Resumo: Em 2015 ocorreu um dos maiores desastres socioambientais do mundo, ocasionado pelo rompimento da barragem da Samarco, no município de Mariana-MG. Este trabalho analisa os efeitos socioambientais ocasionados para os ilheiros após a chegada da lama de rejeitos em seu território, no município de Galiléia, Minas gerais. Os resultados evidenciam ruptura abrupta na rotina, no trabalho e nas formas de apropriação material e simbólica do território, conformando importante processo de desterritorialização. Esse processo se desdobra em efeitos socioeconômicos que promovem mudanças sociais, a partir do estabelecimento de novas atividades econômicas para fins de reprodução da vida no território.
Palavras-chave: Neoextrativismo, Mineração, Território.
Abstract: In the year of 2015, one of the biggest socio-environmental disasters in the world occurred, caused by the rupture of the Samarco dam, in the municipality of Mariana-MG. This work analyzes the socio-environmental effects caused to the islanders after the arrival of the tailings mud in their territory, in the municipality of Galiléia, Minas Gerais. The results show an abrupt rupture in the routine, in the work and in the forms of material and symbolic appropriation of the territory, configuring an important process of deterritorialization. This process unfolds in socioeconomic effects that promote social changes, due to the establishment of new economic activities for the purpose of reproducing life in the territory.
Keywords: Neo-extractivism, Mining, Territory.
Entre margens, águas e rejeitos: os efeitos socioambientais do desastre da Samarco para os ilheiros do Rio Doce
Among river banks, water and tailings: the socio-environmental effects of the Samarco disaster on the islanders of Rio Doce
Recepción: 01 Noviembre 2022
Aprobación: 01 Enero 2023
No Brasil, o Neoextrativismo mineral tem sido, especialmente a partir da virada do novo século, uma das principais formas de inserção econômica internacional, fomentando o crescimento econômico e os níveis de bem-estar de parte da sua população, alcançando níveis de extração jamais vistos na história da mineração brasileira (MARTINEZ-ALIER; WALTER, 2015; MILANEZ, 2019). Por outro lado, os desastres provocados pelos rompimentos de barragens de rejeitos de minério têm se apresentado como parte dos efeitos negativos e têm evidenciado de forma trágica os resultados da exacerbação do extrativismo mineral no território brasileiro (MANSUR et al., 2016; MILANEZ, 2019; ZHOURI et al., 2016).
No dia 5 de novembro de 2015, a população da bacia do rio Doce, nos estados de Minas Gerais e Espirito Santo, foi submetida aos efeitos do maior desastre socioambiental registrado no Brasil, ocasionado pelo rompimento da barragem de rejeitos de minério, a barragem de Fundão, de propriedade da Samarco Mineração S/A, Joint venture da Vale S/A e BHP Billiton, de nacionalidades brasileira e anglo-australiana, respectivamente. O rompimento da barragem ocasionou o derramamento de mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos sobre os corpos hídricos da bacia do rio Doce, em especial nos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce. A avalanche de rejeitos causou dezenove mortes, soterramento de parte do distrito de Bento Rodrigues, além da devastação ambiental e aniquilação de vidas aquáticas e terrestres localizadas no fluxo dos rios até alcançar a foz do rio Doce, no município de Regência, estado do Espirito Santo.
Os impactos ambientais causados pelo derramamento de rejeitos têm reduzido as condições de existência de diversas vidas humanas e não humanas e desestruturado diversas formas de organização social, de povos e comunidades enraizadas nos territórios (ZHOURI et al., 2016). Dentre os diversos grupos e sujeitos atingidos pela lama de rejeitos se encontram os “Ilheiros”, lavradores/pescadores que utilizam os territórios insulares para cultivo da roça, para materialização do trabalho e, consequentemente, para a conformação de uma territorialidade singular, a partir da relação afetiva com o lugar. Uma dada coletividade que apresenta formas de apropriação e uso dos recursos naturais distintas dos demais grupos que habitam e utilizam esses ecossistemas e que compõem a paisagem cultural do rio Doce. Pessoas atingidas, para as quais as estratégias de reprodução socioeconômica estavam entrelaçadas com as interações estabelecidas com os recursos naturais comprometidos pela chegada dos rejeitos em seus domínios.
Portanto, é objetivo deste artigo analisar os efeitos socioambientais ocasionados pelo rompimento da barragem da Samarco para os ilheiros do rio Doce no município de Galiléia, Minas Gerais. Importa compreender os efeitos da chegada dos rejeitos em seus domínios, as consequências na relação com o território e os processos desencadeados a partir desse trágico evento.
As discussões que serão realizadas ao longo do texto se fundamentam nas informações levantas em campo, no período de fevereiro a abril de 2020, no município de Galiléia, região leste do estado de Minas Gerais. Para compreender o fenômeno em sua complexidade e extensão utilizou-se a estratégia de estudo de caso, lançando mão de dois métodos clássicos como suporte4: as entrevistas semiestruturadas e a observação participante. Para realização das entrevistas recorreu-se ao diálogo com os interlocutores a partir de um roteiro semiestruturado. Não foi definido previamente o número de entrevistados, esse processo foi influenciado por fatores locais. Todavia, foram entrevistadas treze pessoas, em um universo de, aproximadamente, 21 ilheiros (número estimado pelos interlocutores). Para alcançá-los foi utilizada a técnica bola de neve, iniciada por meio de um informante-chave e, posteriormente, pela indicação dos sujeitos anteriormente entrevistados, formando uma cadeia de referência5. A observação participante foi adotada como método complementar. Todos os momentos de interação em campo foram importantes para a captação de informações difíceis de serem capturadas somente pelas narrativas dos interlocutores. Esses momentos ocorreram durante as visitas às ilhas, na interação dos atingidos com amigos e familiares, com a presença do pesquisador, bem como em duas reuniões que aconteceram no município no período de coleta de dados. Essas informações foram registradas e sistematizadas no caderno e diário de campo. Por fim, todas as informações coletadas foram organizadas, categorizadas e interpretadas a partir das literaturas que orientam este estudo.
