Resumo: Este texto visa demonstrar como a integração das cadeias produtivas de valor, sob o domínio das nações hegemônicas, desempenham um papel fundamental no movimento de apropriação-expropriação das mais distintas possibilidades de valorização do valor das nações dependentes por meio da opressão-superexploração das classes trabalhadoras. Provocando o aumento da violência capitalista, em seus diversos matizes: a expropriação de territórios, a disseminação de metais e pesticidas tóxicos, a destruição da natureza, a plataformização e precarização laboral, o adoecimento generalizado, a insegurança alimentar e a escravização de seres humanos. Constituindo, dessa maneira, expressões contundentes das violações do fundo de consumo e do fundo de vida das classes trabalhadoras brasileiras.
Palavras-chave: Cadeias produtivas, Plataformização, Opressão-superexploração, Escravização.
Abstract: The purpose of this text is demonstrate how the integration of productive value chains, under the domain of hegemonic nations, play a fundamental role in the movement of appropriation-expropriation of the most distinct possibilities of valuing the value of dependent nations through the oppression-superexploitation of the working classes. Provoking an increase in capitalist violence, in its various shades: the expropriation of territories, the dissemination of toxic metals and pesticides, the destruction of nature, platformization and precarious work, generalized illness, food insecurity and the enslavement of human beings. Thus constituting forceful expressions of violations of the consumption fund and the life fund of the Brazilian working classes.
Keywords: Productive chains, Platformization, Oppression-superexploitation, Enslavement.
Dos meios de vida ao trabalho "digital": expropriação e opressão-superexploração
From livelihoods to “digital” labor: expropriation and oppression-superexploitation
Recepción: 01 Junio 2023
Aprobación: 01 Agosto 2023
A relação entre seres humanos e a natureza é condição vital para nossa sobrevivência. E a exploração de mais-valor é essencial para a manutenção do modo de produção capitalista, mesmo no nebuloso e mistificado ciberespaço no qual muitas das mercadorias, que ali circulam, são apresentadas como imateriais ou intangíveis; como os dados ou o “engajamento” das mídias sociais, supostamente ausentes de trabalho concreto para serem viabilizadas. O espaço cibernético, que avança em ritmo acelerado, tem sido a cristalização de uma melhor intersecção entre os distintos ramos e setores econômicos com a intensificação, inovação e expansão das relações de dominação, opressão-exploração, apropriação-expropriação e alienação. Articulada ao aprofundamento de relações hierárquicas entre as nações hegemônicas imperialistas e as dependentes com a reciclagem permanente da racialização e da generificação.
O objetivo deste texto é demonstrar como a integração das cadeias produtivas de valor, sob o domínio preponderante das nações hegemônicas, desempenham um papel crucial no movimento de apropriação-expropriação das mais distintas possibilidades de valorização do valor das nações dependentes por meio da opressão-superexploração das classes trabalhadoras. Provocando o aumento da violência capitalista, em seus diversos matizes: a expropriação de territórios, a disseminação de metais e pesticidas tóxicos, a destruição da natureza, a plataformização e precarização laboral, o adoecimento generalizado, a insegurança alimentar e a escravização de seres humanos. Constituindo, dessa maneira, expressões contundentes das violações do fundo de consumo e do fundo de vida das classes trabalhadoras brasileiras.
Na primeira seção deste texto, apresentamos a discussão mais geral desta fase do capitalismo contemporâneo e os efeitos da Inteligência artificial (IA), da Big data e as possibilidades da "mineração de dados", como processo de produção e circulação de valor viabilizados por intermédio da opressão-superexploração de uma diversificada força de trabalho e trabalho gratuito de usuários/as. E, na segunda, a situação brasileira de violação ambiental e aos direitos humanos em meio à precariedade laboral estrutural e precarização contemporânea, com a ampliação das consequências das relações da dependência brasileira.
O controle e a vigilância são indispensáveis à dinâmica da acumulação capitalista e necessariamente acompanham o insuprimível avanço das forças produtivas. Portanto, neste longo curso sócio-histórico de contratendências, a desterritorialização e a reorganização da produção garantiram a melhor capacidade de exportar e valorizar capitais, assim como gerenciar a força de trabalho e potencializar a taxa de exploração, abstraindo qualquer distância existente, utilizando as tecnologias da informação e das telecomunicações para difundir dados por todo o planeta (HUWS, 2017).
