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Observatório dos Povos Originários e suas Infâncias – OPOInfâncias: práxis indígenas e não-indígenas
Vanessa Maria de Castro; Maria Lúcia Pinto Leal
Vanessa Maria de Castro; Maria Lúcia Pinto Leal
Observatório dos Povos Originários e suas Infâncias – OPOInfâncias: práxis indígenas e não-indígenas
Observatory of the Native Peoples and their childhoods – OPOInfâncias: indigenous and non-indigenous praxis
O Social em Questão, vol. 26, núm. 56, pp. 225-242, 2023
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: O Observatório dos Povos Originários e suas Infâncias (OPOInfâncias), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (CEAM/UnB), foi criado em dezembro de 2022 por uma necessidade da Universidade de Brasília trabalhar a temática dos povos originários, na qual os indígenas pudessem fazer parte de todo o processo de construção e análise das políticas públicas, voltadas às comunidades indígenas. O OPOInfâncias é um espaço para a reflexão e denúncia sobre as múltiplas violências nas quais os povos indígenas estão sujeitos, e que os impedem de viverem e construírem livremente suas subjetividades e cidadania. A vida dos povos indígenas no Brasil corre perigo desde 1500, com a chegada dos colonizadores, que nunca deixaram de exercer sua força bruta e dominação sobre os corpos e as vidas dos indígenas ao longo destes 522 anos. Assim, este relato apresenta a história da construção do OPOInfâncias e sua missão para contribuir para a melhoria de vida dos povos indígenas no Brasil.

Palavras-chave: Povos Originários, Indígenas, Infância Indígena, OPOInfâncias.

Abstract: The Observatory of the Native Peoples and their Childhoods (OPOInfâncias), of the Center of Advanced Multidisciplinary Studies (University of Brasilia - CEAM/UnB), was established in December 2022, as a demand of the university to address the issues of the native people. The idea was that indigenous people could take part in the construction and analysis of the public policies targeting them. OPOInfâncias is a space to reflect and to report multiple forms of violence these groups face and that affect their subjectivities and stop them to live their lives freely as citizens. The indigenous peoples in Brazil have been in danger since 1500, with the presence of colonizers that never ceased to impose their brutal force and domination over their bodies and their lives. This essay presents the history of the construction of the Observatory and its institutional mission to contribute to improve the lives of the indigenous peoples in Brazil.

Keywords: Native Peoples, Indigenous Childhood, OPOInfâncias.

Carátula del artículo

Observatório dos Povos Originários e suas Infâncias – OPOInfâncias: práxis indígenas e não-indígenas

Observatory of the Native Peoples and their childhoods – OPOInfâncias: indigenous and non-indigenous praxis

Vanessa Maria de Castro1
Universidade de Brasília, Brasil
Maria Lúcia Pinto Leal2
Universidade de Brasília, Brasil
O Social em Questão, vol. 26, núm. 56, pp. 225-242, 2023
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Diciembre 2022

Aprobación: 01 Enero 2023

Introdução

"A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar de calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem da montanha para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os malefícios, que transformarão a floresta num caos. Então, morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar"

(Davi Kopenawa)3

Este relato apresenta o contexto da criação do Observatório dos Povos Originários e suas Infâncias (OPOInfâncias), junto ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (CEAM/UnB), no ano de 2022. O OPOInfâncias tem por centralidade a defesa radical dos direitos dos povos originários e suas infâncias.

O Observatório nasceu da mobilização de docentes, discentes, pesquisadores(as) indígenas e não indígenas, da Universidade de Brasília e Universidades parceiras, por meio do VIOLES-SER/UnB4, do CEAM/UnB e setores da sociedade civil organizada. O projeto também teve apoio de parlamentes progressistas do Congresso Nacional. O Grupo Violes-Ser/UnB, como uma incubadora do OPOInfâncias, atua há mais de duas décadas e desenvolve estudos e pesquisas a respeito da violência sexual contra crianças e adolescentes. Os pesquisadores foram pioneiros na elaboração do primeiro Plano Nacional Contra a Violência Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil, pautando essa questão em âmbito nacional e internacional.

