Escrevivendo com mulheres negras em movimento: protagonismos e vivências de mulheres em luta na Bahia
Escrevivendo with black women in movement: protagonisms and experiences of women in struggle in Bahia
Escrevivendo com mulheres negras em movimento: protagonismos e vivências de mulheres em luta na Bahia
O Social em Questão, vol. 1, núm. 57, pp. 13-42, 2023
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Recepción: 01 Marzo 2023
Aprobación: 01 Mayo 2023
Resumo: O artigo discorre sobre a organização política de mulheres negras de dois grupos na Bahia, o Coletivo de Mulheres Mãe Marieta e o Marias em Movimento. Enfatizamos processos de resistência e aquilombamento forjados pelas integrantes dos grupos enquanto sujeitas ativas subalternizadas. Trata-se de estudo qualitativo de natureza bibliográfica e documental, cuja análise orienta-se no pensamento de intelectuais negras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Conceição Evaristo. Para tal finalidade, fundamentamos nossa análise na interseccionalidade e na escrevivência, com o propósito de problematizar contradições e antagonismos gerados pela exploração/opressão de raça, gênero e classe e as estratégias de resistência protagonizadas pelas mulheres negras brasileiras. Os resultados apontam para a vivência da organização política das mulheres negras como espaço potente para autorrepresentação positiva a partir de valores ancestrais baseados na experiência coletiva.
Palavras-chave: Mulheres negras, Organização política, Aquilombamento, Interseccionalidade, Escrevivência.
Abstract: The article discusses the political organization of black women from two groups in Bahia, the Mãe Marieta Women's Collective and the Marias em Movimento. We emphasize resistance and aquilombamento processes forged by the members of the groups as subalternized active subjects. This is a qualitative bibliographical and documental study, whose analysis is based on the thought of black intellectuals such as Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro and Conceição Evaristo. To this end, we base our analysis on intersectionality and co-existence, with the purpose of problematizing the contradictions and antagonisms generated by the exploitation/oppression of race, gender, and class and the resistance strategies carried out by black Brazilian women. The results point to the experience of the political organization of black women as a powerful space for positive self-representation from ancestral values based on collective experience.
Keywords: Black women, Political organization, Aquilombamento, intersectionality, Clerkship.
Introdução
Nas últimas décadas, o movimento de mulheres negras no Brasil deu um grande passo na análise das desigualdades de gênero, trazendo a raça como matriz central explicativa da subordinação das mulheres nas formações sociais escravistas. O fortalecimento das lutas sociais por visibilidade e reconhecimento das pautas na agenda das políticas públicas iniciadas no século XX apressou o debate sobre o racismo, o gênero e a sexualidade e outras discriminações correlatas na conformação das desigualdades sociorraciais. Dito de outra forma, as mulheres negras brasileiras, a partir de suas experiências, formularam e formulam críticas aos efeitos do racismo na vivência do gênero, da sexualidade e da classe; estendendo para a coletividade negra suas marcas deletérias.
Seguindo valores ancestrais, as mulheres negras não desistiram no percurso, abriram caminhos através de estratégias de luta e do aquilombamento, como afirmou Beatriz Nascimento (RATTS, 2007). Para esta intelectual, a história da população negra e sua participação no desenvolvimento nacional deve ser re-escrita pela(o) própria(o) negra(o), condição sine qua non para a conquista da liberdade. A consciência de seus lugares na sociedade remete homens e mulheres negras à tomada de consciência da negritude e à ruptura com o projeto burguês direcionando-as(os) para a militância. Assim, assevera Beatriz Nascimento
Nesse momento abandonei qualquer projeto burguês como se saísse por uma exit [saída] imaginária da fila da Passeata dos Cem Mil. Nesse momento eu tive consciência de minha cor preta e de quanto eu poderia começar ‘de novo’. Comecei então um ativismo político. A militância do movimento negro. Na verdade, as primeiras movimentações por uma mudança social, que estava se concretizando não mais no imaginário [grifo da autora] e sim no Real em todos os continentes do Planeta. (NASCIMENTO, 2021, p. 94-95).
O processo de aquilombamento iniciado em Palmares, segundo Nascimento (2021), é a continuidade da luta por liberdade, pautado em valores e conhecimentos ancestrais subtraídos no colonialismo, ações políticas da população negra que persistem atualmente sob variadas estratégias.
Através do protagonismo coletivo, nós, mulheres negras, confrontamos o racismo, o sexismo e a exploração de classe ao afirmar nosso direito ao bem viver4 e à participação nos espaços de luta e decisão, imprimindo demandas ao Estado que confrontam o racismo na sua feição estrutural.
Este artigo discorre sobre a organização coletiva de mulheres negras com destaque para a criação e atuação do Coletivo de Mulheres Mãe Marieta, em Iraquara; e o grupo de mulheres Marias em Movimento, em Salvador. Este ligado ao Movimento Nacional de População de Rua (MNPR), ambos situados no estado da Bahia.
Os resultados desta análise apontam que ambos os grupos consistem em formas organizativas de mulheres negras como políticas de acolhimento das múltiplas histórias de vida atravessadas pela dor da vivência de sistemáticas discriminações pautadas em estereótipos, assim como a construção de respostas à desproteção social e à violência racial institucional promovida pelo Estado capitalista. São alternativas construídas coletivamente diante dos processos sistêmicos de discriminação, em defesa de direitos das mulheres racializadas, como espaços de autorrepresentação positiva a partir de valores ancestrais baseados na experiência coletiva e são, sem dúvida, uma expressão crítica e necessária ao enfrentamento do racismo patriarcal heteronormativo, conceito cunhado pelas ativistas Jurema Werneck e Nilza Iraci (ALCANTARA, 2020).