Nesse sentido, as consequências dessa “reestruturação permanente” do capital, mais detidamente com a plataformização, garante-se a reorganização e maior integração das cadeias produtivas de valor, que expropria, desemprega e precariza milhares de trabalhadores/as. Assim como o aumento das potencialidades de geração de mais-valor em todos os momentos do ciclo do capital. Com a “intersecção crescente entre os diversos setores da produção (indústria, agricultura e serviços), [...] esses setores são cada vez mais controlados e totalizados pelo capital, que os converte em mercadorias (sejam elas materiais ou imateriais)” (ANTUNES, 2018, p.39). Esse processo, amparado pelas novas tecnologias, faz com que a integração das cadeias produtivas de valor viabilize a produção de mais-valor em setores que outrora não eram produtivos (ANTUNES, 2018).
Como podemos ver no papel que é desempenhado pelas Big Techs, que
representam um elo fundamental deste estágio de acumulação capitalista ao controlarem amplos setores econômicos e se apresentarem, cada vez mais, como elemento central à produção e reprodução capitalista. Não é possível ignorar, no entanto, o papel decisivo oferecido pelas pequenas startups AdTechs (Adverstising. + Technology), MarcTechs (Marketing + Technology) e FinTechs + Technology) no setor. Embora essas empresas girem em torno das Big techs, elas têm autonomia maior de funcionamento e liberdade para criatividade, inclusive, para burlar legislações locais (LIPPOLD; FAUSTINO, 2022, p.59).
As tecnologias têm se constituído práticas sociomateriais que comunicam maneiras de existência com base nos valores contidos em suas arquiteturas e estão inseridas nas relações cotidianas, e, portanto, necessariamente, na sociabilidade capitalista (GROHMANN, 2020). Apesar de se apresentarem enquanto mercadorias imateriais, para se realizarem, demandam de enorme quantidade de “minérios como o coltan, formado por columbita - do qual se extrai nióbio - e tantalita, pois são base para condensadores eletrônicos e supercondutores” (LIPPOLD; FAUSTINO, 2022, p.65).
Lippold e Faustino (2022; 2023) são categóricos ao afirmarem que para garantir a existência dessas mercadorias imateriais do “mundo digital”, - como os softwares que necessitam dos hardwares - é necessário o acesso a diversos minérios fundamentais como o ouro, o lítio2, o coltan, o cobalto, dentre outros. E nessa intersecção entre os setores e ramos econômicos, identificamos como as cadeias produtivas de valor se entrelaçam a processos explicitamente violentos ou mistificados, desde a extração de minérios à mineração de dados, metadados e biodados de trabalhadores/as e usuários/as3.
Constata-se a dilatação da violência capitalista em suas expropriações intrínsecas ao seu modo de ser, - que ressignificam as relações de dominação e de dependência entre as nações hegemônicas imperialistas e periférico-dependentes - para a garantia das melhores circunstâncias de extração dos minérios, de aumento da taxa de exploração e de novos territórios para sua expansão. Não à toa a acentuação das crises migratórias decorrentes de conflitos armados, impulsionados pela indústria bélica e ampliação da destruição ambiental.
Os conflitos em torno dessas commodities, provocados em nações como a República Democrática do Congo, Nigéria ou no Mali, por milícias financiadas por empresas partícipes da cadeia produtiva informacional, são emblemáticos neste sentido. Pode soar irônico que a multinacional estadunidense I.T.T (International Telephone & Telegraph) denunciada em canto de guerra pelo pai do afrobeat Fela Kuti seja, justamente, uma empresa de telecomunicações. Assim como nos tempos de Fanon, é o Colonialismo Digital que garante o funcionamento normal de nossos smartphones e sistemas de navegação aérea. Um fenômeno que só é possível mediante a criação permanente de mundos de morte em territórios de extração de matérias-primas imprescindíveis para a indústria eletrônica, como as minas em Lago Kivu, fronteira do Congo com Ruanda e Burundi (FAUSTINO; LIPPOLD, 2023, p.86-87).
Identifica-se, desse modo, um processo de degradação da vida humana, fruto desta sociabilidade, expandida pelas plataformas digitais, que são meios de produção e comunicação – funcionando tanto para o trabalho, como para o entretenimento –, alimentadas por dados automatizados e organizadas por meios algorítmicos. Além disso, são formalizadas por relações de propriedade, dirigidas por modelos de negócios e acessadas mediante termos de adesão dos/as usuários/as. Dentre os mecanismos das plataformas estão inseridos a dataficação, a seleção e a personalização dos conteúdos, que são permeados pela vigilância e controle (GROHMANN, 2020).
