Resumo: Estudos socioantropológicos vêm descrevendo as dinâmicas dos movimentos estudantis nas últimas décadas no Brasil, onde as experiências de opressão social se articulam com a atuação política intra e extra institucional. O presente artigo analisa as pautas produzidas por uma entidade universitária vinculada ao curso de serviço social, entre 2018 e 2020, acerca das questões de gênero e sexualidade. O corpus empírico da pesquisa foi integrado por documentos digitais e entrevistas com ex-integrantes da entidade. Nas pautas analisadas, o aborto e o reconhecimento das identidades de gênero e sexualidades têm destaque, tendo como pano de fundo o acirramento do conservadorismo no Brasil.
Palavras-chave: Movimento Estudantil, Gênero, Sexualidade, Interseccionalidade.
Abstract: Social anthropological studies have been mapping the dynamics of student movements in Brazil in the last decades, in which experiences of social oppression articulate with political participation both within and outside institutional context. The present article analyzes the agendas produced by a student organization linked to the college department of Social Services, between 2018 and 2020, touching upon issues of gender and sexuality. The empirical corpus of this research is constituted of digital documents and interviews with former members of the organization. In the agendas analyzed, themes such as abortion, sexuality and gender identities stand out, as a consequence of a growing conservative movement in Brazil.
Keywords: Student Movement, Gender, Sexuality, Intersectionality.
Movimentos estudantis e a produção de pautas relacionadas a gênero e sexualidade em uma universidade pública do Rio de Janeiro
Student movements and the production of agendas related to gender and sexuality in the university context
Recepción: 01 Marzo 2023
Aprobación: 01 Mayo 2023
Estudos de cunho socioantropológico no Brasil vêm descrevendo os processos de atuação de entidades estudantis nas universidades nas últimas décadas, os quais têm mobilizado debates e reivindicações por demandas de cidadania, visando um ambiente mais igualitário e acolhedor. As temáticas que constituem a pauta destes movimentos se entrelaçam ao cotidiano universitário e mobilizam aspectos que estão relacionados às vivências pessoais dos estudantes, às formas de organização e atuação política para além dos muros da instituição, bem como sua articulação com o contexto político mais amplo. Segundo Bringel (2009), o movimento estudantil é um movimento social sui generis, sobretudo em razão do caráter transitório que os estudantes vivenciam na universidade e, consequentemente, no próprio movimento. Entre as características próprias desse movimento, tradicionalmente encontra-se uma composição de classes médias; posicionamentos ideológicos que variam desde a esquerda mais radical à socialdemocracia; e demandas que incorporam para além da política universitária, temas amplos da política nacional. Em suma, pela diversidade na sua composição, o movimento estudantil é tido como policlassista.
Cabe destacar que, com as mudanças no perfil discente universitário no Brasil, há também uma alteração na composição dos movimentos estudantis, que passam a ter uma presença mais significativa de mulheres, pessoas LGBTI+, negras, dentre outras, fruto das políticas públicas que ampliaram o acesso ao ensino superior – como o Programa Universidade Para Todos (PROUNI), o Programa de Expansão e Reestruturação das Universidades Federais (REUNI), assim como a “Lei de Cotas”. O significativo aumento de coletivos formados por estudantes de graduação e pós-graduação ocorreram não apenas pelas diferenças geracionais, mas pelas “transformações culturais e políticas mais amplas direcionadas à inclusão de grupos historicamente sub-representados na educação superior [...] em particular no que toca às dimensões raciais, de gênero, classe, sexualidade e identidade de gênero” (RIOS E PEREZ, 2020, p.89).
A história tem mostrado que o movimento estudantil não limita sua atuação apenas ao espaço físico e subjetivo da universidade, mas também se inclina a projetos mais amplos e gerais, uma herança do período da atuação durante o regime militar no Brasil. Desde as manifestações organizadas na década de 1960 até os dias atuais, como foram os atos nacionais pelo Fora Bolsonaro4, em que foi possível notar a força dos estudantes junto a diversos movimentos sociais. A literatura sobre o tema entende, em geral, o movimento estudantil como um local de identificação de demandas, acabando, portanto, a ocupar um lugar simbólico, responsável por mostrar aos estudantes as contradições presentes dentro da universidade, com o objetivo de empoderá-los para atuar sobre estas adversidades, muito além da comunidade acadêmica. Possibilita, assim, uma tomada de consciência quanto a seus direitos e o reflexo de suas atitudes e ações diante da sociedade. Deste modo, a atuação dos estudantes não se limita apenas aos muros da universidade:
[...] para os estudantes, de nada adiantava somente discutir, fazer manifestações e tomar conta somente de seus interesses. Para eles, era importante também agir e ir além dos muros da universidade, lutar pela democracia, pelos direitos do cidadão, enfim, por aquilo que faria diferença para a sociedade em si (FREIRE, 2010, p.23).