Sob o racismo patriarcal heteronormativo, processos de subordinação, violência e inferiorização das pessoas negras adquirem ferramentas que atingem de forma específica todas as que se situam em posições femininas dentro do espectro das identidades de gênero. … A violência é um fenômeno complexo e, nas sociedades afetadas pelo racismo patriarcal heteronormativo, atinge de maneira desproporcional as populações de pele escura, com forte marca do sexismo e das fobias LGBT (WERNECK e SILVA, 2016, p. 11 apud ALCANTARA, 2020, p.20).
O Coletivo de Mulheres Mãe Marieta foi criado em abril de 2021 para atender ao anseio de ter um espaço de diálogo, (auto)formação, acolhimento e liberdade entre mulheres autodeclaradas brancas e negras. Todavia, neste coletivo participam majoritariamente, mulheres negras, da classe trabalhadora, moradoras da “sede” e das comunidades rurais do município de Iraquara, Bahia.
O grupo Marias em Movimento desenvolve sua ação junto com a rede de atenção psicossocial e jurídica à população em situação de rua do município de Salvador, da qual participam instituições municipais e estaduais em defesa dos direitos desta população. Se constitui em uma potente iniciativa do MNPR para atender as demandas das mulheres em situação de rua, em sua maioria negras. Pretende atender as meninas e mulheres cis e/ou trans que vivem nas ruas da cidade em suas necessidades humanas através do fortalecimento de vínculos e acesso aos agentes públicos da rede de atenção psicossocial e jurídicas comprometidos com os Direitos Humanos das mulheres e meninas, com vistas ao acesso às políticas públicas.
A partir das décadas de 1970 e 1980, vários grupos e coletivos de mulheres negras vêm sendo formados no Brasil. Tais grupos são espaços pedagógicos nos quais as mulheres negras produzem conhecimentos sobre o racismo. A partir de suas experiências históricas dão significado e sentido ao racismo na conformação de sua identidade étnico-racial e de gênero e lutam para desvelar os processos ocultados pelo racismo e o sexismo que as inferiorizam. Também estes grupos e coletivos debatem e escrevem sobre os efeitos do racismo nas condições de vida e trabalho, bem como sobre as estratégias para enfrentar as mazelas e as desigualdades sociorraciais a que estão submetidas. Integradas a estes movimentos, as mulheres negras entendem que “a conjugação das discriminações de raça, sexo e classe implica em tríplice militância, visto que nenhuma solução efetiva para os problemas que nos aflige pode advir da alienação de qualquer desses três fatores” (CARNEIRO, 2020, p. 55).
Outra dimensão política das lutas contra o racismo, o machismo e o capitalismo é sua capacidade de não perder de vista nossos pertencimentos como povos da diáspora africana, como amefricanos (GONZALES, 1988).
Lélia Gonzales recompõe em novas bases teóricas a importância da análise da formação-cultural brasileira. Segundo ela, devido a fatores de ordem geográfica, mas sobretudo no plano inconsciente, a América Latina não vem a ser o que geralmente se afirma. Entendendo a construção do conhecimento como um processo de memória e da história, no qual o sujeito cognitivo é criativo, Lélia Gonzalez nos brinda com um jogo de palavras de enorme erudição teórica, política e epistêmica e nos apresenta o modus operandi das tecnologias do colonialismo, que, para servir ao capital/patriarcado e supremacia branca, precisa negar seus sujeitos subalternizados, mas contraditoriamente, usufrui, silencia, oculta a cultura e a riqueza criadas, porém não aproveitadas pelos/as subalternizados/as, acionando o racismo como arma colonial de dominação. O Brasil é uma América africana, cuja latinidade por inexistir, teve trocado o t pelo d, para ser, evidentemente, seu nome assumido com todas as letras: Améfrica Ladina. (ALMEIDA, 2012, p. 174).
Deste modo, tomamos como referência o pensamento de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Conceição Evaristo, assim como de outras intelectuais negras para problematizar as contradições e antagonismos gerados pelo sexismo, o racismo e o classismo que estruturam a vida dessas mulheres no capitalismo. Com isso, enfatizando os processos de resistência forjados por elas enquanto sujeitas ativas subalternizadas. O feminismo negro no contexto do movimento de mulheres negras brasileiras, a interseccionalidade e a escrevivência são os fundamentos teórico-metodológicos deste estudo.
Nas sessões iniciais do texto apresentamos uma breve discussão sobre os movimentos de mulheres negras, seu surgimento e configuração na contemporaneidade, seguida de um diálogo sobre escrevivência e interseccionalidade como propostas teórico metodológicas que inspiram este estudo. Na sequência, apresentamos o Coletivo de Mulheres Mãe Marieta, sua origem e atuação em Iraquara, Bahia, e o grupo de mulheres Marias em Movimento, integrado por mulheres em situação de rua em Salvador.
O presente estudo analisou, dentro dos limites do artigo, experiências de mulheres negras que se organizam de modo estratégico dentro de diferentes realidades. No Coletivo Mãe Marieta raça, classe e gênero cruzam-se com o fator território pela localização em uma pequena cidade do interior, sendo maior parte de suas integrantes moradoras da zona rural. No grupo de mulheres Marias em Movimento, localizado num grande centro urbano, as integrantes confrontam a dura realidade das ruas, a precariedade nas condições básicas de sobrevivência e o estigma da loucura, do uso abusivo de drogas e denegação da maternidade. Isto evidencia que apesar das experiências diferenciadas das mulheres negras e periféricas no que se refere ao acesso ou não a espaços formais de educação e trabalho, lazer, saúde, segurança, informação, o racismo patriarcal heteronormativo molda suas vidas, e mesmo diante das desvantagens e desigualdades geradas por esse eixo de opressão interseccional elas conseguem forjar movimentos de resistência com forte organização e atuação política de combate à discriminação racial e de gênero.
