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“Falam que eu sou pintosa e que assim não dá pra ficar com mulher”: narrativas sobre juventude e masculinidade bissexual

“They say that I'm effeminate and that I can't be with a woman that way”: narratives about youth and bisexual masculinity

Leandro Teofilo de Brito 1
UERJ), Brasil

“Falam que eu sou pintosa e que assim não dá pra ficar com mulher”: narrativas sobre juventude e masculinidade bissexual

O Social em Questão, vol. 1, núm. 55, pp. 223-240, 2023

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Agosto 2022

Aprobación: 01 Octubre 2022

Resumo: O objetivo deste artigo é de discutir narrativas de jovens que se identificam como homens bissexuais problematizando, por meio de seus relatos, sentidos atribuídos à vivência da masculinidade bissexual na fase da juventude. Para isso, baseio-me nas perspectivas pós-estruturalistas para discutir as categorias juventude e masculinidade e operacionalizar a produção de narrativas. Os jovens entrevistados enunciaram sentidos de invisibilização da bissexualidade como orientação sexual na sociedade, entretanto resistiam às regulações impostas sobre suas vivências como homens bissexuais, mobilizando uma performatização da juventude que trabalha para a desestabilização de discursos que conformam a incerteza sobre seus afetos e desejos.

Palavras-chave: Masculinidade, Juventude, Bissexualidade, Narrativas, Diferença.

Abstract: The objective of this article is to discuss narratives of young people who identify themselves as bisexual men, questioning, through their reports, meanings attributed to the experience of bisexual masculinity in the youth phase. For this, I base myself on poststructuralist perspectives to discuss the youth and masculinity categories and operationalize the production of narratives. The young people interviewed expressed meanings of invisibility of bisexuality as a sexual orientation in society, however they resisted the regulations imposed on their experiences as bisexual men, mobilizing a performance of youth that works to destabilize discourses that shape the uncertainty about their affections and desires.

Keywords: Masculinity, Youth, Bisexuality, Narratives, Difference.

Introdução

Em recente entrevista para o podcast “Nos armários do vestiário”2, série jornalística que aborda a homofobia e o machismo no futebol brasileiro, o ex-jogador e hoje comentarista de futebol Richarlyson afirmou se identificar como bissexual, rememorando o preconceito que sofreu ao longo de toda sua carreira. O posicionamento de Richarlyson causou grande repercussão na mídia como, por exemplo, pessoas dizendo não acreditar na existência da bissexualidade como orientação sexual3. Historicamente invisibilizada e deslegitimada, a bissexualidade carrega consigo sentidos de uma identidade sexual tida como confusa, duvidosa, transitória, fetichizada, não monogâmica e experienciada por pessoas suscetíveis a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) (JAEGER et al., 2019).

Entre os homens, conforme Seffner (2016), a bissexualidade pode ser associada aos processos de negociação das formas normativas de se viver a masculinidade, pois é significada em alternância de posições hierárquicas: pode ser tida como superior e como um avanço ou mesmo como uma masculinidade menor e depreciada, a depender do contexto. Nesse sentido, esse autor conceitua a masculinidade bissexual como uma vivência em direção contrária à fixidez identitária, pois “pode experimentar oscilações, variações, fluidez. [...] a masculinidade bissexual não designa um novo agrupamento de homens, que seriam aqueles portadores deste atributo, mas um conjunto de possibilidades, [...] uma possibilidade de posição de sujeito” (SEFFNER, 2016, p. 212).

Nesse contexto, os discursos acerca da bissexualidade entre os homens podem produzir variados efeitos socialmente: tornar pública e trazer visibilidade ou mesmo secundarizar e marginalizar as experiências da masculinidade bissexual (SANTOS FILHO, 2012). Desse modo, este artigo busca discutir narrativas de jovens que se identificam como homens bissexuais, problematizando, por meio de seus relatos, sentidos atribuídos à vivência da masculinidade bissexual na fase da juventude. Para isso, baseio-me nas perspectivas pós-estruturalistas para discutir as categorias juventude e masculinidade nesta pesquisa.

