Recepción: 01 Abril 2023
Aprobación: 01 Mayo 2023
Resumo: Em 2018 houve, no centro de São Paulo, um incêndio seguido da queda (tipo de implosão) do edifício Wilton Paes de Almeida, onde havia uma ocupação. Em um processo de cunho policialesco e midiático, que tradicionalmente visa criminalizar os movimentos sociais de moradia, executaram-se ações para vistoriar ocupações e, posteriormente, foram decretadas prisões preventivas de lideranças que não tinham nenhuma ligação com a ocupação que colapsou. Esse estudo de caso apresenta o relato publicado por uma dessas lideranças que teve a sua prisão preventiva decretada, acerca dos seus sentimentos enquanto vivia essa situação e tendo conhecimento de que dois filhos haviam sido presos.
Palavras-chave: Criminalização, Sem-teto, Ocupações.
Abstract: In 2018, a fire followed by the collapse of the Wilton Paes de Almeida building, which was occupied, occurred in downtown São Paulo. In a process characterized by a police and media approach that traditionally aims to criminalize housing social movements, actions were taken to inspect occupations (squatter), and later, preventive arrests of leaders that had nothing to do with the collapsed building were decreed. This Case Study presents the published report by one of these leadership that had decreed prison describing her feelings in this situation and having received news about the arrest of her two children.
Keywords: Criminalization, Homelessness, Occupations.
Introdução
No Brasil, desde a Constituição de 1988, o Direito à moradia está elencado como um dos direitos sociais a que todos os brasileiros devem ter acesso. A moradia, nesse sentido, pode ser definida como um local em que se possa viver com a segurança da posse e contando com serviços materiais e infraestrutura. Toda essa regulamentação devendo ser feita pelo Estatuto da Cidade, com as normas de ordem pública e interesse social para o uso da propriedade urbana tendo em vista o bem coletivo. (MAGLIO, 2013).
As ocupações feitas por esses movimentos sociais, além de oferecerem um abrigo às famílias, muitas vindas da situação de rua, também como uma forma de denúncia, dão visibilidade a existência de prédios abandonados. Esses prédios, que não cumprem a função social da propriedade e estando localizados em área provida de infraestrutura urbana, deveriam estar pagando imposto predial progressivo, que foi previsto para essas situações. No entanto, como a municipalidade não vem notificando e consequentemente nem cobrando esse imposto, não há sequer uma dívida a ser cobrada, isso favorecendo processos de especulação imobiliária e gentrificação (ROLNIK, 2015).
No entanto, a criminalização dos movimentos de moradia no Brasil é um fenômeno recorrente, com lideranças e ativistas muitas vezes sendo acusados de diversos crimes, desde a invasão de propriedade até a incitação à violência. Essas acusações resultam em prisões preventivas e julgamentos prolongados, que podem levar a um grande impacto na vida e na saúde mental das lideranças. Tais fatos e suas circunstâncias, contudo, ainda não tem sido amplamente visibilizados, nem pela academia nem pela sociedade de maneira geral. (TATAGIBA, PATERNIANI, TRINDADE, 2012; CAVALCANTI, 2022). As mulheres sem-teto, por seu protagonismo e liderança e por serem maioria nas ocupações, vem sendo particularmente atacadas, inclusive com a acusação de extorsão. Utilizaremos, no âmbito deste artigo, a experiência vivida por uma dessas mulheres, a liderança do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), Sra. Carmen Silva, que teve a sua prisão decretada e teve dois de seus filhos presos em um processo de criminalização que se deu a partir do incêndio e queda (tipo implosão) do edifico Wilton Paes de Almeida, também conhecido como o prédio da Polícia Federal.
Este prédio era considerado um marco na arquitetura modernista, tendo sido tombado em 1992 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, cultural a ambiental da cidade de São Paulo (CONPRESP) e desde 1966, data da sua inauguração, havia sido sede de diversas empresas e órgãos públicos. Por diversos motivos passa a ter dificuldades para a sua efetiva utilização comercial tornando-se alvo de ocupações e desocupações sucessivas pelos chamados sem-teto.
