Resumo: Analisou-se as visões sobre a fome relatadas em reportagens dos três maiores jornais digitais do Brasil. Foi conduzida análise quali-quantitativa de 41 textos jornalísticos sobre a "fome no Brasil", publicados entre outubro e dezembro de 2021. Múltiplos fatores como desemprego, alta dos preços dos alimentos, inflação foram associados a fome. A Covid-19 foi aportada como um fator agravante. Não foram encontradas análises sobre os impactos decorrentes do contexto político e de atuação governamental. A fome está presente na pauta jornalística, mas é tratada como algo circunstancial e associada a fatores restritos aos indivíduos.
Palavras-chave: Fome, Insegurança alimentar, Desigualdade social, Determinantes sociais.
Abstract: This article analyzed the views regarding hunger reported in news from the three largest digital newspapers in Brazil. Conducted by a quali-quantitative analysis of 41 journalistic texts about 'hunger in Brazil', published between October and December 2021. Multiple factors such as unemployment, high food prices and inflation were associated with hunger. Covid-19 was mentioned as an aggravating factor. No analysis on the impacts arising from the political context and governmental action was found. Hunger is present in the journalistic agenda, but it is addressed as something circumstantial and associated to factors restricted to individuals.
Keywords: Hunger, Food Insecurity, Social Inequality, Social Determinants.
Visão sobre a fome em jornais digitais no Brasil
View on hunger in digital newspapers of Brazil
Recepción: 01 Abril 2023
Aprobación: 01 Mayo 2023
(...) O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”
(Carolina Maria de Jesus - Quarto de despejo)
Este artigo é um convite a refletir sobre as visões e os fatores associados à fome, que agudiza milhões de pessoas no Brasil e no mundo. Mas, o que é a Fome? Para Josué de Castro (1984), “é a expressão biológica de males sociológicos”, outros autores ainda agregam a difícil realidade de que ela traz consequências biológicas, psicológicas e sociais amplas (PINHEIRO, CARVALHO, 2010; RIBEIRO JUNIOR, 2020). Buscar conceituá-la a partir de teorias pode ser um exercício vazio, pois apesar de estarmos no mesmo "planeta fome", síntese real e atual de Elza Soares, estamos no grupo daqueles que não sabem o que é ter/sentir fome no cotidiano. Parte-se, assim, do pressuposto que estudar este tema é, antes de tudo, um ato ético-político (FRUTUOSO, VIANA, 2020).
A fome é uma violação aos direitos humanos, em especial ao Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). A fome representa também a insegurança alimentar (IA) na sua forma mais grave (SEGALL-CORRÊA; MARIN-LEON, 2009). Compreende-se a condição de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) como a efetivação do DHAA por meio do acesso frequente e permanente aos alimentos em quantidades e com qualidade adequadas, sem o comprometimento das demais necessidades essenciais (BRASIL, 2006). No entanto, mesmo diante deste conceito registrado em uma lei, a fome retornou ao Brasil. Explicações sobre a reemergência da fome enquanto questão nacional a conectam com as escolhas políticas associadas a medidas de austeridade fiscal observadas no Brasil a partir de 2016, as quais somada ao contexto de crises econômica e política instalada no país tem gerado ciclos de desemprego, baixo crescimento econômico e aumento de desigualdades sociais (FAO et al, 2017). Agravou este contexto a emergência da crise sanitária decorrente da pandemia da Covid-19 (SANTOS et al, 2021).
Estudo nacional da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, realizado em 2022, identificou que 58,7% dos domicílios brasileiros conviviam com algum nível de IA (REDE PENSSAN, 2022). A fome, a forma mais severa da IA, estava presente em 15,5% destes lares. Outras pesquisas também registram os limites no acesso permanente e/ou em quantidade adequada aos alimentos (GALINDO et al, 2021; REDE PENSSAN, 2020). Por trás destes dados temos um conjunto de fatores e determinantes que, por vezes, estão ocultos no debate público sobre o tema (KEPPLE; SEGALL-CORRÊA, 2011; VALENTE, 2021). E o que leva à fome?