Em 1993 a CPI contra a prostituição de meninas no Brasil foi resultado das denúncias realizadas pelo movimento de meninas e meninos de rua, pelo movimento de mulheres e pela imprensa brasileira, a respeito da exploração sexual de meninas no garimpo de Serra Pelada, no estado do Pará.

De acordo com a OMS (2020), estima-se que um bilhão de crianças ou uma em cada duas crianças em todo o mundo sofre alguma forma de violência. No caso do Brasil, no primeiro semestre de 2021, foram registradas 50.090 denúncias de violência contra crianças e adolescentes, sendo que 81% ocorreu em âmbito doméstico, e mais de 93% contra a integridade física ou psíquica (UNICEF, 2021)5. Entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes até 19 anos, foram mortas de forma violenta no Brasil, e de 2017 a 2020, 180 mil sofreram violência sexual (Fórum de Segurança Pública, 2021)6.

A violência contra crianças e adolescentes indígenas é histórica e nos parece ser desenhada pelo neoliberalismo, que transforma a natureza e os corpos indígenas, físicos ou simbólicos, em mercadoria.

Davi Kopenawa (2015, pág. 407) em seu magnifico livro A Queda do Céu, dedicou o capítulo 19 (Paixão pela Mercadoria) para narrar a história da chegada dos homens brancos e o seu vínculo com as mercadorias. Ao iniciar o capítulo, ele indaga:

O que fazem os brancos com todo esse ouro? Por acaso, eles o comem?7

Kopenawa explica o sentido da mercadoria para o povo indígena Yanomami e a diferencia do que seja a construção do processo de acumulação de mercadorias e bens para os não-indígenas. Encontra-se nesta passagem do livro uma extraordinária narrativa da história moderna e seu processo de acumulação de bens e de capital que tudo transforma em mercadoria, assinalando a diferença em relação à visão dos povos originários. Há neste quesito um contexto estruturante no qual os povos originários se colocam como parte da natureza, para eles não há nenhuma relação de superioridade ou qualquer nível de separatividade. Já os não indígenas estão apartados da natureza, e demonstram interesse em explorá-la e transformá-la em mercadoria para gerar e produzir riquezas. Ailton Krenak (2019), por sua vez, nos lembra sobre a importância de respeitar as formas de vida dos povos originários, que muitas vezes são convidados a participar do modelo econômico que irá exaurir a natureza:

O que está na base da história do nosso país, que continua a ser incapaz de acolher os seus habitantes originais — sempre recorrendo a práticas desumanas para promover mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros —, é a ideia de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza. O Watu, esse rio que sustentou a nossa vida às margens do rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo, numa extensão de seiscentos quilômetros, está todo coberto por um material tóxico que desceu de uma barragem de contenção de resíduos, o que nos deixou órfãos e acompanhando o rio em coma. Faz um ano e meio que esse crime — que não pode ser chamado de acidente — atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou (KRENAK, 2019, pág. 41)8.

As crises cíclicas do capital, alinhadas ao processo frágil de democratização das sociedades, em especial, aquelas dos países em desenvolvimento, torna-se uma forte arma de destruição junto aos povos originários. No caso brasileiro, isso representou extermínio de muitos(as) indígenas. Esse processo vem ocorrendo de forma extremamente violenta desde 1500, com a chegada dos portugueses.

Há no Brasil, de acordo com o último Censo Demográfico Brasileiro 20109, 896.917 pessoas que se declaram indígenas, sendo que 572.083 viviam em áreas rurais e 324.834 viviam nas cidades (área urbana), correspondendo a 0,47% do total da população brasileira. Sendo que 256 povos indígenas são falantes de mais de 150 línguas (IBGE, 2012)10.