Segundo a teórica feminista Judith Butler, o gênero é entendido como uma repetição estilizada das normas que, por meio de falas, gestos e movimentos corporais, busca estabilizar sentidos do masculino e do feminino dentro de um quadro binário e articulado a uma matriz heterossexual. Entretanto, a autora aponta que: “não existe gênero sem essa reprodução das normas que no curso de suas repetidas representações corre o risco de desfazer ou refazer as normas de maneiras inesperadas, abrindo a possibilidade de reconstruir a realidade de gênero de acordo com novas orientações” (BUTLER, 2018, p. 37).

O pensamento butleriano destaca as disputas por significações atribuídas ao gênero em contextos culturais e sociais diversos e, desse modo, a categoria masculinidade é entendida por processos de identificação que são contingentes, instáveis e precários, não se estabelecendo sentidos unitários e fixos para o masculino. Nas palavras da autora: “o gênero não é um substantivo, mas também é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto por práticas reguladoras da coerência do gênero” (BUTLER, 2015, p. 56).

Fundamentado por essa teorização, proponho dois operadores de pesquisa para interpretação de narrativas que focalizam as masculinidades bissexuais: masculinidade normalizadora e masculinidade cuir. A masculinidade normalizadora é significada por meio das estabilizações de sentidos – que se entende como provisórias - para o masculino, materializadas em dados contextos da ordem social, isto é, ressaltando e ao mesmo tempo relativizando a força de enunciações cotidianas e locais do que é autorizado, do que é reprimido, do que é normal/anormal nas performatizações da masculinidade (BRITO; LEITE, 2017). Como masculinidade cuir4 concebo-a por um processo de significação radical de produção da diferença para interpretação dos sentidos atribuídos à masculinidade. Um horizonte, um devir, um caminho a ser alcançado, pois “se traduz em um horizonte que nega as estabilizações sedimentadas e que são forçosamente impostas para o masculino. Enuncia performatizações que jamais se cristalizam, valendo-se dessa instabilidade radical para potencializar identificações inumeráveis do masculino” (BRITO, 2021, p. 10). As masculinidades bissexuais interpretadas por esses operadores de pesquisa apontam para um olhar antiessencialista aos processos de significação e identificação dos sujeitos na pesquisa.

Por esse mesmo caminho epistemológico, a identificação performativa da juventude auxilia no entendimento de que também não existe qualquer essência que marque esse agrupamento etário. Leite (2017, p. 172), dialogando com a noção de performatividade de gênero em Butler, aponta a importância de reconhecimento da instabilidade dessa identificação, pois “não atrelamos a identificação juvenil a faixas de idade ou a quaisquer características intrínsecas, sejam da ordem da biologia ou da cultura. Antes entendemos que a identificação jovem/adolescente se constrói contingencialmente em processos performativos”. Nessa proposição, a autora destaca que os processos de disputas pela sedimentação de sentidos buscam estabilizar, mesmo que de modo contingente e precário, a identificação do sujeito jovem, contribuindo para, performativamente, “criar” o jovem que se nomeia. Atribuições de sentidos para a juventude como “hedonista”, “alienado” e como aquele que “não sabe o que quer da vida” ou que “decidirá mais a frente” são enunciações que circulam socialmente com muita força e que marcam essa categoria etária no social. Pocahy (2011), nessa mesma direção, afirma que os dispositivos de controle produziram a idade e a geração como performativos, por meio de um conjunto mais ou menos heterogêneo que comportou práticas discursivas e não discursivas de objetivação, normatização e regulação das subjetividades: “compreendo a idade como uma categoria política, histórica e contingente, assim como o gênero, a classe social, a sexualidade ou a raça/etnia. Mas, não de forma isolada, pois o marcador etário e geracional dificilmente pode ser pensado sem essas intersecções” (p. 206).

Assim, considerando a articulação das categorias masculinidade e juventude para discutir as experiências narradas de homens jovens bissexuais, a abordagem interseccional (BILGE, 2020) se mostra produtiva para esse debate. Entendendo que não se trata de um mero somatório de opressões, a interseccionalidade mobiliza a integração entre os marcadores da diferença, materializados em desigualdades e que se reforçam mutuamente por meio de relações de poder.