Diálogos voltados para responder a esta questão por vezes referenciam o modelo explicativo dos Determinantes Sociais da Saúde - DSS (MARMOT, 2005). Este modelo tem sido amplamente adotado para compreensão de diferentes aspectos da saúde, como, por exemplo, na explicação sobre a desnutrição - uma condição biológica diretamente associada à situação de fome. Neste sentido, sob a ótica da alimentação e nutrição, pode-se identificar como determinantes próximos aos indivíduos os padrões de consumo de alimentos e a capacidade do organismo humano em aproveitar adequadamente os nutrientes veiculados por estes. Como determinantes intermediários têm-se as formas de organização da produção agrícola, a disponibilidade de alimentos, a educação, o acesso a serviços sociais e de saúde, a habitação, o emprego, dentre outros aspectos. São identificados, ainda, como macrodeterminantes, as políticas e os contextos socioeconômico, cultural e ambiental que as pessoas vivem (ACOSTA; FANZO, 2012). Trata-se de uma compreensão de que os processos de saúde-doença das pessoas são determinados por questões mais amplas como as formas de organização social vivenciadas pelos indivíduos e o ambiente ao qual se encontram coletivamente expostos.
O debate sobre DSS está também atrelado ao tema das desigualdades e iniquidades em saúde. Infelizmente as desigualdades têm se constituído como uma locomotiva do mundo e isso não é diferente no Brasil. Lutar contra esse cenário significa também concentrar esforços na chamada disputa pelo imaginário social sobre a fome e outras expressões das desigualdades. O esforço analítico aqui empreendido inicia com uma contextualização do cenário contemporâneo impulsionado por aceleradas mudanças econômicas, políticas e sociais, convocando para a reflexão sobre como estas produzem impactos substantivos sobre a vida das pessoas, em destaque àquelas em situação de maior vulnerabilidade. Em seguida, coloca-se a temática da fome e as questões correlatas presentes no debate público disseminado por versões digitais de jornais impressos buscando assim apreender como os processos noticiados pela mídia eletrônica propagam as informações acerca da temática. Este artigo buscou analisar as visões associadas à fome disseminadas em reportagens veiculadas em jornais digitais brasileiros.
“A desigualdade extrema é uma forma de “violência econômica” pela qual políticas estruturais e sistêmicas e escolhas políticas que são enviesadas em favor dos mais ricos e poderosos resultam em danos diretos à grande maioria das pessoas comuns” (AHMED et al, 2022, p.12). Importante considerar que “vivemos num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo” (HOBSBAWN, 1995, p. 562). Sob a égide do mercado e a tirania de uma economia cada vez mais financeirizada, o neoliberalismo tem sido fortalecido como “nova racionalidade” (DARDOT, 2016) apoiada na concorrência de todos contra todos, pela ideologia do empreendedorismo e pelo imperativo do sucesso, da concorrência e da mercantilização da vida. Soma-se a este contexto a reemergência de retóricas nacionalistas e xenófobas.
Este cenário, antes mesmo da emergência da pandemia da Covid-19, já evidenciava o fracasso do capitalismo flexível financeirizado, do fundamentalismo neoliberal e de um Estado gerencial/empresarial (HARVEY, 1995; CHESNAIS, 2003). A precarização social se tornou hegemônica, e apoiada pelo Estado e seus governos têm sido implementada em todo o mundo. Assim, podemos considerar que “...na raiz da ‘questão social’ na atualidade, encontram-se políticas governamentais favorecedoras da esfera financeira e do grande capital produtivo, as quais passam a assumir os ônus das chamadas ‘exigências dos mercados’.'' (IAMAMOTO, 2013; SILVA, 2019). No Brasil, o avanço de um modelo ultraneoliberal determina quem morre e quem vive. Fatores como ausência de acesso à educação, a serviço de saúde, a emprego e trabalho dignos e a outros direitos humanos, refletem suas marcas predatórias na vida das pessoas, sendo a fome uma expressão deste cenário. Cabe destacar, que as mulheres são as mais expostas as contradições perpetradas pela sociedade de classe, uma vez que interseccionam os estereótipos gerados pelo sexismo, pelo racismo e pela sua condição social as colocam na extremidade da subalternidade.
As lutas sociais voltadas para a superação da fome ganharam visibilidade no período pós redemocratização do Brasil, influenciando a primeira formação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), em 1993. Após inexistente por um período, a recriação do CONSEA, em 2003, caracterizou uma era de mudança de postura do Governo Federal nas relações com a sociedade civil permitindo assim um ambiente institucional favorável ao desenvolvimento de estratégias fundamentais para a implantação do Programa Fome Zero e a construção da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - PNSAN (LEÃO; MALUF, 2012). A PNSAN e a atuação ativa e vigilante da sociedade civil por meio do CONSEA produziram resultados. Em 2014, pode-se celebrar a saída do Brasil do chamado Mapa Mundial da Fome. No entanto, a sobreposição de crises políticas, econômicas e de saúde, trouxeram a fome de volta aos brasileiros e brasileiras (FAO et al, 2017).
