Resumo: O artigo objetiva apresentar uma sistematização das análises dos padrões de acumulação fordista e flexível na particularidade de suas implicações nos processos de precarização das condições e relações de trabalho. Essa precarização assume uma acentuada conformação pelo incremento, na era da acumulação flexível, das plataformas digitais nos setores produtivo e de serviços.
Palavras-chave: Padrão de acumulação, Condições e relações de trabalho, Empresas-plataforma.
Abstract: The article aims to present a systematization of the analyzes of Fordist and flexible accumulation patterns in the particularity of their implications in the processes of precariousness of conditions and labor relations. This precariousness assumes a marked conformation due to the increase, in the era of flexible accumulation, of digital platforms in the productive and service sectors.
Keywords: Accumulation pattern, Working conditions and relations, Platform companies.
Acumulação flexível e digitalização da economia: acentuação da precarização das condições e relações de trabalho
Flexible accumulation and digitization of the economy: accentuation of the precariousness of working conditions and relations
Recepción: 01 Junio 2023
Aprobación: 01 Agosto 2023
Segundo Mandel (1990), a dinâmica capitalista se desenvolve ciclicamente em ondas longas de expansão e de retração (ou depressivas), segundo o aumento, queda e revitalização da taxa de lucros. Na fase do capitalismo monopolista, a valorização do capital se materializou na consolidação de um novo padrão de acumulação – sustentado no binômio taylorismo-fordismo – e de um novo regime de regulação social – amparado no desenvolvimento dos modelos dos chamados Estados de Bem-Estar3. Esse binômio passa a configurar a dinâmica econômica e sociopolítica nos países centrais do segundo pós-guerra. No início da década de 1970, o declínio do crescimento econômico, a queda das taxas de lucro e o desemprego foram indícios da saturação daquele padrão de acumulação e regime de regulação4.
Como respostas “restauradoras” à sua crise, desde o último terço do século XX, as grandes corporações mundiais e os bancos multilaterais de financiamento buscaram saídas para renovar a valorização do capital e restabelecer suas taxas de lucro, o que implicou em intervenção nos mecanismos de exploração da força de trabalho e nas suas condições de reprodução. Assim, o processo de “restauração capitalista” assenta-se nas seguintes ofensivas (relacionadas entre si e interdependentes) implementadas nas diversas economias mundiais a partir da década de 1970: reestruturação dos processos de acumulação, expresso na chamada acumulação flexível (HARVEY, 2001); mundialização da economia – nova divisão internacional do trabalho com hegemonia do capital financeiro5; e pela imposição do projeto neoliberal e seu decorrente receituário de ajuste das políticas econômicas e sociais na esfera do Estado6.
É na particularidade das ofensivas às condições e relações de trabalho inerentes ao novo padrão de acumulação flexível – e que ganham uma ainda maior acentuação com o incremento das empresas-plataforma –, que nos ateremos neste artigo.
A crise do padrão de acumulação fordista-taylorista, sobretudo após a década de 1970, abre um tempo histórico de acentuação submissão do trabalho ao capital.
A acumulação flexível [...], é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (HARVEY, 2001, p. 140).
Com a crise vivenciada no final da década de 1960 e início da década de 1970, percebeu-se uma considerável redução do proletariado industrial, fabril, manual e especializado da era da indústria verticalizada fordista/taylorista. O processo de reestruturação produtiva do capital que impingiu à produção o modo toyotista inseriu o desenvolvimento da leanproduction e as novas formas de horizontalização do capital produtivo, como a flexibilização, a desconcentração, a desterritorialização do espaço produtivo e a introdução da máquina informatizada. A ofensiva ao capital variável por meio do rebaixamento de salários, do aumento de desemprego e da intensificação da exploração da força de trabalho constituem o “principal segredo da retomada do crescimento e da continuidade da acumulação capitalista” (TUMOLO, 2001, p. 80). A flexibilidade na produção – que permite também a adoção de contratos de trabalho mais flexíveis – como tempo parcial, temporário, por projeto e subcontratados, em detrimento dos contratos formais e de tempo integral – possibilitou ao capital maior pressão e poder sobre os trabalhadores. Para Krein e Teixeira (2021, p.176), a terceirização
É uma das expressões mais nítidas das características do trabalho no capitalismo contemporâneo: flexibilidade e maior liberdade para a empresa gerir a força de trabalho necessária para viabilizar o processo de produção de bens e serviços. A sua consequência, em geral, é criar insegurança aos trabalhadores e maior precariedade nas relações de trabalho. Ela expressa as características de uma economia mais desregulamentada, internacionalizada, financeirizada e organizada a partir das cadeias globais de produção (Krein e Teixeira, 2021, p.176).
