo (2012) descreveu o esporte LGBT a partir da análise de competições mundiais como apresentando uma faceta paradoxal e controversa pois ao mesmo tempo em que há a assunção de corporalidades dissidentes e masculinidades não normativas, há a institucionalização da “normatização” de práticas esportivas, dando privilégio a certas corporalidades e marginalizando alguns sujeitos para que se adequem a categorias binomiais (assim como acontece no esporte tradicional). As cenas que aqui trazemos podem ter alguns entrelaçamentos com aspectos desses dois trabalhos. Organizamos duas cenas para discutir sobre as tensões nas masculinidades e a forma pela qual as feminilidades são convocadas pelos participantes para as práticas esportivas, borrando algumas das fronteiras de gênero; e em seguida, uma das cenas representa algumas das ambiguidades na produção de uma masculinidade mais inclusiva nesse contexto.
A primeira cena refere-se a um rally, quando Sylla faz um comentário a respeito de uma ação realizada por Sassá. Na outra cena, um diálogo entre um dos autores em campo e Regla em um dos intervalos de jogo:
Cena 1 - O jogo estava bastante disputado e havia uma participação intensa tanto corporalmente quanto na “falação” (algo bem costumeiro). Durante a disputa de um rally, Sylla comentou que por Sassá fazer uma ação defensiva com o pé, ele estaria de “Marta” em referência à jogadora de futebol mais conhecida do Brasil. O que ocasionou tal nomeação foi o fato de o movimento com o pé ter sido perfeito e ocasionado um passe preciso para o levantador. Isso acabou provocando um largo sorriso em Sassá que afirmou: sou “boua” como ela. (Diário de campo, 27 jul. 2021)
Cena 2 - Regla explicando: “Quando busco alguma referência, eu busco as minhas próprias referências dentro do que eu vivi. Na minha família eu tenho a referência das figuras femininas que são muito fortes. Quando penso em algo que não seja tóxico na minha família, estou pensando em uma figura feminina. Desse jeito acabo me referindo ao feminino quando tô jogando e me identificando com alguma atleta. Me identifico muito com as cubanas e por isso gosto de usar o nome delas quando tô em quadra.” (Diário de campo, 09 jul. 2022)
A partir das cenas, notamos um lugar destacado ao feminino nas enunciações. As duas cenas, lidas em conjunto, permitem perceber, naquela comunidade, traços de uma valorização das feminilidades como sinônimos de força, tanto para contextos esportivos como fora deles. Os significados desse agenciamento das enunciações de gênero no ambiente esportivo podem transgredir a forma pela qual esse se coloca como um dispositivo para circulação e valorização de uma masculinidade ortodoxa (ANDERSON, 2009).
Em geral, as ações efetivas vinculadas à performance esportiva estão tradicionalmente associadas ao masculino (GAMMEL, 2012). Quando Regla aciona o feminino para nomear suas performances esportivas em quadra, ela está desestabilizando a dominância da masculinidade normalizadora nos contextos de prática esportiva. Já quando Sylla enuncia que Sassá poderia ser relacionada à jogadora de futebol Marta, ao executar um movimento de recepção com o pé de forma perfeita, ele está vinculando efetivamente o desempenho à feminilidade (Marta, jogadora de futebol profissional). Assim, o sucesso e a valorização do desempenho das mulheres nos espaços de prática esportiva produzem desestabilizações. Essas ocorrem uma vez que, com tais enunciações, a ideia de que a feminilidade é problemática no esporte é confrontada, bem como são desafiados os discursos sociais que afirmam a superioridade masculina nesse espaço (CHANNON; PHIPPS, 2017).
Há aqui um processo de tensionamento das formas tradicionais de conceber o gênero. Quando um homem gay age dessa forma está ressignificando e performatizando o gênero através da linguagem. Essa prática implica em uma subversão dos modelos tradicionais de gênero indicando que o gênero performatizado não passa de uma construção (ou performatização). A performatividade é uma categoria de enunciação de palavras ou gestos que não tem valor de verdade, pois não descreve o mundo, mas age sobre ele (AUSTIN, 1990; BUTLER, 2003) e ela estabelece que a constituição do gênero se dá a partir de atos, gestos e representações. A iteração produzida pelos participantes das cenas, em articulação com estas questões, irá potencializar as construções de masculinidades plurais, pois as enunciações performativas citadas possibilitam se enxergar com outras lentes as questões concernentes ao gênero.
Esses movimentos descritos nas cenas poderiam ser interpretados como momentos de parodias de gênero, ao inaugurarem um deslocamento das identidades de gênero, provocando uma desestabilização entre a linearidade entre sexo e gênero (BUTLER, 2003). Esse eclipse de paródia de gênero poderia sugerir a abertura a processos de ressignificação das representações e das fronteiras entre as masculinidades e as feminilidades no esporte. Quando essas pessoas usaram a linguagem que enquadra a feminilidade como algo desejável e valioso através de suas performances e paródias de gênero (BUTLER, 2003), estão atuando de forma a desafiar as crenças sexistas sobre o esporte como um território de reserva do domínio das masculinidades. Isso ilustra um exemplo claro de uma iteração alternativa da feminilidade.