Pesquisa documental, analítica, construída a partir de análises quali-quantitativas de textos jornalísticos sobre a 'fome no Brasil', publicados em 2021, pelos três maiores jornais digitais do país: Folha de São Paulo, O Globo e O Estado de São Paulo (Estadão). Segundo o Instituto Verificador de Comunicação (IVC), entidade nacional sem fins lucrativos responsável pela auditoria de mídia no Brasil, estes três jornais apresentaram, respectivamente, a participação em 25,2%; 24,8% e 13,2% no total de exemplares digitais em 2021 (IVC, 2022).
A coleta das reportagens ocorreu no campo de busca dos sites dos jornais, no mês de janeiro de 2022, usando como descritores as palavras “fome" e "Brasil”. Foram incluídos no estudo os textos que continham a palavra "fome" no título; publicados entre outubro e dezembro de 2021 e que tratavam do tema no Brasil em diálogo com a perspectiva dos Direitos Humanos. O registro das reportagens foi realizado no Excel, a partir do título, jornal de publicação, data de veiculação e link de acesso, tendo sido excluídas aquelas que abordavam a fome estritamente numa perspectiva assistencialista, ou seja, como uma situação que pode ser solucionada por campanhas de arrecadação/ doação de alimentos. Inicialmente fez-se leituras de profundidade em cada texto para, após, iniciar-se a extração de dados. Estes movimentos permitiram identificar as visões e os determinantes sociais associados à fome.
Para a análise qualitativa utilizou-se o método de análise de conteúdo (BARDIN, 2011). Os dados quantitativos foram analisados sob perspectiva descritiva, após verificação de consistência das informações coletadas, no programa estatístico Stata SE (versão 12.0), por meio da obtenção de frequências absolutas (n) e relativas (%) das respostas (STATA, 2011).
A caracterização geral das reportagens foi realizada a partir das informações: jornal de veiculação (Folha de São Paulo, O Globo e Estadão); mês de publicação (outubro, novembro ou dezembro), tipo de texto (informativo, entrevista, artigo de opinião ou outro) e fontes de dados sobre a fome (pesquisas, governo, organizações não governamentais, movimentos sociais, entrevistas com pesquisadores ou pessoas em situação de fome, e outras).
A identificação das visões sobre a fome e a possível relação com o contexto da pandemia de Covid-19, foi conduzida a partir de perguntas guias construídas à luz do objetivo desta pesquisa e em diálogo com quatro macrocategorias de análise propostas por Rigaud, Verthein e Amparo-Santos (2021). A macrocategoria “Concepções sobre a fome” foi associada à pergunta “Como a fome é explicada no texto?”. Para a “Compreensão da fome na pandemia x a questão estrutural da SAN no Brasil”, foram elencadas questões sobre a abordagem da alimentação como um direito humano; o papel do Estado como responsável pela situação de fome; e a existência de destaque a ações ou programas visando a mudança do cenário de fome no Brasil (no caso de resposta positiva buscou-se registrar se as ações eram de solidariedade ou realizadas pelo poder público). A macrocategoria “Modos de invisibilidade dos indivíduos e seus processos” foi associada à pergunta “Há uma tendência de responsabilização única dos sujeitos colocados em situação de vulnerabilidade pelas suas condições de vida?” e a macrocategoria “Relação entre a crise sanitária, econômica e política” foi relacionada à questões que identificaram se a fome era retratada exclusivamente como um fenômeno consequente da pandemia; e se o texto citava a relação entre a crise econômica e política pré-existente no Brasil e o agravamento da fome. O registro das respostas foi realizado pelas categorias sim e não, sendo, de forma complementar, coletados trechos dos textos.
Por fim, buscou-se identificar os fatores associados à condição de IA abordados nas reportagens. Para esta etapa, foram construídas categorias adaptadas de Kepple e Segall-Corrêa (2011), a partir de três níveis. No nível macrossocioeconômico consideraram-se fatores econômicos, sociais, agrícolas, ambientais, assistenciais e a existência de racismo estrutural ou discriminação de qualquer tipo. No nível regional-local: preço dos alimentos e custo de outras necessidades essenciais, emprego/desemprego, serviços de saúde e educação, assistência e rede de apoio social, cultura alimentar, saneamento básico e vigilância sanitária. E no nível domiciliar: escolaridade, composição familiar (presença de idosos e crianças) e pessoa de referência (chefe) da família com rendimento, raça/cor, saúde geral dos moradores, educação alimentar, comportamento e hábitos alimentares, acesso à renda formal/informal e participação em programas socioassistenciais ou religiosos.
