A conveniência da tecnociência à burla dos direitos na assistência social

The convenience of technoscience to frame of rights in social assistance

Gabriele Faria 1
PPGSS-UFRJ, Brasil

A conveniência da tecnociência à burla dos direitos na assistência social

O Social em Questão, núm. 58, pp. 127-154, 2024

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Junio 2023

Aprobación: 01 Agosto 2023

Resumo: Como resposta à crise e a necessidade de conter a circulação de pessoas, no contexto pandêmico presenciamos o avolumar do uso de tecnologias nos serviços públicos. Sob o discurso de maior eficiência de molde empresarial, uma volumosa datificação é operada sob o comando de algoritmos, sofisticando a gestão, operando uma profunda quantificação e matematização a governar vidas, tornar sujeitos elegíveis/inelegíveis por meio de cálculos opacos inquestionáveis, os quais denotam um movimento de disputas políticas, econômica e ideológicas, afeitas ao sociometabolismo do capital, que conspira contra os direitos e avanços democráticos, fazendo da política de assistência social um campo de incertezas.

Palavras-chave: Tecnologias, Datificação, Algoritmos, Assistência social.

Abstract: As a response to the crisis and the need to contain the movement of people, in the pandemic context we witness the increase in the use of technologies in public services. Under the discourse of greater business efficiency, a voluminous datatification is operated under the command of algorithms, sophisticating management, operating a profound quantification and mathematization to govern lives, making subjects eligible/ineligible through unquestionable opaque calculations, which denote a movement of political, economic and ideological disputes, related to the social metabolism of capital, which conspires against democratic rights and advances, making social assistance policy a field of uncertainties.

Keywords: Techonologies, Datification, Algorithms, Social assistance.

Introdução

Em 2020 o Brasil destacou-se como epicentro de contaminações e óbitos pelo novo Coronavírus (Covid-19), conjecturando na época um platô de mais de seis mil mortes por semana, exponenciando os reflexos das políticas neoliberais em curso desde a década de 90. Assim, as consequências destas receitas que nos últimos anos inferiorizam, desfinanciam, privatizam os serviços públicos, colapsando sua capacidade, bem como transformando seu modelo de gestão, em meio ao caos sanitário, exacerbam o descompromisso com o humano, eminente na crise estrutural já colocada, a qual não encontra espaço de manobra diante de uma lógica autocrática blindada às reivindicações da classe trabalhadora.

Isso demostra a peculiaridade do movimento do capital que interpõem medidas como forma de atenuar as barreiras impostas à acumulação, dentro de certos parâmetros internalizados nesta estrutura contraditória que periodicamente deflagra suas crises com contradições cada vez mais profundas. Apesar de apresentar-se como um acidente, tal crise inevitável e inerente ao capitalismo, desvela-se naquilo que Mészáros (2021) nomeia de mudanças “epocais” de alcance global, que agora associada a um novo agente viral, impõe incontestes limites ao sistema do capital e seu modus operandi ainda mais destrutivo, requisitando um Estado ainda mais vigoroso para pôr em prática sem cerimonias, os interesses da classe dominante.

Apesar do contexto pandêmico exigir um sistema protetivo fortalecido, de modo a garantir cobertura à população, o que se apresentou foram performances pífias de políticas sociais, prevalecendo o sucateamento e cortes orçamentários, os quais comprometeram o socorro à população no cenário que se descortinava, deixando à própria sorte a população mais pobre (apesar do potencial virótico de impactar todos os indivíduos de uma sociedade) cujo recorte de gênero e raça são emblemáticos2.

A crise já existente que vinha aprofundando o desemprego, o subemprego, a flexibilização, a precarização, sob bases de direitos frágeis, na emergência sanitária, avoluma a informalidade, a subutilização e a intermitência encorpada pelo frenezi informacional-digital focado em reduzir trabalho humano necessário à produção, substituindo-o pelo uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC´s) (ANTUNES, 2020, p. 20). Esta realidade encontra na pandemia a conjuntura perfeita para se espraiar, seja em razão da necessidade de aulas remotas, trabalho home-office, isolamento social, bem como acesso a serviços públicos, dinâmicas estas, facilitadas pelo uso de infraestruturas tecnológicas: IPads, IPhones, Smartphones, aplicativos, inteligência artificial, as quais desvelam à expansão da reprodução sociometabólica do capital.

Essa forte adesão às tecnologias de informação e comunicação, engendra um movimento contraditório, o qual segundo Pinto (2013, p. 208) habita o coração da técnica ora subordinada historicamente a projetos societários distintos, os quais de modo prático objetivam trazer soluções, seja pelo viés da revolução sempre presente na ação humana sobre a realidade ou inclinadas à conservação, repetindo atos e freando novas finalidades, reiterando desigualdades, na atualidade, reeditando pactos de uma dominação conservadora servil a agenda neoliberal empresarial, definidora de ajustes e mudanças gerenciais necessárias a uma lógica apresentada como inquestionável, neutra, ancorada no discurso da modernidade, ocultando ataques aos direitos e os verdadeiros interesses financeiros do mercado, os quais sempre estiveram presentes na proteção social brasileira.

Para tanto, no cenário que se descortina formas organizacionais, instrumentais e jurídicas indicam responder interesses particulares, entretanto sem deixar de produzir uma ilusão democrática envolta na maior facilidade de acesso e celeridade, mesmo quando tudo é conduzido com pouca transparência. Isso indica, que diante dos limites burgueses, funções tratadas como meramente tecnológicas denotam reforçar desigualdades, consentindo regular a dominação de classes e administração da barbárie cotidiana, ao infringir liberdades de escolha, a autonomia decisória, seja no recorrente ocultamento dos cruzamentos de dados, dos objetivos, finalidades postos na coleta destes, ou na dinâmica algorítmica opaca e que pode estar auxiliando um tratamento exagerado, discriminatório e impróprio, pouco questionado diante da crença na imparcialidade e neutralidade destas tecnologias, como se elas prescindissem o homem.

Assim, o presente artigo problematiza as novas tecnologias no âmbito da política de assistência social como um instrumento gerencial organizador da informação, conduzindo a burocracia estatal por um viés empresarial, os quais denotam transformar dados privados em resultados inquestionáveis, pouco onerosos determinantes à responsabilização dos sujeitos, a competição no mercado e ao maior controle via nichos da plataformização, os quais conduzem não apenas mecanismo de gestão empresarial, mas de vigilância em massa, enquanto tendência presente nas políticas sociais.