Outra alteração de grande impacto para os trabalhadores foram as mudanças em torno do estabelecimento da jornada de trabalho por meio da criação do banco de horas, possibilitando a compensação das horas cumpridas a mais em um período, por interesse do capital, em outro período, de menor demanda. Outra característica que aparece no mercado de trabalho é a expansão dos trabalhos em domicílio e teletrabalho, possibilitada pela desconcentração do processo produtivo, que não precisa mais acontecer dentro da fábrica em alguns setores, pela expansão das pequenas e médias unidades produtivas, além da introdução da telemática nos processos de produção.
Com a expansão da Quarta Revolução Industrial, cujo objetivo foi garantir um salto tecnológico ao mundo do capital, possibilitou-se sua estruturação a partir das novas tecnologias da informação e comunicação. Tal inovação permitiu que os processos produtivos ficassem cada vez mais automatizados, garantindo ao capital exercer, ainda mais intensamente, o controle do processo produtivo e dos trabalhadores, conformando aquilo que Alves (2018, p. 86. Grifos do autor) identificou de “nova base técnica de exploração do trabalho humano na era do capital flexível”. Isto posto, o desemprego estrutural, juntamente com a precarização do trabalho ocasionadas pela crescente terceirização, pelos trabalhos em tempo parcial, dentre inúmeras outras formas de exploração da classe trabalhadora vivenciadas contemporaneamente, são válvulas mestras dessa fase de reestruturação produtiva do capital. É neste contexto que as empresas-plataforma, consoante se verá no próximo item, nascem como uma etapa atual do processo de reconstrução do padrão de acumulação capitalista, com infraestrutura e modo de organização social peculiares.
Assim, fazendo face à rigidez outrora vivenciada pelo padrão de acumulação fordista/taylorista nas fábricas, ao longo do século XX, pode-se verificar empresas já flexíveis se valendo da evolução tecnológica, oriunda da Quarta Revolução Industrial, sob o comando dos capitais, especialmente o financeiro, inaugurando novos processos de acumulação capitalista, como, por exemplo, via plataformas. Vazquez el al (2022), destacaram que as empresas-plataforma, como a Airbnb, Uber, Amazon e Alphabet apresentaram um crescimento grandioso no período da crise econômica 2008/2009, além do enorme aumento da cotação de suas ações nas bolsas de valores. E trazem o importante dado: “Houve, entre 2009 e 2018, brusca alteração na composição do ranking das 20 maiores empresas por setor e capitalização: em 2009, as plataformas digitais significavam 16% das 20 maiores empresas, passando para 56%, em 2018” (IDEM, p.2). Desta maneira, pode-se compreender que, ainda que não seja sua finalidade exclusiva, a geração de receitas para as empresas-plataforma é baseada em “processos sobrepostos de valorização, realização e distribuição do valor” (IDEM, p.4), residindo não só na superexploração da força de trabalho, que aqui se dará especial destaque, e na obtenção de dados dos usuários, mas, também, na geração de valor por intermédio do mercado financeiro, o que traduz novas estratégias implementadas pelo capitalismo do século XXI, ainda dentro da concepção financeirizada, mas, agora, também plataformizada.
Assim como outros autores, Antunes (2020b, p.11) destacou que o aprofundamento desse novo modelo de criação de valor operou uma novidade no mundo do trabalho: o trabalho em empresas-plataforma. “A uberização é um processo no qual as relações de trabalho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência de ‘prestação de serviços’ e obliterando as relações de assalariamento e de exploração do trabalho”.
Essa atual e nova modalidade de contratação de trabalhadores que ficam à disposição das empresas-plataforma, abrange hoje, conforme Cardoso e Garcia (2022) intitularam de espraiamento das plataformas de trabalho, um universo imenso de sujeitos sociais, como médicos, enfermeiros, trabalhadoras do care (cuidadoras de idosos, crianças, doentes, etc.), do turismo, beleza, educação, jornalismo, saúde, motoristas, entregadores, eletricistas, advogados, trabalhadores da limpeza, de consertos domésticos, dentre outros, funcionando cada qual de maneira heterogênea7. Para Krein e Teixeira (2021, p.153), essa modalidade de contratação, por empresas-plataforma, “não se vincula à determinada categoria de trabalhadores ou à determinada modalidade de trabalho, mas é colocada à disposição do mercado geral de trabalho”. Para Vazquez et al (2022, p.05), as empresas-plataforma criam novas “necessidades” de serviços e mercadorias para a população, controladas e rastreadas por elas, sobretudo, por duas grandes razões: “em primeiro lugar, por meio da pressão internacional para redução dos custos trabalhistas e fiscais; em segundo, buscando eliminar qualquer competição, por meio da compra de concorrentes e de construção de monopólios”. Assim, sob a égide do avanço tecnológico promovido pela Quarta Revolução Industrial, temos, de acordo com Antunes
uma nova fase da hegemonia informacional-digital, sob o comando do capital financeiro, na qual celulares, tablets, smartphones e assemelhados cada vez mais se converterão em importantes instrumentos de controle, supervisão e comando nesta nova etapa da ciberindústria do século XXI (ANTUNES, 2020b, p. 15).