Em função da resistência e luta dos povos indígenas, o Brasil tem 13% do território nacional demarcados como Terras Indígenas, que são muito diferentes no quesito do patrimônio particular e do direito de herança, pois elas pertencem a um povo, comprovadamente, que são originários daquele território, não havendo direito individual na titulação da terra11. Existem no Brasil milhares de comunidades indígenas, sendo 729 terras indígenas reconhecidas, e 124 em diferentes fases de procedimento demarcatório, e em processo de identificação, que aguardam decisão judicial.

A importância do Observatório dos Povos Originários e suas Infâncias

A construção de uma sociedade democrática se fundamenta na igualdade de direitos, na participação dos processos democráticos, na partilha das riquezas e no respeito às diferenças.

O Brasil encontra-se com alto déficit junto à população indígena nestes quesitos, desde 1500, seja com os povos originários que vivem em seus territórios conquistados, com muita luta, ou aqueles que foram expulsos de seus territórios e vivem, principalmente, nas "franjas" das cidades, em situações precárias. Desta forma, houve roubo de suas terras e de suas riquezas, além das tentativas de destruição de suas culturas, costumes, línguas/dialetos e cosmovisão do mundo. O massacre dos Yanomami de Haximu revela essa faceta da crueldade que estão expostos por serem indígenas e viverem em suas terras12.

Por isso Ailton Krenak afirma que, "tragédia yanomami mostra que clube da humanidade não é para todos"13, ou seja, "Para o intelectual, as múltiplas formas de violência que os povos originários enfrentam desde o início da colonização são uma prova de que o clube dos humanos com os mesmos direitos definitivamente não é para todos".

Ao longo da história do Brasil, o Estado agiu de forma sistemática, em muitos casos, para impedir as condições mínimas de sobrevivência digna dos povos originários, seja em seus territórios ou fora deles.

Desde o processo de colonização, os povos originários sofrem forte pressão das instituições religiosas, seja no processo de catequização, como na doutrinação da vida e de todos os costumes de seus povos, como demonstra Davi Kopenawa em seu livro: A Queda do Céu, na qual nem seu primeiro nome (Davi) foi dado pelo seu povo, mas sim por missionários. Kopenawa desnuda as mazelas e crueldade que os povos indígenas sofreram e sofrem desde 1500 na convivência nada pacífica entre os não indígenas. Antes eram os católicos e agora, predominam os evangélicos pentecostais, imputando-lhes a obediência pela eterna culpa cristã, transformando, desta forma, os corpos indígenas em corpos dóceis.

Outro fator de muita disruptura cultural, na estrutura das famílias e parentes indígenas, é o processo de adoção de produtos que não faziam parte da sua cultura, como o uso de drogas e bebidas alcoólicas que os tornam, em muitos casos, viciados e violentos com seus familiares. Os povos originários sofrem com uma profunda destruição, preconceito, racismo dos não indígenas, como demonstra a imensa literatura nesta área produzida por pensadores(as) indígenas (Cacique Raoni Metuktire (Povo Kayapó), Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Gersem Baniwa, Altaci Rubim, Daniel, Joênia Wapichana, Sonia Guajajara (Araribóia), Werá Jequaka Mirim – Kunumi MC (Povo Guarani Mbyá), dentre tantos outros(as).

Hoje tem uma extensa literatura produzida pelos indígenas e, por isso, a sua história está sendo contada de forma que mais se aproxima da realidade vivida pelos seus ancestrais. É um resgate histórico fundamental para recolocar a luta dos povos indígenas na agenda política do Brasil.

Para melhor entender a situação dos povos originários, faz-se necessário contextualizar o processo da imensa desigualdade no Brasil, e analisar a relação entre classe, raça/etnia e gênero e se há equilíbrio na partilha dos bens materiais e imateriais produzidos em uma nação. O que se observa é que a desigualdade é um dos principais vetores na promoção do empobrecimento e vulnerabilidade de um povo, principalmente, no caso brasileiro, que sempre se configurou como um país com profunda desigualdade. Por essa razão é tão importante analisar os indicadores sociais em suas múltiplas dimensões: raça/etnia e classe e gênero, entre outros, que possam contribuir para melhor apresentar um diagnóstico da realidade.