Mesquita (2003) indica que, paradoxalmente, práticas de organização tradicionais (burocráticas, hierarquizantes, centralizadoras) dentro dos movimentos tenderiam a desmobilizar muitos outros segmentos. Entretanto, isso não significa dizer que o movimento estudantil tenha perdido sua potência. Novas formas de mobilização e organização têm sido exploradas pelos segmentos estudantis. Identificamos a multiplicidade e heterogeneidade presentes em algumas entidades do movimento estudantil, que fazem da busca de uma identidade coletiva uma forma de agregar interesses em comum.
Outro aspecto que atravessa a configuração dos movimentos estudantis na atualidade é a consolidação dos estudos sobre gênero e sexualidade no campo acadêmico. A partir de meados dos anos 1970, fruto da pressão e da reivindicação dos grupos feministas e dos grupos gays e lésbicos da época, especialmente interessados em impulsionar processos de revisão de concepções obsoletas nos campos biomédicos, jurídico, político e social, é que este campo de estudos começa a se conformar (SILVA, 2013). No contexto brasileiro, também foi possível observar uma forte articulação entre os movimentos sociais e a produção na universidade, bem como de diálogos entre pesquisadores que se dedicavam às temáticas de gênero e sexualidade. Para Carrara (2014), tal fato vinculou-se a um processo que ia muito além da categoria “homossexualidade” utilizada na época, sobretudo nos principais centros urbanos, onde era possível perceber uma crescente “variabilidade das experiências de gênero e sexualidades de sujeitos sociais concretos” (p.224). O autor discute que isso propiciou mudanças nas perspectivas sobre corpo, gênero e sexualidade abrindo espaço para outros saberes, como os sociológicos, antropológicos, culturais, dentre outros.
Apesar dos avanços do movimento homossexual, tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos, a emergência da epidemia da Aids, no início da década de 80 veio acompanhada de ideias e práticas conservadoras intensificando o preconceito contra homossexuais. Nesse contexto, a despeito de um fortalecimento de abordagens biomédicas sobre os comportamentos sexuais, houve uma significativa propulsão de estudos de cunho antropológico voltados para a sexualidade (CARRARA, 1996; VANCE, 1995). Assim, durante os anos 1990 e 2000 os estudos sobre sexualidade começaram a se multiplicar e se consolidar no Brasil, sendo possível perceber o aumento de temáticas relacionadas à sexualidade nas pautas dos centros de pesquisas e universidades brasileiras (FACCHINI; DANILIAUSKAS; PILON, 2013).
É a partir do início dos anos 2000, que observamos um aumento da incorporação das temáticas de gênero e sexualidade pelos movimentos estudantis, as quais possibilitam a expressão de formas de exclusão e de não-reconhecimento das diferenças, entre outras vivências dos jovens estudantes nas universidades. Lima (2016) analisa um importante grupo ligado ao movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP), o Prisma, que tratava da pauta “GLBT”, como era denominado à época, e que sinalizava a ausência do debate acerca da diversidade sexual e de gênero no movimento estudantil, que desconsiderava a relevância dessas pautas. Coletivos como este, sobretudo os feministas e os mais recentemente denominados LGBTI+5, tiveram um papel relevante para a incorporação do debate sobre gênero e sexualidade nas universidades, trazendo também reivindicações de cidadania em sentido amplo.