O texto é permeado pelas escrevivências das autoras, como escritas que dialogam com as experiências das mulheres que formam as duas organizações citadas e as nossas trajetórias como mulheres negras que partilham enfrentamentos similares no que concerne às relações interseccionais de raça, gênero e classe, embora experimentados de modos diferentes em função de nossa inserção diferenciada na classe trabalhadora.
Movimentos de mulheres negras no Brasil: breve discussão histórica e conceitual
A atuação política das mulheres negras e sua capacidade de circulação e articulação remontam ao período colonial (WERNECK, 2010). Contudo, neste texto nos atentaremos em historicizar brevemente as lutas recentes e o fortalecimento dos movimentos de mulheres a partir da década de 1970.
Conforme Matilde Ribeiro (1995, p. 446-447) “o movimento contemporâneo de mulheres negras emergiu no bojo da luta feminista e antirracista da década de 70” do século XX em meio à luta pela redemocratização. Neste período observamos a ampliação da participação das mulheres negras no Movimento Feminista (MF), nos movimentos sindicais populares e no Movimento Negro (MN).
A presença de nós, mulheres negras, sempre representou uma tensão em torno da discussão sobre as relações interseccionais de raça, gênero, sexualidade e classe, pois as questões de raça eram desconsideradas ou secundarizadas pelo movimento feminista clássico e as questões de gênero eram pouco pautadas dentro dos movimentos negros mistos.
Lélia Gonzalez (1984) analisa os desencontros e as críticas ao MN e ao MF. Denunciou a reprodução de práticas sexistas no interior do MN, tais como a invisibilidade ou secundarização das questões específicas das mulheres negras, o apartamento das mulheres das instâncias de decisão, assim como a indisponibilidade masculina para realização de tarefas tidas como femininas. Gonzalez (1988) aponta também para a dinâmica interna do MF, pois neste, há uma dificuldade de aprofundamento das relações de raça e classe. Assim, por vezes, nós, mulheres negras, “éramos consideradas ‘agressivas’ ou ‘não-feministas’ porque sempre insistimos que o racismo e suas práticas devem ser levados em conta nas lutas feministas, exatamente porque, como o sexismo, o racismo constitui formas estruturais de opressão” (GONZALEZ, 1984, p. 9).
Sueli Carneiro (2003), com o conceito enegrecendo o feminismo, informa que as trajetórias e demandas de mulheres negras não podem ser interpretadas exclusivamente pelo fato de serem mulheres ou de serem negras, pois o cruzamento dessas estruturas opera de modo violento sobre suas condições de vida.
Diante dessa tensão, foi necessário que as mulheres negras construíssem espaços específicos de luta, mobilizadas pelas concepções de mundo e pelas experiências semelhantes produzidas em função das interseccionalidades de raça, gênero e classe (CARDOSO, 2012).
Era uma demanda prioritária para as mulheres negras a criação de espaços seguros, respeitosos e acolhedores para pautar questões específicas de mulheres trabalhadoras, periféricas, racializadas, sexualmente dissidentes e oriundas de grupos historicamente oprimidos, como negros, indígenas e LGBTI+. Suas demandas específicas são arroladas nos direitos reprodutivos, por melhores condições de moradia e de uma política habitacional com acesso à moradia adequada, saneamento básico e água potável, creche e acesso aos demais ciclos da educação básica e superior, direito às políticas de seguridade social, trabalho, segurança pública em defesa dos direitos da comunidade negra, e finalmente, o exercício livre das diferentes religiões de matrizes africanas. Essas demandas extrapolam a realidade das mulheres brancas de classe média, principais formuladoras do pensamento feminista hegemônico.
O fortalecimento dos movimentos de mulheres negras e a atuação de intelectuais, ativistas e feministas como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, dentre outras, deram relevantes contribuições ao pensamento social brasileiro e foram referências para a luta local e internacionalista da população negra. Dessa forma, demonstraram que o movimento de mulheres negras apresenta trajetória diversa e múltipla. Essa riqueza é fonte de inspiração para a criação de grupos e coletivos contemporâneos, que atuam em redes e tentam interferir nas estruturas interseccionais de raça, gênero, sexualidade e classe.
Antes da década de 1970, já era possível identificar mulheres negras em espaços de luta e protagonizando no Movimento Negro. Como exemplo, a fundação do primeiro sindicato de mulheres trabalhadoras domésticas, na década de 1930, por Laudelina de Campos Melo e a criação do Conselho Nacional de Mulheres Negras em 1950 por Maria de Lourdes Vale Nascimento (XAVIER, 2020).
Tais iniciativas vão se tornando mais complexas com o desenvolvimento capitalista e são descritas por Lélia Gonzalez (1988) como decorrência da ampliação das organizações de mulheres negras em 1970 e sua consolidação nos espaços de luta na década de 1980 nas grandes cidades brasileiras. Durante esse período, pode-se destacar conquistas importantes para organização das lutas das mulheres negras, como a visibilidade das pautas e o fortalecimento dos movimentos de mulheres. Organizações como Aqualtune - 1979, Luiza Mahin - 1980, Coletivo de Mulheres Negras Nzinga - 1983, Associação das Empregadas Domésticas - 1987, Casa Dandara – 1987 – são importantes destaques que merecem menção (GONZALEZ, 1988; SANTOS, 2020).
Em 1982, Ana Claudia Barreto (2021) chama atenção para a criação do Grupo de Mulheres do Calabar, bairro periférico da cidade de Salvador, Bahia, organizado por lideranças femininas moradoras do bairro e que participavam ativamente das lutas e organizações da comunidade por melhorias habitacionais, saneamento básico, saúde e educação. O Grupo tinha como objetivo principal organizar as mulheres em suas lutas específicas, buscar uma fonte de renda e uma creche dentro do bairro.