Assim, a população indígena se encontra em profunda desvantagem com relação aos indicadores de bem-estar social, comparado ao conjunto da população, ficando, portanto, mais próxima da população negra (pretos e pardos) que, numericamente, é a mais excluída no Brasil14 e 15.

Nestes últimos quatro anos, com o desmonte das políticas, programas e ações relativos à proteção e garantia dos direitos das infâncias e adolescências no Brasil, aliado à ofensiva contra o estado de direito e aos processos de participação e democratização dessas políticas, agudizou-se a precarização da vida das crianças e suas famílias. A pandemia de Covid-19 configurou-se como outro vetor do aumento das violências, orfandade e óbitos, principalmente junto aos povos originários em seus territórios16 e 17.

Os atuais indicadores demonstram a precariedade da vida dos povos originários na gestão do governo da extrema-direita de Bolsonaro. Em alguns territórios foi estruturado um campo de guerra em suas terras18. O que vem acontecendo com os povos originários é uma violação permanente de direitos que já foram conquistados com muita luta, ou seja, a efetivação dos direitos é uma grande batalha para garantir a vida e a dignidade dos povos originários no Brasil.

A prevenção às violências contra as infâncias indígenas, negras, ciganas, quilombolas, ribeirinhas, e de outros territórios vulneráveis deverá ser de natureza transversal nas políticas públicas, aliadas à interseccionalidade, na tríade do orçamento participativo, das políticas públicas descentralizadas e de governança, de forma democrática.

O OPOInfâncias nasce da necessidade de trabalhar com essa temática, que ainda possui poucos estudos e pesquisas na universidade, tendo em vista a urgência para garantia da vida e da dignidade da criança indígena, seja em seus territórios, ou nas cidades. O OPOInfâncias é um espaço de pesquisa, denúncias e reivindicações de políticas públicas efetivas para preservação e qualidade de vida.

O que se observou ao longo da revisão de literatura sobre a temática relacionada aos povos originários é que, ao longo da história, as infâncias indígenas estão sofrendo devido ao descaso. As crianças estão vulneráveis à desnutrição, ausência de atendimento médico e escola adequada, assim como, ao não cumprimento de direitos previstos pela Constituição Federal e pelo Estatuto da criança e do Adolescente.

As imagens estarrecedoras reveladas pela imprenssa nacional e internacional, em janeiro de 2023, sobre as graves violações de direitos que o povo Yanomami vem sofrendo durante a gestão do governo de Bolsonaro, chocaram o mundo.

Como pode ser lido na manchete desta matéria: "A pior situação humanitária que já vi': os relatos de médico que foi atender os yanomami", matéria da BBC News, 22 de janeiro de 202319.

Por isso, o OPOInfâncias é necessário para atuar na defesa da vida e na garantia de políticas públicas ao conjunto da população indígena, sobretudo, visando a proteção das crianças. Essa premência foi explicitada pelas denúncias de desnutrição e fome do povo Yanomami, sendo classificado como uma das grandes crises humanitárias atuais por total negligencia do governo de extrema-direita de Bolsonaro em sua gestão entre os anos de 2019 e 2022.

Desafios e ações do OPOInfâncias

De acordo com o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021 do CIMI20, o ano de 2021 foi um dos mais violentos nos últimos 9 anos. Os dados revelam múltiplas violências contra os povos indígenas, tais como: assassinatos: 176; ameaças: 39; abuso de poder: 33; ameaça de morte: 19; lesões corporais dolosas: 21; racismo e discriminação étnico-cultural: 21 casos; homicídio culposo: 20; violência sexual: 14; tentativa de assassinato: 12; mortalidade infantil: 744 e suicídios: 148. Como relação ao conjunto das violências no Brasil de acordo com Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021.

Com relação às violências que afetam diretamente as crianças indígenas é um quadro devastador o que vem acontecendo no Brasil.