Ações como as de Sylla e Regla podem ter o propósito de resistir aos preceitos normativos, operando-se com práticas que contestam a heteronormatividade usando de estratégias como a “supercompensação”, que implica em subverter determinações gramaticais para que se construa uma identidade de gênero que esteja de acordo com as performatividades dos indivíduos em determinados espaços (HALL, 2002). A repetição dessas enunciações acaba por reforçar aquilo que foi nomeado de horizonte queer para a masculinidade por Brito (2018) e Camargo (2012). Assim como os autores, notamos que há múltiplos significados vinculados a categoria masculinidade, o que nos distancia de um sentido essencializante para tal categoria.
O profundo processo de transformações sociais que estamos sofrendo tem redimensionado alguns paradigmas. A visão das estruturas sociais que outrora fora fixa agora se compreende como mutável e atrelada a relações de poder. Parte desse processo está ancorado na compreensão de identidades como plurais e fragmentadas. O modelo de identidade masculina tradicional agora dá lugar a “identidades fragmentadas”, vinculadas aos novos condicionantes sociais. Assim ela se torna uma identidade relacional em constante devir e conforme as performatividades linguísticas e corporais.
A última cena descreve um momento de negociação da organização dos participantes, antes do início das partidas. A cena evidencia as ambiguidades que a participação de duas mulheres (cis) produzem, explicitando as disputas de poder e a configuração das relações e hierarquias de gênero estabelecidas naquele contexto esportivo:
Cena 3 - Algo interessante e que me colocou a pensar aconteceu durante a formação dos times antes do início da primeira partida. Em toda “pelada” os 12 primeiros jogam. Para tal, eles enviam um levantador para cada quadra e fazem então o sorteio dos jogadores (ou jogadoras) que irão participar de cada time. No entanto, desta vez, com a participação de 2 mulheres dentro do grupo de 12 (uma convidada e Kasiely), eles indicaram que cada uma deveria jogar em um dos times, ou seja, elas não participariam do sorteio. O gênero (como mimético ao "sexo biológico") aqui está sendo usado como categoria para diferenciar o nível técnico, tendo em vista que, na lógica vigente, as mulheres em questão são reconhecidas como menos habilidosas tecnicamente que os homens que lá jogam, independente se gays, heteros ou bi. (Diário de campo, 24 jul. 2021)
No que tange à cena 3, percebemos que mesmo que estejamos em um universo esportivo predominantemente LGBTQIA+ com predominância de masculinidades não ortodoxas, as mulheres (cis) continuam sendo vistas como atleticamente inferiores. Tal como outras pesquisas já demonstraram, com base em discursos biologicistas, as diferenças entre homens e mulheres são naturalizadas e a essas últimas se supõem a inferioridade, de modo que suas oportunidades são mais escassas e se alguma delas apresenta um desempenho acima do esperado, seu sexo biológico, sua integridade moral e sua identidade de gênero são colocados sob suspeita (DEVIDE, 2005; GOELLNER, 2003; SILVEIRA; VAZ, 2014).
Uma questão que pode explicar essa relação conflitiva em um espaço supostamente inclusivo é levantada por Camargo (2012). Em um contexto competitivo LGBTQIA+, o autor argumentou que, mesmo nesse ambiente, o mundo esportivo - em especial de alto nível de desempenho - é reconhecido massivamente masculino, não interessando quais narrativas estejam em cena (se as de gays ou mesmo heterossexuais). Além disso, ele analisa que, mesmo nesses ambientes, o esporte ainda se estrutura como um “sistema fechado”, implicando em falta de exame crítico além da reiteração de ações e concepções que legitimam e reproduzem valores/papéis historicamente consolidados, mesmo aqueles que reafirmam a matriz binária e linear de gênero (CAMARGO, 2012). Assim, se torna legítima a prática de exclusão - ou inferiorização - das pessoas que se supõem menos habilidosas.
A questão apresentada na cena 3 poderia ainda ser problematizada pelas representações que temos do voleibol no Brasil, reconhecido como um esporte mais praticado por mulheres. Além disso, como destacou Juliana Coelho (2009) o vôlei acaba se constituindo em um espaço de sociabilidade feminina e homoerótica. Mais do que isso, acaba se tornando um esporte híbrido, pois se trata de um espaço-tempo que permite cruzamentos entre performatividades não ortodoxas de masculinidades, bem como também de feminilidades, normalizadas ou não. Assim seria o espaço da renúncia, ou mesmo uma zona de fronteira para corporalidades dissidentes.