A interseccionalidade reflete a teoria transdisciplinar que busca compreender a complexidade das identidades sociais e desigualdades através de uma abordagem integrada. [...] A abordagem interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão, funcionando para além dessas categorias [...] (BILGE, 2020, p. 239).

Por meio dessas construções apresentadas, abordo na próxima sessão os caminhos metodológicos para a produção de narrativas que focalizam as masculinidades bissexuais na juventude.

Produção de narrativas dialógicas

A produção de narrativas com jovens homens bissexuais se fundamentou pela perspectiva de Arfuch (2010, p. 32), que concebe a produção de narrativas biográficas e autobiográficas por meio de “uma teoria de sujeito que considere seu caráter não essencial, seu posicionamento contingente e móvel nas diversas tramas em que sua voz se torna significante”. Além disso, a autora destaca o processo dialógico entre pesquisador e sujeitos pesquisados na produção de narrativas: “a forma dialógica é essencial, tanto para o contato e a configuração mesma do ‘campo’ [...], quanto para a produção interlocutiva desses relatos, segundo objetivos particulares” (ARFUCH, 2010, p. 239).

Tal proposta dialógica, aproxima Arfuch (2010) das proposições da linguagem responsiva ativa de Bakhtin (2011) já que, para a autora, a produção de narrativas por meio de entrevistas se dá na interação com o outro, em relação dialógica e alteritária, que permite reconhecer o encontro entre pesquisador e sujeitos participantes da pesquisa como um acontecimento, no qual o diálogo é uma forma criativa e produtiva do eu se aproximar com suas palavras às palavras do outro.

Para Bakhtin, cada enunciação é dialógica, isto é, sempre implica um interlocutor (isto pode estar presente, ausente, fantasiado) e, portanto, o principal atributo é seu caráter de destino, modulado pela "presença" do outro (o destinatário), na medida em que ele argumenta para persuadi-lo, responde antecipadamente, antecipa suas objeções ("Como eu os imagino") a partir de uma hipótese sobre a sua capacidade de compreensão. [...]. A ideia de que o destinatário está presente na declaração, mesmo antes de poder emitir qualquer resposta, e mesmo independentemente disso, sugere um protagonismo conjunto dos participantes na comunicação. Então a resposta pode ser vista como um processo ativo e simultâneo onde realmente acontece que todos falam todo o tempo. O diálogo é construído precisamente nesta adaptação mútua para falar não só para si, mas para outro (ARFUCH, 2010, p.30-31).

Nessa perspectiva de Bahktin (2011), toda linguagem produzida leva em conta outras enunciações anteriormente produzidas e busca dialogar com outras que se supõe que serão produzidas posteriormente, o que faz locutor e interlocutor agirem e atuarem ativamente no diálogo proferido. O locutor interpela o interlocutor prevendo, em alguma medida, o que ele pode vir a responder ou antecipando uma compreensão ativa na resposta, assim como o locutor leva em consideração – ainda que não de forma explícita - identificações do interlocutor, tais como classe social, formação acadêmica, grau de proximidade e intimidade, para escolher o melhor recurso linguístico para a interpelação, o que podemos reconhecer como exemplo de materialização de espaços de dialogicidade.

O enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas. Entretanto, o enunciado não está ligado apenas aos elos precedentes, mas também aos subsequentes da comunicação discursiva. Quando o enunciado é criado por um falante, tais elos ainda não existem. Desde o início, porém, o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado (BAHKTIN, 2011, p. 300).

Fundamentando-se por esses princípios, foram realizadas as entrevistas com os sujeitos entre os meses de setembro e dezembro de 2016, na cidade do Rio de Janeiro5. Os dados produzidos são oriundos de uma pesquisa mais ampla que abordou a construção de masculinidades nos contextos do esporte e da escola, e teve a participação de jovens com idades entre 18 e 19 anos, que se identificavam como homens cisgêneros e não heterossexuais (BRITO, 2018). Neste artigo, será problematizado o recorte de narrativas dos jovens que se autoidentificavam como homens bissexuais e que abordo na sequência.