  1. 2021: 744 mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos

  2. 2019: 825 mortes de crianças indígenas

  3. 2020: 776 mortes de crianças indígenas

  4. 2014: 785 mortes de crianças indígenas

Observou-se os principais problemas identificados nos territórios nos quais as crianças indígenas estão sofrendo, tais como:

  1. graves violações dentro dos seus territórios provocados por agentes externos ao seu povo;

  2. assassinatos;

  3. sequestros de crianças;

  4. prostituição de crianças;

  5. violência sexual;

  6. homicídios;

  7. suicídios;

  8. falta de condições de higiene, desnutrição e a miséria;

  9. subnutrição por ausência de alimentação adequada à sua cultura e ao seu povo;

  10. adoecimento em função das múltiplas violências que as crianças indígenas estão sofrendo em seus territórios;

  11. crianças indígenas são removidas de suas famílias e comunidades para adoção e acolhimento institucional pelo estado;

  12. educação do estado inadequada às crianças indígenas;

  13. ausência do estado em proteger a vida das crianças indígenas que sofrem múltiplas violências;

  14. alta taxa de mortalidade infantil;

  15. trabalhos forçados;

  16. trabalho infantil para empreendimento dentro da reserva indígena;

  17. remoção - seja forçada ou sob coação e esbulho - de suas terras tradicionais.

  18. influência de missionários e religiosos impondo novos valores e cultura às crianças indígenas, desrespeitando a cultura do seu povo.

Estes dados são importantes para auxiliar a compreender a extensão do sofrimento constante sofrido pelos s povos originários para se manterem vivos, e em seus territórios, além dos enormes desafios para reverter esse quadro.

No discurso de posse da primeira-ministra do Ministério dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara expos a violência que a política do ex-presidente Bolsonaro provocou junto aos povos indígenas:

"Não posso deixar de lembrar os parentes que foram retirados de nosso convívio pela bala do fascismo que imperou no Brasil nos últimos quatro anos, derramando, sem pudor, muito sangue indígena. Lembremos a força daqueles que tombaram na luta como Paulino, Janildo, Jael e Antonio Guajajara, Ari Uru Eu Wau Wau, Dayane Kaingang, Estela Verá Guarani Kaiowa, Wellington Pataxó, Ariane Oliveira, a menina Raissa e tantos outros parentes vitimados pelo garimpo ilegal, pelas invasões de seus territórios e por tantas outras ações e omissões do Estado. Além disso, preciso destacar a força de Bruno Pereira e Dom Philips, em memória de quem saúdo todos os nossos aliados e aliadas defensores do meio ambiente e dos direitos humanos"21. (Discurso de Posse da Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, 11 de janeiro de 2023).

Já existem os instrumentos de monitoramento e denúncias sobre violência contra os povos originários. A questão que se observa é que há uma ausência de justiça com relação à garantia dos direitos dos indígenas para viverem livremente em seus territórios, em qualquer parte do território nacional, pois são objeto de disputas e invasões por agentes públicos ou privados, como demonstra os dados de violência contra os povos indígenas. Isso é visto em todo o território nacional, os povos indígenas não têm garantias e nem segurança em seu próprio território. Por isso a luta deles é constante.

O OPOInfâncias trabalha com a problemática das opressões e violências praticadas contra os povos originários e suas infâncias e buscará estratégias de resistência às violências e violações desferidas contra as infâncias indígenas no contexto brasileiro.

O que se observou no Brasil é que há, atualmente, muitos estudos e pesquisas sobre os povos originários, principalmente concernente às questões de saúde, educação, língua, literatura e outras áreas do conhecimento. Porém, se verificou ainda uma lacuna com relação aos estudos sistemáticos das infâncias indígenas e a responsabilização do Estado e da federação na garantia das leis previstas pelo ECA, (Lei nº 8.096, de 13 de julho de 1990).

Desta forma, o OPOInfâncias foi criado a partir das denúncias contidas no Relatório Yanomami, lançado em abril de 2022. O Relatório foi realizado por duas associações: Hutukara Associação Yanomami e Associação Wanasseduume Ye’kwana. A força de relato das múltiplas violências sofridas pelos povos Yanomami é a tônica do Relatório.

