Recepción: 01 Diciembre 2022
Aprobación: 01 Enero 2023
Resumo: O objetivo deste estudo é apontar as consequências do racismo estrutural e suas ramificações na saúde mental de crianças negras. Para tal, foi realizada uma revisão narrativa de literatura por meio de livros e artigos científicos que versam sobre o fenômeno do racismo, seus possíveis estressores e as consequências à saúde mental na infância. Os resultados deste estudo destacaram os impactos danosos do racismo por toda a vida do sujeito, principalmente quando essa dinâmica ocorre ainda na infância. Apontando dessa maneira para continuidade de pesquisas e propostas estatais de políticas públicas e sociais de saúde que possam atender essa população.
Palavras-chave: Racismo estrutural, Infância preta, Saúde mental.
Abstract: The objective of this study is to point out the consequences of structural racism on mental health of black children. It was carried out a specialized literature review that address the phenomenon of racism, its possible stressors and the consequences to mental health during childhood. The results of this study highlighted the harmful impacts of racism throughout the indiviudal´s life, especially when it occurs during childhood. Thus, it points to the need for further research and proposals for public and social health policies to address this issue.
Keywords: Structural racism, Black childhood, Mental health.
Introdução
O conceito de racismo que orientou esse trabalho é o trazido por Almeida (2018), o autor considera o fenômeno do racismo como parte de um problema social, histórico e político (ALMEIDA, 2018), a partir do qual mecanismos estruturais e padrões de normalidade são construídos e perpetuados para manutenção de poder de um determinado grupo racial em detrimento de outro, sendo o racismo uma forma de racionalidade e de normalização e compreensão das relações (ALMEIDA, 2018). Diante disso, entendemos raça enquanto um conceito cujo significado só pode ser definido em perspectiva relacional e histórica, o que significa dizer que a raça se manifesta em atos concretos ocorridos no interior de uma estrutura social marcada por conflitos e antagonismos (ALMEIDA, 2018). Dessa forma, podemos compreender que:
Uma pessoa não só nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento em que seu corpo e sua mente são conectados a uma rede de sentidos compartilhados coletivamente em suas demais relações, cuja existência antecede à formação de sua consciência e de seus efeitos (ALMEIDA, 2018, p. 53).
Para os objetivos propostos neste trabalho, além dos conceitos de raça e racismo acima apresentados, traremos à reflexão os afetamentos que esses podem provocar em crianças negras e em seu desenvolvimento. Ao pensarmos a infância e, mais especificamente, a infância negra, nos apoiaremos nas bases do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), que traz em seu artigo 5º a afirmativa de que:
“Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (BRASIL, 1990, p.1).
Segundo dados do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard (IDOETA, 2020), há quatro maneiras de crianças pretas sofrerem os efeitos do racismo: “o corpo em estado de alerta constante; mais chance de doenças crônicas ao longo da vida; saúde e educação precária; e por último, os responsáveis fragilizados” (IDOETA, 2020, p. 1). Isso posto, compreendemos que discutir as manifestações do racismo e as consequências de ações discriminatórias na infância é imprescindível, pois esse tipo de violência pode impactar profundamente a saúde e o desenvolvimento das crianças que passam constantemente por situações de rejeição, exclusão e discriminação. Avelino (2018, p. 20) relata como seu corpo foi sendo marcado desde a infância “como um corpo desregrado, desobediente ‘rebelde’, sem chances para o futuro”. E completa dizendo que, em verdade, até nos dias de hoje seu corpo é visto como um corpo que fugiu à regra imposta a história de vida de uma criança negra e “tornou-se” alguém de respeito.
Apresentamos o objetivo deste trabalho, que é através de uma revisão narrativa da literatura, abordar como o racismo pode impactar a saúde mental de crianças negras que, por um recorte racial e social, podem estar mais vulneráveis à inúmeras violências, a começar pela violência estrutural, que interferem em seu desenvolvimento. Esse artigo parte de um recorte do trabalho de conclusão de curso denominado O Impacto do Racismo na Infância e Saúde Mental de Crianças Negras: Uma Revisão Narrativa da literatura (PEREIRA, 2022).