Ainda na década de 1980, precisamente em abril de 1988, foi fundado o Instituto da Mulher Negra – GELEDÉS, por Sueli Carneiro. O nome do instituto é uma homenagem a uma sociedade específica formada exclusivamente por mulheres das comunidades iorubá, responsáveis por rituais de celebração para as grandes mães e as forças femininas da fé iorubana (CARNEIRO, 2020). O instituto atua há 35 anos na defesa de mulheres que sofrem de discriminações no acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigentes na sociedade brasileira.
Em 1988, as mulheres negras se articularam e realizaram o 1° Encontro Nacional de Mulheres Negras (ENMN), com a presença de mais de 400 mulheres negras de 19 estados diferentes. O encontro nacional foi a culminância de diversas mobilizações e debates e abordou temas como educação, emprego doméstico, formas coletivas de organização, planejamento familiar e a garantia da democracia e da cidadania para as mulheres negras como temas centrais.
As formulações apresentadas pelos movimentos de mulheres negras, segundo Sueli Carneiro (2003), fizeram emergir uma discussão mais integrada de suas realidades, considerando a experiência específica do racismo e do sexismo no país. Dentro dos movimentos, as mulheres negras constroem reflexões e ações que contribuem para romper o imaginário universalizante de mulher e de negritudes e afirmam uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre (CARNEIRO, 2003).
Embora muitas mulheres destes movimentos não reivindiquem associação com o feminismo negro, sabemos que este está diretamente relacionado com as formulações das mulheres negras, ativistas do movimento no Brasil e no mundo. Foram os desencontros e as vivências de conflitos que fizeram surgir novas feições do feminismo, de modo a abarcar a realidade de grupos diversos de mulheres, como as negras, indígenas, lésbicas, trans, das trabalhadoras urbanas e rurais, prostitutas e outras (WERNECK, 2007).
Para Carneiro (2003), com a força desses movimentos as mulheres construíram uma trajetória de autodeterminação política, conquistaram maior representação, ampliaram presença nos espaços de decisão, em diversos postos de trabalho, na academia, nas pesquisas, nos espaços políticos e de militância. Essas mulheres vêm alcançando boa atuação em defesa de seu lugar social e de seu direito de protagonizar as próprias histórias, e inspiram outras mulheres a construírem seus espaços de luta.
Escrevivência e interseccionalidade: uma necessária aproximação
Neste artigo, acionamos o conceito de escrevivência para trazer nossas escritas de “várias vozes”. As vozes das mulheres em situação de rua de Salvador e as vozes das mulheres do Coletivo Mãe Marieta, através de nossas vivências como pesquisadoras negras e militantes, assumindo nossa autoria e nossa atuação política no campo da produção científica.
Ao escreviver neste texto as experiências das mulheres do Coletivo Mãe Marieta e do Grupo de Mulheres Marias em Movimento reconhecemos o entrecruzamento da raça, do gênero e da classe como eixos de poder estruturais e estruturantes de suas vidas que interagem com outros fatores como sexualidade, geração, territorialidade, idade, dentre outros, afetando suas trajetórias de diferentes maneiras.
A interseccionalidade (COLLINS, 2019; CRENSHAW, 2002) como ferramenta analítica da realidade e de sua transformação contribui para compreendermos a interação entre as estruturas de subordinação e os sistemas discriminatórios como produtores das desigualdades e hierarquias que definem o lugar social das mulheres negras da classe trabalhadora. Assim, é observável que a combinação de fatores discriminatórios na vida das mulheres em função dos variados pertencimentos provocam diferentes níveis de desvantagens e vulnerabilidades em suas experiências de vida.
Embora compartilhemos os pertencimentos de gênero, raça e classe, nossas realidades como pesquisadoras e as realidades das mulheres das duas organizações em pauta neste estudo diferem em função de fatores econômicos, acesso à educação, moradia, trabalho formal, espaços de cultura e lazer, exposição à diferentes formas de violências. A perspectiva interseccional supera a universalidade excludente que desconsidera as diferentes realidades e singularidades das mulheres negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, trans, mulheres com deficiência, interioranas, em situação de rua e outras.
Nesse sentido, acionamos a escrevivência neste texto como uma escrita pautada no rompimento da invisibilidade e estereotipia que as mulheres negras enfrentam na história, na literatura, na academia e nas relações sociais de modo geral. Conceito criado no âmbito da literatura, pela escritora Conceição Evaristo, em 1995, designa uma produção marcada pelas experiências e subjetividades das mulheres negras (EVARISTO, 2009).
Segundo Evaristo (2009) estas mulheres são aprisionadas no imaginário de mãe preta, infecundas, infantilizadas, subservientes, animalizadas, sexualmente perigosas, vistas como corpos disponíveis ou descartáveis. Como escrita subversiva, a autora nos convida a pensar a escrevivência como um fenômeno “diaspórico e universal” que pretende borrar esta imagem apagadora da potência da voz, da letra, da escrita, da criação, das engenhosidades e contribuições de tais mulheres, seja de modo individual ou através de movimentos organizados (EVARISTO, 2020).
A partir da escrevivência, como escrita de confronto das estruturas coloniais, as mulheres negras são reconhecidas em seu lugar de insubmissão, protagonismo, resistência e construção de estratégias políticas e sociais. O uso da linguagem é assumido como mecanismo de poder, a escrita como possibilidade de estilhaçar a máscara (EVARISTO, 2009; KILOMBA, 2019) do silêncio e ‘assenhorear-nos da pena’ para produzir as narrativas inscritas em nossos corpos-memória, duplamente marcados pela feminilidade negra.
Ao ampliar-se da literatura para outras áreas do conhecimento, a partir da contribuição de pesquisadoras(es) e intelectuais negras(os), a escrevivência expande horizontes conceituais para construir outras epistemes, com a apropriação e produção de conhecimentos por grupos historicamente subalternizados ou invisibilizados.