A leitura do Relatório nos convida a adentrar em um mundo no qual a vida dos Yanomami não tem nenhuma proteção dos agentes do poder público como da sociedade e eles sofrem com múltiplas violências em seu território.

Os [garimpeiros] dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Então, os Yanomami respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida. Relatório Yanomami22 (pág. 85).

O Relatório destaca que o garimpo ilegal cresceu 46% em 2021 na Terra Yanomami, e mais da metade dos Yanomami (56%) é diretamente impactada pelo garimpo. O crescimento de casos de malária nas regiões afetadas pelo garimpo explodiu a partir de 2017. O número de comunidades afetadas diretamente pelo garimpo ilegal soma 273, abrangendo mais de 16 mil pessoas, ou seja, 56% da população total. Existem mais de 350 comunidades indígenas na Terra Indígena, com uma população de aproximadamente 29 mil pessoas. De acordo com o Relatório da Associação Hutukara, os principais fatores para o salto do garimpo ilegal na Terra Yanomami se devem às seguintes questões: Aumento do preço do ouro no mercado internacional; falta de transparência na cadeia produtiva do ouro e falhas regulatórias que permitem fraudes na declaração de origem do metal extraído ilegalmente; fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos dos povos indígenas e, consequentemente, da fiscalização regular e coordenada da atividade ilícita em Terras Indígenas; agravamento da crise econômica e do desemprego no país, produzindo uma massa de mão de obra barata a ser explorada em condições de alta precariedade e periculosidade; Inovações técnicas e organizacionais que permitem às estruturas do garimpo ilegal se comunicar e se locomoverem com muito mais agilidade; a política do atual governo de insistente incentivo e apoio à atividade apesar do seu caráter ilegal, produzindo assim a expectativa de regularização da prática.

De acordo com relatório, Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil (SESAI, 2021), foram reveladas 744 mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos, em 2021. Os estados com maior quantidade de mortes nessa faixa etária foram Amazonas (178), Roraima (149) e Mato Grosso (106). Dados do SIM e de secretarias estaduais de saúde registraram, também, ainda 148 suicídios de indígenas em 2021. Os estados com maior número de casos foram Amazonas (51), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (13).

O OPOInfâncias tem por objetivo trazer narrativas a respeito da luta dos indígenas e não indígenas e demais forças sociais pelo direito à não violência aos povos indígenas e suas infâncias para garantia de direitos humanos.

O Observatório também terá a função de auxiliar na produção de informações para os tomadores de decisão e para a formulação de políticas públicas e direitos no Brasil. A produção de conhecimento é essencial para pensarmos em políticas públicas e direitos que possam melhorar a qualidade de vida dos indivíduos e das comunidades, em suas diferentes dimensões, com especial destaque às crianças indígenas.

Um olhar mediado pela transversalidade na construção de políticas públicas, articulado aos direitos das crianças aos direitos indígenas, são requisitos fundantes para a resolução de problemas estruturais, que persistem desde o processo de colonização de Abya Ayala23, em particular, de Pindorama24, hoje conhecida como Brasil.

O Observatório poderá auxiliar em todos os processos relacionados à formulação de políticas públicas, ou seja, identificação do problema, definição da agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação, avaliação e monitoramento. Esses processos requerem um olhar interseccional, levando em conta diferenças locais, regionais, nacionais e internacionais para implementação de políticas públicas que atendam as demandas dos povos originários.

Apesar dos diversos conselhos participativos, ainda há uma deficiência estrutural no processo de implantação, avaliação e monitoramento das políticas públicas no Brasil.

A missão do Observatório será contribuir para acompanhar a implementação e monitoramento das políticas públicas voltadas aos povos originários. Para realizar essas atividades, o Observatório terá diversos grupos de trabalho compostos por professores(as), pesquisadores(as) e alunos(as) indígenas e não indígenas, sendo, também, fundamental a participação de membros das comunidades indígenas, sem vínculo direto com a academia.

Reconhecer que a informação representa um relevante instrumento de poder de gestão é uma ferramenta fundamental para orientar a tomada de decisões da produção de políticas públicas voltadas aos povos originários.