Nesse sentido, as plataformas são, por um lado, a materialização da acumulação e extração de valor com base nos mecanismos de extração de dados e das mediações algorítmicas. Por outro, significam sua versão mais visível, infiltrando-se nas práticas sociais com a promessa de oferecer serviços personalizados e causando dependência de suas infraestruturas e em inúmeras esferas da vida. Desse modo, é relevante analisarmos que
Inovações como o metaverso, anunciado pelo Facebook (atual Meta), mas também estudado pela Microsoft, Google, Amazon e Tesla, não são pensadas para serem simples produto a disputarem o mercado de entretenimento virtual, mas o resultado de uma corrida cujo podium é o direcionamento, canalização e controle dos fluxos financeiros. Uma corrida que pressupõe, assim como no velho imperialismo, uma disputa pelo controle de determinados nichos de mercado, mas, sobretudo, pelo controle político, econômico e ideológico de determinados territórios e insumos estratégicos (LIPPOLD; FAUSTINO, 2022, p.62-63).
Essas grandes corporações potencializam o controle dos territórios e de trabalhadores/as de todo o mundo por intermédio das suas plataformas, que passam a desempenhar processos produtivos na circulação do capital, ao mesmo tempo, “como meio de comunicação, contribuem para a aceleração dessa circulação, diminuindo o tempo de rotação, reduzindo o tempo morto e acelerando produção e consumo” (GROHMANN, 2020, p.128). Do mesmo modo, como destacado acima, os dados, metadados e biodados coletados, neste avançado controle dos fluxos das mercadorias e mercantilização da vida, transformam-se em “ativos econômicos, perpetrado por corporações imperialistas que extraem, armazenam e processam dados, expertise e padrões sociais, quantificando parte fundamental das nossas vidas para melhor mercantilizá-las” (LIPPOLD; FAUSTINO, 2022, p.63).
Se identificamos por um lado esse melhor entrelaçamento das cadeias produtivas de valor - com flexibilidade e velocidade nas mudanças consideráveis nas relações de produção, circulação e realização do valor - vemos a expansão da precarização das relações laborais garantidas pela plataformização, que consiste em um processo no qual as relações de trabalho são crescentemente terceirizadas e individualizadas, assumindo a aparência de prestação de serviços e dissolvendo, desse modo, as relações de proteção social ao assalariamento. Portanto, a plataformização do trabalho se encontra emaranhada entre financeirização, dataficação (extração de dados) e racionalidade das políticas macroeconômicas neoliberais, reatualizando um mix de “velhas” (escravização na extração dos produtos primários com a violação brutal do fundo de vida e de consumo dos/as trabalhadores/as) e “novas” formas de expropriações dos/as trabalhadores/as plataformizados/as, a exemplo dos seus dados de desempenho e das suas vidas, bem como de seus direitos historicamente conquistados.
Neste longo curso contra arrestante diante da “crise estrutural do capital”, o movimento da “acumulação flexível”, desde a “empresa enxuta” transcorre em distintas modalidades laborais, envoltas nas ideias do “empreendedorismo”, da solidariedade individual e da “sharing economy”, como o “trabalho voluntário”, o “trabalho intermitente”, o “trabalho sob demanda”, na cadeia da terceirização, com uma precarização ainda mais aguda, com o intuito de ocultar a exploração da força de trabalho para inviabilizar a garantia de proteção social e desonerar os custos de produção.
Por outro lado, identifica-se que a comunicação se revela como papel central enquanto organizadora e mobilizadora do “trabalho digital”, seja por meio dos algoritmos com o maior controle e gestão da força de trabalho, seja para a organização coletiva dos/as trabalhadores/as. As atividades desse “trabalho digital” dependem, em parte, da combinação entre meios de transporte e de comunicação, ou seja, das plataformas (GROHMANN, 2020). Constata-se que
estamos diante de uma tendente monopolização de setores estratégicos do ramo, a partir do controle da produção de aplicativos e serviços em nuvem, produtos e acúmulo de dados e outros serviços singulares. [...] essa monopolização não rompe, mas intensifica e diversifica a um patamar jamais visto nas formas de apropriação do tempo de trabalho para as finalidades de acumulação de capitais (LIPPOLD; FAUSTINO, 2022, p.59).
Com isso, aplicativos como Uber, Ifood, Rappi e Loggi funcionam com base nas plataformas digitais, tecnologias de informação e comunicação, nas quais extraem valor e reputação para as marcas, por meio de um circuito de meios de transporte com trabalhadores/as atravessando as cidades, entregando mercadorias e transportando pessoas (GROHMANN, 2020). As empresas-plataformas não atuam de forma independente e neutra, dependem da elaboração e aperfeiçoamento permanente dos algoritmos, por meio de trabalho vivo, da captura e venda de metadados e biodados de trabalhadores/as e usuários/as, que são imprescindíveis à “financeirização” e à realidade ultraexpropriadora neoliberal.