Pesquisadoras(es) de diversas áreas vêm acionando a escrevivência em suas investigações como operador teórico-metodológico que abarca modos de ler a realidade e de produzir conhecimentos que provocam fissuras nas normatividades acadêmicas. Para a professora Fernanda Felisberto (2020), a escrevivência possibilita construir novas latitudes teóricas e uma reparação epistemológica, pois convoca a autoria, assume a escrita em primeira pessoa, traz a sensibilidade que extrapola o textual com produções corporificadas, sensoriais.
Evaristo, prefaciando o livro Escritos de uma vida (2020, p.8), de Sueli Carneiro, explica que ao optar pela autoria de mulheres negras como referências teóricas em nossas pesquisas “estamos compondo outra política de citação a partir de conhecimentos até então subjugados”. Conhecimentos cunhados em nossas experiências como mulheres negras em que as relações interseccionais de raça, gênero e classe não podem ser negadas, nem relativizadas.
Esta escrita contribui com o rompimento do epistemicídio, prática denunciada por Sueli Carneiro (2020, p. 8) como conjunto de estratégias pensadas para questionar a capacidade cognitiva das pessoas negras, “todos os processos que reiteram que nós somos, por natureza, seres não muito humanos, portanto, não suficientemente dotados de racionalidade, capazes de produzir conhecimentos e, sobretudo, ciência”.
Assumimos neste trabalho a escrevivência como operador teórico-metodológico que contribui em três frentes: colocamos em evidência a autoria das intelectuais negras com as quais dialogamos neste estudo, rasurando o apagamento de suas produções científicas; assumimos nosso lugar de autoria, como produtoras de conhecimento, um lugar historicamente construído e compartilhado por uma coletividade negra e feminina; e reconhecemos as experiências das mulheres negras, estruturadas pelas relações interseccionais de raça, gênero, sexualidade e classe, como produção de conhecimentos dignos de validação científica.
A escrevivência como método de investigação e caminho de produção de conhecimento é marcada pela posicionalidade implicada (SOARES e MACHADO, 2017; SOUZA, 2020). Esta forma de fazer pesquisa nos autoriza a produzir conhecimentos com base na experiência e emoção, compreendendo que existem diferentes maneiras de ser mulher, negra, interiorana, mãe, educadora, pesquisadora, militante, mulher em situação de rua, como inerentes da totalidade social e, por sermos diversas e atravessadas por múltiplas opressões apresentamos múltiplas formas de expressão de nossas subjetividades.
Através de levantamento bibliográfico e documental5 escrevivemos essas experiências, com base em artigos publicados sobre o Coletivo de Mulheres Mãe Marieta, em especial o texto “Corpo memória, corpo história: (auto)formação e escrevivências no Coletivo de Mulheres Mãe Marieta”, que compõe o e-book Rede Combinamos de Escreviver: experiências de educação antirracista (2022) e o artigo Escrevivências de vida e pesquisa no Coletivo de Mulheres Mãe Marieta (2023), através da Rede de Pesquisa Profissão Docente (UNEB e UFTM).
No caso do Coletivo Mãe Marieta a escrevivência é também parte das vivências do grupo.
“Na experiência com o coletivo de mulheres, a escrevivência é sentida como escrita-memória, como letra que desenhamos para falar de nós [...]. Através da palavra escrita e falada, leituras e escrevivências e de manifestações artísticas diversas, organizamos espaço-tempos de escuta sensível, apoio, aproximação, troca de experiências, incentivo, valorização, que são intensificados na vivência entre mulheres desta cidade.” (SOUZA, SILVA e CRUZ, 2022, p. 267).
A respeito do grupo Marias em Movimento nossa aproximação se deu no decorrer da realização da pesquisa qualitativa de natureza bibliográfica e documental6. O grupo, formado recentemente, reúne mulheres cis e trans que viveram ou vivem nas ruas da cidade de Salvador.
Ao trazer os dois coletivos observamos como os movimentos de mulheres negras seguem se enraizando e ganhando força em vários lugares do Brasil.
“Sou uma, mas não sou só”: aquilombamento através do Coletivo de Mulheres Mãe Marieta
As palavras de Mãe Marieta, “sou uma, mas não sou só”, remete à nossa necessidade de criar espaços de aquilombamento entre mulheres. Este desejo compartilhado alimentou a criação do Coletivo de Mulheres Mãe Marieta, como desdobramento da pesquisa de mestrado (SOUZA, 2020)7, que teve como colaboradores(as) estudantes negras e professoras/es de uma escola de ensino médio na cidade de Iraquara-Bahia.
Nossa inspiração e persistência parte daquela que dá nome ao nosso coletivo, Mãe Marieta8, uma mulher negra referência como parteira, benzedeira, mãe, guardiã de saberes ancestrais, poetisa da oralidade, cujas mãos trouxeram ao mundo centenas de vidas. O legado desta mulher nos provoca a seguir construindo espaços colaborativos onde possamos existir com toda nossa potência criativa.
O coletivo vem se firmando como espaço integrado por mulheres plurais, como professoras, autônomas, mães, donas de casa, mulheres do campo, que optaram por abrir espaço em suas rotinas para estarem juntas, nutrindo uma ambiência de cuidado e fortalecimento, construindo estratégias de empoderamento individual e coletivo através da arte, do movimento, da literatura, da escrita.
Na organização do coletivo Mãe Marieta nos pautamos em alguns princípios do feminismo negro como ética do cuidado, experiência, emoção, prática cotidiana, ancestralidades e empoderamento (SANTOS, 2019; COLLINS, 2019) para nutrir nossas bases conceituais e metodológicas e movimentar os encontros e ações (SOUZA, SILVA e CRUZ, 2022).