O Observatório dos Povos Originários e suas Infâncias se apresenta como um incremento inovador na produção da política pública, tendo como função estruturante dialogar com os povos originários e, a partir deste diálogo: (i) diagnosticar os problemas vividos; (ii) estruturar e disponibilizar dados e informações importantes para a produção de políticas públicas, que traduzam as preocupações, necessidades, desejos e anseios dos povos originários; (iii) acompanhar e monitorar as políticas públicas, e; (iv) produzir conhecimento.

Apesar das inúmeras denúncias, relatadas de diversas formas, os povos originários ainda têm dificuldades de encontrar aliados, principalmente dentro do Estado, que deveria proteger e garantir os direitos de forma efetiva, para que possam melhorar sua qualidade de vida a médio e longo prazo, tanto em seus territórios quanto nas cidades.

Após 522 anos os povos originários têm, pela primeira vez, um ministério voltado para cuidar e tratar exclusivamente de seus interesses. Com a eleição de um governo progressista no Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva criou o Ministério dos Povos Indígenas, nomeando Sônia Guajajara para ser ministra. Em seu discurso de posse expressa a esperança de que:

"É com esse espírito que assumo a missão de sensibilizar toda a sociedade brasileira e a convido para juntos, reflorestarmos mentes e corações rumo a uma democracia do bem viver de todos os brasileiros e brasileiras. Os desafios são tremendos. E quero aqui deixar o meu pedido ao conjunto de ministras e ministros, governadoras e governadores, prefeitas e prefeitos, que compreendam o sentido de aldear a política, as políticas indígenas desses novos tempos, como já disse nosso Presidente e, também o ministro da casa civil, também são transversais e necessitam do apoio e do diálogo nas diversas áreas. Estamos diante de uma crise humanitária. Por isso, a criação do Ministério dos Povos Indígenas sinaliza para o mundo o compromisso do Estado brasileiro com a emergência e justiça climática, além de inclusão, reconhecimento e início da reparação histórica, da invisibilidade e da negação de direitos"25 (Discurso de Posse da Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, 11 de janeiro de 2023)

É com esta esperança que o Observatório dos Povos Originários e suas Infâncias dará início às atividades de trabalho neste ano de 2023.