Racismo e infância
Pensar uma sociedade – tal como a brasileira – com suas leis e costumes, que teve sua história amarrada e erguida sobre as bases do racismo e da escravização de corpos pretos, é, por certo, entender que há mecanismos institucionais de perpetuação dessa estrutura. Hasenbalg e Silva (1988) citados por Galoni, Ribas, Silva e Peixoto (2022) falam sobre a “malha costurada” da institucionalização do corpo preto, pensando em como as instituições também são responsáveis pela reprodução de estereótipos e discriminação.
Essas instituições possuem utilidade para a supremacia branca que durante décadas cria estratégias para se manter no poder; dessa forma, as práticas racistas que reproduzem a desigualdade social não são apenas resquícios de uma herança escravocrata, mas estão também “relacionadas aos benefícios simbólicos e materiais que os brancos obtêm da desqualificação competitiva do grupo preto e mulato” (HASENBALG; SILVA, 1988, p. 166 apud GALONI et al., 2022 p. 60).
Kilomba (2019) nos mostra, justamente, o racismo revelado em um nível estrutural quando pessoas negras e People of Color4 estão excluídas da maioria das estruturas sociais e políticas. Estruturas oficiais operam de uma maneira que privilegia manifestadamente seus sujeitos brancos, colocando membros de outros grupos racializados em uma desvantagem visível, fora das estruturas dominantes (Kilomba, 2019 p.77). O que podemos aferir do pensamento de Kilomba é que nas estruturas sociais e todos os movimentos históricos e materiais da sociedade estão pautados na exclusão de pessoas negras e no privilégio de pessoas brancas.
Almeida (2018), ao falar do processo de perpetuação do racismo que é constituído institucional e estruturalmente, diz que seu projeto vem desde a era colonial que determinava os negros como mercadoria e como seres inferiores. Assim, as instituições atuavam de forma condicionada a um componente estruturante da ordem social, política e cultural que subjugava a população negra. Dessa forma, a esfera individual passa a ser estrutural quando o racismo não é exceção, mas sim a regra. Galoni (2020) e Galoni, Silva, Ribas e Peixoto (2022) nos trazem o caminho que o corpo preto infantil percorreu desde a colonização até os dias atuais, e de como parte dessa herança escravocrata ainda permeia esses corpos, e as instituições que eles integram durante seu desenvolvimento.
É importante delinear o que estamos considerando como infância enquanto sujeito de direito, e como essa concepção se constrói na medida em que a criança se desenvolve. Em 1989, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou por unanimidade a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), que entrou em vigor no ano seguinte, promulgada através de decreto no Brasil (BRASIL, 1990, p. 13). Em seu artigo de número um, ratificado pela ONU em 1990, afirma que: “para os efeitos presentes da Convenção, entende-se por criança todo ser humano menor de dezoito anos de idade, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. A Convenção foi um marco importante para pensar a infância, acompanhando essa esteira legal mundial, no Brasil foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990). Só a partir dessas legislações é que a criança passou a ser compreendida legalmente com suas características e necessidades próprias.