Os algoritmos constituem componentes basilares de novos mecanismos de gerenciamento e controle do trabalho e não podem ser explicados sem considerar a imbricação financeirização-dataficação em meio a uma racionalidade “empreendedora”. Nesse sentido, a plataformização laboral estabelece o “trabalho sob demanda” como tarefas realizadas por pessoas, que produzem valor e recebem por ação executada para as plataformas, por meio de contratos de adesão.
O trabalho intermediado pelas plataformas não ocorre em um plano abstrato, mas com base em diferentes formas de exploração e apropriação-expropriação de valor, que dependem tanto das características das plataformas de trabalho quanto da diversidade das classes trabalhadoras relacionadas à região, gênero/sexo, etnia-raça e idade. Dessa forma, a circulação e a extração de valor intermediadas pelas plataformas se constituem desigualmente entre os países e regiões, permeado pela luta de classes e pela financeirização-dataficação mundial (GROHMANN, 2020; LIPPOLD; FAUSTINO, 2022). Constituindo e renovando, portanto, as relações de dominação, opressão-exploração, apropriação-expropriação de capitais das nações dependentes e periféricas pelas hegemônicas-imperialistas.
Economias dependentes, como a brasileira, apresentam particularidades históricas e estruturantes em sua estrutura produtiva que afetam perversa e diversamente as classes trabalhadoras. Na especificidade brasileira é importante destacar a sua dependência tecnológica, comercial, monetária e financeira, com um padrão exportador de especialização produtiva, no qual, majoritariamente, a grande inovação técnico-científica existente em nossas cadeias produtivas não é 100% nacional, com algumas exceções4.
O efeito dessa subordinação, na política macroeconômica, é a sua expressão em periódicas crises (cambiais) do balanço de pagamento, pressões inflacionárias com ameaça de perda de seu controle, e desequilíbrios orçamentários com crescimento da dívida pública. Dessa forma, existe uma grande fragilidade externa estrutural e financeira do Estado. Essa subordinação, instabilidade e volatilidade da economia brasileira piorou desde o novo padrão de desenvolvimento capitalista sob a hegemonia do capital financeiro (LUCE, 2018).
Podemos afirmar que essa inserção no mercado mundial é resultado de como se constituem e se desenvolvem as leis tendenciais particulares do capitalismo dependente na dinâmica conjuntural de cada período histórico (LUCE, 2018). Sendo assim, as características estruturais e sistemáticas da dependência, como a “transferência de valor como intercâmbio desigual”; a “cisão nas fases do ciclo do capital”; e a “superexploração da força de trabalho”5 são elementos-chave para nossa apreensão das atuais condições laborais e de todas as formas de violência das expropriações na realidade brasileira. Elucidam, portanto, o movimento da totalidade de como o mercado mundial opera e como as relações sociais capitalistas - necessariamente intermediadas pelas lutas sociais -, tem como expressão a necessidade de o conjunto das burguesias aumentarem, permanentemente, os processos de expropriação, a taxa de exploração e as burguesias locais recorrerem à superexploração.
É imprescindível ressaltar que neste período histórico da chamada “Industria 4.0” e do avassalador avanço da IA, experienciamos
como condição e resultado o aprofundamento da divisão internacional do trabalho a partir de uma distribuição desigual e combinada do acesso aos benefícios do desenvolvimento tecnológico informacional, exatamente no momento em que ele vai se convertendo em mediação social essencial para as condições biológicas de reprodução do ser humano (FAUSTINO; LIPPOLD, 2023, p.81).
A criatividade perversa das burguesias locais e internacionais em aumentar a extração de valor e reduzir o tempo de rotação do capital, recicla e mistifica a opressão-superexploração e suas distintas formas de expropriação. Portanto, temos elucidado6 que a expropriação capitalista não se limita aos meios de vida, ela afeta corpos os racializando7 e os generificando, por sua vez, reforça violentas hierarquias constituídas na divisão social do trabalho. Com aparentes “cisões” que fragmentam a apreensão da totalidade social capitalista8.
Nesse sentido, a misoginia, assim como padrões eugênicos se concretizam “tanto na utilização estética e cultural branco-ocidental como parâmetro de humanidade quanto na exclusão ou desigualdade do acesso às tecnologias informacionais” (LIPPOLD; FAUSTINO, 2022, p.71). Desse modo, a reprodução permanente de práticas racializadas e generificadas não são e não serão suprimidas no “mundo digital”, tanto porque este é produzido por majoritariamente nerds brancos, quanto devido a essas opressões serem constitutivas da exploração de valor. E na realidade periférica e dependente estão colocados pressupostos de controle territorial e ideopolítico, para garantirem as melhores circunstâncias, para a produção e realização de capital, mistificadas de democratização do acesso ao ciberespaço ou proteção da natureza ou, ainda, na “garantia da paz e da civilização”.