No dia primeiro de maio do ano de 2018 ocorreu o incêndio seguido da queda (um tipo de implosão) dele, chamando a atenção do público para a situação precária da moradia em São Paulo, na cidade mais rica do país. O edifício, que estava ocupado por cerca de 150 famílias em vulnerabilidade social, desabou matando sete pessoas e deixando muitas outras desabrigadas (NUCLEO DOCOMOMO SÃO PAULO, 2018). No momento da tragédia o que se viu foi que parte da população se solidarizou com as vítimas, tendo as sobreviventes ficado em situação de rua por meses, dependendo de doações no Largo do Paissandu, que ficava bem em frente aos escombros do Wilton Paes de Almeida. Foi possível observar ainda, por parte da mídia hegemônica, que em algumas matérias havia insinuações e ataques aos ex-moradores do edifício e aos movimentos por moradia. Tais fatos culminaram com tentativas de interdição de ocupações consolidadas, posteriormente provocando a abertura de investigações sobre crimes que estariam sendo supostamente cometidos por lideranças sem-teto.
É importante lembrar que no laudo sobre a queda do edifício Wilton Paes de Almeida, coordenado por professor especialista em patologia de edificações e feito com a participação de corpo técnico de especialistas e todos os experimentos e provas que se fizeram necessários, constatou-se como causa do incêndio e de todos os seus desenlaces um tipo de implosão; nada foi levantado que pudesse de maneira incisiva incriminar qualquer tipo de liderança3.
Após a tragédia, no entanto, a prefeitura promoveu uma ampla reforma no Vale do Anhangabaú, que fica em uma área contigua, adaptando-o para a sua exploração pela iniciativa privada, através de mega shows e eventos (MACHADO, 2022). Atualmente, está propondo uma Parceria Público Privada (PPP), que visa oferecer a região do Paissandu a empresas que investirão em infraestrutura local, ou seja, construirão prédios a seu bel prazer e não para atender as demandas de moradia de famílias sem-teto que já moram na região. Isso em um flagrante desrespeito ao direito à moradia, que está na Constituição Federal, e em troca de uma dívida que a prefeitura contrairá com essas empresas por décadas. Com isso se confirma, a partir do incêndio e queda do edifício Wilton Paes de Almeida, estar em curso uma valorização crescente dessa área na cidade, que vem sendo muito cobiçada por grupos de investidores internacionais.
Os projetos de edificação que vem sendo feitos em toda a cidade, aliás, tem distorcido as regras do Plano Diretor Estratégico vigente e à sociedade civil, que os vem denunciando, não tem sido permitida uma efetiva participação no sentido de barrar essas distorções. Há uma prática que desatenta regras anteriormente acordadas, por exemplo, a da quota de solidariedade, com a construção de unidades de Habitação de Interesse Social (HIS) nos novos empreendimentos.
Outra distorção se refere a desobediência à restrição na construção de vagas de garagem nos empreendimentos, uma vez que estaria sendo permitido adensamento populacional justamente ao redor de estações de metrô, apenas para citar duas. O que está havendo, no entanto, é a destruição de bairros e modos de vida, o aumento da contaminação do ar e o agravamento de outros problemas ambientais, como o uso excessivo da água para a fabricação do concreto, a impermeabilização e falta de implantação de áreas verdes, para mitigar o efeito ilha de calor. É a supressão da vegetação o que na verdade tem ocorrido e a qualquer pretexto, como foi o caso da reforma do Vale do Anhangabaú para atender à exploração da área por interesses comerciais. Tudo isso ao lado dos eventos climáticos extremos, índices de precipitação inusuais, permissão de construções em fundos de vale, enchentes cada vez mais graves e repentinas, que já levaram a um óbito em bairro de classe média na cidade. E o prefeito da cidade propondo usar a verba do Fundo da Habitação (FUNDURB) para recapear ruas, dando sinais inequívocos da falta de compromisso da administração pública com a deflagrada emergência climática global que vivenciamos no território da cidade.
A queda do edifício Wilton Paes de Almeida, ao mesmo tempo em que levou a um intenso debate público sobre a necessidade de reforma e regularização das ocupações, também, através das visitas técnicas que gerou, surpreendeu, ao se detectar que prédios de ocupações estavam em melhores condições do que se supunha. E, em especial, quando estas ocupações eram geridas por movimentos de moradia organizados (FELLET, 2020).
A tragédia também desencadeou, no entanto, uma série de ações judiciais e a criminalização justamente de lideranças dos movimentos de moradia organizados, que não era o caso da ocupação do edifício Wilton Paes de Almeida. Essa criminalização atingiu a liderança do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), Sra. Carmen Silva e dois de seus filhos.
Ao todo, foram nove as prisões preventivas decretadas, sob a acusação de extorsão.