Rizzini e Rizzini (2004) ao traçar uma pesquisa aprofundada sobre a história da institucionalização da infância no país, apontam como a colonização e escravização de crianças negras está presente nesse evento. Mesmo após o período colonial, o perfil das crianças que eram levadas para as instituições de acolhimento era, em sua maioria, de crianças negras. Fato que permaneceu também até o período de democratização do Brasil (GALONI et al., 2022, p. 60). Desse período aos dias atuais, tivemos avanços consideráveis acerca dos direitos das crianças e adolescentes no cenário brasileiro. Porém, também tivemos eventos de violações de direitos que demarcam como a raça e cor da pele podem estar associadas a fatores de risco para a proteção integral de crianças e adolescentes, como a Chacina da Candelária5 no Rio de Janeiro, o crime ambiental e humanitário que ocorreu na Cidade dos Meninos6 em Duque de Caxias, o número expressivo de adolescentes e crianças negras no sistema socioeducativo e socioprotetivo de acolhimento, bem como o índice de evasão escolar e de trabalho infantil de crianças negras superior ao de crianças brancas (BRASIL, 2019). Eurico (2020) entende o racismo estrutural enquanto uma violência que imputa danos materiais e imateriais às crianças, trazendo a elas uma responzabilização e um amadurecimento precoce que podem causar prejuízos significativos ao seu desenvolvimento, com consequências subjetivas que deixam marcas durante toda uma vida:
O racismo estrutural produzido desde tempos remotos se materializa de maneira visceral em crianças negras atualmente, perpetuando a segregação e a negligência; retirando da maioria destas crianças o direito de viver a infância apenas com as preocupações típicas desta fase da vida, atribuindo a elas responsabilidades acerca da provisão da vida material, via trabalho infantil; o amadurecimento precoce, que atinge de maneira mais perversa as meninas, obrigadas a cuidar da casa, das irmãs e dos irmãos mais novos, quando os responsáveis pela própria precarização do mundo do trabalho, entre outras questões, precisam sair para trabalhar e não dispõem de recursos para custear os cuidados prestados por terceiros; a autorresponsabilização dos meninos pelo sustento da família, via remota inserção no futebol profissional como possibilidade de receber altos salários; a expertise de saber como se defender e/ou onde se esconder nos momentos de tiroteios (EURICO, 2020, p. 70-71).
Nascimento (2021) em seu poema chamado Lucidez, fala que o racismo se expressa em tentáculos: há um tentáculo para a pessoa preta de pele clara, um para o porteiro, um para o motorista, um para a pessoa acadêmica, etc. Diante de nossos estudos e aprofundamentos, consideramos que há também um tentáculo que afeta especialmente a infância negra.
A vulnerabilidade social e as consequências do racismo para a infância negra
Abusos, negligência, abandono, situações de violência e discriminação podem ser identificados como estressores que acometem crianças e adolescentes vítimas de racismo (EURICO, 2020). Pensando nisso, dedicaremos essa seção a levantar dados de pesquisas e documentos oficiais que revelam a íntima relação de vulnerabilidade social, racismo e suas consequências para a infância negra. De acordo com pesquisa documental realizada por Antão (2020), dados da Empresa Brasil de Comunicação revelam que mais de 40% das crianças e adolescentes de até 14 anos vivem em situação domiciliar de pobreza no Brasil. Além da dimensão monetária, essa pesquisa também desenvolve outras dimensões tais como: educação, informação, proteção contra o trabalho infantil entre outras, que incidem diretamente sobre a situação de vulnerabilidade social, pobreza e negligência (ANTÃO, 2020).
Segundo pesquisa realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2010), podemos observar ainda um grande impacto do racismo relacionado à pobreza principalmente no que concerne às crianças negras. É notório observar que 26 milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em famílias pobres. No que se refere à cor 45,6%, ou seja, 17 milhões, do total de crianças e adolescentes do país, são negros. Entre as crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%; e entre as crianças negras, 56%. A iniquidade racial entre crianças continua mantendo-se nos mesmos patamares: uma criança negra tem 70% mais risco de ser pobre do que uma criança branca (UNICEF, 2010).
A pobreza retira crianças e jovens da escola e empurra cada vez mais precocemente para o mercado de trabalho, no qual acabam desenvolvendo funções insalubres, tornando-os vulneráveis. Observamos ainda, segundo os dados do Unicef (2010), que 64,78% das crianças e adolescentes que trabalham no Brasil são negros. Meninas negras representam entre 87% e 93% das crianças e dos adolescentes envolvidos em trabalho doméstico no país, e são os mais afetados física e psicologicamente (INSTITUTO PENSI, 2021). Além da pobreza, o acesso à escola e à educação formal também é restrito – uma criança negra entre 7 e 14 anos tem 30% mais chance de estar fora da escola do que uma criança branca na mesma faixa etária.