Assim, a presente pesquisa objetivou compreender o acionamento das temáticas de gênero e sexualidade no contexto universitário, entre 2018 e 2020, explorando os processos de produção de sujeitos políticos e as ações do Centro Acadêmico de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CASS/UERJ) neste período. Para isso, elencamos como objetivos específicos: 1) caracterizar as pautas dessa entidade estudantil universitária referente às questões de gênero e sexualidade; 2) analisar os efeitos, tensões e limites da atuação dessa entidade frente ao acirramento do conservadorismo moral entre 2018 e 2020. A escolha pelo CASS/UERJ como campo de pesquisa se justifica na medida em que analisar essa entidade sob a perspectiva de um “microespaço”6 poderia oferecer respostas às perguntas do estudo. A trajetória política e de formação do primeiro autor e sua dupla inserção enquanto jovem militante e pesquisador em formação também cumpriu um papel vital nas escolhas teóricas e éticas da pesquisa. Já o papel da segunda e terceira autoras diz respeito à orientação da pesquisa, da qual se deriva o presente artigo.
É importante ressaltar que o curso de Graduação em Serviço Social é, historicamente, formado em sua maioria por mulheres e que, desde o Código de Ética de 1986, reatualizado em 1993, tem se alinhado cada vez mais a uma atuação profissional competente, teórica, técnica e politicamente comprometida com princípios como a defesa da democracia e da liberdade e a luta pela construção de uma nova ordem societária, justa, igualitária e livre de exploração e de opressões. É nesse bojo, que se constitui a análise deste artigo, voltada ao acionamento das temáticas de gênero e sexualidade pelo CASS/UERJ, uma entidade representativa do movimento estudantil universitário, que se caracteriza pela forte presença de um público feminino, trabalhador e de camadas sociais menos abastadas.
Para compreender as relações de poder e as desigualdades sociais em suas dimensões estruturais no contexto universitário, lançamos mão da perspectiva interseccional, cunhada por Kimberlé Crenshaw (2002) e desenvolvida por várias outras autoras. Assim, é importante reiterar, de antemão, a importância de pensar o entrecruzamento dos marcadores sociais - gênero, raça, classe, geração, entre outros, a partir de um viés crítico e político do conceito de interseccionalidade. Como sugere Cardoso (2012), é necessário evitar o entendimento de que a interseccionalidade entre as opressões é um bloco totalmente homogêneo que cai pesadamente sobre a vida das mulheres, frustrando qualquer possibilidade de mudança. Essa dimensão da interseccionalidade nos possibilita compreender que a opressão e a resistência estão intrinsecamente relacionadas (NOGUEIRA, 2017). Desse modo, a pesquisa se desenvolveu em torno aos sentidos atribuídos à ação política em um contexto de acirramento de conservadorismos.
A pesquisa realizada, de caráter qualitativo, se deu em dois momentos: o primeiro, através de análise documental das publicações na página do Facebook do CASS/UERJ, no período entre 2018 e 2020, o qual nos permitiu sistematizar as pautas sobre gênero e sexualidade acionadas da seguinte forma: Aborto ou legalização/descriminalização do aborto (9 publicações); LGBTfobia/Lesbofobia (5); Gênero ou identidade de gênero (4); orientação sexual ou sexualidade (3); direito das mulheres (3); opressão [de gênero e sexualidade] (3); cidadania LGBTI+ (2); diversidade sexual e de gênero (2); saúde mental LGBTI+ (1); velhices LGBTI+ (1); e educação sexual (1).
No segundo momento, realizamos cinco entrevistas semiestruturadas com ex-integrantes do CASS/UERJ durante o período analisado, no qual houve duas gestões: “Por Isso Me Grito” (2018 e 2019) e “Pra Poder Contra Atacar” (2019 e 2020). Os temas abordados foram: (i) discussão das temáticas de gênero e sexualidade na universidade; (ii) as estratégias acionadas no contexto universitário perante o acirramento de forças conservadoras; e (iii) o significado da trajetória pessoal em relação à participação na política universitária.
No que tange ao perfil social das interlocutoras a idade variou entre 22 e 33 anos. Segundo a identidade de gênero, 3 se identificaram como mulher ou feminino, 1 como masculino e 1 como não-binárie. Das 5 participantes, 3 se apresentaram como bissexuais, 1 como pansexual e 1 “em aberto”. Em relação à autoclassificação segundo raça/cor, 3 se declararam brancas, 1 parda e 1 negra. No que tange ao município de residência, 4 participantes moram na cidade do Rio de Janeiro e somente 1 no município de Duque de Caxias (região metropolitana do Rio de Janeiro). Quase todas as interlocutoras não haviam tido contato com qualquer tipo de militância antes da entrada na universidade.