Narrativas sobre juventude e masculinidade bissexual

Serão discutidos dois trechos das narrativas dialógicas produzidas com dois sujeitos participantes da pesquisa, problematizando parte de suas experiências como homens jovens bissexuais. O primeiro trecho é do sujeito que se nomeia de modo fictício como Hildebrand:

Leandro: Agora deixa eu te fazer uma pergunta pra gente continuar nessa conversa sobre o voleibol. Você não me falou até agora sobre a sua orientação sexual...

Hildebrand: Eu não sei ainda, entendeu? Porque não tenho uma sexualidade muito certa, tipo eu pego todo mundo, entendeu?

Leandro: Pega todo mundo? (risos). Então eu poderia dizer que você é bissexual?

Hildebrand: Mas dizem que não existe bissexual

Leandro: Caramba!

Hildebrand: A pessoa é ou não é. Mas eu acho que eu sou bi sim

Leandro: Claro que existe. Eu não concordo com isso não, Hildebrand. Por que é que não existe? Acho que você pode muito bem sentir atração por homens e por mulheres. Acho que não tem problema isso. E quem é que fala isso pra você?

Hildebrand: Galera daqui do vôlei que fala. Eles falam que a pessoa é uma coisa ou outra e que não pode ser as duas. Falam que eu sou pintosa e que assim não dá pra ficar com mulher. Já falaram que uma hora vou me resolver, mas não sei...

Leandro: Como é que você descobriu, se viu bissexual? Me conta isso...

Hildebrand: Eu fiquei com um garoto. O primeiro garoto na minha vida que eu fiquei foi com 13 anos.

Leandro: Sim

Hildebrand: Foi no aniversário da minha irmã de 18 anos. Era até um amigo dela. Eu não sei o que aconteceu e como é que aconteceu, não lembro...

Leandro: Vocês ficaram no meio da festa?

Hildebrand: Isso. No meio da festa. Na verdade, num cantinho do salão. Ele tinha 18 anos e foi uma sensação boa na hora. E depois eu namorei um ano com uma garota.

Leandro: Certo

Hildebrand: Eu gosto também de ficar com garotas e vou levando assim...

Leandro: Sei, sei...

Hildebrand: Foi assim que eu descobri

Leandro: E é conflituoso pra você isso?

Hildebrand: Não, não... é conflituoso pra mim as pessoas me exigindo ser só gay, como acontece aqui no vôlei. Isso pra mim é conflituoso!

Leandro: É...

Hildebrand: Que ficam falando “Se revela logo. Que isso, que aquilo”. Só que eu já me revelei. Acabou.

Leandro: Acabou, claro!

Hildebrand: Então é um pouco chato, porque eu me sentia pra baixo. Não me sentia bem. Eu era zoado todos os dias por isso uma época, mas deram um tempo ultimamente

Leandro: Deram um tempo?

Hildebrand: A merda é quando eu saio com eles... se fico com um garoto... “olha, ele se encontrou e tal” e se converso com a menina já falam “ah, lá vai ele bancar de hetero”. Um saco!

Em seu relato, Hildebrand destacou suas experiências afetivas com meninos e meninas e as dificuldades de reconhecimento de sua orientação sexual por seus amigos do vôlei. Estes amigos lhe “zoavam”, apontando a impossibilidade de vivência da bissexualidade, que em dado momento da vida seria “resolvida”, além do fato de lhe considerarem muito “pintosa” para ficar com mulher.