Estudo de Caso
Com base em uma Pesquisa Participativa Baseada na Comunidade – PPBC (WALLERSTEIN, 2006), através da qual se realizou um trabalho conjunto ao longo dos últimos sete anos e se estabeleceu um vínculo de confiança para o desenvolvimento de diversas ações desde então, foi possível viabilizar esse Estudo de Caso em coautoria com a liderança sem-teto, Sra. Carmen Silva4.
Ao incluir a liderança Carmen Silva como coautora deste artigo, buscamos amplificar a sua voz, dando visibilidade a suas experiências, a fim de contribuir para um maior entendimento da realidade enfrentada por lideranças de movimentos sociais de moradia no Brasil, que tem um Estado, infelizmente, propenso a criminalizar movimentos sociais e ainda não conseguir evitar a ocorrência de eventos outros, que ferem direitos fundamentais. (Assembleia Legislativa Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, 2014).
O Estudo de Caso pode ser feito com base em análise documental, de maneira que utilizaremos nesse estudo um livro que aborda o tema investigado. O livro Cem Dias de Exílio (SILVA, 2019) foi escrito no formato de depoimento, narrando os processos vividos em relação à mudança de rotina, impactos na família, nos relacionamentos, percepções e efeitos na sua saúde mental no período em que a liderança esteve com a sua prisão preventiva decretada.
O que se destaca a seguir se inspira na experiência vivida, o que Bondia afirma: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca, não o que se passa, o que acontece, ou o que toca” (BONDIA, 2002, p.21). O que se apresentará agora é o relato de uma leitura corrida, como sempre limitada, da experiência vivida e descrita pela autora, para que essa possa ser narrada e codificada, nos termos em que Paulo Freire (2002) e também como nos propõe (CRUZ, GHIGGI, 2021).
Comecemos pelo título, Cem Dias de Exilio (Silva, 2019), faz uma associação do que foi vivido com a situação de um exílio, ou seja, tendo se sentido a sensação de se ter sido desterrada e de se estar impedida de voltar à própria terra por 100 dias. Este livro se divide em oito mini capítulos, que serão sumarizados, cujos títulos são: O chamado; O passado presente; não existir; Resistência; Reencontro; A terra prometida vista de cima; A volta; O mundo após cem dias.
Selecionamos o que se refere a sensações, emoções, que se ligam à inclusão, acolhimento, mas também a exclusão, violação. No caminho buscamos as conexões com a promoção e a deterioração da saúde mental, com as penas e prazeres na vida, mesmo em uma situação-limite, com as estratégias, nos contextos vividos e percebidos.
O chamado: No período de exílio (cem dias) vê a Terra de cima, tem a experiência de estar vivendo fora do tempo, de estar vivendo nos tempos da ditadura de 1964; sensação de estar envolvida em muita atividade e de ter a vida interrompida; recebe um pedido da irmã mais velha, feito pela sobrinha, de voltar às origens, tem a sensação de distanciamento dessas origens; recebe um convite para viajar.
O passado presente: Vai fazer uma viagem breve ao Rio, separa pouca bagagem, com esta, notou depois, teve que sobreviver por cem dias; Trabalha com pessoas em uma universidade local o tema da milicia que está dominando a questão da moradia no Rio de Janeiro; sente-se portadora de uma referência no campo da moradia, no sentido de ser uma liderança que observa a obediência as leis; Recebe a notícia da prisão dos filhos e o assédio da mídia para se posicionar em relação a queda do Wilton Paes, ocorrida há um ano nessa data em que se encontra; É chamada a voltar a São Paulo e atendendo a um conselho amigo, decide não atender à mídia; Se lembra que quando da queda do edifício Wilton Paes teve intuição de que os movimentos de moradia seriam responsabilizados por ela; vive esse momento de se lembrar ter tido essa ideia; Sente que órgãos públicos buscam a desmobilização do movimento social com a criminalização das lideranças; Relembra o esforço que fez em trabalhar com as instancias publicas pela moradia e sente-se MUITO impotente porque reconhece que quem tenta andar dentro da lei não é valorizado no país.