A economia dos bicos ou economia sob demanda, em inglês gigeconomy, é a forma de organização do mercado de trabalho em que, de um lado, conforme Alves (2018, p.89), tem-se trabalhadores sem vínculos empregatícios, “ou melhor, vínculos empregatícios ocultos” e empresas que contratam essa força de trabalho, sem a responsabilidade de pagamentos dos direitos trabalhistas . Para o autor,
A gigeconomy expressa com vigor o novo (e precário) mundo do trabalho informacional. O glamour das novas tecnologias digitais (e virtuais) disruptivas, oculta não apenas o vínculo de subalternidade estrutural entre o trabalho e capital, mas a nova precariedade salarial em sua forma extrema (ALVES, 2018, p. 89).
Diante disso, Antunes questionou: “O que essas plataformas digitais globais têm a oferecer estando crescentemente robotizadas, automatizadas, e cada vez com menos trabalho vivo?”.
Que melhorias humano-societais teremos com as práticas desenvolvidas pela Amazon e pela Uber, ambas com um leque de operações-padrão que vai desde a exploração e espoliação ilimitadas da força de trabalho até a extinção completa do trabalho humano, a exemplo dos carros sem motoristas presentes no projeto da “Uber do futuro”, ou ainda nas lojas da Amazon, já existentes nos Estados Unidos, que funcionam sem trabalhadores e trabalhadoras? (ANTUNES, 2020b, p. 15).
A expansão do trabalho digital, teletrabalho, sobretudo no período da pandemia do Covid-19, ampliou a separação entre o tempo de vida no trabalho e o tempo que se tem fora dele, e que vem apresentando, como bárbara consequência, aquilo que Antunes (2020c) chamou de escravidão digital.
Assim, se essa tendência destrutiva em relação ao trabalho não for fortemente confrontada, recusada e obstada, sob todas as formas possíveis, teremos, além da ampliação exponencial da informalidade no mundo digital, a expansão dos trabalhos ‘autônomos’, dos ‘empreendedorismos’ etc., configurando-se cada vez mais como uma forma oculta de assalariamento do trabalho, a qual introduz o véu ideológico para obliterar um mundo incapaz de oferecer vida digna para a humanidade (ANTUNES, 2020b, p. 15/16).
O uso da economia de plataforma – gigeconomy, home office, sharingeconomy, ondemandeconomy, plataform economy, crowdsourcing, crowdwork, uberização, trabalho digital - termos em que “há mais dissenso do que consenso” conforme Antunes e Filgueiras (2020, p. 61) – também se encobre de um manto ideológico que atua com força nas concepções e visões de mundo dos trabalhadores.
Essa nova gramática do capital somou-se àquela já consolidada, que operava metamorfoses nos reais significados etimológicos das palavras: manter sempre a ‘resiliência’, atuar com muita ‘sinergia’, converter-se em autêntico ‘colaborador’ e em verdadeiro ‘parceiro’, vangloriar-se da nova condição de ‘empreendedor’, entre tantos outros usos da linguagem, agora com ‘novas significações’ (ANTUNES, 2020b, p. 19).
Para Antunes e Filgueiras (2020, p. 62), as expressões acima querem elucidar fenômenos com as seguintes características típicas dos avanços tecnológicos:
1) contatos on-line entre produtores e consumidores, trabalhadores e empresas;
2) uso de aplicativos ou plataformas para acesso em computador ou instrumentos móveis de comunicação;
3) uso abrangente de dados digitais para a organização e gestão dessas atividades;
4) relações estabelecidas por “demanda” (ou seja, que resultam de arranjos a cada produto, desprovidos de segurança jurídica capaz de garantir sua continuidade).
