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Lutas populares urbanas: interseções entre trabalho e militância em perspectiva sociobiográfica
Tarcísio Perdigão Araújo Filho
Tarcísio Perdigão Araújo Filho
Lutas populares urbanas: interseções entre trabalho e militância em perspectiva sociobiográfica
Urban popular struggles: intersections between work and activism in a socio-biographical perspective
O Social em Questão, vol. 1, núm. 57, pp. 69-94, 2023
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: A concepção popular de luta sintetiza as formas de agência dos sujeitos diante as múltiplas temporalidades dos conflitos sociais. Nesse texto, discutimos como a trajetória de vida de uma mulher das classes populares é impactada a partir de sua inserção em espaços de militância. Utilizando abordagem sociobiográfica, analisamos as narrativas de uma vendedora ambulante de Belo Horizonte que encontrou nos movimentos por moradia uma saída para fazer frente às adversidades. Os resultados sugerem que esse engajamento pode diversificar as estratégias mais imediatas de “viração” dos sujeitos, assim como podem levar a uma expansão objetiva e subjetiva de seus horizontes sociais.

Palavras-chave: Lutas populares, Comércio ambulante, Movimento por moradia, Lutas populares, Movimentos sociais, Militância.

Abstract: The working-class common understanding of struggle integrates subjects' different contexts of agency concerning the various temporalities of social conflicts. In this text, we aim to discuss how the life trajectory of a working-class woman is impacted from the moment she becomes involved in militant spaces. Using a socio-biographical approach, we examine the narratives of a Belo Horizonte female street vendor who joined a housing movement as a coping strategy for adversities. The results suggest that this engagement can diversify individuals' most immediate strategies for "getting by," as well as an objective and subjective expansion of their social horizons.

Keywords: Urban popular struggles, intersections between work and activism in a socio-biographical perspective.

Carátula del artículo

Lutas populares urbanas: interseções entre trabalho e militância em perspectiva sociobiográfica

Urban popular struggles: intersections between work and activism in a socio-biographical perspective

Tarcísio Perdigão Araújo Filho2
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Brasil
O Social em Questão, vol. 1, núm. 57, pp. 69-94, 2023
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Marzo 2023

Aprobación: 01 Mayo 2023

Lutas populares urbanas: interseções entre trabalho e militância em perspectiva sociobiográfica1

Tarcísio Perdigão Araújo Filho2

Resumo

A concepção popular de luta sintetiza as formas de agência dos sujeitos diante as múltiplas temporalidades dos conflitos sociais. Nesse texto, discutimos como a trajetória de vida de uma mulher das classes populares é impactada a partir de sua inserção em espaços de militância. Utilizando abordagem sociobiográfica, analisamos as narrativas de uma vendedora ambulante de Belo Horizonte que encontrou nos movimentos por moradia uma saída para fazer frente às adversidades. Os resultados sugerem que esse engajamento pode diversificar as estratégias mais imediatas de “viração” dos sujeitos, assim como podem levar a uma expansão objetiva e subjetiva de seus horizontes sociais.

Palavras-chave

Lutas populares; Comércio ambulante; Movimento por moradia; Movimentos sociais; Militância.

Urban popular struggles: intersections between work and activism in a socio-biographical perspective

Abstract

The working-class common understanding of struggle integrates subjects' different contexts of agency concerning the various temporalities of social conflicts. In this text, we aim to discuss how the life trajectory of a working-class woman is impacted from the moment she becomes involved in militant spaces. Using a socio-biographical approach, we examine the narratives of a Belo Horizonte female street vendor who joined a housing movement as a coping strategy for adversities. The results suggest that this engagement can diversify individuals' most immediate strategies for "getting by," as well as an objective and subjective expansion of their social horizons.

Keywords

Popular struggles; Street vending; Housing movement; Social movements; Activism.

Artigo recebido em março de 2023

Artigo aprovado em maio de 2023

Introdução

Durante pesquisas de campo em espaços de sociabilidade das classes trabalhadoras, o termo “luta” é ouvido com certa frequência e em diferentes contextos de enunciação. Podemos citar ao menos dois principais. De um lado, o termo pode se referir à ação política dos grupos minoritários, representando, principalmente, a prática dos movimentos sociais e de seus participantes diretos, mas também de sindicatos, associações e partidos. Trata-se das lutas por direitos, lutas por justiça, lutas por reconhecimento, luta pela democracia, etc. Há, inclusive, a variação do termo, em forma de gíria, em que se diz que certa pessoa “é de luta” para se afirmar ela faz parte da “militância” – como dizemos contemporaneamente.

Por outro lado, de forma mais abrangente, o termo também é empregado pelos sujeitos no contexto de suas contingências cotidianas, representando, mais precisamente, sua relutância em favor das condições de sobrevivência para si mesmos e/ou para seus familiares. Esse tipo de concepção se destaca quando os elementos mais fundamentais da reprodução social, como trabalho digno, saúde ou moradia não constituem em garantias, fazendo com que grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras percebam suas vidas à semelhança de um campo de batalhas. Isso ocorre ao passo que uma atitude digna de guerreiro – outro termo do mesmo léxico – se torna necessária nos mais diferentes âmbitos da vida. Por exemplo, escuta-se de um vendedor ambulante que ele luta para vender suas mercadorias, ou que ele luta para não as ter apreendidas pela fiscalização; uma mãe que luta pela vida de seu filho, buscando o tratamento de saúde mais adequado e no momento certo; ou uma moradora de ocupação que luta para não ser desabrigada.