Para apresentar e descrever o caso estudado o artigo segue organizado da seguinte forma: na seção dois são apresentadas as questões estruturais que conformam os desastres de rompimentos de barragens, enquadrando-os como processos que se originam no seio das escolhas dos projetos políticos adotados pelos países em busca do “desenvolvimento” nacional. Em seguida, no tópico três e nos subtópicos que o compõem, são evidenciados os custos desse modelo de desenvolvimento ocasionados para os ilheiros, após a chegada dos rejeitos de minério em seu território. Por fim, na seção quatro, são trazidas algumas reflexões em caráter de conclusão.
O Extrativismo6 é compreendido como um modelo de desenvolvimento baseado na exaustiva exploração dos recursos naturais e na expansão das fronteiras para espaços até então considerados improdutivos sob a óptica capitalista (SVAMPA, 2019a). Possui o perfil exportador de bens primários, extraídos em grande volume e intensidade, de forma direta ou indireta, desempenhando papel chave em diversas economias nacionais (GUDYNAS, 2015; SVAMPA, 2019a).
Há um relativo consenso entre os autores do tema que a dimensão histórico-estrutural do Extrativismo está vinculada ao surgimento da Europa e à consequente expansão do capital, o qual se estabeleceu na América Latina ainda nos primórdios da colonização europeia, com a imposição de práticas extrativistas coloniais de ocupação e exploração do território para fins de abastecimento dos centros capitalistas (ARÁOZ, 2020). Um modelo de desenvolvimento devastador que acompanhou todo o processo de constituição e desenvolvimento do território latino-americano (SVAMPA, 2019a, 2019b; ULLOA, 2017). Embora o Extrativismo seja uma prática/modelo de gênese colonialista, alguns autores afirmam que mudanças estruturais importantes no modus operandi do modelo ocorreram especialmente no quarto final do século XX, mais precisamente após a virada do novo século, o que deu sentido a incorporação do prefixo Neo em sua composição gramatical (GUDYNAS, 2015; SVAMPA, 2019a). Cadena (2018) afirma que ele se diferencia por seu caráter corporativo, pela ubiquidade mundial e interconectividade do modelo, taxa de expansão dos mercados de minerais, petróleo e energia, e magnitude das novas tecnologias utilizadas nos processos de exploração.
Em função das mudanças político-institucionais recentemente postas em prática na América Latina, uma outra dimensão se tornou importante na consolidação desse modelo, a sua forma de legitimação social e política, especialmente com a ascensão ao poder de governos “progressistas”, que ocorreu entre os anos 2000 e 2008 (GUDYNAS, 2009; MILANEZ; SANTOS, 2013; SVAMPA, 2019a). Nessa nova fase houve um efetivo interesse estatal com maior imposição de regras, por vezes, aumento de royalties e tributação, mas objetivando a incorporação dos excedentes como forma de abastecimento das fontes de programas sociais e de redistribuição de renda. Um ciclo que se estabeleceu em função do boom das commodities e se estendeu até meados de 2015/2016 (SVAMPA, 2019a). Durante esse período, ainda que a nova dinâmica de acumulação de capital indicasse o aprofundamento da lógica de espoliação e dos conflitos socioambientais, preferiu-se, por parte dos governos, dar ênfase às vantagens econômicas, minimizando as novas desigualdade sociais, assimetrias econômicas, sociais e ambientais geradas pelo processo de exportação de matérias primas em larga escala, os chamados efeitos de derrame (GUDYNAS, 2015). Os desastres de rompimentos de barragens ocorridos no território brasileiro refletem com precisão os custos dessa lógica de espoliação.
Os desastres podem ser definidos como “processos/eventos envolvendo uma combinação de agentes potencialmente destrutivos do ambiente natural e/ou tecnológico, e uma população em condição de vulnerabilidade produzida socialmente e tecnologicamente” (OLIVER-SMITH, 1996, p. 305), um processo que se desenvolve na interface entre sociedade, ambiente e tecnologia. Segundo Oliver-Smith et al. (2017), nos últimos anos, têm sido vários os desastres de média e grandes proporções nas diversas partes do mundo que têm modificado a vida de diversas sociedades, sendo comum falar-se até de uma “epidemia de desastres”. Para os autores, a “epidemia de desastres” é uma expressão metafórica que não diz respeito à incidência generalizada de um mesmo evento sob uma população em vulnerabilidade, mas a processos econômicos e sociais similares que ocorrem em todo o mundo, conduzindo ao risco de desastres.
Partindo desse princípio, percebe-se que os desastres não são eventos isolados no tempo, são construções sociais e históricas, resultados dos enredamentos sociais, econômicos e políticos, portanto, processos que se desenvolvem condicionados socialmente e que culminam num evento em um momento específico, quando se tornam realidade (GARCÍA-ACOSTA, 2020). A aparente subtaneidade do evento se alimenta, na verdade, das dinâmicas próprias da normalidade da vida social (VALENCIO, 2016). Assim, ocorrem na presença de eventos físicos com potencial catastrófico, mas que são profundamente condicionados pelo conjunto de práticas, necessidades, percepções e ideologias das sociedades (GARCÍA-ACOSTA, 2020;OLIVER-SMITH et al., 2017).
Para Garcia-Acosta (2020), as pesquisas realizadas no Sul global indicam que os desastres são problemas exacerbados pelos modelos de desenvolvimento orientados para o crescimento econômico, pelos métodos de acumulação adotados e por padrões de assentamento e ocupação territorial que esse tipo de desenvolvimento promove. Essa correlação entre os desastres no Sul e os modelos de desenvolvimento adotados, se impõe como condição para compreendermos os desastres provocados pelos Extrativismos, tendo em vista que essa forma de apropriação da natureza obedece aos ritmos de governança capitalista global, estando sujeita às demandas internacionais, aos preços definidos nas bolsas de valores e das inserções das grandes corporações nos mecanismos de regulações estatais (GUDYNAS, 2015).