Para tanto, empreendemos uma revisão documental e bibliográfica, cujos fundamentos teóricos subjacentes à tradição marxista nos deram insumos para demostrar que o desenvolvimento tecnológico é inseparável das relações de produção, muito embora, insista em parecer apartado desta. Assim, organizamos o artigo com uma introdução, dois itens subsequentes e uma conclusão. Iniciamos refletindo sobre a reciprocidade do desenvolvimento tecnológico aos interesses da reprodução e valorização capitalista. A continuação, buscamos compreender a forma política que o Estado vem assumindo, em seguida, demos enfoque às novas tecnologias no campo da política de assistência social, enquanto estratégia de modernização da gestão que dá direção sutil ao projeto neoliberal conveniente ao fortalecimento de relações econômicas, via traços autoritários, conservadores, servis à novos métodos de controle – sobretudo dos mais pobres – e a burla dos direitos a partir da racionalidade algorítmica, opaca, perversa.

A base social dominante que imprime direção à ação técnica

No estudo da técnica e da ciência, Marx as anuncia como dimensão do capital, quer seja, como parte do processo de acumulação capitalista. Assim, destaca a importância de refletir sobre a tecnologia e as relações sociais de produção, ora atravessadas por mecanismos de controle, subordinação e exploração, cuja função no processo produtivo implicou em modificações na sociedade capitalista.

Marx (2004) no livro I d´O Capital identifica reflexos da tecnologia no processo de valorização do capital e produção de mercadorias, cuja direção dada sempre esteve atenta à intenção de redução dos custos do trabalho assalariado. Essa situação destaca a busca perpetua do capitalismo por mais valor relativo sustentado por transformações tecnológicas, as quais impõem efeitos sobre o trabalho, desvelando maior controle, disciplina, consenso e coerção, que em cada quadra histórica aponta diferente caráter lógico.

Assim, o desenvolvimento tecnológico não se põe como algo determinado pelo movimento histórico de modo autonomizado das forças produtivas, ele é expressão da combinação de um conjunto de elementos envoltos ao processo de trabalho, nas relações de produção, bem como nas relações sociais. Portanto desvincular a técnica do desenvolvimento das forças produtivas, segundo Pinto (2013), afasta do homem sua intencionalidade, utilizada racionalmente a partir da realidade, com vistas atingir um fim, logo, reduzindo a técnica ao estágio final, no qual comparece um caráter coisal, que oculta e mistifica processos, apagando qualquer vestígio de negatividade.

Nessa lógica, segundo Netto (1981, p. 85) a peculiaridade da alienação na/da sociedade burguesa constituída, na qual comparece um caráter coisal, tudo passa a ser liso e raso, além de apontar para uma só direção ou a falta dela, ou seja, um campo da dominação de substancialidade objetual, coisal que suprime mediações e orienta fluxos de informações no qual o caráter contraditório é apagado.

Exatamente a partir desta análise, o caráter original da tecnologia vinculada ao movimento histórico, nos impede de referenciar o papel das forças produtivas no momento da produção, tomando o aprimoramento contínuo a partir de apreensões fetichistas, que negligenciam os ciclos econômicos impulsionadores de novas descobertas. Esse aspecto do desenvolvimento das forças produtivas é inseparável a tendência de um padrão destrutivo próprio das engrenagens do sistema que busca converter tudo em descartável e supérfluo.

Não à toa, a mudança técnico-cientifica apresenta relação com a dinâmica do sistema econômico capitalista, cuja tendência que se impõe é um padrão destrutivo próprio das engrenagens do sistema à razão instrumental convertendo tudo em descartável e supérfluo, tendência esta intrínseca ao sistema produtivo (MÉSZÁROS, 2012, p. 640). Entretanto, esse desperdício gerado no capitalismo avançado não é acidental, ele se justifica pela competição, uso racional do trabalho, bem como pelo conflito capital-trabalho. Assim subterfúgios à lógica de redução da vida dos produtos integram mecanismos de sobrevivência dos capitais, fazendo avançar desperdício, a superfluidade, a destrutividade e a obsolência programada, soluções estas fetichizadas, ora apresentadas como algo benéfico, mesmo que sob condições duvidosas, logo, sem fugir ao padrão capitalista.

Ao analisar a dinâmica da cooperação, manufatura e grande indústria, Marx (2013) adverte que o início a produção capitalista vinculado à produção em quantidade e sob o comando do capital, envolve a combinação de diferentes trabalhadores estabelecendo a produção de muitos produtores, a partir de processos conexos que encurtam o tempo e demarcam a subordinação à inovações tecnológicas, as quais apontam a necessidade da tecnologia do saber produtivo do processo de trabalho. Isso implica dizer que não há como não demandar a incorporação na dinâmica da produção da força humana, seja pela destreza física ou intelectual, ainda que seus produtos e instrumentos sejam impactados por exigências do sistema do capital (MÉSZÁROS, 2014).

A necessidade de extração de mais-valia se alia a destreza e necessidade dos indivíduos forjando a divisão do trabalho entre os que pensam e os que organizam, logo, balizando um novo arranjo social e econômico, cujo saber científico aplicado a produção denota uma espécie de cooperação particular. Portanto, na manufatura o trabalho hierarquizado, mutilado e uniformizado é ordenado particularizando instrumentos, com eles a diferenciação de tarefas que incidem sobre a subordinação e dominação dos trabalhadores. Nesta divisão manufatureira, segundo Marx (2013, p. 396) desponta às condições necessárias a maquinaria, cujo foco, para além das habilidades do trabalho está na perfeição das ferramentas, que a partir da aplicação técnica intenciona dinamizar a velocidade, minimizar espaço e tempo, superar barreiras à realização e circulação de mercadorias, além de novas oportunidades de realização do trabalho, cujas consequências incidem no aumento da produtividade e exploração, exigindo inovação tecnológica (HARVEY, 2018).

Assim, se na manufatura o princípio do trabalho é subjetivo quer seja, porta força e habilidade em ação, na maquinaria ele assume caráter objetivo fazendo com que algumas tarefas sejam monitoradas pelos homens, cujos resultados podem estar alheios a este mesmo trabalhador que lança mão de meios e estímulos para reprodução, significando dizer que este supera formas precedentes de extração de mais-valia, ora determinando um processo de acumulação baseado na exploração da força de trabalho em face das necessidades do capital. Assim ciência e produção tencionam o trabalho coletivo metamorfoseando meios de trabalho passíveis ainda de algum controle e certa autonomia, em face de uma inversão, em que o trabalhador é consumido pela aplicação tecnológica e subordinado às máquinas.

Nesta lógica, a atividade determinada pelo movimento maquínico, apesar de idealizada pela mente humana, conduz a estranhamentos, convertendo o trabalho vivo em acessório subordinado à vontade alheia. O saber aperfeiçoado se converte em qualidade do capital ao ser subsumido pelo trabalho objetivado na máquina, despojando o trabalhador de sua consciência, reiterando nossa compreensão da sintonia da tecnologia aos interesses da reprodução capitalista, em que o trabalhador perde controle consciente e planejado do processo de produção e seu saber vai decaindo de importância:

A habilidade detalhista do operador de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa diminuta e secundária perante a ciência, perante as enormes potências da natureza e do trabalho social massivo que estão incorporadas no sistema da maquinaria e constituem, com este último, o poder do "patrão" (MARX, 2013, p. 495).