Por trás da potência benevolente estão os interesses imperialistas mais sórdidos, articulados por uma ideologia de missão civilizadora, que é a velha ladainha colonialista, tão bem analisada por Fanon e Nkrumah, que foi inicialmente, expandida em prol da salvação de certas almas e a danação do outro, pelo signo da cruz e pelo aço frio da espada, depois pela metralhadora gatling e agora por satélites que visam conectar os novos colonizados digitais, mas ao custo de expropriar e mercantilizar sua vida, dentro da acumulação primitiva de dados e da extração direta de seus minérios, apoiando-se em lawfare, em golpes e regimes necropolíticos (LIPPOLD; FAUSTINO, 2022, p.75).
É sob este ângulo de análise, que podemos apreender a relação das economias dependentes com as economias hegemônicas imperialistas, como o movimento global de capitais vai exigir maiores expropriações, em um processo de expansão com a capitalização de todas as esferas da vida, que, consequentemente, se expressam na perda de direitos e, por sua vez, na perda dos marcos civilizatórios democrático-burgueses. Esse contexto contrarrevolucionário concretiza-se por meio de diversas frentes, e na realidade brasileira temos as contrarreformas do trabalho e a implementação de “novas” formas de exploração da força de trabalho e de expropriação do seu valor histórico e moral, que alicerçam ao longo dos últimos 30 anos, de forma diferenciada, o “recomendado ajuste fiscal”.
No Brasil, desde o golpe jurídico-parlamentar até o governo de Jair Bolsonaro, foi implementada uma “agenda” ultraneoliberal com um viés autoritário e reacionário, com uma aberta política antinacional, antissocial, racista, patriarcal e fascistizante, que aprofundou o processo de desregulamentações e inovações financeiras para dar continuidade à sujeição da dinâmica capitalista à lógica do capital fictício. Impulsionadas, inclusive, pelo uso da inovação tecnológica, por intermédio dos algoritmos e IA com seus bots, no trabalho nas fazendas de clique, disseminando Fake News e ódio de classe, misóginos e racistas.
As relações de produção têm sido privilegiadas pelos retrocessos trabalhistas, com a ampliação do autoemprego, da contratação de Pessoas Jurídicas (PJ’s) e das terceirizações, que já estavam alicerçadas sob a ideia de autonomia do “empreendedorismo”.
Emblemático são os dados nacionais de Microempreeendedores Individuais (MEI’s), pois mais da metade das empresas ativas são de microempresários individuais. No primeiro quadrimestre de 2023, a cada 100 empresas abertas no Brasil, 75 eram de MEI’s. Os dados nacionais apresentam que temos atualmente 43 milhões de celetistas e 12,2 milhões de microempreendedores individuais, ou seja, para cada 10 trabalhadores/as registrados/as no regime da CLT, temos 3 MEI’s. Nos serviços de delivery, são 224 mil homens e somente 11 mil mulheres; entre os MEI’s que trabalham com serviços domésticos, são 257 mil mulheres e 14 mil homens (MAZZA; TAVARES; BUONO, 2023). Táticas mistificadoras articuladas à precarização da proteção social e a uma suposta necessidade de “modernização” da legislação trabalhista, diante das novas tecnologias, que alegadamente trariam mais empregos, consolidaram maiores expropriações de direitos e aumento da superpopulação relativa.
As mudanças mais profundas deste período foram, por meio das leis nº 13.429 e 13.467/17, a terceirização irrestrita; o teletrabalho; o negociado sobre o legislado; o trabalho intermitente; a possibilidade de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes e a legalização ou ampliação de práticas pregressas ilegais (KREIN et al., 2019).
Embora a Lei nº. 13.467/17 não tenha mudado direta e formalmente o prolongamento da jornada laboral, houve alterações em relação à distribuição da jornada, proporcionando ao patronato uma variedade de alternativas na utilização do tempo da força de trabalho (KREIN; ABÍLIO; BORSARI, 2021). Ampliando aspectos, que iniciaram desde a década de 1990, a exemplo do banco de horas e do aumento progressivo da liberação do trabalho aos domingos, principalmente no comércio e supermercados, com o enfraquecimento do poder de negociação dos sindicatos (KREIN; ABÍLIO; BORSARI, 2021).