Retomo Butler (2015) na interpretação dos sentidos presentes nessa narrativa: conforme a teórica feminista, gêneros “inteligíveis” são aqueles que mantem coerência e continuidade entre as categorias sexo, gênero, prática sexual e desejo, que são instituídos por práticas reguladoras “que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a ‘expressão’ ou ‘efeito’ de ambos na manifestação do desejo sexual por meio de prática sexual” (p. 44). Uma suposta “verdade” da sexualidade é imposta pelo que a autora chama de “heterossexualização do desejo”, que institui culturalmente uma oposição binária entre masculino e feminino no não reconhecimento das identidades não heterossexuais. No caso de Hildebrand a questão se enuncia na ininteligibilidade do jovem como um homem bissexual entre seus pares.

Para Seffner (2016), a masculinidade bissexual é potente para desestabilizar sentidos circulantes da heteronormatividade, pois se apresenta em espaços de transitoriedade de uma dada fixidez do masculino, que é permeada por relações de poder: “a masculinidade bissexual como uma identidade cultural uma vez que a posição de sujeito incorpora a variabilidade e fluidez necessárias” (p.154). Também aponta que a masculinidade bissexual pode ser significada pela resistência de homens bissexuais às políticas de identidade, já que não se caracterizam conforme a homossexualidade masculina que, reiteradamente, é estabelecida em territórios e fronteiras identitárias.

Outra enunciação importante na narrativa de Hildebrand diz respeito ao fato de que ele era “zoado” pelos seus amigos, que não reconheciam a legitimidade de sua orientação sexual e o pressionavam por uma definição, no caso, pelo enquadramento na identidade homossexual. Nesse sentido, pode-se interpretar que o jovem era vítima de bifobia, que se configura como a hostilidade que sofrem sujeitos bissexuais, tanto por pessoas heterossexuais como por pessoas homossexuais, devido a bissexualidade não ser localizada no binarismo; entretanto, também se reconhece como uma forma de fobia menos legitimada no âmbito social, assim, como se conforma o não reconhecimento da bissexualidade na sociedade (SEFFNER, 016). Ainda que identificado como um homem não heterossexual entre seus amigos, a imposição de enquadramento numa masculinidade normalizadora - no contexto narrado, a masculinidade homossexual – era instituída a Hildebrand por meio de piadas e discursos que visavam o apagamento de seus desejos.

A matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de ‘identidade’ não possam ‘existir’ – isto é, aqueles em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em que as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’. Nesse contexto, ‘decorrer’ seria uma relação política de direito instituído pelas leis culturais que estabelecem e regulam a forma e o significado da sexualidade (BUTLER, 2015, p. 44).

A próxima narrativa problematizada é do jovem que se nomeia de modo fictício como Mireya. Segue o trecho:

Leandro: E como é a relação entre você e os outros atletas no meio do vôlei?

Mireya: Minha melhor amiga no meio do vôlei é uma travesti. Ele ou ela está em transição. Acho que é assim que se fala. Ela usa cabelo feminino, ela usa roupa feminina, roupa intima feminina...

Leandro: Sim...

Mireya: Entendeu? Ela se veste como uma menina. Ela se classifica como uma trans na verdade...

Leandro: Sim, entendi... ela é uma mulher trans

Mireya: Isso, entendeu? Ele nunca se viu num corpo masculino. Mas veja, ele mesmo assim... ou ela, talvez seja melhor nesse momento chamar de ela... ela tem dificuldade de aceitar que sou bissexual. Passou uma menina, eu olhei e aí a menina veio e me deu um beijo. Eu olhei e falei pra ela “eu já fiquei com essa menina.” Tipo assim, ela “ah, que mentira, para com isso! Que você já ficou o que! Você é gay, você é uma pintosa, você é isso, você é aquilo!”. Ou seja, ela não aceitava eu ter atração por menina e por menino, entendeu?

Leandro: Você se identifica como bi, então?

Mireya: Sim, eu me identifico como um bi

Leandro: Bissexual?

Mireya: Um bissexual. Fico com meninas. Sinto atração em ficar com menina. Sem problema nenhum, entendeu? É aquele negócio que eu falo...

Leandro: Sim...

Mireya: Já namorei e já transei com meninas e com meninos, entendeu? Ou seja, é aquele negócio do momento. É o caso de você gostar da pessoa, entendeu? Eu me sentindo bem, estando com a pessoa bem, eu acho que a sexualidade não importa muito, entendeu? Estou certo disso!