A partir deste entendimento, observa-se que o incremento tecnológico é concebido em uma sociedade capitalista atravessada por contradições e orientada por uma ordem social universalmente mercantilizadora, sem compromisso com uma perspectiva igualitária, emancipadora, já que estes são limites imanentes ao sistema do capital.

Dito isto, fica evidente que a dinâmica do sistema capitalista ao intencionar a expansão das forças produtivas traz em seu bojo um nível sempre maior de complexidade indicando que a partir da incorporação da ciência e da tecnologia ao processo de valorização do capital, novas medidas e formas de realização despontam sugerindo que a tarefa de toda geração sucessora não intenciona se distanciar das determinações precedentes fincadas na posse das forças produtivas. Percebe-se que apesar das potencialidades da tecnologia para a construção de outra sociabilidade em sintonia aos interesses da classe trabalhadora, o mando prevalecente vincula-se ao desenvolvimento das forças produtivas, logo espelhando seu interesse de valorização. Assim, ao conceber as novas tecnologias que despontam, no cenário de crise estrutural do capital, é preciso atentar às leis intrínsecas objetivas a ela, ou seja, a base social que da direção à ação técnica.

Estado como garantidor do controle global da materialidade do capital

Nesses processos o Estado aparece como um complexo social fundamental quer seja, superestrutura política, cuja direção é indissociável das relações capitalistas. Portanto, como forma política do capital cumpre função corretiva vital à manutenção e o fortalecimento dos imperativos autoexpansionistas do sistema, cuja destrutividade é visível (MÉSZÁROS, 2021 p.161). Sendo assim, a tarefa da formação estatal do sistema do capital está alienada por excelência a uma circurlaridade necessária a resguardar o controle global da materialidade sociometabólica do capital, na qual lhes cabe funções corretivas e não soluções aos problemas crônicos da administração, muitas vezes justificados em outros lugares e não onde estruturalmente se encontram, denotando um caráter intrinsicamente conservador para instrumentalizar e reproduzir a ideologia dominante, na qual não há lugar para instituição da igualdade real, mas a reiteradas estratégias à proteção de hierarquias estruturalmente arraigadas e que devem ser protegidas pelo Estado.

Como resposta à crise que se desdobra em sentido epocal, implicando os limites finais da ordem dada, a maquinaria complexa se refrata empenhada na gestão de tais limites (MÉSZÁROS, 2021), enquanto elemento imperioso, destacado por Mandel (1982), como funcional à valorização do capital, segundo o autor, subordinando o progresso tecnológico aos imperativos de mudança na operação do modo de produção, bem como à necessidade de encontrar saídas às graves contradições produzidas pelo sistema.

Na esteira do século XXI essa dinâmica aponta à novos contornos potenciados por modernas estruturas tecnológicas, difundidas pela chamada Indústria 4.0 que fazem parte da Quarta Revolução Industrial (ANTUNES, 2020 p. 15). Estas transformações tecnológicas seguem ampliando contradições do modo de produção capitalista em nível máximo, reeditando mecanismos de expropriação do trabalho via integração entre processo produtivo e serviços. Esses exigem a participação estatal nas desregulamentações, na dinâmica da financeirização, enquanto estratégias a sujeição e controle, que, nos termos de Neves e Sant`Anna (2005), engendram táticas de dominação via força, consentimento ou restrição, caracterizada pelos autores como “pedagogia da hegemonia”3. Essa realidade tem servido de inspiração ao projeto neoliberal brasileiro, tenaz em transformar o panorama societal, via incremento de condições ideias para reprodução de interesses burgueses, dos quais fazem parte o voluntariado, a filantropia, as políticas corporativas. Estratégias que segundo os autores priorizam a pequena política ao não questionar fundamentos da ordem social, precipitando uma ideologia consentida pelas classes subalternas, granjeando apoio ativo para conservação de uma determinada ordem, cujas estratégias agora mais sofisticadas incrementam sistemas de informação, plataformas, cujos aplicativos tornam interações possíveis potenciando maior controle, vigia e não efetivamente a garantia de serviços mais eficientes afeitos a garantia dos direitos.

De tal modo, sob o manto da falsificação se oculta o caráter de classes destes mecanismos, ora tomados de modo fetichizado desconsiderando suas consequências nas relações sociais e nas direções políticas da modernidade, sobretudo, em uma era alicerçada pelo neoliberalismo revigorado, que preconiza restaurar o capital fazendo frente a uma nova razão de mundo (DARDOT; LAVAL, 2016). Segundo os autores, o projeto restaurador do capital alarga processos de privatização transformando serviços públicos em espaços de investimento do capital sob o julgo de uma lógica empresarial supostamente mais eficaz, tecida de discursos comportamentais, os quais conformam o “ideal de trabalho e de trabalhador” servis ao nexo do setor privado, cuja direção concernente a de uma empresa, tenciona a redução de custos trabalhistas, defende retrocessos dos direitos dos trabalhadores, justificando ainda, mudanças na condução estatal e nos seus serviços, ora apresentados sob um caráter modernizador, no qual se instituem novas normas, técnicas e procedimentos similares aos de uma empresa, em que todos devem cooperar e adaptar-se.

Neste sentido, o Estado incorre no lugar de legitimador dos interesses do capital, donde burlas democráticas cedem lugar às ilegalidades naturalizadas e institucionalizadas. Assim, formações estatais figuram como executoras das regras necessárias à manutenção da ordem sócio-reprodutiva estabelecida garantindo trâmites burocráticos, controle e legitimação aos negócios da burguesia, apresentados sob a imagem de bem comum, outrora fetichizante, ancorado em violências, autojustificando ilegalidades:

Consequentemente, a questão espinhosa da ilegalidade do Estado não pode sequer ser considerada, não importa quão grave seja. Pois a mera suposição do poder como o fundamento legítimo mais ou menos implícito, mas sempre arbitrariamente decretado, do direito em si, justifica tudo por definição. Ele justifica ainda a supressão mais crua e violenta da dissidência interna e sua busca por uma alternativa viável, para não mencionar as guerras desencadeadas contra o “inimigo externo” (...) (MÉSZÁROS, 2015, p.56).