Todas as entrevistas foram realizadas de forma remota, devido às medidas de distanciamento social impostas pela pandemia de Covid-19. Para uma melhor apreensão dos dados, as entrevistas foram gravadas após o aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que se deu via Google Forms. A pesquisa foi submetida à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social (CEP/IMS), obtendo o parecer de aprovado em 15 de dezembro de 2021, sob o número 5.168.659. As participantes da pesquisa optaram por manter os nomes verdadeiros, tendo em vista a relevância acadêmica desta pesquisa bem como sua utilidade para refletir futuras práticas políticas dos movimentos estudantis.
O corpo discente do curso de serviço social da UERJ tem expressivo número de mulheres, pessoas negras, LGBTI+ e moradoras de bairros periféricos do Rio de Janeiro. Segundo Iamamoto (2017), esse perfil profissional gera uma “ambientação favorável, apoiada na experiência de vida, à identificação com os dilemas do conjunto da classe [trabalhadora]” (p.30, grifos da autora). A experiência de vida se manifesta, do mesmo modo, nas estudantes desse curso ao acionarem suas próprias trajetórias no modo de fazer política no ambiente universitário.
Segundo Brah (2006), a experiência pode ser compreendida como um instrumento na constituição de sujeitos coletivos, e as normas reguladoras produzem corporalidades diferenciadas em relação aos marcadores sociais distintos. Deste modo, as interlocutoras revelaram experiências de inferiorização, exclusão e/ou discriminação enfrentadas ao longo de suas trajetórias, que se reverteram em formas de atuação política no cotidiano universitário. Para Cacau e Luísa, o fato de o curso, por exemplo, ser composto majoritariamente por mulheres, favoreceu o aparecimento de demandas relacionadas às temáticas de gênero e sexualidade, que se articulam ainda aos marcadores de raça, classe e geração:
[...] as demandas das mulheres aparecem de todas as formas, desde as meninas mais novas que estão se deparando com o machismo nas relações, até as mulheres mais velhas ou mães que precisam de creche, que sofrem com o racismo, que são exploradas no trabalho. Isso aparecia cruzado com a questão de classe. (Cacau, 33 anos, bissexual, mulher parda).
Ver na prática o que os debates significam, para mim, foi o maior aprendizado através do CASS. Poder ver a política concreta na prática, ver o que significa as mulheres não serem só trabalhadoras, estudantes, mas poderem ser sujeitas de questionarem desde o ataque do patrão até o assédio em sala de aula, ver como isso tá ligado a uma coisa de opressão, de exploração do Estado capitalista e que a gente pode ser sujeita de responder as coisas, não só de dentro da universidade, mas da sociedade em conjunto [...] (Luísa, 22 anos, “em aberto”, pessoa do gênero feminino branca).
Assim, é importante olharmos para as experiências como um campo de contestação e “um processo de significação que é a condição mesma para a constituição daquilo que chamamos de realidade” (BRAH, 2006, p.360). O CASS/UERJ parece representar um espaço de exploração de experiências e sentimentos pessoais, um lugar de formação do sujeito. Essas experiências são permeadas por processos econômicos, políticos e culturais, que levam à produção de pautas universitárias.
Os temas referentes a gênero e sexualidade ganharam espaço nos debates eleitorais de 2018, especialmente sob a falácia de uma “ideologia de gênero” – que encontra sua gênese em textos produzidos a partir da década de 1990 por setores conservadores da Igreja Católica (CORRÊA, 2018; JUNQUEIRA, 2018), supostamente presente nas escolas, universidades, serviços públicos. Os direitos sexuais e direitos reprodutivos, a diversidade sexual e de gênero, a educação em sexualidade para crianças e adolescentes, tornaram-se temas das pautas de setores “conservadores”, que se apropriaram dessa narrativa para mobilizar a população contra candidatos “progressistas” a partir da deflagração de pânicos morais (LEITE, 2019).