Leandro: Isso aí. Eu acho que cada um deve viver da forma que se sente melhor.

Mireya: Pra ele, esse meu amigo trans... ela, na verdade, aquilo dali era o cúmulo do absurdo. Então eu acho que tinha uma forma de preconceito também.

Leandro: Claro... seria uma bifobia.

Mireya: Isso, bifobia mesmo... ela ficava pra mim, assim “ah, você tem que botar um shortinho mais curtinho. Você tem que isso. Você tem que aquilo. Você tem que ser mais isso. Tem que ser mais feminino”. Eu nunca achei que isso fosse diferenciar em nada na minha vida, entendeu? Não era a minha andar com um short mais curtinho...

A narrativa de Mireya se aproxima bastante das enunciações de Hildebrand em relação ao não reconhecimento social da bissexualidade. Mireya relata a dificuldade de sua amiga no entendimento de que seu desejo afetivo-sexual se direciona para homens e mulheres e, assim como ocorria com Hildebrand, a pressão de que se enquadrasse na identidade homossexual e que performatizasse seu gênero numa expressão próxima ao feminino. Seffner (2016) chama atenção para uma visão muito tradicional do binarismo homem versus bicha em que o homem é sempre associado a ser ativo e masculino e a bicha vista como passiva e feminina, mas que, nas narrativas dos dois jovens, é desestabilizada por meio das enunciações que contestam essa fixidez identitária. Nesse sentido, a inteligibilidade do gênero articulada à heterossexualização do desejo busca uniformizar as diversas performatizações do masculino e do feminino em coerência com uma dada orientação sexual e atravessadas pela heteronormatividade, restringindo possibilidades mais amplas de vivências e experiências. Porém, é nessa ação de denúncia da invisibilização da bissexualidade, enunciadas por Hildebrand e Mireya, que sua crítica pode ser formulada:

Observe-se não só que as ambiguidades e incoerências nas práticas heterossexual, homossexual e bissexual – e entre elas – são suprimidas e redescritas no interior da estrutura reificada do binário disjuntivo e assimétrico do masculino/feminino, mas que essas configurações culturais de confusão do gênero operam como lugares de intervenção, denúncia e deslocamento dessas reificações (BUTLER, 2015, p. 67).

O termo bifobia foi enunciado de modo mais claro no relato de Mireya. Nessa discussão, articulado à noção de bifobia, emerge outro termo importante no debate acadêmico sobre a bissexualidade: o monossexismo. Pode ser definido como uma estrutura social de poder que reconhece as monossexualidades (heterossexualidade, homossexualidades e lesbianidades) como superiores e mais legítimas do que as sexualidades mais fluídas, como a bissexualidade, pansexualidade, polissexualidade, entre outras (JAEGER et al., 2019). Essa hierarquização entre as diversas orientações sexuais afeta, sobretudo, o reconhecimento da bissexualidade, ocasionando o apagamento e a invisibilização de sujeitos bissexuais nos variados contextos sociais, tal como constatado nas narrativas dos dois jovens.

As enunciações “uma hora vai resolver”, presente na narrativa de Hildebrand, que destaca uma suposta indecisão sobre sua orientação sexual, e “estou certo disso” relatada por Mireya, ao reafirmar sua condição como um jovem homem bissexual, denota não só a invisibilização e o não reconhecimento dessa orientação sexual, mas também a tendência adultocêntrica de hierarquização jovem/adulto (LEITE, 2017), isto é, o discurso de que “se é jovem demais pra decidir o que se quer da vida”. Nesse sentido, a intersecção das categorias idade e orientação sexual se mostra clara nas narrativas, quando a indecisão da bissexualidade é potencializada ao ser experienciada por sujeitos jovens, já que uma das práticas reguladoras da idade na fase da juventude é a incerteza da orientação sexual, sobretudo, se for divergente da heterossexualidade. Subvertendo essa condição, Hildebrand e Mireya performatizam uma juventude que supera a enunciação do jovem “indeciso”, em particular, sobre a vivência da bissexualidade como orientação sexual.