Enquanto executoras das regras necessárias, as formações estatais, sob o impacto de contradições e antagonismos crescentes, negligenciam medidas consensuais mais democráticas cedendo espaço a regras autoritárias e controlistas, as quais reiteram violências nas práticas estatais, outrora ancoradas a novas estratégias, impondo à sociedade de modo fetichizado e autocrático uma suposta otimização gerencial, ora atravessa por novas tecnologias. Tal infraestrutura adentra o funcionamento das políticas sociais4, via a exigência de entrega dos dados pessoais para acesso aos serviços, os quais engendram protocolos compilados digitalmente, gerenciados por algoritmos que independente da finalidade precisam de dados para ser treinados, ou seja, estes aprendem via sistemas capazes de instruir-se a partir da experiência onde estão inseridos, por meio de sistemas dedutivos e indutivos ou por redes neurais que pretendem imitar o funcionamento do cérebro, no qual um objeto de entrada reportará um resultado de saída.

Por meio desta performativa matemática que arrebata governos e estados, estruturas legais e democráticas são convencionadas dando direção à forma política que o Estado vem assumindo, especialmente nos padrões de proteção social do estágio atual do capitalismo, em que direito outorgado legitima o controle secundarizando a qualidade dos serviços ofertados.

A quem serve a conveniência da tecnologia na política de assitência social?

A tecnologia enquanto ação inventada do homem institui-se como setor do conhecimento edificado pela consciência. Logo, segundo Pinto (2013, p. 221) se a técnica figura enquanto um produto da percepção humana que conhece e aplica concretizando-se em artefatos e máquinas, há de acordo com o autor uma ciência que abrange e explora, entregando como resposta formulações teóricas, chamada de “tecnologia”, quer seja, a epistemologia da técnica. Isso indica a entrega dessa teoria aos técnicos, os quais muitas vezes negligenciam a natureza e a função do seu trabalho corroborando para um apartar entre teoria e prática, o qual obscurece a compreensão e entoa uma supremacia tecnológica indisfarçável, em geral comandada por centros de poderes hegemônicos, à quem serve essa deificação maquínica que desvela resultados e expressões de um modo especifico de enxergar a totalidade da realidade, apresentada como verdade suprema, ocultando oportunidades ao mercado.

Inferimos que a técnica se define pela “qualidade” do ato produtivo, tendo no homem o ser que pratica tais atos para consecução de finalidades. Já a tecnologia se instaura como uma mediação representada pela invenção do homem para domar aquilo que o manteria em lugar comum. Entretanto, temos visto um movimento que emoldura a tecnologia numa apreensão conveniente e funcional aos interesses e modos de pensar de grupos dominantes, cujas ferramentas figuram como parte das estratégias do movimento coetâneo do homem como ser social que projeta e lança mão do seu instrumento a partir de círculos imediatos de interesses. Portanto, para além de um desvio lógico, há uma direção política eminente que merece nossa atenção.

O recurso de uma “solução tecnológica” que mistura otimismo e oportunismo de mercado indica ao uso de tecnologias informacionais e comunicacionais como estratégia à gestão da crise intensificada em 2008, quando se aprofundam métodos neoliberais de forma mais abrupta, com evidente opção pelo capital financeiro e formas de acumulação flexíveis, cuja introdução de novidades tecnologias desvela-se como condição a novas formas de acumulação. Segundo Zuboff (2018), nas atividades mediadas por novidades tecnológicas, presentes em nossas vidas para entretenimento, upgrade empresarial, novas formas de contratação, novas dinâmicas laborais, maior controle dos empregados, predições comportamentais, subverte-se a estrutura e dinâmica da acumulação, cognominada de capitalismo de vigilância, a qual se ancora no grande volume de dados, consequência deste cenário tecnológico, em que se estabelecem novas formas de poder sinais de grande investida inclusive contra a democracia.

Mesmo que o big data possa ser configurado para outros usos, estes não apagam suas origens em um projeto de extração fundado na indiferença formal em relação às populações que conformam tanto sua fonte de dados quanto seus alvos finais. (ZUBOFF, 2018 p.18)

Estas novas tecnologias nas práticas burocráticas do Estado, para além servis às estratégicas à contrarreforma em curso, imprimem uma lógica empresarial persecutória da eficiência e eficácia, pressupondo modernizar formas de acesso. Entretanto, o que se refrata é uma dinâmica que prioriza o incremento em investimento tecnológico à pari passu do desfinanciamento dos serviços. Neste processo a entrega dos dados para acesso aos serviços independe do consentimento dos requerentes, justifica-se pela recorrente preocupação com fraudes, em última instância, melhor focalização, mas com pouca preocupação na privacidade abrindo espaço para participação em atividades de vigilância e modulações que podem escapar das leis protetivas5, haja vista, a morosidade e ausência de investimento na implementação da Lei Geral de Proteção de Dados, sobretudo por órgãos públicos. Deste modo, junto ideia de um “solucionismo” se refrata a substituição das filas físicas por filas virtuais, da análise presencial pela análise algorítmica; reforçando a dispensa do servidor, ora submetido a modernos instrumentos que retiram sua autonomia, e robustecem a lógica do financiamento por cooptação de cadastros e o perverso cumprimento de metas. Por meio dos dados, a dinâmica institucional e organizacional registra e avalia a experiência cotidiana fetichizando autoritarismos explícitos pela técnica velada que lança mão de estratégias corporativas na lógica burocrática estatal, indicando possibilidades circunscritas pela lógica da autoridade e poder, na qual se moldam suposições, sucessos, fracassos, além de motivar o que é mensurado e o que é ignorado, logo desvelando por meio dos dados uma submissão conformista que aniquila a liberdade alcançada pelo Estado de direito.

Nossa intenção não é imprimir uma análise determinista do uso de tecnologias informacionais e comunicacionais para gestão e administração dos serviços públicos, afinal avaliamos que há nestas grande potencial para qualificar as ações. Desde os anos 1990 percebe-se a incorporação da tecnologia nos serviços públicos conformando base de dados dos usuários. O Cadastro Único (CadÚnico) para programas sociais é um exemplo desta grande datificação6 compilada pelo do governo federal, promovida/alimentada pelos governos municipais desde 2001, servindo aos entes como instrumento para obter diagnóstico socioeconômico das famílias em situação de pobreza no Brasil, bem como mecanismo de acesso a programas sociais, dentre eles o Bolsa Família em 2003:

Identificadas e caracterizadas as famílias de baixa renda, o governo pode então traçar o “mapa da pobreza”, utilizar tais informações para implementar políticas públicas, bem como conceder acesso aos benefícios de Tarifa Social de Energia Elétrica (via desconto na tarifa dos cadastrados); à inclusão no Programa Minha Casa Minha Vida – que auxilia na compra da casa própria; à inserção no Benefício de Prestação Continuada, vinculado à política de assistência social e destinado a portadores de necessidades especiais e idosos com renda per capita de ¼ do salário mínimo; à Carteira do Idoso, que possibilita desconto de, no mínimo, 50% em passagens interestaduais; à isenção da taxa de inscrição do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM); entre outros (FARIA, 2021, p.589).