Não à toa, muitas das publicações na página do CASS/UERJ ao longo de 2018 se voltaram para discutir questões relativas a gênero e sexualidade, sobretudo com o aumento da visibilidade e popularidade do então candidato Jair Bolsonaro à Presidência da República. Visto que, ainda que de maneira vagarosa e gradual, durante as últimas décadas, houve avanços dos direitos de segmentos populacionais marginalizados, como as mulheres, pessoas LGBTI+, negros, povos indígenas, dentre outros. É nesse contexto, em meio à ampliação de discursos de ódio, antigênero e de ataque à diversidade sexual, articulado ao desmonte de programas do poder executivo federal e o aumento do número de proposições legislativas conservadoras em tramitação no Congresso Nacional, especialmente na Câmara de Deputados, que as integrantes do CASS/UERJ inseriram na cena política da universidade assuntos relacionados a gênero e sexualidade.
Boa parte das atividades organizadas no período pesquisado diziam respeito: ao enfrentamento da LGBTIfobia nos banheiros da UERJ; à construção de plenárias e outros espaços políticos para compor atos como a “Marcha pela legalização do aborto” e “Mulheres Contra Bolsonaro”; à divulgação e, também, à organização de eventos acadêmicos e de acolhimento que traziam conteúdos que se relacionavam à comunidade LGBTI+, pautas raciais, feminismos, dentre outros coletivos e movimentos sociais. Como afirmou uma de nossas interlocutoras, esse era um momento importante para participar ativamente:
[...] a gente participou dos atos, atos de mulheres, do #ELENÃO, contra o Bolsonaro, a gente fez muitas postagens nas redes na época, discussão política... não só colocar nossa posição, mas debater mesmo com os estudantes. Foi um momento político muito forte no Brasil inteiro, sempre foi importante que cada entidade, cada movimento social, movimento estudantil, movimentos dos trabalhadores se colocassem. (Nat, 26 anos, pansexual, não binária branca).
Em consonância ao que propõem Nicoli e Dutra (2022), para nossas interlocutoras era urgente o reconhecimento de que as relações sociais, no capitalismo, são ao mesmo tempo relações gendradas, sexualizadas e racializadas, constituídas a partir da subalternização de grupos particularmente vulneráveis, como mulheres cis ou transexuais, travestis, negras e negros. É importante ressaltar que a reação ao conservadorismo, tanto exógeno, quanto endógeno à profissão de assistente social, começou a se gestar timidamente nos anos 1960 e ganhou densidade a partir do final dos anos 1970, forjando coletivamente o atual Projeto Ético-Político da profissão (BOSCHETTI, 2015).
Dentre as ações realizadas pelo CASS/UERJ, analisamos uma recepção de calouras no curso de Graduação de Serviço Social, realizada em 2018. Foi priorizado o tema “Mulheres contra os ataques da direita”, no sentido de chamar atenção das recém-chegadas estudantes para como as mulheres estavam protagonizando, no cenário mundial e nacional, diversos exemplos de luta, como a Maré Verde na Argentina7. A programação da “calourada” incluiu um debate sobre as eleições de 2018 e o papel indispensável das mulheres frente a esse contexto político, onde todas as turmas do curso foram liberadas das aulas para participar. Segundo as interlocutoras, esse debate era importante sob dois aspectos: tanto a categoria de assistentes sociais, quanto o curso de graduação é composto majoritariamente por mulheres; assim como a própria formação em Serviço Social, que atualmente, carrega consigo a característica de prezar pelo debate político e ter o hábito de se posicionar frente à realidade. O que é parte fundamental da profissão, já que isso influencia diretamente no exercício profissional e nos postos de trabalho que os assistentes sociais ocupam.
A temática da legalização do aborto assumiu grande destaque nas discussões, sendo mobilizada em nove publicações na página do Facebook, sobre convocações para atos públicos, plenárias organizadas por mulheres estudantes da UERJ, rodas de conversa etc. Embora esta não seja uma pauta tradicional dos movimentos estudantis, a legalização do aborto rompeu as fronteiras dos movimentos feministas, permeado, no entanto, por questões sobre moral, ética, religião, dentre outros aspectos. Cabe lembrar que, desde 1940, o aborto é crime pela legislação brasileira, sendo permitida a interrupção da gravidez apenas nos casos previstos em lei8. Além disso, a criminalização do aborto está relacionada às formas de controle que a sociedade exerce sobre os indivíduos em sua vida privada, isto é, através da normatização regulatória dos corpos, de suas práticas sociais e sexuais, dos prazeres, entre outras formas de estratégias de controle biopolítico sobre os corpos, especialmente marcados pelas questões de negritude, diversidade sexual, gênero e classe (EMMERICK, 2007).