Para contribuir com os dados estatísticos que revelam a situação em que essa população se encontra, de acordo com o Censo do Módulo Criança e Adolescente (MPRJ, 2021) do estado do Rio de Janeiro, 33,16% da população infantojuvenil é acolhida institucionalmente com maiores incidências à vulnerabilidade (MPRJ, 2021). Podemos observar que o maior índice de acolhimento está evidentemente ligado às crianças de raça negra, incluindo pardos e pretos; 1048 crianças acolhidas com 79,51%, sendo 468 do sexo feminino e 580 do sexo masculino da raça negra. E 631 crianças acolhidas com 47,88%, sendo 286 do sexo feminino e 345 do sexo masculino da cor parda, e da cor preta 417 crianças acolhidas com 31,64%, sendo 182 do sexo feminino e 235 do sexo masculino (MPRJ, 2021, p.58). Os maiores motivos para acolhimento institucional são a negligência com 36,95%, sendo 228 do sexo feminino e 259 do sexo masculino, e o abandono pelos pais ou responsáveis com 9,03%, sendo 46 do sexo feminino e 73 do sexo masculino (MPRJ, 2021, p. 63).
Dadas as estatísticas, é correto afirmar que crianças negras se encontram em situações de vulnerabilidade social de forma mais significativa do que crianças brancas. Considera-se essa constatação um dos tentáculos do racismo estrutural. Tais impactos afetam significativamente a saúde mental e o bem-estar dessas crianças, abrangendo profundamente a questão relacionada à pobreza, com múltiplas dimensões e sendo um processo de exclusão e privação das diferentes condições sociais (ANTÃO, 2020, p. 17). Em uma perspectiva integral de saúde, é possível afirmar que a pobreza na infância e a privação de direitos são um dos impactos causados pelo racismo, que afeta a vida e a saúde dessas crianças. Como trazido também por Sousa (2020):
Diante destas situações, o debate central é: como fica a saúde mental de meninos e meninas negras que ouvem, veem ou vivenciam situações de racismo cotidianamente, que podem levá-las a desenvolver problemas de autoestima, transtornos mentais, dificuldade de desenvolvimento e relacionamento interpessoal? São questões desafiadoras, mas que podem gerar reflexões relevantes sobre como modificar essas estatísticas, reduzir os impactos do racismo e proporcionar um futuro mais próspero para as crianças negras (SOUSA, 2020 p. 24).
Construção de identidade e impactos na saúde mental de crianças negras
Segundo os autores Oliveira, Ribeiro, Rabelo, Cunha, Almeida e Soares (2021, p. 28775) “o racismo sofrido durante a infância impacta na autoimagem do indivíduo como no reconhecimento da identidade racial como negativa, na baixa autoestima e no sentimento de inferioridade perante seus pares, assumindo comportamentos de isolamento”. Os autores ainda trazem que a imagem social da criança negra é marcada pela distinção entre o sexo biológico, feminino ou masculino. As meninas sofrem o racismo mais voltado para sua aparência - quando é imposto um padrão de beleza único e branco - fazendo com que busquem adequar suas características, como o alisamento do cabelo e a negação de atributos afrodescendentes. Já o imaginário social do menino negro está atrelado ao comportamento de malandro, bagunceiro e arteiro (OLIVEIRA et al., 2021, p. 28777). Consideramos relevante ressaltar que essa perspectiva apresentada pelos autores, embora ainda seja perpetuada, também expõe uma lógica binária7 e cisheteronormativa8 de nossa sociedade. Portanto, chamamos atenção para os estudos interseccionais (AKOTIRENE, 2019) e sobre estresse de minorias9 (MEYER, 2003) que nos apontam outros olhares para os corpos e subjetividades. O primeiro trata da intersecção entre raça, gênero e classe, sendo esses índices importantes ao se avaliar a saúde mental da população negra. O segundo considera que o acúmulo de discriminações e exclusões sociais produzem estressores específicos às minorias sociais.