Os dados demonstram que antes da aprovação da terceirização irrestrita (Lei nº 13.429/17) havia uma profunda deterioração das condições de trabalho, a exemplo da terceirização que correspondia, aproximadamente, a 90% das pessoas resgatadas nos dez maiores flagrantes de escravização contemporânea, entre os anos de 2010 e 2014 (SOARES, 2022).
Sobre as formas contemporâneas de escravização em nosso país, a situação é dramática, porque somente em seis meses do ano de 2023 (até 14 de jun. 2023) foram resgatadas 1.443 pessoas. O dobro de pessoas resgatadas (771) em todo o primeiro semestre de 2022. É importante destacar que o número de 174 operações de fiscalização aumentou comparado ao mesmo período do ano anterior, que foi de 639. Apesar de ter elevado o número de fiscalizações no primeiro semestre de 2023, é importante destacar que houve um aumento de 300% do número de pessoas resgatadas em 2022 comparado a 2017. Justamente após a contrarreforma trabalhista de 2017 e, durante este período, o número de operações de fiscalização não aumentou! Até porque existe um déficit de 45% na Auditoria Fiscal do Trabalho no país e houve uma redução de quase 70% dos recursos orçamentários para a área10.
Os dados oficiais demonstram que, entre os anos de 1995 até junho de 2023, foram resgatadas mais de 61 mil pessoas do cultivo de alimentos, da derrubada de florestas, da pecuária, do garimpo ilegal, de confecções, da construção civil, de lanchonetes, do trabalho doméstico, dentre outros setores e ramos diversos. No ano de 2022, foram 2.575 pessoas resgatadas e 92% eram homens, 29% tinham entre 30 e 39 anos, 51% residiam no Nordeste, 58% eram nordestinas, 83% se autodeclararam como negras (pretas e pardas), 15% como brancas e 2% como indígenas.
As atividades rurais lideraram o número de pessoas resgatadas com 87% do total. O cultivo da cana-de-açúcar ficou em primeiro lugar na lista com 362 pessoas resgatadas. Destacamos que foram encontradas pessoas na extração de madeira, produção de carvão vegetal, cultivo de alho, café, maçã, soja, criação de bovinos, na extração e britamento de pedras, construção civil, trabalho doméstico e mercado do sexo11. É importante salientar que das 2.575 resgatadas, 148 eram migrantes internacionais, houve um aumento de 100% em relação à 2021, sendo 101 paraguaios, 25 bolivianos, 14 venezuelanos, quatro haitianos e quatro argentinos12.
As atividades rurais compõem o setor majoritário de resgates e as empresas do agronegócio são maioria na mais recente divulgação da “lista suja do trabalho escravo”, pois dos 289 empregadores, entre pessoas físicas e jurídicas, que integram a atual relação de flagrados com força de trabalho escravizada, 172 têm Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnaes) de atividades rurais13.
Por outro lado, de acordo com Fabiana Scoleso (2022), o agronegócio brasileiro está totalmente imbricado aos serviços terceirizados das Agrotechs, que viabilizam por meio da Big data, do uso de câmeras, drones, smart rovers14 e sensores para monitoramento do clima e controle das operações de semeadura, irrigação, uso de pesticidas, análise do solo e tempo da colheita, bem como a conexão das máquinas agrícolas aos GPS’s, evitando erros e uso em excesso de insumos e recursos.
No processo de transnacionalização e maior controle com apropriação-expropriação de capitais por parte das nações hegemônicas, também se garante a expulsão de pequenos agricultores, populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas para a expansão das commodities de exportação como a soja e o milho. Ou a integração “da agricultura familiar ao sistema de cooperativas e à agricultura digital, submetidas a sistemas de plataformas que são controladas pelo grande capital, pelas grandes corporações” (SCOLESO, 2022, p.163).
Neste aparente paradoxo do agro é tech, mas escraviza, identificamos como a nossa condição dependente tem sido aprofundada e promove a maior desarticulação da nossa estrutura produtiva com a necessidade vital e historicamente constituída das massas trabalhadoras e subalternizadas, porque compromete a nossa soberania alimentar e aprofunda a insegurança alimentar e nutricional das classes trabalhadoras brasileiras (SOARES, 2023). Representativa é a comparação entre as safras de arroz e feijão versus soja e milho. Está previsto que o arroz, no ano de 2023, terá a menor safra dos últimos 25 anos, a produção de feijão está estagnada, enquanto as commodities de exportação supracitadas estão em constante crescimento (ESTADÃO, 2023).