As grandes corporações têm trabalhado para reduzir o uso do trabalho vivo para sua produção, buscando sua substituição pelo uso das tecnologias de informação e comunicação, “internet das coisas”, impressão 3D, inteligência artificial, dentre outras formas. Segundo Vazquez et al (2022), os acionistas das empresas-plataforma vêm incentivando ainda mais investimentos em tecnologia com o escopo de tornar o trabalho obsoleto, em busca de automação completa, fazendo com que os trabalhadores dessas empresas se tornem, cada vez mais, descartáveis e prescindíveis.
Se assim caminhava o mundo do trabalho antes da explosão da Covid-19, quais são, então, algumas das experimentações do trabalho que estão sendo gestadas nos laboratórios do capital, em plena pandemia do capital, para serem intensificadas e amplificadas no mundo pós-pandêmico? (ANTUNES, 2020b, p. 20).
É indubitável que a resposta do capital para tal questionamento é a utilização desenfreada desse novo modelo de trabalho precarizado através da criação de novas empresas-plataforma. Tais modalidades utilizam-se cada vez mais da informalidade, flexibilidade e precarização – características tão essenciais para a reprodução do capital em crise. Assim, empresas como a Uber, Amazon, Google, Facebook, Airbnb e várias outras correlatas, vêm investindo, sobremaneira, em tecnologia e na utilização a seu favor para a geração de valor.
Utilizando-se largamente dos algoritmos, da inteligência artificial e de todo arsenal digital, canalizado para fins estritamente lucrativos, tudo isso vem possibilitando a criação de novas modalidades de trabalho que, como já indicamos, passam ao largo das relações contratuais vigentes (ANTUNES, 2020b, p. 20).
Assim, conforme Vazquez et al (2022, p.9), observa-se a adesão das empresas-plataforma à rentabilidade ditada pelo mercado financeiro, com altos ganhos em curtos períodos, impondo aos trabalhadores dessas empresas “extensão de jornada e flexibilização de remunerações, intensificando e recriando as formas de exploração do trabalho”. Em consonância com a realidade hoje já vivenciada por muitos trabalhadores de plataformas - que trabalham mais de 8 horas por dia, muitas vezes sem folga nos finais de semana, salários baixos, além de terem que arcar com os custos da manutenção dos seus instrumentos de trabalho (carro, celular, bicicleta, computador) -, percebe-se que o capital está gerindo vários experimentos que possibilitam a generalização dessa realidade para uma massa considerável de trabalhadores, conforme enumerado, após a pandemia. “Assim, se esse instrumental do capital continuar se ampliando exponencialmente, teremos mais informalização com informatização, o que será ‘justificado’ pela necessidade de ‘recuperação da economia pós-pandemia” (ANTUNES, 2020b, p. 21).
Podemos indicar, como expressão do que estamos argumentando, as jornadas diárias frequentemente superiores a oito, dez, doze, catorze horas; remuneração salarial rebaixada, em contraposição ao aumento e intensificação do trabalho (traço que vem se agudizando na pandemia); crescimento de um contingente sem acesso a qualquer direito social e do trabalho; entre tantos outros elementos que remetem aos inícios do capitalismo, à sua fase de acumulação primitiva (ANTUNES, 2020b, p. 21).
Outro elemento que é indissociável da presente análise: a partir do momento em que se verificou, na pandemia, que os trabalhos desenvolvidos em meios digitais e em teletrabalho dificultam uma organização de classe, fragmentando ainda mais a classe trabalhadora, o capital vai se esforçar para incrementar essa modalidade, de modo que, além da redução de custos que terá com estrutura física, vale-transporte, alimentação e outros, possibilitará, mais facilmente, maior corrosão dos direitos trabalhistas. Diante desse cenário, para Antunes (2020b), o investimento em maquinário informacional-digital, agudizado, como visto, na pandemia, aumentará a subsunção do trabalho ao capital.