Reconhecemos assim, que a construção da autoimagem da criança negra poderá ser atravessada por sentimentos negativos de inferioridade e desconstrução da sua identidade e noção de self, fazendo com que fiquem ainda mais vulneráveis ao desenvolvimento de transtornos, tais como depressão e ansiedade. Kilomba (2019) relata as dores e angústias na infância ao se perceber em sua pele preta:
[Quando eu era criança] quando pessoas negras olhavam para mim, eu sabia que eu tinha algo a ver com elas, mas não queria porque eu não queria ser vista como uma Neger, como elas eram. Eu pensava que havia todas essas imagens terríveis de pessoas negras nos livros, por exemplo... Ou na televisão, nas notícias, nos jornais, basicamente em todos os lugares. Em toda parte... Até hoje, isto é tão... Então, quando criança eu não queria ser como ela e, ao mesmo tempo, eu era uma delas, e eu sabia disso. Uma situação difícil... (KILOMBA, 2019 p.152).
Ao se falar em saúde mental e identidade de crianças negras é preciso ressaltar que “todo e qualquer sujeito precisa de referências compatíveis com suas características físicas e comportamentais para o entendimento sobre si mesmo e seu lugar de pertencimento no mundo” (Sousa, 2020, p. 61). A formação da identidade, a autoestima e a subjetividade das crianças também são atravessadas por influências midiáticas e por isso merecem atenção especial.
A psicologia brasileira e o compromisso antirracista para promoção de saúde mental
Pensar a história da construção da psicologia brasileira é compreender a complexidade de sua constituição. O salto aparente de uma psicologia individualizante e elitista até chegar a uma psicologia comprometida política e socialmente se deu e se dá através de disputas de narrativas, forças e saberes. No Brasil, a psicologia antirracista vem ganhando força nos últimos anos, sendo correto afirmar que essa caminhada se iniciou em décadas passadas através das inúmeras revisões sobre o conhecimento e da prática científica em torno do debate racial brasileiro (MARTINS, 2022). Na década de 1940, a visão negativa sobre as questões raciais passou a ser questionada de forma mais expressiva e alguns psicólogos e psiquiatras como Virgínia Leone Bicudo, Aniela Ginsberg, Otto Klinneberg e Arthur Ramos trouxeram importantes contribuições nesse sentido. Eles atuaram juntamente aos movimentos negros da época – como a Frente Negra Brasileira, e essa mobilização foi realizada de forma a articularem suas críticas sobre as relações raciais brasileiras dentro da psicologia (MARTINS, 2022).
A partir da década de 70, acompanhando os movimentos sociais e se fortalecendo nos anos 90 com a redemocratização do Brasil, a psicologia é chamada à urgência de questionar suas práticas e se entender enquanto participante do contexto sociopolítico e de seus atravessamentos (GALONI; SILVA; MENEZES, 2022). Mas é apenas em 2005 que vamos consolidar um Código de Ética Profissional menos normatizador e que fundamente teoricamente uma prática comprometida com a responsabilidade social. O Código de Ética Profissional do Psicólogo (2005), em um dos seus princípios fundamentais baseado no seu segundo item, afirma que: “O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão do ser humano.”
O movimento decolonial dentro da psicologia vem sendo abordado por diversos autores, pautado em discussões que estão presentes desde 1980 e 1990 e, um de seus objetivos é superar o modelo hegemônico dentro das ciências humanas (MARTINS, 2022). Portanto, formular uma psicologia antirracista é também se comprometer com a execução de estratégias que possam transpor determinados paradigmas científicos e pseudocientíficos que transitam sobre o campo psicológico (MARTINS, 2022). Consideramos que é necessário rever o modelo de eu, de interioridade e consciência – ou seja, rever o branco, europeu, heterossexual, pois esse paradigma chancela um determinado conceito de clínica, de social e de subjetividade (MARTINS, 2022). A decolonização do saber psicológico visa a construção de uma psicologia capaz de produzir um processo de desconstrução do conhecimento instituído (Ibid.). Tais argumentações estão pautadas na ideia de que a psicologia deve dar ênfase ao papel das relações sociais, de maneira que não seja possível pensar o racismo e seus efeitos deletérios sem problematizar a forma como essas relações foram produzidas histórica e socialmente (MARTINS, 2022). Nesse ensejo, elucidamos aqui que o lugar e o destino desqualificante ou a ideia de um modelo de subalternização para a infância negra não faz mais sentido em uma sociedade que busca a equidade entre todos.