A condição dependente e, por sua vez, a política agrária brasileira evidenciam-se também na atual Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST, que visa em conjunto criminalizar muito mais do que este movimento extremamente legítimo, mas a imprescindível reforma agrária. Objetiva reforçar o desigual acesso à terra e a cisão entre a necessidade das classes trabalhadoras e subalternizadas com a estrutura produtiva, que privilegia o mercado de exportação e expropria os meios de vida de uma grande massa, deixando-a padecer na escravização ou em situações próximas para amenizar a fome.
A tragédia atual da devastação da região Amazônica e genocídio dos povos indígenas é a manifestação da expropriação e destruição que os distintos anseios burgueses promovem, com o objetivo de aumentar a fronteira agrícola, para atividades agropecuárias, extração de minérios por meio do garimpo ilegal ou para especulação e conflitos do mercado fundiário. Foram derrubados quase 11 mil km² de floresta da Amazônia Legal, de agosto de 2021 a julho de 2022, o que equivale a 7 vezes a cidade de São Paulo16. Elucidativo que essa destruição e extração de minérios “não é um mero discurso de poder, mas o reflexo de uma disputa pelas novas matérias primas indispensáveis à ampliação e expropriação das frações de mais valor: os dados” (LIPPOLD; FAUSTINO, 2022, p.64).
Segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência, foram escravizados 1.013 trabalhadores na extração de minérios e metais preciosos entre 1995 e 2021, em 87 casos17. O Pará é o estado onde a maioria das pessoas foram resgatadas. A situação nos garimpos é de instalações inadequadas para alojamento, sem banheiros, consumo de água imprópria e alimentação improvisada. Não havia equipamento de proteção individual, as jornadas eram exaustivas, sem qualquer vínculo formal e não raro as pessoas eram submetidas a dívidas fraudulentas acumuladas com os/as donos/as do garimpo. Dos metais extraídos, o ouro lidera a incidência, seguido da extração de pedras preciosas como a ametista, o garimpo de caulim e gesso e o estanho (ANGELO, 2021).
Grandes corporações como a Anglo American e a Vale possuem o histórico, em suas cadeias produtivas de valor, a violação ambiental, trabalhista e aos direitos humanos. A primeira autuada duas vezes com 357 pessoas resgatadas da escravização, em 2013 e 201418. Já a última privatizada, em 1997, e subsidiada com recursos do BNDES, que demonstra a transferência de recursos públicos para o capital privado, foi autuada, no mesmo ano da tragédia de Mariana/MG (2015), com 300 pessoas em escravização em Itabirito/MG19.
Em 2022, foi apresentado um relatório que retrata a cadeia produtiva das grandes Big Techs, como a Google, Apple, Microsoft e Amazon, que se beneficiaram de ouro extraído ilegalmente, inclusive de terras indígenas, viabilizadas por diversas refinadoras, entre as principais estão a italiana Chimet e a brasileira Marsam. A extração ilegal dos minérios sempre teve como consequências os conflitos armados, agrários, contaminação e mortes por mercúrio, desmatamento, desequilíbrio ambiental com o aumento da malária e violação aos direitos humanos20.
Outro exemplo de violação aos direitos humanos viabilizado pelo avanço do desmatamento, no ano de 2023, foi a submissão dos indígenas Yanomamis a longas jornadas laborais e servidão por dívida na extração da piaçaba (fibra utilizada na fabricação de vassouras) na região do médio rio Negro. Os indígenas recebiam como pagamento farinha e biscoito, além do combustível, que é fundamental para o trabalho na extração da piaçaba, para receberem por toro ou rolo de piaçaba (de 40 a 50kg) extraído um valor que varia de R$2,40 a R$4,0021.
Se na realidade das atividades rurais e de extração de minério, mediada pelas tecnologias e vitais para a sua realização, identifica-se a realidade laboral degradante e extenuante – a destruição e expropriação de meios de vida e de direitos; nas grandes cidades, vemos entregadores vendendo sua força de trabalho, carregando comida nas costas com fome e sem qualquer proteção social.
Destacamos a pesquisa "Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos", ao apresentar que no Brasil existe 1,6 milhão de trabalhadores/as por aplicativo, divididos em entregadores/as de plataformas de delivery (386 mil) e motoristas de app’s de caronas (1,27 milhão). Em relação aos/às entregadores/as, a idade média dessas pessoas é de 33 anos, 59% têm ensino médio completo, 68% são pretas ou pardas, 29% são brancas, 2% são amarelas, 1% é indígena, 97% são homens e 3% são mulheres (CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E PLANEJAMENTO, 2022).