Apesar de exprimirem diferentes temporalidades dos conflitos sociais – entre os campos da política e do cotidiano –, percebemos que, em certas situações de interlocução, ambas concepções se apresentam embaralhadas. Em uma pesquisa desenvolvida em torno do trabalho de vendedores ambulantes, isso nos chamou a atenção, principalmente, quando colhemos relatos de vida de mulheres que, além de trabalharem nas ruas, eram ativas em movimentos sociais e eram chefes de suas famílias.

Essas interlocuções nos instigaram a levantar algumas questões cujo escopo analítico extrapolava o caso específico das trajetórias que reconstituímos na pesquisa. Primeiramente, como podemos apreender a interseção entre as diferentes dimensões das lutas urbanas por meio dos relatos dos trabalhadores? Em que medida a inserção de um sujeito em espaços de militância pode impactar suas estratégias de vida, em especial em suas formas de gerar renda? E, finalmente, como essa inserção pode afetar a percepção do próprio indivíduo a respeito de sua trajetória como um todo?

Neste artigo, buscaremos refletir sobre essas questões tendo como base a análise aprofundada de uma trajetória sociobiográfica. Nossa interlocutora, nomeada Carolina3, é uma mulher negra, lésbica que, por décadas, “ganhou a vida” trabalhando como vendedora ambulante e participando ativamente de movimentos sociais urbanos. Antes de adentrarmos no universo que sua biografia nos apresenta, desenvolveremos uma discussão sobre os alcances analíticos da metodologia utilizada e, em seguida, contextualizaremos a pesquisa da qual a interlocução com Carolina faz parte.

Possibilidades teórico-metodológicas da análise sociobiográfica

Os argumentos que buscamos desenvolver neste texto foram elaborados como desdobramento da pesquisa de doutorado, realizada entre 2017 e 2021, intitulada “Viver na tora: trabalho ambulante e estratégias de vida nas encruzilhadas da gestão contemporânea do comércio popular”. Na tese, objetivamos retomar o olhar sociológico sobre essa forma de trabalho tradicional nos centros urbanos latino-americanos, a exemplo de Belo Horizonte, onde o trabalho de campo foi desenvolvido. Atentamo-nos para as estratégias elaboradas pelos sujeitos e coletivos para organizarem as atividades, em resistência aos dispositivos de controle vigentes (ARAÚJO FILHO, 2021).

Lançamos mão de expediente metodológico qualitativo, em caráter etnográfico: o primeiro passo foram as incursões em campo em alguns dos locais com maior aglomeração de ambulantes na área central da cidade, onde pudemos dialogar com diferentes grupos de trabalhadores. Em seguida, buscamos realizar entrevistas em profundidade4 com sujeitos que estabelecemos maior vínculo em campo. Uma dessas interlocutoras foi Carolina, cujos relatos nos debruçaremos à frente.

A principal enfoque buscado na realização das entrevistas foi a análise sociobiográfica. A partir das percepções dos sujeitos e das memórias que eles traziam para contar suas vidas, pudemos explorar diferentes dimensões da sociabilidade urbana que ajudam a remontar a história do comércio ambulante em Belo Horizonte.

Diante desse objetivo, o enfoque sociobiográfico apresenta duas vantagens que se complementam. Primeiramente, ele permite colocar em relação diferentes perspectivas sobre um mesmo objeto, de tal forma que a dimensão “particular” daqueles que elaboram os relatos permanecem vinculados aos sentidos mais gerais que buscamos reconstruir (BERTAUX, 1980; BOURDIEU, 1998; GUÉRIOS, 2011) – tornando possível demonstrar de que maneiras as relações dos espaços privado e público se superpõem (CABANES, 2006). Para tomar uma biografia como objeto de pesquisa, ela deva ser compreendida como uma construção social. Isso implica concebê-la tanto como produto de processos sociais quanto como manifestação do mundo experiencial dos sujeitos (ROSENTHAL, 1993).

Em segundo lugar, a abordagem tem como foco a compreensão das subjetividades e agência dos sujeitos no mundo em paralelo aos contextos que eles destacam em suas narrativas (WENGRAF, 2000). Desta forma, a abordagem se torna uma alternativa para que as análises se baseiem em categorias previamente definidas. A reconstituição de cada universo biográfico provoca o pesquisador a refletir sobre a permeabilidade entre variadas dimensões de análise que, não raro, se mantém teoricamente apartadas, possibilitando, desta forma, a ampliação de suas fronteiras analíticas (DEBERT, 1997; ROSENTHAL, 1993).

Considerando o conjunto de entrevistas realizadas, chamou atenção a diversidade de formas com que o tema do trabalho foi expresso nas diversas narrativas que colhemos. Isso se deve não à suposta ausência de forma do ofício que analisávamos, mas porque objetivávamos reconstruir os significados das atividades a partir do contexto das trajetórias biográficas, privilegiando a heterogeneidade de concepções sobre o trabalho, em especial porque elas se deslocam dos parâmetros convencionais do assalariamento (LAUTIER, 1998). Buscávamos reencontrar a diversidade de formas de engajamento e investimento subjetivo nas atividades de trabalho que, convencionalmente – e de forma pouco produtiva –, se subsomem às noções genéricas de “trabalho informal” ou “comércio informal”, tornando obscuras certas especificidades do fenômeno mais amplo da “viração”5, como alguns autores brasileiros têm se referido (ABÍLIO, 2017; FREIRE DA SILVA, 2011; RIZEK, 2006). Foi devido a esta postura metodológica que o engajamento na militância de alguns indivíduos despontou como um tema importante para a compreensão de como eles se inserem e se mantêm no comércio ambulante.