Assim, esse debate foi priorizado pelas jovens militantes dos movimentos estudantis, se alinhando à mobilização pública em uma perspectiva de defesa de direitos. Para as interlocutoras, trazer esse debate para os movimentos estudantis, bem como para os estudantes de um modo geral, significava explicitar que essa não é uma questão distante do cotidiano universitário.
Nesse sentido, é possível perceber o imbricamento de pautas que entram na cena universitária, potencializando o debate de elementos que perpassam as diferentes dimensões da vida social. Para nossas interlocutoras, entender e discutir sobre os processos sociais, políticos, culturais e econômicos em curso no presente e no tempo real era um desafio, mas, ao mesmo tempo, necessário para enfrentar a onda conservadora no país ou, pelo menos, compreender sua trajetória e possíveis modos de resistência. Trazer essa reflexão em diversos espaços de participação política seria uma forma de dizer que a luta não pode ser fragmentada, conforme propõe Cacau:
[...] a nossa concepção de entidade estudantil, é uma entidade a serviço da classe trabalhadora, uma entidade que não separa a luta dentro e fora da universidade porque sabe que essas coisas estão interligadas. Essa concepção de unidade estudantil enxerga a necessidade de transformação radical da universidade. Falavam “vocês só falam de coisas lá de fora”, “meu amor, o lá de fora está aqui dentro” (Cacau, 33 anos, bissexual, mulher autodeclarada parda).
Desse modo, esse hibridismo entre o “lá de fora” e o “aqui dentro” possibilita aos sujeitos incorporar temáticas e pautas políticas mais amplas, como já observado na história dos movimentos estudantis. Perante a crítica “vocês só falam de coisas lá de fora”, algumas vezes trazidas pelos próprios estudantes, tinha-se o cuidado de apresentar uma perspectiva ampliada. Como sintetiza Demar:
[...] ao participar do movimento estudantil seja de forma organizada ou independente, você tem acesso não apenas às pautas em defesa da educação ou sobre a classe trabalhadora, mas também sobre diversidade sexual e de gênero, por isso digo que onde mais aprendi foi no movimento estudantil (Demar, 33 anos, bissexual, homem branco).
Outra pauta que teve forte acionamento pelo CASS/UERJ foi o respeito e o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero. Os estudantes têm gerado mudanças institucionais, a exemplo do uso do nome social em sala de aula e nos documentos oficiais; banheiros com sinalização de que podem ser utilizados de acordo com o gênero com o qual as pessoas se identificam; e, ainda, as políticas de cotas na pós-graduação, destinadas às pessoas trans e travestis, que têm sido uma das estratégias para garantir a mobilidade na carreira acadêmica, bem como o acesso à pesquisa científica (RIOS; PEREZ, 2020). Essas transformações são fruto de muita luta de jovens LGBTI+ no intuito de fazer do ambiente universitário um espaço mais seguro e diversificado (LIMA, 2016; MESQUITA et al., 2018).
A importância dessa temática foi deflagrada por um episódio tido como “LGBTfóbico”, onde foram removidas abruptamente as intervenções realizadas nos banheiros, pelas próprias integrantes da referida entidade, em forma de placas de sinalização, para conscientizar e apoiar a utilização de banheiros públicos por qualquer pessoa de acordo com a sua identidade de gênero autodeclarada. Tal atitude evidencia o medo real que muitas pessoas transgêneros têm de transitarem pelo território urbano, sem que seus corpos sejam expostos a episódios de hostilidade, preconceito e discriminação. Assim, a necessidade de reverter práticas naturalizadas e cotidianas de promoção de desigualdades se materializou em determinados momentos.
Por outro lado, as publicações do Facebook também sugeriram que não só as opressões vivenciadas dão sentido às pautas no contexto universitário. Práticas de sociabilidade, como a recepção de “calourxs”, cinedebates, saraus e rodas de conversa chamavam a atenção para aspectos positivos que permeiam a diversidade sexual e de gênero, mobilizando temáticas em torno ao afeto entre pessoas LGBTI+, o autocuidado, os direitos de cidadania, dentre outros. O aprofundamento desta dimensão identitária e afetiva do ativismo estudantil será explorada em outra publicação.