Enquanto ferramenta de gestão do Programa Bolsa Família (PBF), o CadÚnico7, caracteriza famílias de baixa renda, afim de selecioná-las aos programas sociais do governo federal, demarcando um novo paradigma para entender, monitorar e localizar socialmente uma determinada população, ora amplamente datificada e tratada pela área de tecnologia do ministério, então, por que não, vigiada? Já que para além do empenho em prestar “assistência necessária” e identificar os “pobres”, se coloca o interesse em monitorar trajetórias de vida sob o pretexto de “acompanhar” aqueles mais vulneráveis.

A coleta dos dados dos cidadãos enquanto prerrogativa para acesso aos serviços nos indica outra ordem de problemas pouco questionado, sobretudo se olharmos para o grande volume de informações armazenadas em nuvem, ao passo que a grande concentração de Data Centers8 (Centro de armazenamento de dados), está na economia norte-americana, indicando para além da usurpação de bens por essa, a recorrente violência imposta a nações dominadas, dependentes dessas tecnologias, que sem conhecer termos de uso, tampouco o modo como extraem a experiência, perpetram a entrega de seus dados, denotando o anacronismo tecnológico de países periféricos, bem como uma subserviência à impérios de caráter financeiro, político, ancorados em concepções de mundo e bem distantes da neutralidade anunciada.

Tal digitalização extrema já referencia os dados pessoais como petróleo do século XXI, capaz de extrair padrões de consumo, captura de desejos, comportamentos, predições e controle jamais visto, concebido como modelo de negócio, o que merece atenção, suscitando, dois grandes problemas: por um lado o possível envolvimento de empresas privadas, algumas vinculadas a Startups da internet com grande poder, predatórias por definição, e de outro é que se têm como norte o projeto neoliberal contrário a qualquer ascensão não mercantil.

Outro elemento importante é que, a partir de sistemas informatizados, aquelas ações, ora operadas pela mão humana, passam a ser dinamizadas por algoritmos, quer seja, performativas matematizadas criadas por engenheiros com vieses não explicados, habilitando máquinas a reconhecer padrões sem que conheçamos os critérios, muitas vezes conformados a partir de leituras de mundo padronizadas por direções conservadoras, as quais potencializam a exploração e discriminação de minorias. Assim, identificando a realidade por meio dos dados, os algoritmos contribuem à tomada de decisões e gestão de uma realidade, em que respostas produzidas dizem respeito ao reconhecimento e classificação, a partir de critérios e deliberações distantes daqueles profissionais que operam os sistemas nos serviços públicos, colocando requerentes como reféns de avaliações de elegibilidade feitas por algoritmos.

O uso da inteligência artificial para acesso ao Auxilio Emergencial (AE)9, cujas solicitações se deram por aplicativo, evidencia discrepâncias. Apesar de nas primeiras 24 horas do lançamento do App do AE constar 22 milhões de pessoas cadastradas para a solicitação do benefício, a facilidade de contestação das decisões tomadas por algoritmos não teve um bom desfecho, sobretudo por não justificaram uma reanálise humana, mas um novo tratamento de dados de modo matematizado.

Essa opacidade em relação ao tratamento, compartilhamento e proteções quanto os acessos indevidos, acena por outro lado, aos riscos da cadeia do valor da informação que na contemporaneidade tem servido a muitos interesses, desde os comerciais (consumo de modo geral, incluindo dinâmicas securitárias) àqueles afeitos a necessidade de controle político, moral e ideológico. São inúmeros os casos de exposição indevida dos dados privados, até mesmo do programa Bolsa Família10 acenando a necessidade de assegurar a privacidade de dados em todas as etapas do programa (de acordo com art. 6, III da LGPD) inclusive nos inúmeros cruzamentos – os quais denotam um ponto de tensão com a proteção dos dados e a dinâmica fiscalizatória própria do PBF – para identificação de inconsistências, captura dos “fraudulentos”, haja vista a focalização do PBF.

Isso diz muito sobre o ideário neoliberal e suas preferências sobre escolhas individuais, competição e autogestão, das quais a gestão algorítmica destaca-se como aliada na tomada de decisões, em cenários em que a otimização dos gastos é latente. Então, se a racionalidade neoliberal entende que deve existir maior focalização, que os sujeitos devem empreender e buscar sua satisfação no mercado, o auxílio algorítmico pode despontar como subsídio necessário a esta dimensão performativa.

Segundo Silveira (2021) estaríamos diante de uma reinvenção da burocracia estatal, denominada por ele de “algocracia”, realizada por meio de algoritmos, de lógica opaca, distante das prerrogativas do direito. Para nós, o que se descortina são os piores sentidos da burocracia, cujas ações eivadas pela “fé” na modernidade produzem respostas mecanizadas despojadas de analise critica, subsumida ao mandato tecnicista que vem ganhando espaço na administração pública, por meio de uma calculabilidade que emprega objetivos ao instrumento (em nossa opinião ocultado das massas) legalizando as piores brutalidades, logo, servindo-se da adequação do direito como forma política que emoldura a reprodução do capital (MASCARO, 2013).

Sobre este aspecto, o estudo de Fernanda Bruno (2021) aponta que a dimensão performativa dos algoritmos gera efeitos, ao produzir recomendações e realidades influenciando as ações:

Enquanto ganho de velocidade é incontestável, o ganho em precisão/eficácia não é tão evidente, e a suposição de maior objetividade/neutralidade é bastante equivocada, como vêm mostrando inúmeras pesquisas e casos sobre a presença de vieses de gênero, raça e classe nos processos algorítmicos de tomada de decisão (Bruno, 2021, p. 156).

Deste modo, o cenário pandêmico do Coronavírus (COVID-19) desponta como laboratório desta tendência acirrando táticas com foco em dinamizar os ganhos com a produtividade e lucratividade funcional ao cenário neoliberal robustecido de conteúdos de nítido caráter fascista, enquanto metodologia política e alternativa ao contexto, circunscrevendo saídas autoritárias, antidemocráticas, violentas, em que o ódio se instaura como norma ideológica, presente tanto no ato discursivo quanto nas violências burocráticas, em geral estimuladas por interesses econômicos.

Assim, as desigualdades já extremadas antes da pandemia demarcam novos patamares11, revelando um aumento expressivo das demandas no campo da política de assistência social – mesmo com um orçamento não correspondente às necessidades – com requisições de seu público clássico (mais empobrecidos), bem como de uma multidão de trabalhadores ainda desconhecidos por esta política, os quais não integravam o mapeamento produzido pelo CadÚnico quer seja, os informais, postos de modo fetichizado como “empreendedores” – termo este associado ao desemprego, a informalidade, ao trabalho “uberizado”, em que se intensifica a exploração da classe trabalhadora – considerado público “extraCad”, outrora não beneficiário desta política social.