Nesse sentido, destacou-se durante o trabalho de campo que as formas com que o engajamento profissional de algumas ambulantes mulheres foi narrado por elas de forma imbricada à construção de sua “carreira militante”. Não somente as circunstâncias de inserção laboral podem se tornar o ponto de partida para certa atuação política, como também a militância pode, gradativamente, se configurar como um campo de possibilidades de emprego e renda.

Para pensar a articulação entre trabalho, família e militância, tomamos como referência a noção de carreira utilizada por sociólogos como Becker (2008) e Goffman (2001), e elaborada originalmente por Hughes (1958). O autor a conceitua a partir de suas duas dimensões. Ele aponta que, de início, a carreira pode ser entendida como uma sequência de posições que um indivíduo passa ao longo do tempo. Trata-se, então, de sua faceta objetiva. Porém, conjuntamente, há de se levar em conta a subjetividade inscrita nessa definição. Isso quer dizer que o termo contempla também as interpretações que o próprio indivíduo desenvolve e explicita para conceber sua vida como uma sequência de fatos e eventos.

Mobilizamos também a noção de bifurcação biográfica (BIDART, 2006). O conceito diz respeito aos momentos de uma trajetória que correspondem a mudanças significativas (ou radicais) em sua orientação, cujo momento e resultado são relatados, no geral, como imprevisíveis. Por representarem uma espécie de ruptura das expectativas sobre o desenrolar da vida, as bifurcações se ressaltam nas narrativas quando os entrevistados buscam explicar como e por que agiram de determinada forma nesses momentos de virada. Por essa razão, posicionar as bifurcações biográficas como um foco das análises acaba por ser de grande poder heurístico uma vez que, assim, se revelam os diversos e dinâmicos “ingredientes da ação”, bem como as suas diferentes escalas e temporalidades implicadas (BIDART, 2006).

Contexto de interlocução

Em 2018, quando foi entrevistada, Carolina havia completado 50 anos de idade. Ela figurava, então, como uma das lideranças de uma ocupação vertical recém-formada, localizada no centro de Belo Horizonte. Naquele tempo, o tempo de Carolina era dividido entre a maternidade (mãe solteira de uma filha), o trabalho como ambulante e as atividades junto aos movimentos sociais.

A ocupação urbana que Carolina ajudou a construir carregava características que se relacionam aos aspectos mais estruturantes de sua própria trajetória. O movimento vincula pautas da habitação popular com o do direito ao trabalho dos vendedores de rua. De forma até então inovadora, também consolidou suas estratégias de mobilização ligadas a essas duas pautas pelo direito à cidade. Além de se tornar local de moradia provisória para sujeitos periféricos que trabalhavam na área central (em grande parte vendedores ambulantes), o saguão do edifício foi convertido em uma espécie de “centro de referência do trabalho de rua”, onde ocorriam reuniões periódicas e atividades formativas diversas.

Escutei Carolina falar pela primeira vez enquanto ela ocupava o púlpito da Câmara Municipal de Belo Horizonte, durante uma sessão de audiência pública que visava debater as operações de regulamentação do comércio popular na cidade. Apoiada por seus companheiros da ocupação, Carolina discursava com fervor em defesa dos ambulantes que atuavam clandestinamente – localmente chamados de toreros –, alvos constantes da repressão policial e das operações de fiscalização que apreendem suas mercadorias. Após o contato inicial efetuado após aquele evento, marcamos uma entrevista no saguão da ocupação, seguida de uma visita guiada pelo edifício ocupado.

A trajetória de Carolina

A apresentação da trajetória de Carolina, a seguir, adotará a mesma lógica pela qual ela elaborou as narrativas sobre a própria história em entrevista. Reorganizados em ordem cronológica, descreveremos os eventos e períodos que ela acentuou como os mais importantes para contar a própria história. A partir desses recortes, refletiremos sobre os variados aspectos relativos ao contexto social que atravessam a noção de luta inscrita em seus relatos.

Origens familiares

Carolina nasceu em 1968 em uma cidade do interior, no leste de Minas Gerais. Ela nunca conheceu os pais biológicos. Diz ter sido “resgatada” por uma família e levada para Belo Horizonte ainda bebê. Na mesma época, ela conviveu com um irmão, também adotado, porém de origem diferente da sua.

Como seus pais biológicos, a família que a adotou também era de origem pobre. A casa onde passou a infância, localizada em um bairro na periferia de Belo Horizonte, situava-se em um terreno compartilhado com a família extensa: ao lado de sua casa, moravam tios, tias, primos, primas. Entretanto, Carolina e seu irmão conviviam principalmente com a mãe, dona de casa. O pai trabalhava fora, mas ela nunca soube precisamente onde, ou mesmo a que profissão ele se dedicava. Tinha consciência, no entanto, que a convivência no lar era “complicada”, devido aos problemas financeiros e ao alcoolismo de sua mãe.

Carolina e seu irmão moraram com essa família até 1981. Quando tinham, respectivamente, 12 e 10 anos de idade, foram adotados (novamente de maneira informal) por de famílias amigas, separando-os em diferentes lares. Carolina passou a viver com sua madrinha (prima de sua mãe adotiva) e padrinho de batismo em um distrito rural de um município da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Por ser distante do centro urbano, referiu-se ao local como “roça da roça”.