Por isso, reforço, compreendo a idade como uma categoria política, histórica e contingente, assim como o gênero, a classe social, a sexualidade ou a raça/etnia. Mas, não de forma isolada, pois o marcador etário e geracional dificilmente pode ser pensado sem essas intersecções. O que significa dizer que a idade organiza a vida, ao conferir status de “humanidade”, em diferentes formas e condições político-culturais no mesmo instante em que gênero e sexualidade tornam-se visíveis e possíveis nesta trama discursiva (ao fixar as possibilidades para cada idade da vida) (POCAHY, 2011, p. 206).

A importância do reconhecimento de processos de significação e identificação plurais vividos pelos sujeitos vem ao encontro de um caminho mais alteritário para as inúmeras possibilidades de vivências da diferença na sociedade, tal como a masculinidade bissexual na fase da juventude. Esse é um sentido que interpreto em proximidade à masculinidade cuir, já que aposta na ruptura radical das tentativas de sedimentação da identidade masculina na ordem social (BRITO, 2021) e que se mostra potente para que almejemos uma sociedade contemporânea aberta à pluralidade.

Conclusão

Considerando as questões problematizadas aqui neste artigo, as narrativas de dois jovens homens bissexuais apontaram para os sentidos recorrentes de invisibilização, indecisão e apagamento da bissexualidade como orientação sexual. Esse não reconhecimento foi enunciado, conforme as narrativas, por amigos que mostravam dificuldades de compreender a vivência da bissexualidade entre os jovens entrevistados, incitando que eles se enquadrassem como homossexuais e parte das justificativas tinham relação com deslegitimação social da bissexualidade e com a performatização da masculinidade fora da norma – ambos apontados como afeminados. O discurso do binarismo homem/masculino/ativo e bicha/feminina/passiva era acionado como um dispositivo de apagamento das experiências da masculinidade bissexual dos dois sujeitos. No que concerne a masculinidade, destaco que a vivência da masculinidade bissexual se torna mais conflitiva à nível de reconhecimento dado os sentidos que ainda sedimentam com força um masculino viril, dominante e estável no social.

Nesse cenário de disputas, ser um jovem que se interessa por homens e mulheres potencializa o discurso de que a bissexualidade é uma vivência transitória e que, com o passar do tempo, será resolvida pelo enquadramento do sujeito numa monossexualidade – heterossexualidade ou homossexualidade. Entretanto, os jovens entrevistados enunciaram resistência às regulações impostas sobre suas vivências como homens bissexuais, mobilizando uma performatização da juventude que trabalha para a desestabilização de discursos que conformam a incerteza sobre seus afetos e desejos.

Finalizo este artigo apostando na importância de deslocamentos dos modos monocentrados de vivência dos afetos e das sexualidades na contemporaneidade, como um horizonte porvir no reconhecimento pleno da diferença no que diz respeito às masculinidades.

Referências

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SEFFNER, Fernando. Derivas da masculinidade. Representação, identidade e diferença no âmbito da masculinidade bissexual. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

Notas

1 Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: teofilo.leandro@gmail.com. Orcid nº 0000-0002-9123-5280,
2 Pelo direito de ser quem é: Richarlyson declara bissexualidade em podcast inédito sobre homofobia no futebol. Disponível em: https://bit.ly/3QsvLQp. Acesso em: 15 ago. 2022.
3 Apresentador da Band chama Richarlyson de bicha e causa polêmica. Disponível em: https://bit.ly/3bUCfIC. Acesso em: 15 ago. 2022.
4 O termo cuir é uma tentativa de tradução da perspectiva queer na produção acadêmica da América Latina, abarcando críticas a colonização do saber e buscando interpretar as instabilidades do gênero e da sexualidade articuladas às demandas locais que se materializaram nos diferentes países latinos (BRITO, 2021).
5 A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro com o número 1.774.702.

Notas de autor

1 Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: teofilo.leandro@gmail.com. Orcid nº 0000-0002-9123-5280,
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