Os Extrativismos como vetores da ideologia dominante sob a retórica do desenvolvimento nacional tornam cristalino o argumento de que, “as causas básicas dos desastres estão profundamente inseridos nas escolhas e valores econômicos e socioculturais dominantes que, inevitavelmente, levam a questões de política e prática” (OLIVER-SMITH et al., 2017, p. 110). Para os autores, essas questões são diversas e presentes em vários níveis, desde a distribuição desigual do poder, à disputa por vantagens econômicas, à apropriação de recursos comuns para benefícios de poucos, até a falta de políticas adequadas, regulações, ou ausência de limites impostos por governos para aqueles que se beneficiam de sua capacidade mobilizadora de recursos financeiros.
Portanto, essas tragédias de rompimentos de barragens de rejeitos têm desvelado as relações assimétricas de poder na construção dos desastres, a desuniforme socialização dos seus impactos e a incapacidade política de aprender com esses eventos, a fim de caminhar no sentido de construção de outras formas de desenvolvimento calcadas em relações menos predatória com a natureza, que não baseada apenas nas vantagens econômicas obtidas a partir da demasiada exploração dos territórios.
O dia 05 de novembro de 2015 ficou marcado na memória e nos corpos de diversas pessoas atingidas ao longo da bacia do rio Doce, quando ocorreu o rompimento da barragem da mineradora Samarco no município de Mariana, no estado de Minas Gerais. A lama tóxica desceu rio abaixo atingindo diversas e múltiplas pessoas, em sua maioria ribeirinhos que viviam nas margem dos rios contaminados, deles extraiam seu sustento e com eles construíam modos de vidas singulares. A lama de rejeitos chegou ao município de Galileia doze dias após o rompimento da barragem. Doze longos dias de angustias e incertezas, pois não se tinha dimensão do tamanho da devastação que atingiria as pessoas na porção média do rio, como não se tem até hoje.
[...] Eu fui lá na ilha, olhei... Rapaz, saí de lá até chorando, vendo aqueles peixes morrendo. [...] eu vou embora pro mato, vou ficar aqui não! [...] fui embora pra lavra. Fiquei quieto pra lá uns 4 dias. Voltei, fui lá na beira do rio... Nossa senhora! Aquele catingão, aquela água descendo, a água descendo, a lama virando, falei: acabou com tudo! O barro desceu, e ainda teimei e fui lá ainda, ainda acudi um pé de laranja”
O relato de Afonso, ilheiro atingido, representa com detalhes o sofrimento causado a um sujeito que vivia entre as águas do rio e nele encontrava as condições materiais e imateriais para a sua existência, e evidencia o sentimento gerado pelas perdas materiais ao ver in loco a nova condição ambiental encontrada. As mortes dos peixes e outros seres que habitavam esse ecossistema são cenas que sempre surgem no discurso dessas pessoas quando acionada a memória desse trágico dia. Para os sujeitos que habitavam as ilhas, a cheia do rio e o encobrimento desse território pela lama de rejeitos também são memórias acionadas na representação das marcas dessa tragédia devastadora. Ao mesmo tempo, o relato de Afonso desvela a reação de uma pessoa atingida diante do contexto de ruptura instaurada com a chegada dos rejeitos, uma pessoa que resolveu se refugiar para suportar o luto, a perda e depois retornar ao cenário de destruição para mensurar o tamanho da catástrofe em sua vida. Essa foi a reação de Afonso, mas elas são diversas, pois são várias formas de afetações que fazem com que os indivíduos adotem diferentes formas de agir diante da catástrofe.
Esses casos experimentados e narrados pelas pessoas atingidas representam como um desastre dessa magnitude, ao instaurar um novo cenário socioambiental, antes de vida e agora de devastação, desestrutura e desorganiza todas as esferas da vida das pessoas atingidas, desde as formas de relacionar com o meio que historicamente os constituiu enquanto ribeirinho, ilheiro, pescador, como as formas organizativas sociais, econômicas e culturais dessas coletividades. Não há possibilidade de retorno a situação anteriormente existente, são “acontecimentos coletivos trágicos nos quais há perdas e danos súbitos e involuntários que desorganizam, de forma multidimensional e severa as rotinas de vida (por vezes, o modo de vida) de uma dada coletividade” (ZHOURI et al., 2016, p. 37).
A lama de rejeitos chegou ao território ilheiro pelas águas do rio, após percorrerem diversos quilômetros desde o epicentro do desastre, contaminando águas e solos, devastando toda a vida biológica existente nesse trajeto, recursos naturais que garantiam as condições materiais para reprodução socioeconômica e cultural de diversos sujeitos e grupos sociais. Em função dessa modificação diversas espécies de peixes foram dizimadas, devido à ausência de condições mínimas para sua sobrevivência.
A pesca era uma atividade relevante na construção do modo de vida dos ilheiros. Nos primeiros anos, após o desastre, não era possível pescar pela redução acentuada desses animais, aliado ao medo da contaminação da água e dos pescados que assombrava as pessoas. Ao longo dos anos, espécies de peixes tão comuns, como a tilápia, dificilmente eram vistas e, quando encontradas, apresentavam mudanças naquelas características comuns, apreendidas pelos pescadores ao longo dos anos no exercício deste oficio, que os tornavam quase irreconhecíveis, como as alterações no tamanho, nos olhos e na pele. Afonso sugere que essa modificação seja oriunda de algum contaminante presente na água, associando-as a existência de um “hormônio” contido no rejeito: “Com esse barro desceu um hormônio muito forte, eu nunca vi tilápia do tamanho que tá dando, eu nunca vi, eu pesco no rio desde menino, eu nunca vi...”. Além da modificação nos corpos, as pessoas atingidas também percebem a mudança no hábito de outras espécies, como a Curimatã, que habitava a parte mais profunda do rio e se deleitava nas areias que se assentavam no fundo do rio, comportamento esse que não é mais percebido nos peixes encontrados.