A nova família também era pobre. Sem renda estável, Carolina explica que “se viravam”: sua madrinha cuidava da casa e vendia bolos caseiros, enquanto seu padrinho realizava serviços variados e esporádicos na região.

As primeiras experiências de trabalho de Carolina foram no meio rural. Ela desempenhava tarefas isoladas dentro de pequenas produções de sua região: debulhava milho, trabalhava na colheita de tomate, recolhia entulho. A oferta de trabalho era sazonal e os pagamentos aconteciam normalmente “por empreitada”, sob a forma de diárias. Se os pagamentos eram inconstantes, a busca por trabalho era permanente, levando-a a abandonar a vida escolar logo no início da adolescência. Segundo ela, a principal motivação foi a vontade de poder comprar suas “próprias coisas”. Entretanto, parte do que ganhava era utilizado para contribuir para o pagamento das contas da casa, ainda que sua madrinha fosse contrária à sua dedicação integral e prematura ao trabalho. Em suas palavras: “mesmo faltando as coisas dentro de casa, ela achava que eu não tinha idade para trabalhar”.

Com 15 anos, Carolina decide sair de casa com destino a Belo Horizonte. A decisão de mudança foi efeito das constantes brigas com seus familiares. Ainda assim, sua saída foi, de certa forma, negociada para que fosse recebida na casa de seus tios, localizada no mesmo terreno em que morou quando era criança.

Renda e moradia incertas

O retorno a Belo Horizonte marcou o início de sua vida como vendedora ambulante, modo de levar a vida que se ajustou às condições e urgências que se impuserem desde sua chegada à metrópole. Começou a trabalhar como vendedora de picolés, o que a permitiu “começar do zero”.

Eu fui indicada por um amigo que é também camelô hoje. Ele me pegou e me levou lá na fábrica de picolé e falou, “olha essa menina aqui está precisando trabalhar e tal, vê se vocês deixam ela pegar o picolé”. Aí eu preenchi uma ficha lá e ele deixou, e emprestou o carrinho. E eu assinei uma nota promissória para que ele me fornecesse mercadoria sem grana. Aí deixei meu documento né, com eles, como forma de garantia. Aí no momento que eu deixei... aí já fui fazendo meu capital. [...] Aí eu vendi os picolés no dia, aí no final do dia eu ia lá, acertava. E fui juntando o dinheiro na semana, fui juntando até para uma outra ocasião que eu quisesse vender uma outra coisa, eu já tinha um capital.

Ao descrever as primeiras experiências nas ruas de Belo Horizonte, Carolina relata que, em um primeiro momento, sentiu vergonha de expor e anunciar as mercadorias, sentindo o peso do estigma que a ocupação de vendedora ambulante até hoje carrega. Ressalvou, contudo, que dentre as opções de renda que lhe pareciam disponíveis no meio urbano, o comércio ambulante despontou como a alternativa mais plausível às suas necessidades imediatas. Em suas palavras, sua intenção era “trabalhar mesmo”:

Eu preferi partir pra essas coisas do que me envolver com coisas erradas. E, às vezes, era um receio também da minha madrinha, na época. Era um receio que ela tinha de a gente se envolver com as tretas erradas, achando que eu fosse cabeça fraca. Mas eu não era. E a minha intenção era trabalhar mesmo. [...] Camelô, menino, o negócio deles não é agir errado, quer agir certo, só que a prefeitura não deixa a gente trabalhar.

Durante o primeiro ano vivendo em Belo Horizonte, sua rede de apoio mais próxima se restringia à família que a abrigou. Com o passar dos meses, de forma similar ao que ocorreu em seu lar anterior, Carolina conviveu com a opressão da família que não aceitava seu modo de vida. Para além da escolha do trabalho nas ruas, seus tios também não respeitavam sua orientação sexual. Os conflitos domésticos vieram a se agravar a partir do momento em que assumia publicamente seus primeiros relacionamentos com mulheres.

Aos 17 anos foi “colocada para fora” da casa dos tios, dando início a um longo período sem moradia certa. Passava noites com amigas e namoradas, “pulando de casa em casa” em várias regiões da cidade. Também dormia frequentemente em pensões no centro da cidade, perto de onde trabalhava, a fim de evitar o tempo e o dinheiro gastos com os deslocamentos. E, ainda, quando se via sem opções ou recursos para pagar as estadias, acostumou-se a dormir em alguns espaços públicos, como no saguão do Terminal Rodoviário.

Por falta de dinheiro de pagar uma pensão [...] eu achei melhor eu fazer isso, de sentar no banco da rodoviária e fingir que estou esperando ônibus pra viajar do que, entendeu? Pra dormir... melhor do que cair em qualquer canto aí. [...] Nó, foi muito tempo... foi muito tempo, cara, foi muito tempo, Nossa Senhora. Pulava de déu-em-déu.

Foi nesse período, na virada dos anos 1980 para os anos 1990, em que, enquanto aprendia a “se virar” para conseguir dinheiro (diversificando as mercadorias, espaços de venda e abordagens), aprendia também a “se virar” para conseguir teto. O caráter ajustável, próximo de zero, de seu custo de moradia neste período permitia que ela conseguisse viver mesmo com o baixo e instável rendimento com o comércio ambulante. Por outro lado, isso também condicionava que uma porção importante de seus ganhos diários e semanais fossem, em curtos intervalos de tempo, reconvertidos em recursos para compra de mercadorias. As reposições eram realizadas com grande regularidade, sempre em pequenas quantidades. Sem conseguir se planejar, tornou-se dependente dos intermediários locais, mantendo assim seus lucros constantemente baixos.