Ainda sobre a cena 3 e diante do que foi apresentado, é preciso considerar que a ordem masculina está inscrita nos sujeitos, na instituição esportiva, na linguagem e nos corpos. Portanto, o mundo esportivo LGBTQIA+ também estaria condicionado aos problemas de gênero, o que levaria os seus sujeitos a reproduzirem em menor escala, o que está posto enquanto valor na sociedade quanto aos sentidos do ser mulher no esporte. Nesse sentido, paradoxalmente, apesar desses sujeitos com frequência atravessarem as fronteiras de gênero, borrarem a diferenciação entre masculinidade e feminilidade, produzindo transgressões e paródias, ao mesmo tempo, eles também supõem a determinação biológica das diferenças entre eles no desempenho esportivo. Ou seja, para eles, sexo não determina gênero, mas determinaria, de forma intencionalmente planejada ou não, o desempenho. Esse paradoxo tem como consequência a inferiorização das mulheres nesse contexto, bem como a segregação de gênero.
Podemos supor que o espaço em questão estaria vinculado aquilo que é conhecido como “pseudo-inclusividade” (PIEDRA et al., 2021). Essa categoria representaria o fato de que ainda há uma prevalência de discriminação contra população LGBTQIA+ no contexto esportivo, mesmo diante de algumas conquistas legais e sociais associadas a essa população. Os autores destacam que esse constructo ajuda a descrever o que ocorre em algumas sociedades latinas nas quais a inclusão seria limitada por aspectos socioculturais, expressando valores conservadores e discriminatórios, e educacionais, institucionais, legislativos e econômicos, que dificultariam uma mudança cultural. O mesmo poderia ser aplicado quando se pensa na participação de mulheres no esporte. Apesar das conquistas acumuladas nas últimas décadas, ainda há uma dificuldade em reconhecê-las como legítimas no espaço esportivo.
Nesse sentido, mesmo em um espaço inclusivo, a segregação permanece. Uma segregação que é ancorada na suposição de desempenho inferior de mulheres. A prática esportiva realizada por mulheres, portanto, ainda sofre uma série de silenciamentos e anulações - sejam elas simbólicas ou materiais (GOELLNER, 2021). Com o uso de uma justificativa biológica para tais impedimentos, proliferaram discursos sobre os corpos das mulheres como inadequados e menos capazes à prática esportiva (MARTINS; REIS, 2018). Entendemos que o esporte nesse sentido atua enquanto um dispositivo que opera e coloca em funcionamento discursos biológicos relacionados ao sexo de seus praticantes (ZOBOLI et al., 2021). Exemplo disso se dá quando projetos políticos utilizando o esporte como locus fabricam e disseminam ideais sobre os sexos/gêneros. Dentre eles podemos citar os testes utilizados para detecção do sexo e gênero das esportistas como forma de suspeição das performances esportivas de mulheres (SILVEIRA; VAZ, 2014). Assim entendemos que a inclusividade dentro dos espaços esportivos que produzem masculinidades não ortodoxas também implica em problematizar de forma radical os discursos sobre a "feminilidade problemática" (CHANNON; PHIPPS, 2017).
A partir das três cenas destacadas nesse texto, que ilustram o recorte do cotidiano das interações de um contexto recreativo LGBTQIA+ de prática de voleibol, e considerando o entrelaçamento delas, verificamos as tensões e ambiguidades na produção das masculinidades não ortodoxas no esporte. Confrontamos movimentos de resistência, que desafiam os postulados ortodoxos de masculinidade e, também, a homofobia e misoginia características do esporte, com movimentos de conformismo e de acomodação diante das normas de gênero e de sua segregação, exposta sob a suposição de hierarquias de desempenho esportivo, expressos principalmente quando da participação de mulheres em partidas.
Tal ambiguidade expressa o paradoxo da interação da performatividade de gênero e de masculinidades não ortodoxas com a naturalização da segregação das mulheres. Reafirmamos, como consequência, o mesmo que alguns diagnósticos anteriores sobre as masculinidades inclusivas no esporte, segundo os quais, tais práticas e comunidades ainda estão incompletas, uma vez que ainda não produziram avanços suficientes que fossem capazes de abalar a manutenção de discriminação às mulheres no esporte (ADAMS et al., 2010).
A partir da noção de pseudo-inclusividade utilizada aqui, podemos observar que a construção de práticas mais inclusivas e democráticas é um processo em andamento, diante do qual pessoas LGBTQIA+, mulheres e demais minorias precisam se engajar ativamente.
Ou seja, produzir masculinidades inclusivas, além de estar articulada a mudanças sociais mais amplas, implica também ampliar o escopo de observação, para trazer à tona os corpos não normativos no esporte, sejam eles masculinos, femininos, não binários, negros, deficientes etc. Nesse sentido, implica construir práticas esportivas que tensionem o mainstream da segregação dos corpos e da naturalização das diferenças, o que só pode ser alcançado com corpos diferentes jogando juntos, com e pelos mesmos direitos de representação, de valorização e de fruição.