[...] No rio doce, os peixes que tinham antigamente, de 100%, 40% tem eles agora. Não tá tendo quase nada. Igual cascudo que a gente pega muito, pacumã... Tem, mas é pouco. Antigamente a gente pescava cascudão, bonito, grandão, agora não pega mais peixe grande, pega menor. Peixe como curimba... Você chegava no canalão, se não acertasse três, quatro... Já peguei curimba de 16 kg. Piau é raro pegar piau no rio Doce. O que dando mais é um peixe que parece que não morre, que Deus me perdoe falar, é piranha... é piranha pura. Agora tá dando mais tilápia também. É piranha e tilápia. Antigamente o que tinha muito era o cascudo que era bom de venda (ARNALDO).
Com a avalanche de rejeitos o nível do rio também se elevou, aumentando o cenário de destruição. Matas ciliares foram devastadas nos locais nos quais o rio ultrapassou a sua margem comum de inundação. Com esse aumento do nível da água, os rejeitos adentram em várias ilhas, alastrando o cenário de destruição sobre o território ilheiro. É importante destacar que cada ilha possui sua singularidade em termos de formas e tamanho, com partes mais ou menos elevadas e susceptíveis às inundações do rio. Neste sentido, algumas ilhas foram tomadas por completo, ocasionando a perda das unidades produtivas. Naquelas ilhas mais altas, os rejeitos adentraram nas partes mais baixas, causando alterações em ambientes produtivos específicos.
As consequências ambientais e agrícolas imediatas, causadas pela chegada desses rejeitos nas ilhas, são representadas especialmente pela morte dos variados tipos de cultivos presentes nesse ambiente. Marinês recorda o saldo da tragédia dos cultivos que tinha nas ilhas durante a passagem da lama de rejeitos e que, por isso, não pôde realizar a colheita: “na época tinha 16 pés de coco, sobrou só um pra nós. Tinha mandioca, banana, mas agora não tem mais nada não”. A lama de rejeitos adentrou as ilhas devastando tudo que nelas existia. Nesse momento de chegada dos rejeitos outras importantes perdas materiais ocorreram, como evidenciado por Afonso:
[...] Lá eu tinha um barraquinho de madeira, ai deu aquele trem, apodreceu tudo, levou tudo embora. Aí não mexi mais não, deixei tudo pra lá, meus canos tá tudo dentro do chão cheio de barro (AFONSO).
Embora as ilhas não apresentem uniformidade de formato, em todas elas ficaram registradas as marcas da passagem da lama, marcas que ficarão presentes por longos anos. Essas marcas são representadas pela formação de camadas de rejeitos que variam em espessura, como narrado e mostrado por Antônio: “tem parte que acumulou 30cm, tem parte que acumulou 60cm, porque o barro veio, e nele ficar parado, a água pesada, ficou parada dentro da ilha”. Cabe assinalar que as atividades produtivas nas ilhas reduziram quase em sua totalidade, especialmente por conta dessa nova condição ecológica instaurada. Mas, não sem que houvesse, para algumas pessoas, tentativa inicial de retomar essas atividades produtivas.
[...] A primeira plantação depois dessa coisa aí, plantamos feijão, você precisava ver, você pegava a vagem assim, não tinha nada. Então agora não tem é mais nada. As plantas aqui não sai mais, a gente deixou de plantar” (MARINÊS).
O relato de Marinês mostra como o principal recurso, a terra, não fornece mais as condições mínimas para a continuidade do trabalho. Essa condição faz emergir, nas pessoas atingidas, a sensação de “ponto final”, a instituição de uma nova condição que jamais voltará a estado anterior, como afirma Afonso, “esse barro acabou com nós, acabou e vou te falar com você uma coisa, nós não precisa pensar que vai voltar o que era antes, que não volta não".
Essa tentativa de retorno revela outro fato relevante dessa mudança abrupta na vida das pessoas, pois a chegada dos rejeitos impôs a necessidade de aprender a conviver com uma nova condição ecológica nunca experimentada. A necessidade de reorganizar as formas tradicionais de uso da terra para se adaptar ao novo contexto. Para Marinês “a terra já não é igual, porque a terra da ilha é macia, e agora não tá do jeito que era mais”. A terra está em constante modificação e altera sua condição física em função das mudanças do tempo, criando condições opostas a depender das estações do ano. A ausência de “maciez” da terra, apresentada por Marinês, é explicada de outra forma, através da experiência que Antônio adquiriu ao lidar com o “barro”: “o barro colava um no outro [na época da chuva] e rachava na época da seca”. Essas condições que variam com as estações do ano, indicam uma imensa complexidade para realizar o manejo da terra, que pode ser plástica na época das águas ou rígida na época seca.
[...] Engraçado, na frente da minha ilha, na frente da bananeira minha, aquele trem você olha assim, corre a enxada assim, põe a enxada tá úmido, pensa que tá bom. Rapaz, capina pra você ver, se capinar acabou. Suja a mão da gente, se bater sai aquele pó [...] se tirar o mato ela resseca. Quando não tinha esse problema ai, você podia capinar ao contrário que ficava a mesma coisa dela ali, agora não tem mais (RICARDO).
O manejo da terra, algo tão comum na vida dos lavradores, tornou-se tarefa difícil, exigindo dessas pessoas uma possível reconfiguração das práticas de trabalho, adquirida através do conhecimento dessa nova dinâmica da terra devastada. Fez-se necessário reconfigurar práticas laborais a partir do aprendizado gerado nesse novo contexto de destruição:
[...] Tem que plantar lá embaixo, passa aquele solo brabo que ficou, a gente planta lá embaixo, ai ela vive. Quando vai lá embaixo, aí chega em cima ela... Aí a banana na hora que chega naquele solo de cima, no barro, começa a amarelar as folhas, e começa a morrer” (AFONSO)
Portanto, somente compreender a nova dinâmica da terra e experimentar novas práticas não foram suficientes para garantir o sucesso da lavoura. A realidade é que, após a chegada dos rejeitos o trato com a terra foi inviabilizado em quase sua totalidade, mesmo após as várias e diversas tentativas de tentar trazer a vida de volta à terra. Vários indivíduos se arriscaram ao entrar em contato com os blocos de rejeitos para retirá-los dos locais em que houve maior concentração, para poder proporcionar condições favoráveis para que as plantas pudessem desenvolver. Mas, em todas elas as tentativas se apresentaram insuficientes.