Não existir: Inicia a vida de foragida, vê seus filhos sendo presos, se surpreende por nunca ter imaginado que passaria por isso, reconhece que todos os filhos foram encarcerados, mas psicologicamente, o que considera pior; sente que começou seu exílio, não quer chamá-lo por esse nome, mas encontra nele uma associação com a Terra Prometida, vista do alto, de cima que quer ver; é acompanhada pelos colegas da universidade que temem que a prendam no aeroporto, mas ela embarca sem problemas. Quando chega em São Paulo pessoas se oferecem para buscá-la no aeroporto; pensa em se apresentar à delegacia, mas os amigos a demovem e impedem que ela volte para casa, se oferecendo para protegê-la. Sente que a sua vida acabou; “Você não tem mais vida” (trata-se na terceira pessoa); se compara com os presos políticos da época da ditadura no país, se sente injustiçada, na clandestinidade, não mais existindo; sente-se num cárcere por não poder existir de maneira civil; começa a vida mudando de local de tempos em tempos, sem notícias da família, das suas atribuições, sente-se em um coma induzido, que apagaram a sua vida; que não pode mais ser ela mesma;
Resistência: Passou por muitos lugares, teve contatos com muitas pessoas; sente-se num vácuo imenso, resistindo para existir, inoperante, indefesa, à mercê de tudo e todos; Encontra solidariedade e pessoas que já haviam vivido uma experiência semelhante. Sente-se amparada por uma rede; tem vontade de se entregar e sente culpa por saber dois filhos estão presos, suas certezas e convicções começam a ruir, sente-se influenciada pela situação que vive e começa a se anular; sente que quem a está ajudando confia nela; teme que seus filhos a estejam culpando também. Quando finalmente tem a chance de clandestinamente se reunir com eles e sabe que eles não a culpam e não querem que se entregue na delegacia, se fortalece na resistência; Começa então a ler, para preencher a mente, para não negar a própria existência, relembra o tema da ancestralidade de que lhe falara sua irmã mais velha; Lê muito, percebe a humanidade em sua totalidade sempre na luta contra a dominação de poucos, que noções religiosas podem ser enganosas, que a vitimização pode ocorrer, mas que o mal pode ser visto como oportunidade de crescimento, que ela tinha uma força para merecer todo o apoio que recebia; Sente que com seu trabalho, sem o saber bem como, construiu uma rede que poderia ser para toda a vida; Percebe que os filhos seguem o que aprenderam com ela.
Reencontro: Recebe uma notícia ruim, de que seus filhos iriam continuar presos, percebe que as pessoas ao seu redor querem poupá-la, sente-se no dever de não tombar, de não incomodar com seu desespero quem lhe dava apoio e se arriscava a ajudando, sente que não pode demonstrar sua tristeza, esforça-se em ler e escrever para se animar; recebe pessoas que trazem notícias, mas não entende a conjuntura até que começou a ler o processo. Nesse momento começa a se preparar para a sua defesa em conjunto com seus advogados. No momento em que lhe perguntam se estava bem em um dia que era “pleno”, um domingo, em que todo mundo podia curtir a vida e ela se sentindo presa, naquela situação em que vivia, pergunta sobre onde está uma arma e que não tem fome, chora sozinha e reconhece que saiu do seu limite. Não aguenta viver a vida de cima (olhando para baixo de prédios, por janelas), entre quatro paredes, sem pôr os pés no chão; desabafa, aí providenciam um local onde ela pode caminhar e reencontrar pessoas e recomeça a se sentir existindo, tendo um mundo e pessoas com quem pode compartilhar a existência novamente.
A Terra prometida vista de cima: Vendo as pessoas de cima, por janelas, vendo o mundo achatado, teve vontade de se entregar ou se mataria, acabando com tudo que vivia. A sensação de ver a cidade do alto para si é horrível, feia, acredita que uma vida assim, não pode ser plena; observa pela janela um doente sendo cuidado, pensa em como as pessoas vivem encasteladas, sozinhas e presas. Reflete que as pessoas lutam para chegar a esse fim, muitas vezes não tendo convivência com a família, presas pela ambição. Reconhece que a prisão pode ser fora de uma prisão, na vida que se leva numa cidade, pelo isolamento, falta de amor e ganância.