Importante, neste item, explicitar as formas de trabalho disponibilizadas pelas variadas modalidades de empresas-plataforma, bem como as estratégias de funcionamento para a geração de valor sem a aplicação dos direitos sociais, em especial, o trabalhista. Cardoso e Oliveira (2020) informam que várias empresas-plataforma foram criadas a partir do final dos anos 1990, no que se intitulou como nova economia (economia interconectada por meios eletrônicos), abrangendo vários setores, como as plataformas de pesquisa, amizade, compra e venda, participação política, viagem, hospedagem e de trabalho. Tais empresas, que usam da tecnologia para se conectar com usuários e trabalhadores, ingressaram na sociabilidade do capital com grande investimento financeiro, consoante afirmado anteriormente, transformando as variadas dimensões da vida social. Consoante Duarte e Guerra (2019), inicialmente, as plataformas digitais foram concebidas como plataforma de compartilhamento de informações (Youtube) e de sociabilidade (Orkut, Facebook), locais em que poderia haver a participação de todos os sujeitos sociais, sendo transformadas, em seguida, em plataformas de trabalho. Posteriormente, foram absorvidas, sobretudo pelo capital financeiro, nas áreas da educação, da saúde, de hospedagens e mobilidade. Essas diferentes modalidades de empresas-plataforma existentes têm algo em comum: trabalham baseadas na produção de dados pelos usuários, consumidores e trabalhadores, sejam dados pessoais, sejam dados oriundos de avaliações realizadas pelos usuários, comentários feitos nas plataformas, indicação de amigos – que serão usados para a geração de valor. Assim, quanto “mais usuários, consumidores e trabalhadores participarem e fornecerem seus dados, maior a quantidade de informação digitalizada” (CARDOSO; OLIVEIRA, 2020, p.4) e, portanto, maior a geração de lucro. Vazquez et al (2022, p.3) dão destaque à realização de trabalho não pago que atravessa as empresas-plataforma, seja o trabalho não remunerado do trabalhador, que possibilita a geração de mais-valia, seja aquele realizado pelos usuários das empresas. E assim concluem:
Então, a geração de valor se dá, em uma ponta, pela exploração do trabalho gerador de serviços-mercadoria; pela exploração do trabalho, em regra não pago, na extração de dados; e, por fim, pela capacidade de rentabilizar os dados extraídos, transformando-os em ativos (Vazquez et al, 2022, p.3).
Essa enormidade de dados fornecidos e alimentados pelos próprios usuários é processada e analisada pelos softwares de grande desempenho que servirão de parâmetro para a elaboração das estratégias empresariais, como localização de clientes, criação de produtos, análise de perfil e, portanto, oferecimento de produtos conforme esse perfil demanda. Segundo entendimento de Grohmann (2020), os softwares são usados também como novos meios de controle e gestão do trabalho. Esses dados, quando processados pelos softwares, os big data, e “associado ao aprendizado de máquina (machine learning), permitem grande avanço na análise preditiva, ou seja, na capacidade de determinar a probabilidade de resultados futuros, baseada nos dados do passado” (CARDOSO; OLIVEIRA, 2020, p.4).
Outro ponto que deve ser levado em consideração é o uso quase que universal dos aparelhos móveis. Como exemplo, Antunes (2020b, p.12) elencou o caso da empresa Uber, em que trabalhadores usam seus automóveis e, portanto, arcam com todas as despesas a eles inerentes, como compra do automóvel ou mesmo aluguel de um veículo, seguro, manutenção, limpeza, além de sua própria alimentação, “enquanto o ‘aplicativo’ se apropria do mais-valor gerado pelo sobretrabalho dos motoristas, sem nenhuma regulação social do trabalho”. Com isso, os sujeitos se tornaram produtores, criadores e provedores de serviços, criando uma dificuldade de apreensão de sua condição e inserção laboral. “Trata-se de consumidores, de produtores de serviço, de produtores de conteúdo ou de trabalhadores?” (CARDOSO; OLIVEIRA, 2020, p.4). Segundo as autoras, essa situação “facilita às plataformas de trabalho por demanda se colocarem não como empregadoras, mas apenas como intermediadoras entre vendedores de serviços (e não trabalhadores) e clientes” (CARDOSO; OLIVEIRA, 2020, p.4).
Fato é que, muitas vezes, se desconhece a utilização da geração de valor de seus dados pelas plataformas, pois, para Silveira (2017, p. 268) “esses códigos são apresentados pelo mercado como algo que não precisamos saber como existem ou como funcionam, desde que cumpram suas finalidades”. Ademais, acrescentam Cardoso e Oliveira (2020), as plataformas de trabalho se escondem atrás da tecnologia, como se tudo fosse comandado de maneira autônoma e isenta pelos algoritmos, sem que houvesse a definição das regras e estratégias pelas próprias empresas. No entanto, os algoritmos “podem ser definidos como rotinas logicamente encadeadas” (Silveira, 2017, p. 268), incutidas em um computador com o objetivo de determinar como serão conduzidas determinadas ações, através de comandos e estratégias de controle determinados por quem os criou.
Celulares, tablets, smartTV´s, veículos, semáforos inteligentes, mecanismos de busca na web, sistemas de aprovação de crédito bancário, entre tantos outros exemplos corriqueiros, todos esses dispositivos indicam a crescente presença dos algoritmos em nosso convívio. [...] Mesmo assim, software e algoritmos são invisíveis para a maioria das pessoas (SILVEIRA, 2017, p. 268).