Apreensão importante que carece de destaque, é que os impactos ambientais percebidos e relatados por essas pessoas não estão relacionados somente aos efeitos imediatos causados e observados nos primeiros dias após a chegada dos rejeitos. O ano de 2020 foi marcado por fortes chuvas, que ocasionaram grande cheia do rio Doce, gerando novos efeitos que entrelaçam as dinâmicas próprias do rio e os impactos instituídos com o desastre. Os relatos das pessoas atingidas evidenciam que a cheia ocasionada era diferente, pois trouxe, para além das costumeiras terra e areia, mais rejeitos para as ilhas. Em outras ilhas, a areia trazida pelo rio encobria os rejeitos acumulados anteriormente, criando camadas de solos inférteis e impróprios para uso. A cada nova chuva o desastre se renova para essas pessoas, através de indicadores como a mudança na qualidade da água que chega no rio e dele até as ilhas, em função do revolvimento dos materiais depositados no fundo do rio.
[...] Olha o rio Doce, tá alí, a água tá clarinha. Dá uma enchente, uma chuva qualquer, essa água amarela, água pesada, água forte... então não é a mesma água de antigamente. O minério, os trem tá tudo no fundo, gente. Vem a chuva e revira tudo de novo, volta de novo. Não é como antigamente. Olha nas borda de ilha, agora que a água tá rasa, em volta das ilhas o tanto de minério que tem, é muito minério. A inhaca do barro... tem muita coisa. Não acaba assim, esse trem não vai acabar assim (ARNALDO).
Portanto, esse contexto revela a continuidade de um desastre que não se encerrou no dia do “evento” ou nos anos seguintes, pelo contrário, continua gerando efeitos e agravando a situação de vulnerabilidade dessas pessoas atingidas em função desse prolongamento no tempo e no espaço, mesmo após cinco longos anos após a sua ocorrência.
Os efeitos sociais ocasionados após a devastação da base material abrangem as diversas esferas da vida das pessoas atingidas e geram consequências que, praticamente, inviabilizam a continuidade da vida no território, em grande medida pelo aprofundamento da vulnerabilidade socioeconômica das pessoas submetidas a esse novo contexto. Como evidenciado ao longo das seções, o trabalho nas ilhas e no rio, para além de todo significado, era o garantidor de geração de renda monetária e não monetária e provia os alimentos necessários para a sustentação dos núcleos familiares. E, a impossibilidade da continuidade dessas práticas afeta de forma abrupta a dimensão econômica das famílias. A fala emocionada de Afonso expressa bem o sentimento que impera entre essas pessoas atingidas, pois para ele, “acabou foi tudo [...] quer dizer, ficamos sem a ilha, das coisas que saia de lá, que a gente tirava...”.
A impossibilidade de exercer o trabalho no rio e tornar as ilhas espaços produtivos, desencadeia um processo de pauperização e insuficiência alimentar dessas pessoas, ocasionado o aprofundamento de uma condição de vulnerabilidade histórica do trabalhador rural. Era do rio e das ilhas que vinham os bens que seriam comercializados, consumidos, inseridos nos círculos de trocas e doações. Os pescados, como evidenciado alhures, tinham importância considerável na composição da renda do núcleo familiar daqueles pescadores/lavradores:
[...] Hoje eu tô endividada, quando a gente tinha a ilha e vendia verdura, pescava todo dia e nós podia vender, nós não ficava endividado não. Hoje eu tô endividada. Hoje o que a gente ganha não dá pra pagar todo mundo no dia certo, tem que dividir um pouquinho pra um, um pouquinho pra outro (ARICÉLIA).
Para os sujeitos que mantinham outras atividades para fins de complementação de renda, especialmente na elaboração de instrumentos utilizados na cadeia da pesca, o impacto também foi devastador. As redes, tarrafas, varas de pesca e outros instrumentos antes comercializados agora formam amontoados em cômodos das casas, pois não existe mais comercialização, não há vazão para a quantidade de instrumentos construídos. E, aqui cabe uma breve reflexão, pois para além dos efeitos econômicos, essa realidade desencadeia um outro processo de ordem cultural, pois se são poucos os indivíduos que dominam a técnica, o saber relacionado a confecção desses instrumentos, a impossibilidade de comercialização conduz à falta de motivação para a continuidade da prática, o que irá refletir na própria impossibilidade de reprodução do saber a longo prazo.
Mas era das ilhas que vinham os alimentos para o abastecimento familiar, como enfatizado por Afonso: "vinha uma mandioca, uma banana, vinha uma laranjinha... [...]abóbora, melancia, amendoim. Rapaz, de tudo a gente plantava um pouco pra gente ter pros filhos, pros netos...”. A fartura e autossuficiência gerados pelo suor do próprio trabalho não fazem mais parte da realidade, a rotina agora é de escassez e privações e insegurança alimentar e nutricional. O sentimento de impotência diante dessa nova condição financeira é o que impera entre essas pessoas. “Tudo que é consumido em casa precisa ser comprado”.