A situação dos/as entregadores/as em âmbito nacional é de um quadro extremo de precarização laboral no Brasil. Porque esse modelo de flexibilização da jornada de trabalho para o patronato garante a exploração ao máximo do tempo de trabalho, sem o pagamento do tempo “morto”. Por intermédio do pagamento por tarefa executada, há o aumento da produtividade para os/as trabalhadores/as ocasionando jornadas exaustivas em condições inadequadas.
Pode ser considerado isso, porque a maioria não conta com equipamentos de segurança adequados, como capacetes, luvas, coletes e até mesmo bicicletas e motocicletas seguras. Portanto, pode-se destacar como consequência um número elevado de acidentes, pois, em 2022, um em cada quatro entregadores já sofreram acidentes no Brasil (ARIADNE, 2023) e com um grau maior de fatalidades para os trabalhadores negros (CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E PLANEJAMENTO, 2022).
De acordo com o boletim “Saúde da População Negra: Mortalidade e Acidentes de Motocicletas por recorte racial”, a mortalidade entre motociclistas brancos permaneceu de 2016 a 2021 em 0.05 a cada cem mil habitantes, enquanto em motociclistas negros aumentou de 0.06 para 0.08. Outro aspecto da situação dos/as trabalhadores/as é a falta de apoio e proteção em caso de acidentes e doenças ocupacionais. Uma quantidade considerável desses/as trabalhadores/as de aplicativo de entrega sofre com problemas de saúde decorrentes da carga horária excessiva, do estresse e da falta de condições adequadas de trabalho, que prejudicam a sua saúde física e mental. Isso decorrente também dos diversos mecanismos de controle advindos da tecnologia, que disciplinam os/as trabalhadores/as por meio do controle algorítmico das plataformas digitais com o “rankeamento” e “gamificação”, em que o/a usuário/a consumidor/a e a própria plataforma controlam o/a entregador/a via mecanismos de avaliação individual e metas (CAMPOS; COELHO, 2023).
A opressão-superexploração da força de trabalho pode ser constatada cristalinamente nas cadeias produtivas de valor compondo uma diversidade de condições laborais precarizadas pela terceirização. Hoje também por meio das empresas-plataformas de transporte, de delivery ou nas chamadas de microtrabalho22, esta última com o trabalho de treinamento e aperfeiçoamento da IA; de impulsionamento de mídias sociais23; testes de novos produtos; pequenas transcrições e traduções e pesquisas de mercado (GROHMANN, 2020; BRAZ, 2021). Evidenciam, na divisão internacional do trabalho, as desigualdades da forma de pagamento e condição laboral diante dos inconvenientes de recebimento das tarefas executadas, devido à localização geográfica dos/as trabalhadores/as, e pela não transparência das plataformas. Assim como referente “à distribuição de tarefas (que deriva de uma lógica global e difusa) e à desvalorização da mão de obra brasileira” (BRAZ, 2021, p. 160). Em outros termos, o que sobra de tarefas, principalmente as que não são bem remuneradas, ficam para os/as trabalhadores/as do chamado “Sul Global”, como o nosso país.
O controle total e gestão da força de trabalho tem consolidado a valorização do capital e de aumento da extração de mais-valor, que ampliam os efeitos da superexploração, com expropriações de salário, direitos, saúde mental, física e da condição de humanidade das classes trabalhadoras. Em amplas e integradas cadeias produtivas, as formas de opressão-exploração da força de trabalho se estabelecem desde o emprego da escravização na extração das commodities primárias aos mais diversos trabalhos intelectuais, manuais e invisibilizados do “mundo digital”. Todas essas formas laborais são essenciais tanto para a consolidação de toda a parafernália digital como para os processos contínuos de mineração de dados. Porque estão integradas na apreensão de padrões sociais e comportamentais, por meio da extração, armazenagem e processamento de dados, metadados e biodados, quantificando e garantindo a mercantilização de todas as esferas da vida, bem como o crescimento de ativos econômicos desse ramo.
Se a “realidade digital” promove a intensificação laboral para aumentar a taxa de exploração, vemos que por meio do entretenimento ou pela “democratização do acesso à tecnologia”, as grandes corporações viabilizam a expropriação dos nossos biodados e um maior controle dos territórios, garantindo melhores condições nas disputas territoriais interimperialistas para torná-los em produtos comercializáveis.
O resultado é o aumento exponencial da violência intrínseca ao capitalismo com a destruição de nossos biomas para a expansão do agronegócio e da extração de minérios para uma melhor integração mundial entre as cadeias produtivas para a coleta e armazenagem de dados e biodados. Situação que aumenta agudamente os efeitos impiedosos da opressão-superexploração capitalista nas economias dependentes, principalmente para as pessoas racializadas e generificadas, que compõem majoritariamente as taxas de desemprego, fome e escravização.