A busca realizada nos sites dos jornais permitiu identificar um total de 64 reportagens com a palavra fome no título e publicadas no último trimestre de 2021. Considerando-se os critérios de inclusão, 41 textos foram inseridos no estudo e 23 classificados como inelegíveis. Como motivos da exclusão citam-se: reportagens com abordagem estritamente assistencialista (n=17); links de galeria de fotografias associadas a textos já incluídos na amostra (n=3) e reportagens que não tratavam do tema da fome no Brasil (n= 3). Os textos foram publicados em quantidade semelhante nos meses pesquisados: 15 reportagens em outubro, 12 em novembro e 14 em dezembro. Compreende-se que o último período do ano traz maior enfoque ao tema dada a celebração do dia mundial da alimentação, em 16 de outubro. O Jornal Folha de São Paulo foi o que mais publicou sobre o tema (61%, n=25), seguido pelo O Estado de São Paulo (21,9%, n= 9) e O Globo (17,1%, n=7).
Quanto ao tipo de texto, a maior parte era do tipo informativo (58,5%, n=24). As fontes de dados mais citadas foram: pesquisas, ONGs, governo e entrevistas com pessoas em situação de fome. Estes dados estão detalhados na Tabela 1.
Tabela 1. Características gerais das reportagens estudadas (n=41) quanto ao mês de publicação, jornal, tipo de texto e fonte de dados sobre a fome.
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2022. Legenda: 1 O mesmo texto pode apresentar mais de uma fonte de dados. 2 FAO = Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.
A visão sobre a fome predominante nas reportagens aponta para múltiplos fatores associados ao fenômeno, os quais sob diferentes perspectivas foram agravados no contexto da pandemia da COVID-19. Destacam-se como explicação recorrente sobre a fome, a influência do desemprego e da alta dos preços de alimentos, o aumento da inflação, a desigualdade na distribuição de renda e a não atuação do governo federal frente ao problema: “A gestão Bolsonaro exibe uma rara união entre incompetência, desinteresse e improviso” (texto da Folha de São Paulo, 2021). Sobre as iniciativas de combate à fome, foram encontradas citações a ações pessoais e institucionais (por meio de banco de alimentos e ONGs).
Uma única reportagem trouxe uma perspectiva sócio-histórica para explicar a fome, utilizando como contexto o drama que se manifesta repetidamente no nordeste brasileiro devido à seca que agudiza milhares de famílias. Não foi encontrada abordagem de responsabilização individual das pessoas em situação de fome e poucos textos problematizam a relação da fome com a evasão escolar, cujas consequências futuras perdurarão no cenário brasileiro por anos.
As reportagens explicam a fome, predominantemente, a partir dos fatos, não havendo recomendações e proposições para a mudança de cenário. Cabe destacar a sobreposição de textos que traziam a crise humanitária causada pela pandemia de Covid-19 como responsável por desnudar e agudizar a fome e tantas outras mazelas sociais.
Sob o aspecto da alimentação, destaca-se que a fome é também explicada com mais frequência na perspectiva das restrições de acesso físico e financeiro aos alimentos. Poucos textos problematizam as alterações na qualidade da dieta dos brasileiros. Assim, justifica-se relacionar força aos que resistem à fome, pois sobreviver a tanta violação de direitos humanos requer resistência, coragem e determinação. Entretanto, reconhecer fortalezas em meio ao caos não deve abrir precedente para se aceitar o cenário de fome e de ausência de cidadania:
A democracia é incompatível com a engrenagem da violência institucional e miséria que nega a dignidade e o mínimo existencial a tantos. Agir e pensar com justiça é experimentação sócio moral cujo compromisso deve ser de todos nós; e isso precisa acontecer agora; ... A fome não pode esperar (Reportagem publicada no Estadão, 2021).
O conceito de SAN expresso na Lei no 11.346/2006, se refere à "... realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais…” (BRASIL, 2006, p.04). A referida lei cita ainda o papel do Estado na efetivação da SAN e do DHAA. Foi possível identificar que poucas reportagens discutiram a importância de políticas permanentes de SAN. E que, no nível individual, é claramente demonstrado nas reportagens a negação ao aspecto primordial da SAN: o acesso aos alimentos. Sem ele não é sequer possível pensar sobre a qualidade nutricional e os impactos que a má alimentação traz para as pessoas.