Os efeitos negativos gerados na economia familiar são de difícil reversão, pois dependem de um retorno à uma normalidade que, como enfatizado por diversas pessoas atingidas, levará muito tempo para que ocorra. Após a chegada dos rejeitos, além da dificuldade de produzir, os poucos peixes e alimentos que saem do rio ou das ilhas dificilmente serão comercializados na cidade. Quem se arrisca a pescar, por necessidade, não consegue comercializar os pescados, pois todos são carregados pelo estigma da contaminação. Ou seja, paira sobre esses pescados e se estende também para qualquer produto oriundo das ilhas, grande dúvida em relação à qualidade, sobre quais os tipos e níveis de contaminação, bem como os efeitos nos seres humanos a curto, médio e longo prazo. Neste sentido, Ricardo questiona: “se voltar a plantar, quem vai comprar? Ninguém compra mais nada do Rio Doce...”.
A situação de vulnerabilidade impõe uma condição de risco perante a situação de restrição econômica. Algumas pessoas atingidas, por pura necessidade, navegam pelas águas do rio em busca de alguns pescados para complementar a alimentação. Pessoas que precisam enfrentar o medo e conviver com a incerteza em relação a sua qualidade. Para as famílias que se arriscam a comer o peixe a motivação é somente a necessidade. E o consumo dos peixes não é feito de forma tranquila e sem preocupação com o futuro. Todavia, como a sensação é de que a situação atual se apresenta como um fim, e que não existem alternativas para superá-las, o efeito na saúde ocasionado pelo consumo do peixe não será maior do que os efeitos experimentados no presente por essas pessoas.
[...] E se comer esse peixe o que vai acontecer? Eu já comi pra lá... vou morrer mesmo. Água nós busca da mina. O cardiologista falou: não come, mais pra frente vai provocar mal de Alzheimer, vai provocar esse problema no pulmão, nos rins... Eu já estou com isso tudo mesmo. Você sabe o que acontece? (ANA).
Entre as palavras narradas por Ana se esconde um contexto de medo que se estende para além do consumo dos pescados, ao afirmar que “água nós busca da mina”, e extrapola esse pequeno grupo e expande as afetações para grande parte da população Galileense: o medo de consumir a água distribuída pela Companhia de Abastecimento local, tendo em vista que a água é oriunda do rio Doce. A consequência disso é que quantidade expressiva de pessoas que residem na cidade passou a consumir água de duas minas d’água, que foram cedidas por pessoas distintas. A primeira mina foi encanada de uma grande fazenda, distante do centro municipal, por alguns quilômetros, até chegar no local de abastecimento, na saída da cidade. A segunda mina fica localizada na entrada de outra grande fazenda, um pouco mais distante da cidade, mas que não apresenta o mesmo sistema de distribuição da primeira. Quem não consome água das minas é obrigado a consumir água mineral, comprada de fornecedores locais.
[...] A gente compra água, não busco porque não consigo. A água não serve pra fazer comida, nem beber... As pessoas mesmo falam, você bebe? Se eu beber, daqui uns 5 anos eu vou é morrer, eu já sou cheia de problema, aí vou é morrer. Compro minha água toda semana, compro na segunda e na sexta (ARICÉLIA).
É notório como os efeitos econômicos imediatos pelo desastre geram consequências devastadoras na vida das pessoas atingidas, que variam desde a instituição de uma condição de vulnerabilidade econômica até a sujeição à processos sociais complexos. Esses fatos narrados desvelam as dimensões do desastre que enovelam questões econômicas e a eminente construção de conflitos sociais futuros. Apontam para esse cenário de arrasamento da vida das pessoas submetidas a esse contexto de destruição ambiental e a continuidade dessa condição de pauperização que tende a se agravar ano após ano.
No que tange às particularidades do trabalho dessas pessoas atingidas, a morte dos peixes e transformação na qualidade da terra alterou substancialmente os meios de produção, que, ao fim e ao cabo, garantiam as condições econômicas para a sobrevivência dessas pessoas no território. Lavradores e pescadores abandonaram o trabalho na ilha e no rio após o insucesso dos cultivos plantados, pela alteração da qualidade da água e, consequentemente, pela morte dos peixes, ocasionados após a chegada da lama. Atualmente, as pessoas atingidas apresentam alto nível de desânimo, pois o que era alegria, como o trabalho nas ilhas, agora é tristeza e insucesso, como enfatizado por Afonso: “A gente plantava lá, rapaz, tinha prazer de ficar olhando a plantação lá”. Diante desse cenário, foi necessário reorganizar a vida e buscar alternativas para garantir a sobrevivência no território.
Na busca de garantir o sustento da família, vários sujeitos passaram a buscar alternativas de trabalho, exercer outras funções laborais e de ocupação. Algumas pessoas atingidas, geralmente os chefes de famílias, que trabalhavam fora do ambiente estritamente rural, passaram a dedicar mais tempo para essas outras atividades não agrícolas. Por outro lado, as pessoas que destinavam a maior parte do tempo para o trabalho entre as águas e ilhas, agora passaram a dedicar maior parte desse tempo para trabalhos fora desses ambientes. Era necessário se reinventar, buscar o recurso financeiro fora desses ecossistemas para garantir o sustento das famílias e a permanência no território.
É certo que a economia municipal não possui estruturas que comportem a absorção da quantidade de pessoas atingidas agora deslocadas dos seus ofícios. E essa é uma realidade que passou a assombrar as pessoas atingidas, que agora são confrontadas com a necessidade de buscar alternativas econômicas que lhes garantam o sustento. Em um momento de reflexão sobre essas possibilidades de emprego, Rosana afirma que “o que tem em Galileia é a prefeitura ou a cerâmica”. Ou seja, as alternativas vislumbradas pelas pessoas passam, inicialmente, pela contratação no executivo municipal ou tornar-se empregados nas pequenas indústrias locais de cerâmicas, que como enfatizado por outras pessoas, é um trabalho pesado, de sujeição a outros indivíduos em comparação ao trabalho construído ao longo do tempo: "Aqui eu era meu patrão, não tinha ninguém enchendo o saco” (Antônio). Para quem deseja continuar no território e não exercer tais funções, as outras opções agora vislumbradas estão na oferta de serviços, como faxina para o caso das mulheres, ou a venda de dias para os fazendeiros da região, para os homens. Mas em todas elas predomina a submissão a outros indivíduos e não mais a liberdade de construir o próprio trabalho, como posto por Osvaldo:
[...] Hoje eu vendo dia, trabalho pra um, trabalho pra outro, trabalho pra um, trabalho pra outro. E aquilo que a gente tinha pra poder fazer um dinheirinho, acabou! E vou te falar, a gente sofre mesmo. A minha mulher agora, dá faxina na casa dos outros, na casa de um, na casa de outro, pra poder me ajudar um pouco. É complicado meu filho! Aquele ganho que tinha, não tem mais, acabou (OSVALDO).