Instituído para fazer frente aos efeitos econômicos e sociais da pandemia, o Programa Auxílio Emergencial (AE), apontou uma sobreposição da datificação, ora já realizada pelo CadÚnico, enfrentando ainda, uma série de problemas, seja pelas vulnerabilidades específicas dos beneficiários, com público diferente daquele convencional da política de assistência social (extraCad), bem como por sua organização de interface digital, que indicou demora no cruzamento de dados, realizado sempre com o objetivo de economizar e identificar as fraudes. Apesar de inspirado no PBF, o AE trouxe consigo a novidade do requerimento remoto, cuja seleção automatizada revelou o tratamento de um grande volume de informações pessoais, para tomada de decisões por meio de algoritmos, com vistas à concessão do benefício.

O benefício garantiu nos primeiros três meses o valor de R$600,00 concedido mensalmente a trabalhadores maiores de 18 anos sem vínculo formal ativo, incluindo então, os informais não titulares de outros benefícios previdenciários ou assistenciais, cuja renda familiar mensal per capita fosse até meio salário mínimo. Além deste público, o aspecto generificado das transferências já existentes se manteve, com previsão, ainda, de duas cotas para famílias monoparentais – excepcionalmente, mães adolescentes, ou seja, mulheres com idade entre 12 e 17 anos – substituindo os valores do PBF temporariamente em face do seu valor maior.

A persistência da crise sanitária e econômica induz a prorrogação do programa por duas vezes. Em 2020, contabilizou-se 68,3 milhões de pessoas elegíveis para o Auxílio Emergencial. 19,5 tornaram-se beneficiários direto elegíveis pelo Programa Bolsa Família, 10,5 milhões pelo Cadastro Único, 38,2 milhões de pessoas eram elegíveis pelo aplicativo Auxílio Emergencial e 60 mil elegíveis por decisão judicial. Assim, foram assistidos ao todo, 118.706.565 pessoas, 55,6% da população brasileira12. Apesar da amplitude, foram muitos os problemas em sua implementação, especialmente, no que tange a transparência.

Observa-se que, apesar de utilizar a estrutura pré-existente do PBF e do Cadúnico, o AE centralizou-se no governo federal, concedendo automaticamente benefícios àqueles já cadastrados e dentro do perfil. Contudo, apesar da ideia protetiva, houve enorme espera, ocasionando filas e aglomerações, haja vista a desinformação e negativas em relação aos pedidos, que seguiam sem explicações e transparência. Além disso, não houve evidências de busca ativa daqueles mais vulneráveis, fora das bases de dados do CadÚnico ou sem a documentação requerida para o cadastro (RG e CPF), o que inviabilizou acesso, ora agravado pela exclusão digital, falta de memória nos celulares, bem como dificuldades no domínio no manuseio tecnológico, especialmente o público-alvo idoso, pessoas com deficiência, população em situação de rua e desempregados.

Diante do abismo social ultrajado, o mapeamento da pobreza realizado pelo Cadúnico – que em abril de 2020 totalizava 28.605.430 famílias inscritas, dentre elas, 14.281.761 já recebendo o PBF13 – não inspirou à identificação dos territórios mais vulneráveis, denunciando além do apagamento destes dados, um movimento afeito a sobreposição de ações auxiliada pelo manejo digital, apesar das dificuldades de acesso encontradas por aqueles mais pobres, recolocando a pobreza como maior obstáculo para o ingresso nos serviços.

Essa tendência que não valorizou as potencialidades do CadÚnico, pôs em questão a derradeira datificação para o melhor planejamento. Apesar disso, a convergência de uma gestão tecnológica avança, agora via plataformização para acesso a transferência de renda. Em 2022, com a substituição do PBF pelo Auxílio Brasil (AB) – já que tornou-se imperioso ao governo Bolsonaro em campanha à reeleição, um programa para “chamar de seu”, mesmo sem recurso orçamentário próprio, critérios explícitos em lei, tampouco vinculação a uma política de combate à pobreza – o uso de aplicativos persiste, repetindo a mesma performance datificada via aplicativo para “pré-cadastro”, tal qual, o AE, denotando o caráter autoritário das decisões tomadas sem discussão junto as instituições deliberativas.

Neste meandro, a realidade que vinha robustecendo as demandas no campo da assistência social e desafiando-a por sua estrutura pífia, longe do ideal, é atravessada pelo cadastro plataformizado, indicando uma quebra de interface com equipamentos da política, bem como a probabilidade de dispensa do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que já vinha enfrentando desde 201714 perdas orçamentárias superiores a 458 milhões em cofinanciamento aos municípios. Os Centros Referência da Assistência Social (CRAS), porta de entrada do sistema, antes responsável pelos cadastros, passam então, a realizar a validação destes, ora preenchidos por usuários via aplicativo, detonando um movimento que afasta sujeitos dos serviços socioassistenciais da assistência social e das potencialidades de um acolhimento face to face, que para além de observar a carência financeira, preconiza a acolhida, o fomento a participação, a autonomia e apoio.

A nova transferência de renda lançada para corrigir supostos “erros” do PBF trouxe consigo a habitual falta de transparência do governo Bolsonaro deixando o quadro técnico da política de assistência social sem direção de trabalho, haja vista a ausência de manuais e orientações explícitas, o que promoveu lacunas nos fluxos e atendimento precário, sobretudo se avaliarmos as dificuldades anteriores enfrentadas pelos CRAS´s já sucateados, com recursos humanos insuficientes, agora ainda mais demandados, já que a validação do autocadastramento via aplicativo de celular é direcionada à estes equipamentos produzindo filas humilhantes e grande desorganização.

Dentre os inúmeros pontos de atenção postos pelo Auxilio Brasil destacam-se a ausência do debate coletivo; imprecisões quanto as condicionalidades, logo um tensionamento do aspecto intersetorial; a ausência de fonte de receita regulamentada que dá indícios de descontinuidade, bem como o estímulo a bancarização dos pobres iniciada com o AE – cujo aplicativo cadastral (Caixa Tem) para pagamentos se firmam a partir do contrato entre a Caixa Econômica Federal e o Ministério da Cidadania – ao demandar a abertura de contas em bancos digitais. Essa faceta indica a entrada deste público no circuito financeiro, tal qual aponta estudo do idwall, publicado por Época negócios15, o qual demarcou uma previsão em 2022 de 184 milhões de contas digitas abertas, o que indica a ascensão das fintechs, grande parte delas com maior penetração das classes C, D, E especialmente nas regiões Norte e Nordeste.