A volta: Percebe que tem que se cuidar, da mente e do corpo. Observa os pássaros, que supõe também quererem sobreviver e estão sem condições em seu habitat natural de garantia de sobrevivência. Se identifica com os pássaros em sua beleza e resiliência, eles voam, ela também pode voar e portanto não está só; Reconhece que a vida é feita de coisas simples, do cuidado com uma planta, uma amizade, amar, mas também é necessário matar o Deus fantasioso, que violenta o ato do amor; Reconhece o amor na luta por direitos, pelo reconhecimento da alteridade, ter razões para viver, reconhece que pela necessidade da moradia, pelo amor aos seus filhos que precisavam de um lar, teve que compreender leis, o Estado, o poder e assim se tornou quem é. Amar também envolve a troca de saberes, compreensão, que associa a Deus. Indígenas e povos afrodescendentes são parte desse amor, eles o executam, mas alguns grupos não querem que se entenda assim e que eles se organizem. Reconhece que foi presa porque fez muito, porque se organizou, quebrou protocolos e fez o que era necessário. Reconhece que a queriam muda, com medo, método do fascismo, do neoliberalismo. Reconhece que cada vez que cai levanta com mais força, quando entende o que se pretende e que sua causa por amor merece ser fortalecida, com amigos e rede. Expressa que não quer que seu ego sobressaia.
O mundo após cem dias: Sobre a parte boa do exilio, refere cozinhas, querer aprender a falar espanhol, que entendeu ser a vida mais ampla e que as coisas materiais têm que ser excluídas, que as coisas da rotina da vida, andar, pegar ônibus, são importantes, que não é preciso muito para se viver, como dão exemplos os pássaros. Relembra o uso que se faz de uma burca, avalia uma sensação ruim por ter que se esconder, não poder existir. Quando recebeu a notícia do habeas corpus que recebeu piorou, teve vergonha de voltar, de andar na rua, dos vizinhos, temeu o julgamento das pessoas. Se satisfez com a reação receptiva das pessoas, inclusive de gestores municipais, quando resolveu retornar ao trabalho de liderança. Mesmo ainda se sentindo aérea, sentido como uma labirintite, sente que voltou a ter pátria. Reconhece que teve pânico, vontade de cometer o suicídio, de descer e correr, que se sentia se matando e se anulando, deixando de existir, mas que se esforçou e aprendeu a valorizar a necessidade dos pequenos gestos e teve a consciência de que dependemos uns dos outros. A sensação foi de ter saído de um limbo, vácuo, anulação, coma com a certeza de que é preciso furar bolhas e ir até onde estão os que necessitam, pois isso é o amor. Reconhece que o movimento cresceu nesse contexto e que não se trata mais apenas de lutar pela moradia, mas de agregar, investidor, mercado e todas as classes juntos.
Reflexões e provocações
Freire (2002) nos pergunta, o que fazer para afirmar a vida, como empreendimento ético e político? De que maneira o conhecimento seria uma mediação para a afirmação da vida? Sistematizar o processo de reflexão para identificar a alienação, manipulação, dominação e pensar outros possíveis, é um caminho para se afastar de uma prática pedagógica bancária, feita para a manipulação e controle dos educandos, sempre vistos como seres de adaptação, do ajustamento. Por isso, para a construção ou produção do conhecimento do objeto é necessário a curiosidade, uma certa tomada de distância do objeto, para observá-lo, delimitá-lo, cindi-lo, cercá-lo, fazendo sua aproximação metódica, buscando a capacidade de comparar e perguntar. (CRUZ e GHIGGI, 2021).
No curso da percepção e associação de ideias, as experiencias, as palavras, as marcas dos fatos descritos a partir da experiência, podemos considerar como categorias definidas a priori. Como as palavras geradoras de sensações e pensamentos a que se associaram experiencias boas, lembradas e vividas, e a experiencias que estava tendo no momento do acolhimento em exílio, podemos falar de uma experiencia intensa, que se mistura entre aspectos de conforto e fortalecimento, com muitos momentos de angústia, alguns de desespero e de nostalgia. Em ambas as situações, observa-se o trabalho emocional e intelectivo na tentativa de buscar um sentido, uma saída, o não se entregar. Aqui no múltiplo e poético sentido da palavra entrega, se entregando. Embora fora do seu lugar, sem sua terra prometida, sentindo-se rendida, percebe ser acolhida, respeitada, valorizada e se alegra, se fortalecendo com isso.
A partir disso resgata a sua dignidade, que foi achatada pelo processo da criminalização, reavendo o seu valor. “Eu via que as pessoas que estavam me ajudando acreditavam em mim.” (SILVA, 2019 p.15). (...) “eles [os filhos] sempre acreditaram no que eu fazia e começaram a fazer pelos outro as mesmas coisas, os mesmos vieses, os mesmos caminhos” (SILVA, 2019 p.21). Quem estava aqui fora me dando apoio acreditava numa força que estava dentro de mim, senão eu não teria todo esse apoio (SILVA,2019 p.17).