Carolina relatou que somente por volta de 1990 experienciou uma maior estabilidade financeira. Esta foi a época em que os mercados populares se expandiam em Belo Horizonte, o que a proporcionou obter rendimentos proporcionalmente mais altos. Aquele foi o momento oportuno para que, junto de sua companheira da época (que vivia igualmente sem qualquer tipo de segurança financeira), alugassem uma casa em um bairro na periferia. Neste local, Carolina e sua companheira moraram juntas, em união estável, por cerca de cinco anos.

Após passarem meses inadimplentes com o compromisso do aluguel, o casal foi despejado. Se foi por meio dos corres da rua que Carolina conseguiu, finalmente, sustentar moradia própria, foi também decorrente das instabilidades características da condição de vendedora ambulante que ela, por fim, vivenciou a circunstância do despejo. Em meados dos anos 1990, em resposta ao crescimento dos mercados populares, também avançavam e se incrementavam os mecanismos de regulação ao comércio ambulante. A evolução dos dispositivos se deu, de um lado, pelo disciplinamento cada vez maior da atividade dos camelôs licenciados; e, por outro lado, uma crescente repressão sobre o comércio ambulante não regulamentado (ARAÚJO FILHO, 2019, 2021). Nas palavras de Carolina:

Houve um tempo em que houve um confronto muito grande dos camelôs com fiscal, né [...] Eu vendia era pilha, lanterna, caixa de ferramenta. Eu tinha muita mercadoria. Aí, nessa época, fiscal tomou e eu fiquei sem poder trabalhar um tempo, sem mercadoria e sem crédito pra comprar mercadoria. Aí o que que rolou? É... fiquei uns dois meses juntando dinheiro sem pagar aluguel, pensando que eu ia poder fazer isso né... sem pagar aluguel. É, aí fiquei muito tempo assim sem pagar aluguel e tal, aí eles despejaram. [...] Aí eles dão prazo pra gente sair. No momento que deu prazo pra sair, tive que sair, velho.

Se por um lado, a manutenção da própria moradia estava diretamente vinculada a sua capacidade individual de se manter atuante no mercado (diante a fiscalização, a concorrência, etc.), por outro lado, foi por meio da rede de contatos que estabeleceu na rua, que Carolina e sua companheira encontraram um novo abrigo, desta vez em uma outro bairro de periferia. Segue seu relato:

Um amigo meu camelô falou: “olha, tem um barraco da minha irmã... ela está em dificuldade de pagar água, pagar luz. Ela está sem trabalhar, e com 3 meninos pequenos. Se você quiser ir lá pro barraco dela eu falo com ela pra organizar um quartinho para você lá dentro da casa dela". Aí foi. Ele me pôs lá dentro do barraco da irmã dele. E eu a ajudando a pagar conta de luz e de água, e foi aonde eu tive como comprar mercadoria, revender.

Aquela não foi a primeira vez que Carolina morou “de favor”. Entretanto, mais do que um abrigo provisório, que a possibilitou reerguer suas vendas, a experiência foi rememorada como uma centelha para sua conscientização política. Além do gesto de solidariedade que ela considerou inspirador, foi sua nova amiga que a introduziu ao universo dos movimentos sociais pela moradia, apresentando-a a um grupo que se formava para ocupar um terreno vago em um local próximo de onde viviam. Sem vislumbrarem alternativa, Carolina e sua companheira não demoraram a se agregar ao grupo que logo ocupou o terreno. Em suas palavras: “A minha luta por moradia, por movimento social, por igualdade, começou a partir daí.”

Militando para morar

O conjunto de eventos compreendidos entre a situação do despejo até a participação na ocupação do terreno é relatado por Carolina como um momento de crise, mas também de decisões cruciais para sua trajetória, o que podemos interpretar como uma bifurcação biográfica (BIDART, 2006). Mesmo motivada por uma necessidade fundamental, foi naquele momento em que ela rompe com um padrão de ação e é levada a confrontar a busca incessante pela habitação não mais como uma contingência individual ou familiar apenas, o que reverbera em uma transformação em suas estratégias de vida como um todo. Em suas palavras: “Foi aí que eu me vi como militante porque eu não sabia que eu era. Para te falar a verdade, eu não sabia que eu era”.

Na ocupação, ao lado dos novos companheiros, Carolina e sua companheira levantaram barracos de lonas onde viveram e participavam das atividades políticas do movimento ainda insipiente que, na época, contava com cerca de 1300 famílias. Carolina caracteriza a mobilização como “espontânea”, segundo ela, por não tendo sido originada da agenda de nenhum movimento social previamente organizado ou partido político. “Tinha a nossa organização mesmo, né”, explica.

A relação do movimento com o poder público foi especialmente tensa no início, enquanto o número de barracas ainda era alto, já que dia após dia, a cada ameaça de ações repressivas, o movimento foi se esvaziando e o número de famílias resistentes diminuindo. Carolina aponta que, para além de acreditarem nos propósitos da ocupação, ela já não via outra alternativa de moradia. Ela e sua companheira viveram por quase dois anos em uma barraca de lonas.

Fomos reprimidos, muitos desistiram, muitos saíram correndo, muitos abandonaram, porque ficaram com medo da polícia. Entendeu? Aí foram só enxugando, cê entendeu? E aí os que de fato não tinham onde morar, como nós não tínhamos, ficou e ocupou.