Assim, é importante que se compreenda que os algoritmos, criados e utilizados apenas para atender aos anseios do capital, são produzidos sem neutralidade sendo também resultados das interações das pessoas com eles. Consoante explicitou Silveira (2017, p.271-272),
Nem software, nem os algoritmos nele contidos são neutros. Eles geram efeitos e foram criados e desenvolvidos para determinadas finalidades. Apesar de serem imateriais e invisíveis, os algoritmos têm um ponto de partida e uma finalidade original que pode ter sido alterada pelos seus usuários ou pelo próprio algoritmo, caso tenha embutido em seu código rotinas de autocorreção e aprendizagem. Algoritmos são invenções, e, como toda invenção, guarda as intenções de seus criadores.
A partir do momento que os algoritmos são programados e vistos, de forma transparente, consegue-se entender a possibilidade de se criar desigualdade, exploração e controle. “Algoritmos não são visíveis, nem perceptíveis, mas são contundentes na execução de sua finalidade” (SILVEIRA, 2017, p. 272). Já os dados, para Grohmann (2020, p.109), atuam de maneira a documentar, filtrar e extrair informações, portanto, também nada neutros. De acordo com o autor, a extração de dados não é, portanto, mera coleta de informações, mas sim “extração de valor e recursos”. Assim, algoritmos e dados tornam-se o que se chama de dataficação da sociedade, servindo então ao capital de plataformas. Para Grohmann (2020, p.110), não é possível conceber o processo de dataficação sem o de financeirização. Definitivamente, conforme perscrutado, o mercado financeiro e a tecnologia deram as mãos para levar o capitalismo a um outro patamar. “Se, então, dados e algoritmos são uma antessala para o capitalismo de plataformas – sendo um de seus mecanismos –, a financeirização é o seu próprio modo de acumulação de riquezas. Entre um e outro, encontram-se as plataformas”. Ou seja, a base da estrutura tecnológica é alimentada por dados e algoritmos, tendo alguém como dono, como proprietário, que estabelece regras através de termos de acordo. Regras essas que “não são neutras nem livres de valores” (Grohmann, 2020, p. 111), com o objetivo premente de extração de mais valor.
Antunes e Filgueiras afirmam que, com o crescimento das TIC´s, (surgimento dos dispositivos móveis com acesso ubíquo, aplicativos web, aplicativos para dispositivos móveis, redes sociais, dentre outros) ampliou-se o processo de precarização das relações de trabalho no mundo o que propiciou o surgimento e universalização do termo “uberização do trabalho”. Espraiam-se então várias formas de trabalho nas plataformas digitais e nos aplicativos,
como se pode verificar na Amazon (e na Amazon Mechanical Turk) e nos aplicativos de transporte privado e delivery da Uber (e UberEats), Cabify, 99, iFood, Rappi, Glovo etc., criando um ‘novo proletário de serviços’ que padece das vicissitudes da chamada escravidão digital (ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020, p. 65).
Em razão do alto lucro que esse tipo de modelo empresarial suscita, percebe-se sua expansão em todo o mundo por ser mais eficiente e enxuto. É um modelo de negócios mais rentável, por ter seus custos com os trabalhadores – extremamente precarizados – reduzidos.