Para romper com a cultura que silencia homens e mulheres parece ser necessário o comprometimento com o próprio tempo histórico e a própria existência, tida como experiencia. Assim, o conhecimento requer um compromisso entre a reflexão-ação, não tendo em vista uma teoria a ser comprovada, mas uma realidade sempre maior que a capacidade de apreendê-la. (CRUZ e GHIGGI, 2021)
Assim transformar a própria experiencia retratada em seu livro e sistematizada neste artigo em objeto de estudo, como fez a autora, implica reconhecer a importância da sistematização do conhecimento, uma vez que não são os sujeitos que tem experiencia, mas é a experiencia que constitui os sujeitos.
Aprendizados em permanente construção
No caminho da realidade, autonomia, defesa de direitos e participação social, a construção de vínculos e o planejamento das ações não são apenas feitos de dados objetivos. A percepção e a leitura do mundo são tarefas complexas. Com vínculos afetivos e numa relação de confiança, podemos nos abrir para viver a experiência e quem sabe termos o tempo interno, que é o da experiencia, para a sua sistematização.
É importante acompanhar o que vem sendo feito por lideranças de movimentos de moradia, que se abrem para um trabalho em conjunto com populações vulneráveis, o setor público, parcerias privadas, as universidades, coletivos culturais, a fim de se dar mais visibilidade a esses processos e aos efeitos em cascata no que se refere a formas de integração de camadas da população em diferentes condições econômico-sociais, produzindo o chamado “furo das bolhas”. (SILVA, 2019 p.33).
O que se observa no relato feito pela autora é que ela viveu muito do que se indicou acima, mas por ter se sentido acolhida, valorizada em sua dignidade, por sua família, por seus cuidadores, mesmo quando afloraram momentos de desespero outros, ela os conseguiu enfrentar, pois mais forte foi o desejo de autocuidado e maiores os efeitos do cuidado que inspirou.
Corroboramos com Luiz Kohara (2012), engenheiro e pesquisador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, que defende que ocupar é legítimo. “O que legitima uma ocupação é o direito à moradia, que é constitucional. Portanto, qualquer pessoa sem moradia pode ocupar um imóvel vazio, até porque um prédio, ou casa, sem função social e vazio está em situação de ilegalidade, é justo e de direito, a ocupação.”
Referências
BONDIA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, jan./fev./mar./abr. 2022, no. 19, p. 20-28.
CAVALCANTI, E. R. et al. Movimentos sociais na ocupação de imóveis vazios nas áreas centrais e o enfrentamento inclusivo das mudanças climáticas: os casos de São Paulo e Natal. Revista de Direito da Cidade, v. 14, n. 1, p. 138–169, jan. 2022.
CRUZ, C. R. da; GHIGGI, G. A codificação e decodificação de situações-limite como recurso pedagógico para a problematização da relação entre educação e a cultura: atualidade do pensamento de Paulo Freire. Disponível em: https://silo.tips/download/claudete-robalos-da-cruz-1-gomercindo-ghiggi-2-resumo. Acesso em abril de 2023.
FELLET, Cassia Maria Andrecia Naves. Saúde mental da população moradora de ocupações de movimentos de moradia na cidade de São Paulo [doi:10.11606/D.31.2020.tde-10022021-190336]. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 2020. Dissertação de Mestrado em Culturas e Identidades Brasileiras. Acessado em 08 mai. 2023.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa, São Paulo: Paz e Terra, 2002.
KOHARA, L. Déficit habitacional na maior cidade da América Latina chega a 1,4 milhão. Disponível em: http://www.direitoamoradia.fau.usp.br/?p=14565&lang=pt
MACHADO, G. M. C. Cidade para quais pessoas? Sobre as contradições da reforma do Vale do Anhangabaú. Tempo Social, v. 34, n. 1, p. 153–174, jan. 2022.
MAGLIO, I. Revisão do PDE com um Plano de Aceleração de Diretrizes e Metas. Revisão por inteiro! São Paulo, 2013. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/revisao-do-pde-com-um-plano-de-aceleracao-de-diretrizes-e-metas-revisao-por-inteiro/. Acesso em abril de 2023.
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ASSEMBLEIA LEGISLATIVA, COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO, “Rubens Paiva” Infância Roubada, crianças atingidas pela ditadura militar no Brasil. Assembleia Legislativa, Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. São Paulo: ALESP, 2014, 316p.
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Notas
Notas de autor