Afonso, que dividia seu tempo entre as atividades nas ilhas e nas águas do rio, e as complementava com a oferta de serviços de pedreiro, passou a buscar no trabalho externo, nas pequenas indústrias locais de cerâmicas, a renda necessária para o sustento familiar. Após o desastre, passou alguns bons meses exercendo essa função, sem retornar ao rio nem as ilhas, pela impossibilidade de continuidade do trabalho. Nesse ínterim, foi acometido por um problema de saúde. Buscou auxilio governamental, mas teve o pedido negado. A solução encontrada foi oferecer novamente os serviços de pedreiro, mas, como ele afirma, diante das poucas oportunidades que surgem, ninguém quer contratá-lo “por não ter mais agilidade e por estar velho”. Agora, vive dos poucos bicos que surgem esporadicamente. Esse é somente um dos vários casos de pessoas atingidas que tiveram que mudar de oficio ou que ficaram desamparadas financeiramente em função do desastre.
Todos esses casos vivenciados e narrados pelas pessoas atingidas demostram como o desastre solapou as possibilidades materiais de sobrevivência das pessoas no território. Instituiu uma nova condição social para essas pessoas, que passa pelo processo de subordinação, pela não detenção dos meios de produção necessários, pela sujeição às estruturas de poder local e, até mesmo, pela saída do território. E todas essas “possibilidades”, arbitrárias, são representadas pela pessoas como algo contrário à sensação de liberdade, ao sentimento de ser dono da sua rotina, da sua vida, de poder fazer do trabalho algo prazeroso e assim ter uma boa vida, ainda que com pouco lucro, mas uma vida em que o valor se expressava em termos qualitativos e menos monetários.
Para além das perdas econômicas, da redução na qualidade da alimentação e da própria mudança de ofício, viver no rio era o que alimentava os sonhos dessas pessoas, gerava satisfação e qualidade do trabalho e, principalmente, proporcionava o sentimento de pertencimento ao lugar. O rio e a ilha possibilitavam a continuidade de uma vida que, embora dura e com diversas restrições, extrapolava o significado meramente instrumental e de uso desses recursos. Era possível viver, no sentido mais íntimo do verbo.
[...] aqui não era fácil tirar um salário, mas a gente vivia. Quando cansado do trabalho dava um mergulho no rio e voltava a capinar. No fim do dia voltava com um peixinho e com verduras pra casa. A vida que era massa (ANTÔNIO).
[...] A gente chegava no rio, eu chegava no rio, primeira coisa que eu fazia tirava a camisa pulava na água, dava umas braçadas pra lá e pra cá, voltava, entrava no caíque, ia pra lá trabalhar. E agora quem disse que eu faço isso mais? (AFONSO).
Essas narrativas trazem à tona que não existia uma separação clara entre descansar no rio e trabalhar nele ou na ilha, essas duas ações se conjugavam durante os dias e conformavam essa relação singular sujeitos-rio-ilha. Como afirma Godói (2014a), são situações em que não é possível dissociar essas pessoas e seus espaços de vida, os dois se entrelaçam, falar de um é se referir ao outro, e que é nessa relação em que se expressa o sentimento de pertencimento ao lugar.
E é nesse sentido que os relatos evidenciam, ao enfatizarem que “agora não tem mais”, um sentimento que impera entre essas pessoas mesmo após o longo tempo de ocorrência do “evento” do desastre, esse distanciamento das pessoas e de seu território de referência. A restrição de uso e mudanças na forma de apropriação, ocasionados pela chegada dos rejeitos, produz uma nova condição de relação entre sujeitos e territórios conformadas pelo distanciamento, de ruptura e deslocamento desses sujeitos e seus elementos de referência. Não existem novas ações, práticas, mudanças de rotina que possam substituir essa relação sujeito-território construída cotidianamente por longos anos. Esse distanciamento é sentido e percebido por essas pessoas, que agora veem o rio como algo estranho, pouco familiar, pouco íntimo, algo presente apenas no imaginário, como resumido de forma objetiva por Antônio, ao afirmar que “o rio Doce só existe simbolicamente pra nós...”.
O rio Doce era lugar de lazer, descanso, lugar de encontros e reencontros, de sociabilidades. Dimensões imateriais que proporcionavam diversão, descanso, afetividades para todo o núcleo familiar e redes de sociabilidades. O sentimento de distanciamento, tão presente nessas pessoas, desperta preocupações quando são consideradas as possibilidades futuras, especialmente para as crianças que habitam o território. Impera o receio de aproximar as crianças do rio, de estabelecer algum contato com a água, por insegurança em relação aos possíveis efeitos provocados à saúde a curto, médio e longo prazo. Predomina a preocupação com os efeitos dessa ruptura abrupta para essas pessoas que precisam crescer e viver por longos anos no território.
A impossibilidade de uso do rio acarreta em importante ruptura dos laços afetivos e das redes de sociabilidades que davam sentido a territorialidade desses sujeitos. Relações de parentesco e vizinhança, que tornavam o território lugar de lazer, de reprodução de vínculos afetivos, de encontro e festejos.