Estas facilidades postas pela digitalização rompem barreiras burocráticas dos bancos tradicionais, tendo como característica a rapidez nas operações realizadas por celular e oferta de uma gama de produtos financeiros customizados a impactar populações periféricas muitas vezes estimuladas a trocar o cartão de benefício por um cartão de conta corrente associado a condições ao crédito e possíveis empréstimos. Tal dinâmica se materializa juridicamente pelo decreto 11.170/22, que autorizou a tomada de crédito consignado a pessoas que recebiam o Auxílio Brasil, sem qualquer indicação aos limites de juros, ou seja, reafirmando uma racionalidade subserviente ao capital financeiro, condenando famílias atendidas pela política de assistência social, ora rastreadas a partir dos dados privados disponibilizados em aplicativos para acesso aos serviços, inseridas nas carteiras do sistema financeiro com juros altíssimos, fadadas ao endividamento e a miséria16.

Há neste meandro, uma racionalidade que dinamiza instrumentos de gestão nas distintas políticas sociais, apontando as tecnologias informacionais e comunicacionais enquanto produtos inquestionáveis da roda do progresso, secundarizando a preocupação com humanos, a partir de uma tônica fetichizada que oculta o movimento dos fatos, diluindo particularidades e as envolvendo em uma mística de neutralidade, distante dos fundamentos sociais, tal qual observamos na política de assistência social, que vem adotando conceitos gerenciais servis a maior focalização, aos cortes nos gastos públicos e ao mercado, via “tecnologias da cidadania” (MIGUEL, 2016). Estas operam a regulação de comportamentos, verificação dos fatos, cruzamento de dados sem considerar a privacidade, haja vista a incipiência de uma atuação fiscalizatória ou da transparência quanto às finalidades, que podem não estar restritas a proteção social, sugerindo objetivos mais amplos, os quais fogem da expectativa dos titulares de dados, podendo incluir inclusive a segurança pública, bancos, financeiras, serviços em geral.

O que se perpetua neste sentido é a restrição e anulação de direitos, via mecanismos discriminatórios e enormes arbitrariedades, as quais colocam em xeque o caráter constitucional da política de assistência social que atravessada por uma tecnociência que se intitula progressista, camufla sob o discurso da celeridade, melhoria do acesso e potencialidades ao planejamento, sua conveniência à tornar este campo funcional a ordem estabelecida, inviabilizando perspectivas democráticas e direitos de cidadania.

Destarte, diante de uma lógica, cuja à tecnologia desmonta a resolver os problemas da humanidade, ferramentas invasivas são experimentadas por aqueles mais pobres, titulares do maior número de dados coletados pelo Estado (EUBANKS, 2021). Essa dinâmica em que a automação das decisões tem produzido muito mais punição do que acesso, muito mais modulação, enquanto parte central de um modelo de negócio, do que ações de fato democráticas, a desproporção no monitoramento e vigilância de populações pauperizadas/marginalizadas evidenciam os dados pessoais destas, enquanto moeda de troca à proteção social, revelando que por meio destes, algoritmos constroem decisões pautadas em padrões do passado, indicativas de como e quem deve ter dados coletados, portanto, despontando falsas premissas de um histórico de desigualdades presente no imaginário social elitista.

Conclusão

Foi possível observar que as tentativas de enfrentamento da crise por parte dos setores dominantes lançam mão de uma racionalidade guiada pela lógica empresarial, na qual as novas tecnologias desmontam enquanto instrumentos importantes à organização da vida estatal, direcionadas a atender os pressupostos e exigências do sistema do capital. Isso tem apontado que a modernização anunciada no campo da política de Assistência Social, por meio do uso de aplicativos e sistemas informacionais, nos direciona a elementos do passado, imbuídos de autoritarismos, tradicionais formas de assujeitamento, estratégias mais coercitivas e menos protetivas, sob um verniz técnico ausente de transparência, mas que se avoluma ganhando legitimidade e desviando nossa atenção do projeto que se descortina pouco preocupado com qualquer perspectiva democrática e garantidora de direitos de cidadania.

Assim, essa tendência tecnológica sob o comando dos algoritmos, além de marcar a confiabilidade na máquina em detrimento da mão humana, merece nossa atenção, tendo em vista, o profundo intercambio de cruzamento de dados intensificando o controle e vigilância, que em geral responsabilizam sujeitos por seu “fracasso”, seja pelo não cumprimento de metas no trabalhado, pela ausência domínio no manuseio e/ou acesso tecnológico, os quais irrompem descumprimento de prazos, ausência de cadastramento/recadastramento, indicando uma modernização conservadora, punitivista direcionada em especial àqueles sujeitos mais empobrecidos, público-alvo da assistência social que envolvidos pelo mantra da inovação não encontram nestes dispositivos atendimento das suas necessidades, mas o refino de protocolos de controle, os quais negligenciam aspectos protetivos e democráticos.

Rerferências

ANTUNES, Ricardo. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria 4.0. In: Antunes (org.). Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

BRUNO, Fernanda. Racionalidade algorítimica e laboratório de plataforma. In: GROHMANN, Rafael (org.) Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas. São Paulo: Boitempo, 2021.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

EUBANKS, Virgínia. Automação das desigualdades no setor público. In: GROHMANN, Rafael (ORG.) Os laboratórios do trabalho digital. São Paulo: Boitempo, 2021.

FARIA, Gabriele Gomes de. Tecnologias da informação e comunicação nas políticas sociais: opacidade e ilusão democrática. Revista Katálysis. Florianópolis: v. 25, n.1, p. 137-146. 2022.

FARIA, Gabriele Gomes de. Tecnologias de vigilância na assistência social: o velho sob o manto do novo. Revista Libertas. Juiz de Fora: v. 21, n.1, p. 214-235, jan./jun. 2021.

HARVEY, David. A loucura da Razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo. Boitempo. 2018.

MANDEL, Ernest. O Capitalismo Tardio. São Paulo, Abril Cultural, 1982.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital / Karl Marx; [tradução de Rubens Enderle]. - São Paulo: Boitempo, 2013.

MASCARO, Alysson. Estado e forma política. São Paulo, SP: Boitempo, 2013.

MÉSZÁROS, István. A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. São Paulo. Boitempo, 2015.

MÉSZÁROS, István. O poder da Ideologia. Tradução Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria de transição. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2012.

MÉSZÁROS, István. Para além do Leviatã: Crítica do Estado. São Paulo. Boitempo, 2021.

MIGUEL, Luis Felipe. A democracia na encruzilhada. In: Por que gritamos Golpe? Para entender o impeachment e a crise política do Brasil. São Paulo: Boitempo editorial, 2016.

NEVES, Lúcia Maria Wanderley; SANT'ANNA, Ronaldo. Introdução: Gramsci, o Estado educador e a nova pedagogia da hegemonia. In: NEVES, Lúcia Maria Wanderley. A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.

NETTO, José P. Capitalismo e Reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas. 1981.

PINTO, A. V. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro Contraponto, 2013.

SILVEIRA. Sérgio A. O mercado de dados e o intelecto geral. Capitalismo digital? Revista Margem Esquerda, n. 36 São Paulo. Boitempo, 2021.