Por fim, o entrecruzamento de eixos de opressão, que acometem indivíduos ou grupos de diferentes formas, no fazer político do CASS/UERJ também emergiu como um aspecto caro nas narrativas:
[...] E a gente costumava dizer isso: as coisas não estão separadas, não sou uma mulher negra ou uma mulher trabalhadora ou uma mulher LGBT, essas coisas estão integradas e elas vão ter, na divisão de classe, um peso importante, então a gente sempre dava esse destaque e tentava não fragmentar de modo a entender que não há uma só batalha, de um grupo ou setor oprimido, mas uma batalha de toda uma classe que é composta por setores oprimidos de diversas formas e tem suas identidades impedidas de serem exercidas livremente (Isa, 26 anos, bissexual, negra).
É essa percepção que deu sentido à produção de pautas que se entrecruzam no contexto universitário e que têm como base as intersecções entre marcadores sociais que constituem os sujeitos, como gênero, raça, classe, sexualidade e territorialidade. A relevância de tais marcadores, na construção de uma possível articulação entre as trajetórias ativistas das interlocutoras da pesquisa e o acionamento das referidas temáticas, se dá pela compreensão de que a interseccionalidade nos fornece diversas dimensões para a análise. Assim, como já mencionado, as pautas produzidas pelo CASS/UERJ não estão isoladas. Essa é uma característica das ações protagonizadas pelos recentes coletivos universitários (RIOS; PEREZ, 2020), onde tem destaque a capacidade das mulheres de vocalização das dimensões interseccionais das experiências e das formas de opressão social, como ilustrado pela narrativa de Isa:
Por mais que eu que seja uma mulher negra, eu sou uma mulher negra filha de trabalhadores, que fazem parte da classe trabalhadora, então o debate em torno da questão racial, ele acabou vindo para mim junto com o debate da classe trabalhadora, mas o peso que tinha para mim sempre teve um peso muito grande a discussão de classe. No primeiro momento, essa era a discussão que pesava para mim, as mulheres trabalhadoras, que são em sua maioria, principalmente no Brasil, mulheres negras, como são as mulheres da minha família (Isa, 26 anos, bissexual, negra).
Os elementos evocados trazem uma interação entre múltiplas formas de diferenças e desigualdades, que atingem, neste caso, mulheres-negras-trabalhadoras. Aqui vale a pena destacar a instigante provocação feita por Haraway (2004), que aponta a dificuldade da maioria das/os pesquisadoras/es para analisar criticamente a diferença para além de leituras binárias:
[...] as feministas têm tanta razão em argumentar a favor de um sistema de raça/gênero quanto no argumento de um sistema de sexo/gênero, e os dois não são o mesmo tipo de movimento analítico. E o que aconteceu com a classe? Cresce a evidência da necessidade de uma teoria da ‘diferença’ cuja geometria, paradigmas e lógica escapem aos binarismos, à dialética, aos modelos natureza/cultura de todo tipo. Do contrário, três serão sempre reduzidos a dois, que logo se tornam um solitário na vanguarda. E ninguém aprende a contar até quatro. Essas coisas têm importância política (2004, p. 207, grifo da autora).
A percepção de que as desigualdades e os sistemas de opressão estão entrelaçados não necessariamente surge no primeiro contato com a militância no movimento estudantil, mas os relatos mostraram que todas as interlocutoras perceberam a importância da imbricação das desigualdades relacionadas à geração, cor/raça, gênero, sexualidade, territorialidade e classe social nas atividades do CASS/UERJ. A compreensão acerca da interseccionalidade então impulsiona um fazer político diferente. Para quase todas as interlocutoras, a questão de gênero e sexualidade teve um grande impacto no seu processo de produção enquanto sujeito político. Entretanto, a permanência nesses espaços de militância possibilitou novas entradas analíticas para outros marcadores.