Cardoso e Oliveira (2020) fizeram a análise daquilo que diferencia as plataformas, dando destaque para os modelos da shareeconomy, da gigeconomy e de intermediação. Esclarecem as autoras, a respeito da shareeconomy, que há relações em que o dinheiro faz parte, sendo os usuários os definidores dos valores e há outras relações em que o dinheiro está ausente, havendo, de fato, uma ação colaborativa ou de compartilhamento. No que concerne à gigeconomy, as autoras informam que é composta por três grupos de plataformas digitais de trabalho. O primeiro grupo, reconhecido como trabalho social em rede, seria o trabalho de produção de conteúdo e compartilhamento, usado como ferramenta de lazer, como o Facebook, Instagram e o Youtube. Sobre esse grupo, asseveram as autoras: “Na realidade, trata-se de trabalho realizado e não remunerado, mesmo que, neste caso, não haja uma relação de subordinação entre os usuários e os proprietários” (CARDOSO; OLIVEIRA, 2020, p.5). O segundo grupo seria o crowdworkers, formado por plataformas como a Amazon Mechanical Turk, aClickworker, por exemplo, existentes desde 2005, oriundas de países capitalistas centrais. “Rompendo com os limites de espaço e tempo, nelas um trabalhador de qualquer país pode se inscrever para a realização de microtrabalhos imateriais, curtos e imprevisíveis” (CARDOSO; OLIVEIRA, 2020, p.5). As autoras afirmam que as tarefas, nessas plataformas, além de serem muito mal remuneradas, os trabalhadores têm grande parte do tempo de trabalho não remunerado, o que faz com que precisem se dedicar muitas horas de seu dia para que consigam garantir uma remuneração, ainda que mínima. Por fim, o terceiro grupo é do trabalho digital sob demanda, que pode ocasionar na venda de trabalho imaterial (tradução, serviços jurídicos, dentre outros) ou material. O trabalho material se realiza em empresas-plataformas de serviços. As autoras exemplificam:
de transporte (Uber, Lift, 99), de entregas (Foodora, Deliveroo, Postmates, Loggi, Ifood, Rappido), de serviços de hotelaria (Brigad), de cuidado com crianças, idosos e doentes (Care.com, Helping), de consertos (Instacard, TaskRabbit, LaborMe.app), de cozinha em domicílio (LaBelleAssiette) ou limpeza (Handy). (CARDOSO; OLIVEIRA, 2020, p.5)
Grohmann (2020) apresentou a seguinte classificação das plataformas de trabalho: 1 – plataformas que querem que o trabalhador esteja em uma localização específica, como a Uber, IFood, Rappi; 2 – plataformas de microtrabalho ou crowdwork, como a Amazon Mechanical Turk, Microworkers, cuja função é marcada pelo trabalho de treinar dados para a Inteligência Artificial e 3 – a plataformas freelance, cloudwork, como a GetNinjas, que reúnem tarefas de pinturas, passeio com animais, design. Cada uma dessas empresas de plataformas estabelece diferentes relações com o trabalhador. No entanto, em cada uma delas, pode-se verificar trabalho precário, não autonomia do trabalhador e flexibilidade para a empresa.
Cardoso, Artur e Oliveira (2020) classificam as inúmeras formas de atuação das empresas-plataforma em dois tipos: o crowdwork e o trabalho digital por demanda. Os crowdworkers são trabalhadores de qualquer parte do mundo que se inscrevem em plataformas (como a Amazon, por exemplo) para a execução de pequenos trabalhos fragmentados. O trabalho digital sob demanda, por sua vez, inclui trabalhos imateriais (venda de serviços especializados, como tradução, serviço jurídico, dentre outros) e materiais. Os trabalhos digitais sob demanda material são aqueles mediados por vários tipos de plataformas, como a Uber, 99 (transporte), Loggi, Ifood (entregas), dentre outras modalidades que envolverão cuidado de idosos, crianças, hotelaria.
Conforme entendimento de Duarte e Guerra (2019), no setor de transporte de pessoas, a Uber hoje é um dos principais atores. A empresa está situada no Vale do Silício, nos EUA, e se autointitula como uma empresa de tecnologia. Trata-se, na verdade, de um serviço eletrônico de mobilidade (de pessoas ou coisas) – de transporte privado urbano – via uso de aplicativo que conecta motoristas a passageiros, em que passageiros solicitam o serviço via aplicativo Uber e o motorista recebe o pedido pelo Uber Driver, semelhante ao serviço prestado pelo táxi. Para as autoras a “plataformização da mobilidade pressupõe uma incontornável plataformização do trabalho” (DUARTE; GUERRA, 2019, p. 3). Para Alves (2018, p. 90), “O ‘modelo Uber’ de organização do trabalho é o sistema de autoempreendedorismo organizado por meio dos aplicativos informacionais e-hailing”, oriundo da revolução informacional produzida pelo capitalismo flexível, que facilita, dá agilidade e reduz os custos do uso de serviços de transporte. Para Cardoso e Oliveira, as empresas-plataforma de trabalho por demanda, como a Uber e o Ifood, por exemplo, “se autodenominam como plataformas de intermediação para justificarem o discurso de que não são empresas de transporte ou entrega” (2020, p.5). No entanto, as plataformas de intermediação são aquelas plataformas que, de fato, fazem a intermediação entre a empresa fornecedora do serviço e o cliente, como a Decolar e a Trivago, por exemplo. Elas, portanto, não gerenciam trabalho pela plataforma. Assim, concluem as autoras que, além das empresas-plataforma de trabalho gerarem valor com os dados fornecidos pelos clientes e trabalhadores, elas também lucram com a exploração do trabalho de seus trabalhadores. Para Alves (2018, p.92), “a nova linha de produção em rede do modelo Uber de organização do trabalho torna-se, assim, um receptáculo do precariado afluente”, uma vez que se insere nessa dinâmica trabalhadores desempregados ou trabalhadores empregados que se falem da gigeconomy para complementar, no tempo livre e que deveria ser de descanso, seu pífio salário oriundo do processo de precarização. Assim, “representa um modo de ‘fluidez espúria’ da superpopulação relativa estagnada do capital” (Alves, 2018, p.93, grifos do autor), contribuindo esse modelo para a redução do desemprego por intermédio de subemprego.