Um conjunto de 78,1% (n=32) das reportagens (Tabela 2) apontou para a responsabilidade do Estado pelo atual cenário de fome no Brasil, citando atitudes e decisões políticas como priorização da produção de grãos voltados para exportação em detrimento de alimentos da dieta básica, redução de apoio a agricultores familiares, alterações em políticas sociais voltadas para a melhoria da distribuição de renda (como o Programa Bolsa Família) e as atitudes pessoais do presidente Jair Bolsonaro que de forma recorrente minimiza os impactos sociais da pandemia por Covid-19, mostrando-se indiferente à fome da população. A forma como o Estado conduz as políticas públicas incide diretamente na distribuição de renda e no acesso aos direitos sociais, conforme observam Castilho e Lemos (2021). No Brasil atual há um cenário de total entrega à abordagem ultraneoliberal, onde a economia de mercado guia as decisões governamentais. Cabe destacar que ainda que haja esse reconhecimento acerca da responsabilidade do poder público perante a fome, apenas 24,4% (n=10) das matérias jornalísticas fazem alguma associação da ausência de acesso aos alimentos/ fome como uma violação aos direitos humanos (Tabela 2). De forma muito positiva destaca-se que nenhum texto responsabilizou os próprios famintos pela condição de fome.
Tabela 2. Visões sobre a fome expressas em conteúdos jornalísticos digitais (n=41), publicados no último trimestre do ano de 2021.
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2022.
A fome é a negação à SAN, é a expressão máxima da indiferença aos direitos humanos. Neste sentido, é necessário discutir quais aspectos deste direito estão sendo negados. A questão é tratada de forma fragmentada pelas reportagens, anunciando um ou outro fator como determinante da fome. O desemprego aparece como o grande responsável pelo grave contexto atual (Tabela 3), quando “[...] a generalização do trabalho livre em uma sociedade em que a escravidão deixa profundas marcas” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2006, p. 125). No entanto, este é resultado do neoliberalismo que precariza e fragiliza relações de trabalho, financeiriza a economia, individualiza as responsabilidades e oferece o mínimo de acesso aos direitos sociais.
Aproximadamente metade das reportagens, 46,3% (n=19), destacaram alguma iniciativa para a mudança do cenário de fome no Brasil, sendo citadas atividades de solidariedade realizada por grupos independentes e/ou ações emergenciais ou estruturais pelo poder público. Estas últimas, quando mencionadas, eram também retratadas como iniciativas que precisam ser fortalecidas e/ou ampliadas, a exemplo da Cozinha Cidadã em São Paulo, que distribuiu marmitas durante o período da emergência sanitária.
A pandemia ampliou o cenário da fome no país, mas em 73,2% (n=30) das reportagens foi destacado que o agravamento do quadro de pobreza e pobreza extrema antecede ao período pandêmico (Tabela 2). Ainda no cômpito do conjunto de análises, buscou-se evidenciar se o racismo estrutural era citado nas matérias jornalísticas, considerando que é sobre os corpos negros que a fome é notadamente mais presente (REDE PENSSAN, 2021; 2022). No entanto, os textos não fazem nenhuma menção (Tabela 3), o que demonstra o racismo velado e por vezes silenciado, num contexto em que as desigualdades socioeconômicas estão diretamente demarcadas pela nossa herança escravocrata. A pobreza brasileira e a fome são produtos dessas relações históricas que, conforme Yazbek (2010) "fixam" os pobres em seu lugar na sociedade marcado pela subalternidade, pela revolta silenciosa, pela humilhação e alienação e, sobretudo, pela resiliência aliada às estratégias para melhor sobreviver, apesar de tudo.
No contexto brasileiro, quando acrescidas da questão racial as formas de opressão são consideravelmente acentuadas. As pessoas em situação de pobreza são atravessadas por questões raciais e de gênero. A violência de gênero que afeta, senão todas as meninas e mulheres, está enraizada no patriarcado e na perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2002; GONZALES, 1982; AKOTIRENE, 2019).
As mulheres negras representam 27% da população e ocupam metade dos empregos informais, sobretudo no trabalho doméstico. Elas formam um grupo de alta vulnerabilidade; sem garantia trabalhista e de proteção social... Ocorreu também uma destruição de políticas públicas dirigidas para a segurança alimentar; que eram as que amparavam a população mais vulnerável; em sua maioria negra. (Depoimento publicado no jornal Folha de São Paulo, 2021).