Primamos pela horizontalidade e rotatividade de tarefas, e nos organizamos segundo a autogestão, de modo que todas participam das decisões e ações. Os encontros quinzenais integram momentos de nutrição interna e fortalecimento de laços dentro do grupo, através de atividades artísticas, literárias, corporais (sentir), além de estudos e discussões de temas que nos afetam (pensar) e momentos de organização de ações que extrapolam o espaço do coletivo (fazer/agir), estabelecendo parceria com escolas, associações, organizações, comunidades.
As ações incluem atividades desenvolvidas periodicamente, como a realização semestral do Cine Clube Sankofa (cinema na praça e roda de conversa com estudantes), na comunidade rural de Santa Rita e o Sarau Julho das Pretas, evento anual para expressão de diversas linguagens artísticas, por mulheres, em parceria com a comunidade quilombola de Mato Preto, ambas de Iraquara, Bahia.
Dentre as demais atividades temos as vivências, rodas de conversa, participação em eventos, aulas de graduação e pós graduação, grupos de pesquisa, atividades em comunidades rurais, quilombolas, organizações culturais e escolas do município. Com destaque para a vivência Mulheres na Roda Ancestral que está sendo realizada em parceria com as cinco comunidades quilombolas certificadas do município de Iraquara, em 2023, onde trocamos experiências e aprendemos com as guardiãs de saberes ancestrais do nosso lugar.
Temos ainda o projeto Mulheres negras e indígenas de Iraquara: conversando com nossas ancestralidades (NegrArte), idealizado pelo coletivo e contemplado pelo Edital Professor Jorge Conceição, em cumprimento às Leis 10.639/03 e 11.645/089. Foi desenvolvido em parceria com a escola Centro Educacional Manoel Teixeira Leite, pelas(os) estudantes do 3º ano do ensino médio, entre abril e novembro de 2022. Através deste projeto os(as) alunos(as) investigaram mulheres negras e indígenas consideradas como referências em suas comunidades e publicizaram suas histórias através de uma instalação artística aberta ao público.
A existência do coletivo, em seu terceiro ano, é uma estratégia de insubmissão e de afirmação diante das expressões de racismo, sexismo e classismo experimentadas em uma cidade interiorana, predominantemente negra e rural, onde as mulheres são desvalorizadas apesar de seu visível protagonismo. Esse protagonismo tem destaque no comércio local formal e informal, na participação em associações comunitárias, grupos sindicais, espaços religiosos e culturais, na educação escolar e não escolar, na manutenção das tradições, na chefia das famílias, no acesso às universidades, dentre outros.
Os enfrentamentos e invenções cotidianas das mulheres na busca por melhores condições de vida, herança de nossas antepassadas, criam a possibilidade de ampliação dos espaços de atuação, conforme narrado por Souza, Silva e Cruz (2020, p. 267)
No espaço do coletivo de mulheres, construímos uma relação de cumplicidade e confiança, a partir da ética do cuidado, vivificando narrativas que expressam quem somos e como nos posicionamos no mundo, expondo dores e amores, (re)criando espaços de colaboração e coautoria, e concebendo nosso processo (auto)formativo e nossas experiências como conhecimento.
Como mulheres do coletivo compreendemos a importância deste espaço como estratégia política de aquilombamento. O fato de estarmos juntas, nos apoiando, sentindo liberdade para nos expressar faz do coletivo um espaço diferente dos demais. Este pode ser visto como espaço de segurança entre mulheres, de produção de autoria, que contribui para nos sentirmos acolhidas em nossas singularidades.
Nossas discussões partem de intelectuais e autoras negras, feministas negras, entrelaçando a teoria com nossa prática cotidiana para compreender e confrontar os eixos que estruturam nossas relações, conforme descrevem Souza, Silva e Cruz (2022, p. 269):
Compreendemos nosso lugar social forjado pelos eixos raciais, de gênero, sexualidade, idade, território, colocando na centralidade das discussões nossas histórias como mulheres comuns, mulheres negras, de baixa renda, jovens, idosas, trans, quilombolas, indígenas, corpos dissidentes, e escrevivendo vamos encontrando modos de nos apropriar da liberdade, negociando e inventando formas e espaços de existência.
Os momentos de estudo e reflexão abrem espaço para falar de nós, de nossos saberes e fazeres como mulheres singulares, que partilham experiências comuns. No coletivo temos a oportunidade de perceber como as relações interseccionais de raça, gênero e classe se fundem a fatores como território, sexualidades, idade afetando nossas formas de vida e trabalho.
Na pesquisa de Souza (2020), as mulheres de Iraquara expuseram experiências sobre corpo e cabelo, pertencimentos, relações familiares, profissionais e escolares, muitas das quais causaram sofrimentos desde a infância, inclusive na escola (SOUZA, 2020). Afirmaram perceber e confrontar estereótipos aprisionadores que relacionam seus corpos à hipersexualização, objetificação, lascividade e disponibilidade sexual, à imagens de controle (COLLINS, 2019) como mãe preta, eterna doméstica, serviçal, à corpos que não pertencem a espaços associados a conhecimento, intelectualidade ou poder, à pessoas não bonitas, e à animalização ou criminalização pautadas em suas estéticas (SOUZA, 2020).
As escrevivências mobilizaram memórias relacionadas a experiências com estruturas raciais e de gênero, a relação com o corpo e cabelo, com nossas ancestralidades e pertencimentos, vida profissional e familiar, autoestima, aspectos que afetam nossas trajetórias em diversos âmbitos[...] Caminhamos juntas na afirmação de nossas ancestralidades, na desestabilização de verdades únicas, discutindo e compreendendo as estruturas interseccionais para aprender a nos acolher, a nos proteger mutuamente, a negociar estratégias e nos tornarmos cúmplices nos processos de cuidar de nós (SOUZA, SILVA e CRUZ, 2022, p. 276).