A ocupação resistiu às investidas do poder público até que, finalmente, conseguiram firmar um acordo. Os ocupantes foram reassentados, de início, em um outro terreno vago, enquanto esperavam pela construção de suas casas. Finalmente, em 1998, os ocupantes foram transferidos para dois conjuntos habitacionais distintos. Carolina e sua ex-companheira, que naquela altura já haviam terminado o relacionamento, foram contempladas cada uma com uma casa.

No ambiente da ocupação e dos movimentos sociais, Carolina passou a conhecer outras lideranças, frequentar reuniões e, assim, seguiu se formando politicamente. Foi também neste momento que decidiu retomar os estudos, concluindo o segundo grau e obtendo diploma como técnica em uma instituição pública.

“Mãe por opção”

No Brasil, onde o acesso aos benefícios sociais é raramente uma garantia ou decorrência direta de um direito adquirido, o acesso à casa própria tem um significado que vai muito além da habitação, mas constitui em uma forma de segurança mais ampla (KOWARICK, 2009). Nesse cenário, as possibilidades de ação concreta e planejamento se amplificaram para Carolina. Na casa conquistada, ela inicia uma família. Casou-se outra vez e, com a nova esposa, adotaram uma filha.

A criança veio de uma família que vivia em situação mais precária que a delas naquele momento. Segundo Carolina, os pais biológicos “moravam na rua, não tinha local certo. [...] não tinham condições de cuidar”. Nas palavras de Carolina:

Eu sou mãe por opção. [...] Vai fazer 12 anos que eu adotei ela. Ela estava com um ano e meio. Porque a família biológica achou melhor dar ela para terceiros devido à situação que a mãe biológica estava. Eu, por ser lésbica, eu queria sempre ter um filho... mas não tinha aquela proximidade de ter um filho com homem. E aí eu falava que eu queria adotar. E ai eles ficaram sabendo e perguntaram pra mim se eu queria pegá-la.

A maneira com que Carolina relata a decisão de adotar uma filha reflete uma dimensão de sua luta, isto é, como expressão de uma condição de classe em que ela se viu no passado como vítima e, então, se reposiciona como agente. Como uma replicação “corrigida” de sua própria história, ela apresenta o desejo de romper com as mesmas formas de resgate que ela mesma viveu em sua infância, e que a levou ao sofrimento de ser deslocada por diversos lares durante a infância e juventude. Independentemente das instabilidades que marcam sua trajetória, ao formalizar a adoção, Carolina oferece à criança, então, uma garantia de proteção que ela mesma não teve no passado, marcada não apenas pela moradia fixa, mas também formalizando a adoção.

Em busca da profissionalização no campo da política

Por mais que ainda dependesse dos rendimentos dos corres da rua, sua entrada nos movimentos por moradia também ampliou seus horizontes de possibilidades profissionais, vislumbrando adentrar no campo político partidário. Seu primeiro passo foi participar de eleições, se candidatando para cargos legislativos.

Entre 2010 e 2020, Carolina concorreu as duas primeiras vezes por dois diferentes partidos de direita, e as duas seguintes por um mesmo partido de esquerda. Mesmo não se identificando com os partidos em que se filiou inicialmente, aponta que eles eram mais abertos a candidaturas de novos membros. Segundo ela, “não era... não era para militar. Lá eu não militava, eu me candidatava, entendeu? Eu acho que eu queria candidatar, mas não tinha aquele conhecimento de militância, saca?”.

Já sendo conhecida por sua experiência nos movimentos sociais, se filiou a um partido de esquerda. A candidatura veio em seguida. Ainda que não tenha conseguido se eleger, à medida em que foi obtendo “conhecimento de militância” – ou seja, buscando aprimorar o senso prático necessário para atuar nesse campo (BOURDIEU, 2009) – Carolina galgou posições profissionais inéditas em sua trajetória. Ao migrar para um partido que apoiava as causas em que ela já era atuante, pôde tornar seus conhecimentos e experiências práticas de luta aproveitáveis às estratégias galgadas pelo grupo político.

Em 2018, foi convidada a ocupar um cargo de assessoria parlamentar no gabinete de uma deputada do mesmo partido em que se filiara. Ela não foi a única. Outros companheiros de movimentos sociais, alguns deles também vendedores ambulantes, foram inseridos em cargos semelhantes em outras posições dentro do partido. Aos 50 anos, aquela foi sua primeira experiência como assalariada, oportunidade que a possibilitou, de forma inédita para ela, abdicar dos corres da rua como sua forma de sustento. No gabinete atuou em frentes de trabalho relacionadas às agendas políticas em que já possuía conhecimentos práticos, como a habitação e o comércio popular.

As dimensões da luta pelo ponto de vista de uma trajetória

Em uma primeira camada, a mobilidade que marca a trajetória de Carolina pode ser compreendida como uma expressão do nomadismo urbano involuntário que acomete indivíduos de sua camada social (RIZEK et al., 2014). Trata-se das sucessivas remoções, despejos e outros tipos de violência que se superpõem às violências originadas no ambiente doméstico (ROSA, 2019). Uma segunda camada da interpretação dessa mobilidade diz respeito à forma com que ela e seus familiares agiram ativamente frente às circunstâncias materiais objetivas. Isso está representado pelos sentidos que ela atribui ao caráter permanente de luta por habitação, estando presente em sua narrativa desde a apresentação das origens familiares e continua após a conquista da casa própria.