As mudanças vivenciadas, hodiernamente, no mundo do trabalho não advêm, unicamente, do advento da internet. Cardoso e Oliveira entendem que esse período vem sendo marcado por um amplo e novo modelo de produção, baseado na robotização e automatização, através do uso do learning machine, robôs, inteligência artificial, dentre outros. Destacam que essas inovações “abrangem todos os setores da economia, como: comércio, distribuição, banco, turismo, serviço público, atendimento, ensino, saúde e escritórios” (2020, p. 06).
até o ano de 2026, se todas as empresas decidirem substituir os trabalhadores humanos por tecnologias que já estão disponíveis no mercado e devem estar num futuro próximo, a estimativa é de que seriam fechadas em torno de 30 milhões de vagas com carteira assinada atualmente (CARDOSO e OLIVEIRA, 2020, p. 06).
Dentre as pesquisas citadas pelas autoras, destaca-se a realizada pelo Fórum Econômico Mundial que revelou, através da análise feita com diretores das áreas de recursos humanos, que 44% dos entrevistados acreditam que haverá grande impacto no mundo do trabalho em virtude do teletrabalho ou homeoffice (o capitalismo acabou por acelerar esse processo com a pandemia), contratações flexíveis e, também, da utilização de trabalhadores autônomos. Afirmam também os entrevistados que as empresas vêm tentando reduzir, ao máximo, o número de trabalhadores formais. Em pesquisa também citada pelas autoras, realizada pelo ETUI (em português, Instituto Europeu dos Sindicatos), no ano de 2016, tem-se a constatação de que a previsão a respeito do surgimento de novas vagas de emprego de baixa qualificação, diante do cenário tecnológico vivenciado, é o forte aumento do trabalho mediado por plataformas digitais, dentre eles o crowdwork e de trabalho por demanda material. Em consonância com as autoras, tal hipótese se verifica, de fato, quatro anos após a realização da pesquisa. Ressaltam que o impacto não é apenas em relação à quantidade de empregos que existirá, mas sim também a qualidade desses trabalhos. E justificam na assertiva já trazida de que as empresas-plataforma de trabalho se colocam como intermediadoras entre consumidores e trabalhadores (que chamam de prestadores de serviços). Assim, conforme o entendimento dessas empresas, não há relação de emprego e, portanto, não há amparo do direito do trabalho para esses trabalhadores.
No entanto, é importante sublinhar que são as plataformas de trabalho por demanda que definem se um trabalhador pode oferecer seu trabalho e o colocam para fora quando desejam. Além de estabelecerem a remuneração pelo trabalho, definem os bônus que incentivam seus trabalhadores a permanecerem conectados, bem como o tempo para realizarem o labor. Sem contar os processos de avaliação, as sanções e a não permissão para que os trabalhadores possam escolher os clientes e as corridas que desejam atender (CARDOSO; OLIVEIRA, 2020, p.7).
Dão destaque às inúmeras formas – precárias –, algumas já analisadas, de se contratar hoje um trabalhador, quais sejam, através da duração limitada do contrato, quando feito o contrato a termo, a curto prazo, temporário, sazonal, diário, intermitente e casual. Destacam também a natureza da relação de trabalho, enquanto relações triangulares e disfarçadas, trabalhos autônomos falsos, subcontratações. Sobre as condições de trabalho, revelam importantes características sentidas pelo mundo do trabalho, quais sejam, os salários baixos, ausência de proteção contra a rescisão contratual, além da falta de acesso à rede de proteção social e aos benefícios previdenciários inerentes à relação de emprego.
E, assim, as autoras concluem:
Diante desse cenário, o trabalho via plataforma digital pode ser caracterizado como o extremo do processo de precarização do trabalho, considerando a total externalização dos riscos aos trabalhadores, gerando extrema incerteza e insegurança frente a um mercado de trabalho cada vez mais exigente. Como consequência, a possibilidade de construção de um trabalho “descente” e sustentável (OIT, 2017) fica totalmente distante do horizonte social (OIT, 2020, p.8).