Consideramos este espaço como lugar de reflexão, afetividade, acolhimento e cuidado. As escrevivências, como parte deste processo, mobilizam a reflexividade, as escritas de nós, de nossas experiências, dos desafios cotidianos, das dores, até ações de enfrentamento e a cumplicidade que nos fortalece. É a partir da ciência da violência das estruturas de poder que podemos construir processos de descolonização de nossas mentes, desconstruindo estereótipos, exercitando nossos feminismos na prática através da ética do cuidado e do empoderamento entre mulheres (SOUZA, SILVA e CRUZ, 2022).
O coletivo é espaço de reflexão, expressão e afetividade, em que a as escrevivências aparecem como possibilidade de compartilhamento de experiências, como as organizações de mulheres que seguem inspirando nossas ações políticas e nossos protagonismos.
Invisibilizadas nas ruas, mas potentes na luta: ação política e solidariedade entre as mulheres em situação de luta
Jandira nasceu em Ilhéus, sul da Bahia, mas se mudou com o pai e o irmão para São Paulo com alguns meses de vida. Nunca conheceu a mãe, que morreu no parto. Até os nove anos, lembra que tinha uma vida considerada boa, apesar das dificuldades financeiras. Quando completou 10 anos, sofreu abuso sexual do pai e de outros dois amigos dele. “A violência foi tão grande que eu fiquei na UTI por dois meses e perdi o útero.”
Em busca de vingança, meu irmão matou nosso pai.” Jandira prefere não revelar todos os detalhes da época, mas o fato é que ela ficou presa por quase 20 anos. “Eu estava no Carandiru no dia do massacre [quando 111 detentos foram mortos após uma intervenção da Polícia Militar], morei na Cracolândia por muito tempo e hoje vivo nas ruas de Santa Cecília.” (CALAIS; ESTEVES, 2022)
A história de Jandira é avizinhada de outras mulheres negras desumanizadas pelo racismo na ordem capitalista. Sem acesso à moradia, mulheres em situação de rua habitam as cidades, expropriadas, oprimidas e exploradas e os direitos humanos violados. São trajetórias inscritas na dinâmica das classes sociais desde o período colonial aos dias atuais. Neste contexto, o corpo da mulher negra foi mercantilizado para realizar trabalho escravizado nas plantações, nas casas grandes e nas ruas. Circunstâncias objetivas nas quais o trabalho era desqualificado, humilhante, insalubre e direcionado para o cuidado, limpeza e a prática sexual do estupro sob o mando de seus(suas) proprietários (as). Desumanizada pelo racismo, durante a escravidão e posteriormente na República na condição de trabalhadora assalariada, a mulher negra buscou e busca a liberdade, protagonizando histórias de lutas em vista sua emancipação que precisam ser conhecidas e visibilizadas.
O grupo Marias em Movimento é uma iniciativa extremamente viva e conecta com os pressupostos sugeridos por Beatriz Nascimento sobre o ato de aquilombar. A realidade das ruas é violenta, inóspita, sobretudo para as mulheres e meninas negras que moram neste território. Segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com e para a População em Situação de Rua (UFMG), viviam nas ruas de Salvador, em 2021, 962 mulheres. Destas, 918 são pretas e pardas.
Nosso encontro com o grupo Marias em Movimento foi motivado pela pesquisa em andamento sobre e com as mulheres e meninas em situação de rua vinculada ao Observatório de Racialidade e Interseccionalidade - ORI/ UFBA-CNPq. Com as (os) estudantes do curso de serviço social bolsistas de pesquisa, participamos de uma atividade organizada pelas Marias no auditório da Câmara dos Vereadores de Salvador. As convidadas da mesa de debate deram depoimentos das trajetórias de vida. Relataram dores e estratégias para enfrentamento das múltiplas formas de violência que as deixam vulneráveis ao racimo patriarcal heterossexista. Foram depoimentos fortes, que retratam a violência diária que as mantém em situação de vulnerabilidade física e psicológica. Por razões éticas esses depoimentos não serão aqui apresentados. Assim
falar sobre (...) posições marginais evoca dor, decepção e raiva. Elas são lembretes de lugares onde mal podemos entrar, dos lugares nos quais dificilmente ‘chegamos’, ou não ‘podemos ficar’ (KILOMBA, 2019, p.57).
Sobre os discursos marginais, silenciados pelo poder e estruturas dominantes revelam nossas experiências.
Elas espelham as realidades históricas, políticas, sociais, emocionais das ‘relações raciais’ em espaços acadêmicos e deveriam, portanto, ser articuladas tanto teórica quanto metodologicamente (KILOMBA, 2019, p.57).
Nestes termos, o caminho metodológico adotado para dar visibilidade às expressões da questão social apresentadas - mulheres negras em situação de rua do grupo Marias em Movimento -, foi a pesquisa documental a partir das fontes documentais privilegiadas, das quais selecionou-se notícias da web localizadas em sites variados; dando ênfase às matérias jornalísticas que valorizam os depoimentos, trajetórias de vida, as violações de direitos e estratégias de luta. As trajetórias dessas mulheres negras remetem às estruturas coloniais, mantidas pela colonialidade do poder (QUIJANO, 2005), mas também resistências e re-existências. Estas, segundo ALMEIDA (2021, p. 181), implicam num “devir no qual a liberdade da matriz colonial se coloca como condição objetiva e subjetiva da luta de classes e em vista do projeto emancipatório.
No percurso da busca, foi localizado 1 registro na WEB sobre as Marias em Movimento, matéria publicada no dia 04/03/2022, no site da Câmara Municipal de Salvador, evento organizado pelo MNPR, sob o título ‘Políticas Públicas para Mulheres e População LGBTQI em Situação de Rua: O que queremos?’. O evento aconteceu no auditório da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em Ondina. (CÂMARA MUNICIPAL DE SALVADOR, 2022) Apesar da matéria não trazer as vozes das Marias, salienta ponto importante referente a necessidade de reconhecimento da raça e do gênero na formulação de políticas públicas para a população em situação de rua.