Essas questões ainda se somam à compreensão enquanto mulher da classe trabalhadora, pois não se ignora em nenhum momento os efeitos que o recorte de classe possui na produção de desigualdades, assim como raça. E desse modo vai sendo construída toda uma percepção acerca da própria trajetória e do que se espera no futuro. Mudam-se, inclusive, os significados, os sentidos, as formas de se relacionar, de se posicionar, porque, de certo modo, esse saber sobre sua posição social a liberta.
O presente artigo objetivou apresentar uma análise das pautas do CASS/UERJ referente às questões de gênero e sexualidade, bem como refletir sobre os efeitos, tensões e limites da atuação dessa entidade frente ao acirramento do conservadorismo moral entre 2018 e 2020. Identificamos que, no período, houve ampla participação das integrantes do CASS/UERJ no debate em torno do contexto político nacional. Buscavam aumentar a visibilidade das pautas de legalização do aborto e do enfrentamento à LGBTfobia, além de conscientizar à comunidade universitária acerca do acirramento do conservadorismo no Brasil e seus efeitos no cotidiano dos jovens universitários e dos trabalhadores. Com a eleição de Jair Bolsonaro, o CASS/UERJ foi impelido ainda mais a discutir temáticas acerca das questões de gênero e sexualidade. Estes assuntos marcaram suas trajetórias ativistas e forneceram um olhar para interpretar o contexto universitário e os movimentos estudantis.
A atuação de algumas interlocutoras em determinados campos de movimentação social possuía uma linguagem própria, sentidos e visões de mundo que eram compartilhadas com o restante das integrantes do CASS/UERJ e dos movimentos estudantis e, não sem tensionamentos, impulsionavam o diálogo. Para Alvarez (2014), os diferentes campos se articulam através de redes político-comunicativas reticuladas, teias marcadas pela circulação de atores coletivos formais, de agrupamentos informais, de indivíduos atuantes, de práticas, ideias e discursos, disputando representações dominantes. Ao longo dessas teias político-comunicativas, o universo de significados que constituem o discurso dos militantes dos movimentos estudantis são traduzidos e (re)construídos, (re)norteando estratégias e identidades. Identificamos que as diferenças políticas apareceram principalmente como “expressões” das correntes políticas as quais os sujeitos se alinhavam. Entretanto, ao que parece, a temática de gênero e sexualidade, tem um poder aglutinador, na medida em que esse debate significava falar e defender sua própria existência.
A pesquisa apresentou, nesse sentido, a valorização do fluxo entre os diversos enquadramentos “dos movimentos” (das mulheres, da população LGBTI+, dos estudantes etc.) e a articulação de campos discursivos de ação mais ou menos separados (BAGAGLI, 2019; RIOS; MACIEL, 2018). Esse enquadramento dá centralidade à interação entre atores e atrizes - dentro de um mesmo campo e entre campos - e às correspondentes reelaborações de discursos e significados que se materializam, em alguns casos, em políticas universitárias. Por exemplo, em 2021, o auxílio creche para as/os estudantes foi instituído pela UERJ.
Sabemos que o CASS/UERJ é apenas uma entre muitas entidades representativas do movimento estudantil. Retratamos aqui, pois, as formas como determinadas pautas se tornaram visíveis a partir das concepções, vivências, bagagens teóricas e posicionamentos políticos de suas integrantes. Desse modo, acompanhamos Reis (2016) ao propor que “as juventudes em seu meio do caminho fazem saltar as experiências, tornando-as possibilitadoras de escolhas” (p.111, grifos da autora). As decisões tomadas pelos movimentos estudantis universitários, plurais e compostos por juventudes em trânsito, se constituem atualmente por uma rede de diferentes experiências, identidades e pontos de vista atravessados por marcas geracionais em diálogo com outros marcadores sociais da diferença. Em convergência com Lima (2020), essa característica permite a articulação com subjetividades múltiplas, no encontro com outros atores da universidade e de movimentos sociais fora dela.
A análise aqui apresentada pretende, pois, contribuir aos estudos recentes em torno dos movimentos estudantis universitários no país, sobretudo localizando demandas e conflitos que se reformulam a partir da entrada de novos sujeitos neste espaço. Do mesmo modo, procurou-se visibilizar esse movimento que enfrenta desafios próprios em um contexto de acirramento dos conservadorismos, sem mais tolerar ambientes excludentes, que reproduzem preconceitos e invisibilizam os próprios sujeitos.