Material suplementario
Notas
Notas
1 Professora da Universidade de Brasília, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Orcid 0000-0002-1962-6797. E-mail. vcastro@unb.br
2 Professora da Universidade de Brasília, do Programa de Pós-Graduação do Serviço Social, Coordenadora do Violes e do OPOInfâncias. Orcid 0000-0003-3762-2009. E-mail: mlucia@unb.br
3 KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce: A queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami 1ª ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pág. 06.
4 O Violes – Grupo de Pesquisa sobre Tráfico de Pessoas, Violência e Exploração Sexual de Mulheres, Crianças e Adolescentes (https://www.violes.com.br/), foi criado em junho de 2002 por um grupo de pesquisadores, especialistas e estudantes. Está articulado com o Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação-DPP/UnB e certificado pelo CNPq.
5 Relatório Anual da UNICEF, 2021. Disponível em: . Acesso em 13 de janeiro de 2023.
6 Fórum de Segurança Pública, 2021. Disponível em: . Acesso em 11 de janeiro de 2023.
7 KOPENAWA, Davi; BRUCE, Albert e PERRONE-MOISÉS, Beatriz. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
8 KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
9 Censo Demográfico 2010, IBGE. Disponível em: . Acesso em 14 de janeiro de 2023.
10 IBGE, 2012, Os indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de Janeiro. Disponível em: , Acesso em 13 de janeiro de 2023.
11 Fonte: Terras indígenas: Artigo 17 da LEI Nº 6.001, DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973, artigos 4º, IV, e 198, da Constituição; (Regulamento) (Vide Decreto nº 22, de 1991) (Vide Decreto nº 1.775, de 1996).
12 O massacre dos Yanomami de Haximu por Bruce Albert, antropólogo. Artigo escrito em 27/09/1993. Publicado na Folha de São Paulo em 03/10/1993 – Caderno Mais! pg. 6-4 e 6-5. Disponível em Acessado em 28 de janeiro de 2023.
13 Ailton Krenak: Yanomamis não entram no clube da humanidade - 28/01/2023 - Ilustríssima - Folha. Disponível < https://folha.com/5hrtkd3p>. Acessado em 28/01/2023.
14 Situação dos índios no Brasil: indicadores sociais e acesso a serviços públicos. Disponível em < https://acervo.socioambiental.org/acervo/noticias/situacao-dos-indios-no-brasil-indicadores-sociais-e-acesso-servicos-publicos-bloco> Acessado em 28 de janeiro de 2023.
15 IPEA, Povos Indígenas Frederico A. Barbosa da Silva Isabella Cristina Lunelli, 2022. Políticas Sociais: acompanhamento e análise. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/11530>. Acessado em 28 de janeiro de 2023.
16 BASTA, Paulo César (2020). A pandemia de Covid-19 entre os povos Yanomami e Ye’kwana: uma nova expressão de antigas desigualdades. In: MACHADO, Ana Maria et al. (orgs.). Xawara: rastros da Covid-19 na Terra Indígena Yanomami e a omissão do Estado, São Paulo: ISA, pp. 17-21. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/xawara-rastros-dacovid-19-na-terra-indigena-yanomami-e-omissao-do-estado.
17 MONTEIRO, Suliete Gervásio. O retorno de Xawara no território Yanomami: conflito, luta e resistência. 2022. 129 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) — Universidade de Brasília, Brasília, 2022. https://repositorio.unb.br/handle/10482/45630?mode=full
18 Governo adota ações emergenciais em socorro aos Yanomami: "vamos dar a eles a dignidade que eles merecem", diz Lula. Disponível em < https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2023/01/governo-adota-acoes-emergenciais-em-socorro-aos-yanomami-vamos-dar-a-eles-a-dignidade-que-eles-merecem-diz-lula-em-boa-vista>. Acessado em 28 de janeiro de 2023.
19 Disponível em . Acessado em 24 de janeiro de 2023.
20 Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2021, CIMI. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2020/10/relatorio-violencia-contra-os-povos-indigenas-brasil-2019-cimi.pdf. Acesso em 30 de dezembro de 2022.
21 Sônia Guajajara. Discurso de posse como 1ª Ministra de Estado do Ministério dos Povos Indígenas, no Governo Luís Inácio Lula da Silva em 11 de janeiro de 2023. Disponível em . Acesso, 19 de janeiro de 2023.
22 Relatório Yanomami sobre Ataque: Garimpo Ilegal na Terra Indígena Yanomami e Proposta para Combatê-lo; Hutukara Associação Yanomami e Associação Wanasseduume Ke'kwana, 2022. Disponível em: . Acesso 19 de janeiro de 2023.
23 Abya Yala ou Abiayala: denominação histórica do continente americano que significa: “terra em plena maturidade” ou “terra de sangue vital” na língua Kuna (pertencente à família das línguas chibchanas), falada por mais de 60 mil pessoas desde o sudeste do Panamá ao noroeste da Colômbia.
24 Pindorama: na língua tupi: "pindó-rama" ou "região das palmeiras”, designação para o local mítico dos povos tupi-guaranis, na região oriental da América do Sul, litoral do Brasil.
25 Sônia Guajajara. Discurso de posse como 1ª Ministra de Estado do Ministério dos Povos Indígenas, no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, em 11 de janeiro de 2023. Disponível em . Acesso, 19 de janeiro de 2023.
Notas de autor
1 Professora da Universidade de Brasília, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. Orcid 0000-0002-1962-6797. E-mail. vcastro@unb.br
2 Professora da Universidade de Brasília, do Programa de Pós-Graduação do Serviço Social, Coordenadora do Violes e do OPOInfâncias. Orcid 0000-0003-3762-2009. E-mail: mlucia@unb.br
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