Nas histórias das Marias, Maria Lucia Santos Pereira, líder do MNPR, na Bahia, foi a referência e inspiração para a criação do grupo. Foi eleita como representante pelo próprio MNPR para participar do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e comentar as recomendações da Relatoria Especial de Moradia Adequada, realizada em Genebra em 14 de março de 2016. Segundo a matéria, o relatório aponta para o aumento da população em situação de rua no mundo e que este fenômeno está diretamente ligado à “crise global dos direitos humanos e com o aumento da desigualdade da riqueza e propriedade” (TERRA DOS DIREITOS, 2016).
“(...) A questão da habitação é central porque dela depende várias outras. Não se tem acesso a saúde ou trabalho sem que se tenha pra onde retornar no fim do dia (...) Os governos precisam se mobilizar pra fazer a inclusão desta população em habitações adequadas, por que é um público diferenciado” (TERRA DOS DIREITOS, 2016).
Fez críticas contundentes ao Estado, sobretudo às instâncias municipais, responsáveis pela implementação e execução das políticas públicas.
“É muita vergonha que ainda encontremos tantas pessoas dormindo na rua, violentadas, espancadas, assassinadas, sofrendo todo tipo de preconceito cotidianamente. A única coisa que queremos é garantir minimamente a vida de cada um, e o governo não pode virar as costas pra isso” (TERRA DOS DIREITOS, 2016)
A morte inesperada de Maria Lucia, em 2018, impacta diretamente na dinâmica do movimento. O MNPR é chamado a intervir durante a pandemia da Covid 19. Foi neste contexto que conhecemos Sueli Oliveira, liderança e integrante do grupo Marias em Movimento. Coordenadora nacional do MNPR e representante da região nordeste, Sueli Oliveira é responsável por identificar e formar lideranças e realizar as articulações para o fortalecimento das pautas das pessoas em situação de rua. Ela assim se auto representa
Sou mulher negra, como muitas nesse país, que viveu em trajetória de rua e conseguiu superar essa situação. Enquanto tudo em volta me dizia que eu não iria conseguir, minha força de vontade de superar me colocou de pé. E também o fato de Maria Lúcia sempre acreditar nas pessoas. Ela nunca desistiu de ninguém, sempre disse que era possível. Essas frases, eu carrego comigo até hoje. O único apoio que tive foi o Movimento Nacional População de Rua – MNPR. (DEFENSORIA PÚBLICA, 2022)
Essa situação de rua [ morar na rua] durou mais de seis anos. As dificuldades são todas, principalmente por ser mulher; o preconceito é muito maior. Na visão da sociedade, a mulher é sempre aquela que não quer nada, só quer vagabundagem, é prostituta, ladra. Enfim, são vários os estigmas, mas nunca se perguntam o porquê de ela estar nessa situação. Ninguém está na rua porque quer. É muito triste a situação de rua, pois não conseguimos comer direito, beber água, não temos acesso a banheiro ou lugar pra tomar banho e fazer a higiene pessoal; e quando a mulher está menstruada, é ainda mais complicado. Na rua, eu agia como um homem para me proteger, pois tinha medo de ser violentada. Mas o meu medo maior era da sociedade. A gente cria grupos e forma família na rua justamente para se proteger (DEFENSORIA PÚBLICA, 2022).
As Marias em Movimento são parte orgânica do MNPR e desnudam sobre as raízes das desigualdades sociais. Através da organização coletiva discute a violência de gênero, racial e sexual nas ruas, a falta de moradia, água potável, acesso ao trabalho, do cuidado dos filhos, mas também acolhem, cuidam e lutam contra os processos que as tornam vulneráveis por não disporem de políticas públicas que atendam as suas necessidades e de sua coletividade.
Considerações finais
As lutas das mulheres negras ao longo da história e na contemporaneidade são representativas do papel decisivo que tais mulheres vêm desempenhando contra as hierarquias estruturadas pelo racismo patriarcal heteronormativo. As condições adversas de sobrevivência sempre exigiram dessas mulheres a invenção de diferentes formas de organização e atuação política tendo em vista os marcadores da racialidade, do gênero e da classe.
O Coletivo de Mulheres Mãe Marieta e o Marias em Movimento são exemplos de grupos organizados de mulheres em diferentes contextos e realidades. O primeiro grupo é integrado por mulheres, em sua maioria negras e interioranas, muitas das quais moradoras de comunidades rurais. O segundo é formado por mulheres negras, em situação de rua, expostas a vulnerabilidades e violências extremadas, o que torna esta organização ainda mais desafiadora.
A análise interseccional possibilita olhar para esses fatores reconhecendo a diferença dentro da diferença, admitindo que, como mulheres negras caminhamos por avenidas semelhantes considerando os eixos raça, gênero, sexualidade e classe, mas podemos ser vitimizadas por fatores adicionais que marcam outros pertencimentos individuais e coletivos.
A organização política do Coletivo de Mulheres Mãe Marieta e do Marias em Movimento evidencia processos de resistência e aquilombamento construídos a partir da inspiração nos Movimentos de Mulheres Negras no Brasil. Nestes grupos confrontamos modelos hegemônicos e imagens de controle e articulamos discussão e prática numa perspectiva antirracista e feminista que se fortalece no trabalho coletivo e colaborativo entre mulheres.
Ao escreviver sobre a organização das mulheres negras em Iraquara e Salvador, compreendemos como estas formas organizativas se configuram como espaços de construção de ações estratégicas de luta pela superação das condições de desigualdade para que possamos experimentar melhores oportunidades em todos os aspectos da vida social, pessoal e profissional. Através de tais grupos nos afirmamos em nossas singularidades, reafirmamos nossa potência ancestral e participamos de ações e movimentos coletivos que buscam desestabilizar estruturas racistas e patriarcais para protagonizar a luta pelo nosso direito de ser e estar no mundo.
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