Sua infância é marcada pelas sucessivas adoções e mudanças de lar: até completar 17 anos, chegou a integrar quatro unidades domésticas distintas. Se essa circulação diz respeito à precariedade extrema presente em seus lares de origem, por outro ângulo, deflagram também uma forma de resistência. O ponto de vista trazido Saraiva (2020, p. 95) a respeito dessa prática é esclarecedor. Segundo ela, as adoções informais, também conhecidas como “adoções à brasileira”, constituem um mecanismo importante adotado pelas mulheres negras empobrecidas para assegurar a permanência das crianças no mesmo grupo familiar extenso – ou entre famílias próximas – e, assim, impedir que elas fossem institucionalizadas. Uma forma semelhante de compromisso informa a decisão de Carolina em adotar uma criança (também negra) de uma família com condições de vida mais agravadas que a dela.

É possível dizer que a entrada na vida adulta de nossa interlocutora se iniciou após o abandono precoce da escola e iniciação laboral que culminou, em seguida, em seu desprendimento dos núcleos familiares de “criação”. Esse processo se consolida a partir do momento em que ela migrou para Belo Horizonte, onde, com o tempo, passa a encarar o problema da falta de habitação fixa. A intolerância de seus familiares para com sua sexualidade se tornou um agravante a partir do momento em que Carolina passou a não mais contar com essa rede de apoio primária. De início, sem que Carolina vislumbrasse outra alternativa, ela assume a busca pelo teto como uma necessidade individual de primeira ordem. Contando não mais do que com uma renda insuficiente e instável do comércio ambulante, passou anos buscando lugares temporários para passar a noite e, quando finalmente alugou um apartamento, não conseguiu se manter adimplente com os aluguéis.

Carolina se viu, por muitos anos, enredada em uma lógica em que as precariedades e imprevisibilidades no âmbito do trabalho e moradia se implicavam mutuamente. O trabalho informal, de baixo rendimento, que não oferece garantias ou previsibilidades mínimas não configuram uma exceção no mercado de trabalho, mas um fator estrutural da acumulação capitalista no Brasil (OLIVEIRA, 2003), integrando toda a trajetória de Carolina, inclusive desde a época em que ela vivia no meio rural6.

Na cidade, a busca por recursos é mais urgente, fazendo com que muitos trabalhadores/as, a exemplo de nossa interlocutora, fiquem presos/as em um ciclo de alternativas de renda permanentemente provisórias (ABÍLIO, 2021). Necessidades urgentes demandaram soluções imediatas. Assim, conforme pudemos verificar na narrativa de outros vários interlocutores da pesquisa, o comércio ambulante ainda representa, mesmo nos dias atuais, uma fonte de renda constantemente disponível para quem precise – homens ou mulheres, de crianças a idosos – bastando apenas que os sujeitos acatem as adversidades inerentes à atividade (ARAÚJO FILHO, 2021; ARAÚJO FILHO; GEORGES, 2021)

A saída encontrada por Carolina para tentar se desvencilhar das precariedades que vivia foi sendo construída após integrar um movimento por moradia. Em especial nessa fase de sua vida, é possível dizer que, pela primeira vez, a experiência da luta pela sobrevivência passa a estar imbricada à noção de luta coletiva – concepção essa que ela começa a se apropriar na prática. Nesse sentido, o resultado de pesquisa vai ao encontro com Carvalho-Silva e Tomizaki (2021) que se debruçaram sobre a biografia de mulheres participantes de um movimento por moradia em São Paulo e concluíram que a entrada militância constituiu em pontos de inflexão em suas trajetórias.

A adesão à militância inscrita como uma estratégia de “viração” pode ser compreendida como uma das expressões, por um lado, da manutenção ou do agravamento das condições de vida para uma parcela da população e da quase ausência de caminhos efetivos de inserção social pelo mercado de trabalho. Trata-se, em grande medida, da população negra que, mesmo vivendo em um contexto nacional em que muito se avançou em termos da constitucionalização de direitos fundamentais, proporcionalmente ainda pouco os acessa, deflagrando um dos efeitos vigentes do racismo estrutural (ALMEIDA, 2019).

Por outro lado, também exprime as transformações qualitativas das formas de ação coletiva em um contexto de esvaziamento do assalariamento. Nesse sentido, a militância, em especial os movimentos por moradia, passa a constituir um dos espaços de pertencimento de classe nos centros urbanos que restam à porção de trabalhadores cuja sobrevivência não está ancorada no regime salarial (RIZEK, 2006).

Para além da necessidade imediata de moradia que motivou Carolina a participar da ocupação em um primeiro momento, seu engajamento se manteve ao longo do tempo em função da expectativa de conquista da casa própria. A propriedade imobiliária constitui uma dimensão mais ampla da segurança social (KOWARICK, 2009; OLIVEIRA, 2003), servindo como uma forma de garantia mínima para o enfrentamento das demais adversidades que perpassam suas vidas, em especial as incertezas de renda com o trabalho autônomo e informal (ARAÚJO FILHO, 2021; ARAÚJO FILHO; GEORGES, 2021). Ademais, convergindo ao ponto de vista de Carolina, essa segurança objetiva mínima a possibilitou, por exemplo, formar-se politicamente, obter diplomas e, em seguida, começar uma nova família.