Defendemos o importante papel da psicologia no combate ao racismo, que se estende para além dos consultórios, da sala de aula, dos sistemas e instituições. Contudo, é preciso uma atuação coletiva que vise a promoção e a reabilitação na esfera social, econômica, política, cultural e psíquica do ser humano, que trabalhe em conjunto e com empatia, no intuito de ajudar coletivamente essa população na escuta, no cuidado e nas construções de políticas públicas e sociais. Políticas essas que também atuem no processo de construção e defesa da infância negra, auxiliando na constituição de uma identidade social saudável no âmbito pessoal e institucional. A psicologia deste modo pode organizar-se para ser a própria técnica para o combate do racismo, prevenindo e evitando sua ocorrência (RIBEIRO, 2017). Por fim, acreditamos que atualmente podemos afirmar que está em curso uma psicologia antirracista, que leva em conta os efeitos subjetivos do racismo e as diversas formas de combatê-lo e eliminá-lo (MARTINS, 2022).
Considerações finais
Enfatizamos a importância de discutir os efeitos do racismo na saúde mental da infância negra, pensando em um desenvolvimento global da criança. Nesse sentido, indicamos que sejam realizadas pesquisas que se proponham a entender os efeitos do racismo como estresse precoce na vida de crianças, alinhando políticas de promoção da igualdade racial que produzam saúde, bem-estar e qualidade de vida para a população negra. O racismo causa impactos profundos na vida de pessoas negras. Ele causa dor, desgaste e prejudica profundamente a saúde mental e física, gerando sentimentos de inferioridade e desligamento de identidade racial. Na infância, o racismo pode causar sentimentos de medo, rejeição e discriminação, ocasionando impactos psicológicos na vida da criança negra, trazendo efeitos de baixa autoestima, dificuldade de relacionamento, negação da própria imagem e queda no rendimento escolar. Consequentemente, o racismo impede a criança de brincar, descansar e viver sua infância de forma saudável.
As pesquisas apresentadas neste estudo destacaram os impactos danosos do racismo por toda a vida do sujeito, principalmente quando essa dinâmica ocorre ainda na infância. Nesse sentido, fez necessário destacar que o racismo é uma questão social, cultural e política, que permeia toda a sociedade brasileira e é de suma importância debater esse fenômeno Dessa forma, é preciso investir em estudos e pesquisas que se orientem a tratar o tema do racismo como uma problemática social e estrutural que interfere de forma significativa na saúde de pessoas negras – em especial as crianças, para que essas não sejam mais agredidas por uma estrutura violenta e consigam sonhar suas próprias histórias.
Vale ressaltar que este artigo nasce de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), e em sua pesquisa original foram utilizados alguns critérios de inclusão e exclusão para traçar o delineamento do trabalho. Nesta ocasião, não foram encontrados estudos que contemplassem a temática da saúde mental de crianças negras. Já para a elaboração deste artigo consideramos não somente as contribuições do TCC, mas também ampliamos os materiais analisados através do método de revisão narrativa. Este nos possibilitou a diversificação das fontes de busca tornando, portanto, a pesquisa mais robusta. No que diz respeito aos resultados encontrados, cabe ainda dizer que este estudo expôs a necessidade de investimento em estudos decoloniais e de uma psicologia antirracista. Tal investimento se apresenta como necessário devido à escassez de publicações sobre os efeitos do racismo na infância de crianças negras. Desse modo, indicamos para trabalhos acadêmicos posteriores uma revisão integrativa, ou sistemática da literatura, que vise realizar uma busca mais abrangente nas bases de dados para analisar o estado de arte sobre o tema, tendo em vista a sua relevância.
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Notas
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