Há outras necessidades que as reportagens demonstram como uma simbiose das privações sofridas pela população em situação de vulnerabilidade socioeconômica. De um lado se deixa de comer para garantir acesso a itens básicos de sobrevivência como água, gás, energia elétrica e moradia, e do outro, verifica-se a migração para áreas sem saneamento, em moradias precárias, sem recursos mínimos, para que se tenha algo a colocar no prato. No nível individual, especialmente com a pandemia de Covid-19, figura-se o desespero pela busca de alimento. A fome, que acomete adultos e crianças, eleva o desalento familiar, a violência doméstica, a evasão escolar e retira do indivíduo a possibilidade de exercer cidadania.
A crise do capitalismo e esse governo insano jogaram na sarjeta 67 milhões de trabalhadores adultos; identificados como desempregados; desalentados; subocupados e precarizados. Sem trabalho nem renda fixa. Não têm direitos sociais e estão à margem da sociedade e do mercado. Assim, passam fome ou se alimentam aquém das necessidades biológicas. Pior: sacrificam mais fortemente as crianças; as mulheres e o povo negro; que vivem nas periferias das cidades. (Depoimento publicado no caderno opinião no jornal Folha de São Paulo, 2021).
A análise sobre quais fatores são citados pelas reportagens como relacionados à fome no Brasil (Tabela 3) permitiu identificar, no nível macrossocial, os aspectos econômicos (85,4%, n= 35) e sociais (75,6%, n= 31) como os mais frequentemente citados. No nível regional/local foram destacados os temas do emprego/desemprego (53,7%, n=22) e dos preços de alimentos e custos com outras necessidades básicas (41,5%, n=17). Sobre o aspecto individual, o acesso à renda formal/ renda informal (36,6%, n=15), a presença de idosos ou crianças na família e a pessoa de referência da família com renda (34,1, n= 14) foram as causas mais citadas (Tabela 3).
O cenário de crise humanitária instalada pela Covid-19 nos faz não apenas uma convocação ética, que exige reconhecer que todas as vidas importam, mas também exige de nós constatar que a vivência de desigualdade requer medidas de equidade e proteção específicas e especializadas para alguns públicos, sob pena de testemunharmos a eliminação de amplos coletivos populacionais, abandonados a seu próprio azar. O convívio promíscuo com a barbárie começa pela naturalização da fome. (reportagem publicada no jornal Estado de São Paulo, 2021).
Tabela 3. Fatores associados à fome expressos em conteúdos jornalísticos digitais (n=41) publicados no último trimestre de 2021.
Fonte: Elaborado pelas autoras, 2022.
De forma predominante a visão sobre a fome nas reportagens é citada pelos fatores relacionados às condições individuais, tais como moradia, alimentação, escolaridade, renda e emprego. Isto demonstra a necessidade de se ampliar o debate acerca da fome, enquanto a expressão maior de um acúmulo de fatores associados à violação dos direitos humanos e cujo Estado tem fundamental papel no combate. Em referência especial ao DHAA, é preciso debater a fome não apenas sob a ótica de acesso aos alimentos, mas a um conjunto de fatores capazes de assegurar o bem viver das pessoas.
A forma como a fome foi retratada nas reportagens veiculadas pelos três maiores jornais digitais em 2021 reflete o modelo societário em curso e se vincula à formação social, econômica, cultural e política do Brasil. A fome, espelhada em tantos brasileiros, não é um fenômeno recente ou sazonal. Ela é determinada por um processo sócio-histórico, cujo desenvolvimento das forças produtivas está intimamente vinculado com desdobramentos negativos sobre as dimensões da vida. A fome deve ser analisada como uma expressão da questão social, considerando sua totalidade e abarcando toda a reprodução das relações sociais.
As reportagens relataram ganhos econômicos no contexto pandêmico estritamente favorável às grandes instituições, como bancos e grupos do agronegócio. Em paralelo, observou-se a agudização da fome, o endividamento de famílias e fechamento de pequenos negócios, resultante das escolhas econômicas que seguem segregando os mais pobres, com rebatimentos mais severos nas mulheres negras.
É com a dor da fome que este artigo é concluído. A fome é a negação à vida, é um impedimento ao desenvolvimento do pleno potencial humano. Enquanto tema, não está posta no debate público por meio de reflexões sobre suas causalidades e consequências. Que os determinantes estruturais da fome estejam nas lutas e resistências daqueles que acreditam que é possível a construção de uma sociedade mais equânime e mais saudável.