Além da conquista da casa própria, outra decorrência importante expressada por nossa interlocutora a respeito de sua entrada para a militância se deu pela ampliação de suas possibilidades profissionais. Conforme uma noção ampliada de carreira (HUGHES, 1958), sua inserção e atuação persistente nas ações dos movimentos sociais constitui as condições tanto objetivas para sua profissionalização política – ainda que tardia e, de certa forma, frágil; quanto subjetivas, no sentido de ter oferecido recursos simbólicos para que ela pudesse ressignificar sua trajetória em sua integralidade, em especial a respeito da atividade que a acompanhou durante toda a sua história. Nas palavras de Carolina:

Camelô também é militante. Eu sinto que é. Hoje eu reconheço isso. Eu não reconhecia dessa forma. Mas hoje... não por formação escolar não, mas por vivência. Hoje, pelo que eu vejo no campo político, com certeza camelô é um militante e dos ferrenhos, cara. É porque ele expõe, se joga para a luta, saca. É isso.

Considerações finais

Neste artigo buscamos discutir a respeito das diferentes nuances e escalas de análise dos conflitos urbanos a partir da análise sociobiográfica. Dessa forma, buscamos colocar a noção de lutas populares sob duas perspectivas complementares: de um lado, desde o ponto de vista das estratégias empreendidas pela interlocutora; e, de outro lado, subjetivamente, a respeito da construção de sentidos que ela elabora sobre as possibilidades de agir e suas expectativas de futuro mesmo diante as circunstâncias mais adversas.

Dessa forma, concluímos que trabalho e “militância” podem figurar como dimensões articuladas em uma trajetória especialmente quando atravessada pelas contingências mais urgentes da reprodução da vida. Primeiramente, isso está relacionado ao caráter multifacetados dessas urgências: como vimos, a exclusão dos indivíduos das formas salariais de trabalho (ou mesmo das oportunidades relativamente mais estáveis de geração de renda) reforça a dificuldade de acesso à moradia fixa, e vice-versa.

Isso se reflete, por outro lado, em transformações no campo das ações coletivas, relacionadas às formas e razões de participação dos sujeitos, mas também com relação à organização da agenda desses novos espaços de militância. Um dos aspectos que mais chama atenção na experiência recente das ocupações em Belo Horizonte – e que está representado pelos horizontes da carreira militante de Carolina – é a hibridização das várias pautas ligadas à vida na cidade, como a luta dos vendedores ambulantes e a luta por moradia (PAOLINELLI; CANETTIERI, 2019).

A concepção de luta interpretada por meio da reconstituição da trajetória de Carolina reflete uma visão de mundo compartilhada por outras interlocutoras da pesquisa, inclusive, não se restringindo às mulheres que se autodeclaram militantes. A noção é utilizada frequentemente como um instrumento para se colocarem como protagonistas das próprias biografias, à frente de suas lutas. Por essa razão, é comum que se apresentem como “guerreiras”, “lutadoras”, “batalhadoras”, isto é, quem se não se deixa dominar pelas adversidades e se apropria das condições impostas (HIRATA, 2018).

Seja interpretando o contexto do uso literal do termo ou seus significados nas entrelinhas dos relatos, essas lutas dizem respeito a diferentes temporalidades da agência dessas mulheres diante os marcadores mais enraizados e abismais das desigualdades, nas intersecções entre as relações raciais, de classe e de gênero (HIRATA, 2014). Em suma, com base nas reflexões aqui colocadas, podemos interpretar a luta como a uma concepção política do mundo popular que representa, ao mesmo tempo, uma ação vital (ligada à sobrevivência) e de transformação do mundo.

Material suplementario
Referências
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Notas
Notas
1 Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo número: 2017/02638-3.
2 Doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor convocado do Departamento de Ciências Humanas e Serviço Social (DCHSS) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Nº Orcid: 0000-0003-2446-2296. E-mail: tarcisioperdigao@gmail.com
3 A fim de preservar a identidade da entrevistada, optou-se pela utilização de um nome fictício. Além disso, com esse mesmo intuito, alteramos alguns detalhes da caracterização de sua trajetória que, por sua vez, não alteram o sentido do argumento elaborado.
4 Dentre os incontáveis contatos estabelecidas durante as incursões etnográficas, a pesquisa contou com 12 interlocutores com os quais realizamos entrevistas em profundidade utilizando a abordagem sociobiográfica.
5 O termo remete ao “se virar”, expressão popular no Brasil para se referir às formas de lidar com adversidades diversas, estratégias que borram as fronteiras entre as esferas do trabalho produtivo e reprodutivo. Em outros países latino-americanos, onde o assalariamento tampouco se concretizou, despontam-se outras concepções populares com o sentido semelhante e que também foram apropriadas como categorias analíticas. Esse é o caso das noções “ganarse la vida” em pesquisa realizadas na Argentina (FERNÁNDEZ ÁLVAREZ; PERELMAN, 2020; PERELMAN, 2021) e México (ARIAS, 2021); e “resolver”, noção presente nocontexto popular cubano (CAMPOS, 2005, 2007).
6 Conforme apontou Leite Lopes (1978), observa-se um enraizamento de formas precárias de trabalho desde a tradicional divisão do trabalho no campo, marcado pela separação entre o trabalho fixo e o temporário acionado sob demanda. Tais condições naturalizadas de exploração do trabalho, que no meio rural obedecem à sazonalidade da terra, se imbricariam às formas de precarização presentes no trabalho fabril e nos demais setores econômicos nos centros urbanos, relação esta que parece persistir até os dias atuais.
Notas de autor
2 Doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor convocado do Departamento de Ciências Humanas e Serviço Social (DCHSS) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Nº Orcid: 0000-0003-2446-2296. E-mail: tarcisioperdigao@gmail.com
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