[...] Hoje em dia, seu Armando tá lá pro lado do baixo, ninguém vê mais ele... ihhh, vez ou outra o cunhado vem aí ver a ilha. Não é mais aquela coisa mais, que a gente tomava banho, fazia churrasco.... não tem mais aquelas coisas, a gente até fazia festa Junina. Juntava o nosso pessoal, o pessoal dele, juntava com os nossos e a gente fazia a festa junina na ilha. Hoje a gente não faz mais nada disso... (ARICÉLIA)
Todas essas dimensões relacionadas à impossibilidade de acesso ao rio e de impossibilidade de continuidade da vida tal como ela era antes do desastre revelam, em seu âmago, a clara impossibilidade de ter efetivo controle sobre o seu território. Têm-se, nesse contexto, um evidente processo de desterritorialização dessas pessoas atingidas. A desterritorialização está “relacionada a processos de exclusão e expropriação em relação a grupos, populações, povos impossibilitados de construir e exercer efetivo controle sobre seus espaços de vida e trabalho, isto é, seus territórios.” (GODOI, 2014a, p. 448).
Em adição, sublinha-se que o processo de desterritorialização aqui descrito, não significa a efetiva perda do lugar, que necessariamente implicaria o desdobramento de um outro processo correspondente, a concomitante reterritorialização (GODOI, 2014b; HAESBAERT, 2004). Nos processos de desterritorialização, em que há a perda socioespacial, lócus da apropriação material e simbólica, tais indivíduos engendram novas tramas sócio-espaciais, apropriando-se de outros lugares mediante novos laços sociais, permitindo-os se reterritorializarem. No cerne do processo aqui descrito se encontra a inacessibilidade de acesso, uso e controle daquele espaço considerado essencial para a reprodução física e social dos agrupamentos sociais, nos quais as tramas da vida estavam a desenvolver.
A desterritorialização dos ilheiros implica, de forma profunda, na impossibilidade de construção de projetos futuros, que por ventura possam considerar a relação com o rio. As pessoas atingidas que sofrem com os efeitos do desastre passam a conviver com a insegurança, com as incertezas e com as frustrações de terem seus projetos de vida destruídos. Os projetos e sonhos que foram construídos ao longo dos anos, sob muito esforço e privações, não são mais possíveis de serem alimentados. Agora, só restam lembrança e saudade de épocas passadas. Essas frustações e afetações perpassam pelas subjetividades de cada sujeito afetado, pelas formas de que se relacionavam com o território, por cada plano destruído, por cada projeto soterrado pela lama de rejeitos.
A ruptura com os projetos elaborados pelas pessoas atingidas durante muitos anos, conformam um conjunto de danos ocasionados às essas pessoas que são da ordem do simbólico, perdas imateriais que são intangíveis numa apreensão meramente econômica. Talvez, por isso, algumas pessoas ainda se arriscam em navegar pelas águas do rio, por uma motivação que se relaciona à manutenção do vínculo com o território, com o rio, que é o que dá sentido à vida dessas pessoas. São danos que afetam os elementos estruturantes dessa cultura específica e que dificilmente serão substituídos ou mitigados. Por isso, a constante sensação de um ponto final, de algo que jamais voltará à condição anterior.
Todas essas dimensões das afetações descritas evidenciam como a autonomia de acesso e uso da base material, aliado às tramas sociais, é fator forjador dos territórios e de uma territorialidade específica (ALMEIDA, 2004; GODOI, 2014b) e condição sine qua non para a sua reprodução física e sociocultural. Disso, depreende-se que a degradação do rio e das ilhas e limitação ao seu acesso ocasionou rupturas nas estratégias de sobrevivência e de garantia do território, historicamente e relacionalmente construídas pelos ilheiros, impelindo, consequentemente, condição de vulnerabilidade social, econômica e ambiental, situações semelhantes às descritas em outros contextos para grupos de camponeses (CASTRO et al., 2018; ZHOURI; OLIVEIRA, 2012). Portanto, evidencia como o desastre se apresenta como um evento/processo “totalizador” (OLIVER-SMITH, 1996), ao promover afetações que atingem as diversas esferas da vida das famílias que lidam com as consequências desses trágicos eventos.
Os rompimentos de barragens de rejeitos de minérios se apresentam como a face destrutiva dessa forma predatória de desenvolvimento e refletem o enovelamento de questões políticas e econômicas diante da alta demanda por minério, como a complacência dos órgãos governamentais, a flexibilização das normas de segurança e nas legislações, a ausência de controle efetivo sobre as empresas e as medidas de segurança necessária. O desastre na bacia do rio Doce revela as consequências desse modelo Neoextrativista de desenvolvimento para as populações que dependem dos recursos naturais para produzir formas próprias de reprodução social, econômica e cultural, como os ilheiros que utilizavam as ilhas e águas do rio Doce como base material para reprodução do seu modo de vida.
A chegada dos rejeitos no território ilheiro evidencia como um desastre de rompimento de barragem, dessa magnitude, afeta todas as dimensões, materiais e simbólicas, dessas populações. A chegada dos rejeitos instituiu uma nova condição material que causou modificações abruptas na rotina, no trabalho, na vida desses sujeitos. Os rejeitos acumulados nas ilhas impediram o desenvolvimento das práticas historicamente utilizadas para manejo da terra. A água contaminada impossibilita a reprodução dos pescados e consequentemente inviabilizou a prática da pesca. Essas atividades são fundamentais na composição da renda e no modo de vida ilheiro. A falta de condições para a continuidade do trabalho institui uma nova condição de vulnerabilidade econômica e insegurança alimentar, fazendo com que essas pessoas atingidas recorressem a outras formas de trabalho, geralmente a submissão a trabalhos que fogem da autonomia e liberdade existentes anteriormente, para garantir as condições materiais de sobrevivência.
Portanto, os resultados apresentados revelam as consequências catastrófica na vida dos sujeitos historicamente vulnerabilizados. Apresentam a face destrutiva do extrativismo tomado como modelo de desenvolvimento nacional. Esses efeitos instigam a promover maior reflexão sobre os projetos políticos e econômicos postos em práticas e, principalmente, quem de fato sofre com os custos dessa exacerbação do extrativismo como modelo de desenvolvimento.