ZUBOFF, Shoshana. Big Other: Capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, Fernanda [et al]; [tradução Heloisa Cardoso Mourão [et al.] In:Tecnologias da Vigilância. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

Notas

1 Assistente Social SMS- Prefeitura de Armação dos Búzios e no Posto de Atendimento médico (PAM) Cavalcante. Doutoranda PPGSS-UFRJ. Pesquisadora integrante do núcleo de pesquisa e extensão Locuss-UFRJ. E-mail: fwgf20@gmail.com. ORCID nº 0000-0002-7435-9249.
2 Recente relatório produzido pela OXFAM Brasil lançado em 2022 demostrou que durante a pandemia as mulheres foram muito mais afetadas que os homens, seja pelo maior risco de agressão, em face do isolamento, sobrecarga doméstica, ausência de rede de apoio ou pela faceta do desemprego. A força de trabalho feminina, sobretudo aquela vinculada aos serviços, atividades de maior interação com o público, ora impactadas pelo loockdowns, engrossam a fila do desemprego, do trabalho não remunerado e/ou sob condições domésticas. O estudo destaca que hoje são quatro milhões de mulheres na América Latina e Caribe fora do mercado de trabalho, tendência consubstanciada pela informalidade. Ao lado disso, reitera um maior impacto nas condições de vida de grupos racializados, cujas dificuldades de acesso e ascensão social determinaram os números de morte, hospitalizações desemprego e subemprego. Isso implica dizer que, esta maioria minorizada (apesar de estarem em maior número, não acessam a direitos, serviços e a cidadania) em relação à renda, raça e gênero foram os mais impactados e que mais precisaram de ações imprescindíveis do governo. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/lucrando-com-a-dor/?utm_source=google&utm_medium=cpc&utm_campaign=search_davos2022_grants&utm_content=ads3&gclid=CjwKCAjwi8iXBhBeEiwAKbUofSsElL5s16JVu90ODS8mhPAoS9cuEPhUi8LzU5a_LX8gkR4Aofm4ahoCg44QAvD_BwE. Acesso em: 9/9/22
3 Com inspiração Gramsciana, Neves e Sant´anna (2005) lançam mão deste conceito ao identificar uma série de mecanismos ideológicos, os quais legitimam o fortalecimento desta hegemonia que busca, e com sucesso optem, consentimento e adesão das classes subalternas em torno de ideias e práticas postas através de uma nova relação entre Estado e sociedade, para dar curso a políticas vinculadas aos interesses capitalistas.
4 Como exemplo destas novas tecnologias incorporadas pelo Estado estão: Reconhecimento facial; Sougov; ConecteSus; Cadastro Único; eSUS APS; MeuINSS; Auxílio Emergencial; Auxilio Brasil; MeuCasdastroÚncio, etc., todas estas tecnologias são capazes de empreender um regime de grande fluxo de informações via recursos bastante sofisticados, os quais possibilitarão acesso aos serviços (FARIA, 2022).
5 O Brasil possui o Marco Civil da internet de 2014 e a Lei geral de proteção de Dados pessoais (LGPD), mas precisa avançar no que tange a responsabilização das plataformas de modo a coloca-las sob bases democráticas.
6 A datificação diz respeito à nova tendência de transformação da ação social em dados quantificados com informações pessoais do cidadão, com vistas ao monitoramento e à análise preditiva.
7 O Cadastro Único para acesso à Bolsa família nasce com a exigência de corte de renda a ser pago a famílias em situação de pobreza inicialmente com uma renda até R$140,00 por pessoa. Atualmente essa per capta é de meio salário mínimo (R$ 651,00).
8 Disponível em: https://www.statista.com/statistics/1228433/data-centers-worldwide-by-country/ acesso em: 25/05/202
9 Auxílio Emergencial- Benefício financeiro do Governo Federal de caráter emergencial para enfrentamento à crise causada pela pandêmica do Coronavírus destinado a trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados instituído pela Lei 13.982/2020, cujo objetivo foi minorar os efeitos econômicos e sociais da pandemia da COVID-19.
10 Campanhas que disparam mensagem em massa pelo WhatsApp para números de telefone de beneficiários do programa social Bolsa Família. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/campanha-de-meirelles-enviou-whatsapp-a-beneficiarios-do-bolsa-familia.shtml acesso em: 25/05/23.
11 A pandemia, expôs, alimentou e aumentou as desigualdades econômicas e sociais. Como reflexo hoje, a insegurança alimentar no país atinge 58,7% da população, tendo retornado ao patamar da década de 1990. O país registrou, no trimestre que encerrou em maio, 10,6 milhões de desempregados, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/07/08/marcha-contra-a-fome-a-miseria-e-o-desemprego-sera-realizada-em-porto-alegre-no-sabado-9#:~:text=Foto%3A%20Maiara%20Rauber-,Mais%20da%20metade%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20brasileira%20convive%20com%20inseguran%C3%A7a%20alimentar,Funda%C3%A7%C3%A3o%20Get%C3%BAlio%20Vargas%20(FGV). acesso em 21/12/22
12 Disponível em: https://portaldatransparencia.gov.br/download-de-dados/auxilio-emergencial acesso em 21/05/23
13 Relatório de Informações Sociais (Sagi), Ministério da Cidadania. Acesso em 16/12/2022
14 A Confederação Nacional dos Munícipios (CNM) alerta para a perda orçamentária do SUAS. Disponível em: https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/cnm-aponta-que-reducao-orcamentaria-da-assistencia-social-compromete-futuro-do-suas acesso em: 28/05/2023
15 Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Futuro-do-Dinheiro/noticia/2022/08/brasil-tera-184-milhoes-de-contas-digitais-abertas-ate-o-fim-do-ano.html acesso em: 27/05/2023
16 O ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias aponta que chega a 8 bilhões as dívidas com consignados contratados por beneficiários do Auxilio Brasil que não conseguiram arcar com os juros altíssimos, figurando segundo o ministro, uma verdadeira dinâmica de agiotagem. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/01/24/wellington-dias-consignado-auxilio-brasil.htm#:~:text=Economia-,D%C3%ADvidas%20com%20consignado%20do%20Aux%C3%ADlio%20Brasil,R%24%208%20bilh%C3%B5es%2C%20diz%20ministro acesso em: 25/05/23

Notas de autor

1 Assistente Social SMS- Prefeitura de Armação dos Búzios e no Posto de Atendimento médico (PAM) Cavalcante. Doutoranda PPGSS-UFRJ. Pesquisadora integrante do núcleo de pesquisa e extensão Locuss-UFRJ. E-mail: fwgf20@gmail.com. ORCID nº 0000-0002-7435-9249.
HTML generado a partir de XML-JATS4R por