Resumo: Neste artigo apresentamos reflexões sobre a produção intelectual da área de serviço social sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC), procurando evidenciar quais as interlocuções teóricas que têm sido estabelecidas pelo serviço social para realizar este debate. Constituíram fontes de pesquisa artigos publicados por assistentes sociais, entre 2011 e 2022, em periódicos classificados no sistema Qualis (A1-B2), observando a avaliação quadrienal (2013-2016) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Dados iniciais mostram que a produção da área a respeito do tema tem se voltado para três principais eixos: formação profissional, trabalho profissional e questão social.
Palavras-chave: Serviço Social, Questão Social, Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC).
Abstract: In this article, we present reflections on the intellectual production of the area of social work on Information and Communication Technologies (ICT), seeking to highlight the theoretical interlocutions that have been established by social work to carry out this debate. Research sources were articles published by social workers, between 2011 and 2022, in journals classified in the Qualis system (A1-B2), observing the four-year evaluation (2013-2016) of the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel. Initial data show that the area's production on the subject has focused on three main axes: professional training, professional work and social issues.
Keywords: Social Work, Social question, Information and Communication Technologies (ICT).
Interlocuções do Serviço Social na discussão sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC)
Interlocutions of Social Work in the discussion about the Information and Communication Technologies (ICT)
Recepción: 01 Junio 2023
Aprobación: 01 Agosto 2023
Na obra Contribuição à crítica da economia política, ao analisar a produção em geral, Karl Marx afirma que esta, em todas as épocas, possui determinações comuns. Segundo ele, é preciso se atentar para o fato de que o caráter geral ou elementos comuns precisam ser localizados na história, haja vista que sempre “[...] organizados de uma maneira complexa e divergente em diversas determinações. Alguns desses elementos pertencem a todas as épocas; outros são comuns a algumas delas (MARX, 2008, p. 240). Neste sentido, Marx (2008, p. 240) arremata sua análise afirmando que as
[...] determinações que valem para a produção em geral devem ser precisamente separadas, a fim de que não se perca de vista a diferença essencial por causa da unidade, a qual decorre já do fato de que o sujeito - a humanidade - e o objeto - a natureza - são os mesmos. Nesse esquecimento reside toda a sabedoria dos modernos economistas, que demonstram a eternidade e a harmonia das condições sociais existentes.
A advertência do autor está relacionada à ideia de que para a apreensão do processo de complexificação social é preciso não apenas identificar a gênese das categoriais, mas também suas estruturas e dinâmicas. Sem este cuidado, facilmente somos levados a “[...] extinguir todas as diferenças históricas em leis humanas gerais” (MARX, 2008, p. 242).
Nesta direção, nenhuma análise consequente pode dissociar o serviço social, sua instrumentalidade (GUERRA, 2014) e, mais especificamente, o trabalho do agente profissional, do processo de modificação das relações sociais que decorrem do desenvolvimento de cada vez mais complexos meios de trabalho. Ainda que determinações mais essenciais permaneçam dando-lhes sustentação, os meios de trabalho são historicamente “revolucionados” pela sociabilidade burguesa como forma que essa tem de garantir a sua própria existência. Essa é, contudo, continuamente ruída pela questão social, impactando, portanto, diretamente a profissão.
A questão social, mais propriamente suas múltiplas formas de manifestação, é o objeto sobre o qual incide o trabalho do assistente social. A processualidade histórica, tanto do serviço social quanto do seu objeto de intervenção, é necessariamente determinada pelo desenvolvimento das forças produtivas nas relações sociais de produção capitalista, das quais as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) fazem parte enquanto mediações em constante processo de complexificação, cuja base primária é a relação da humanidade com a natureza, pelo trabalho. Por essa razão, entendemos que o debate sobre as tecnologias não é novidade e, na verdade, sempre esteve presente entre as preocupações e reflexões, teóricas e práticas, no e do serviço social, já que 1) um dos fundamentos da profissão é, ou precisa ser, seu apoio na crítica da economia política; essa oferece um arcabouço teórico profícuo para a análise de seu próprio ser, enquanto serviço social, e do contexto em que ele se insere – sua instrumentalidade (GUERRA, 2014); e 2) além de pensar a sociedade burguesa em sua totalidade e pensar as tecnologias desde esse momento do real, a universalidade, o serviço social também reflete sobre as tecnologias na medida em que é coetânea à profissão a discussão acerca dos métodos/metodologias interventivas, instrumentos e ferramentas (técnicas) das quais lança mão para a realização de seus fundamentos. Em síntese, os históricos debates no interior do serviço social sobre as dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa do trabalho profissional, necessariamente, envolvem a questão da tecnologia, tenham os agentes da profissão consciência disso ou não4.
Contudo, ao que parece, o que assume o caráter de novidade para o serviço social não são as tecnologias em geral, mas as TIC em particular, considerando a natureza das inovações tecnológicas de base cibernética/digital e como tais inovações vêm impactando no trabalho em geral e no trabalho profissional em particular, na formação, no desenho e implementação de políticas sociais e na vida social cotidiana, em suas mais diferentes esferas. Segundo entendemos e, conforme assinalamos, as TIC são a expressão mais bem acabada, até o presente momento da história, da dialética relação estabelecida entre o ser social e a natureza, da qual ambas as formas de existência saem modificadas ininterruptamente e da qual erigem mediações cada vez mais complexas, técnicas, e com elas as reflexões (típicas ao ser social) que as acompanham (PINTO, 2005). Sendo assim, nas palavras de Álvaro Vieira Pinto (2005, p. 55),
[o]s autômatos, os computadores, mesmo os dotados de órgãos que trabalham segundo matrizes de aprendizagem, são igualmente máquinas e se situam na linha de descendência histórica da maquinaria precedente, sem a qual não teriam chegado a existir. Devemos reconhecer, sem dúvida, que o engenho cibernético representa um salto qualitativo nessa linhagem. Mas a determinação do salto não foi dada nem pelo curso da natureza nem pelas exigências das máquinas anteriores, e sim deve-se à capacidade inventiva da inteligência humana, ao descobrir os meios de realizá-lo. O salto qualitativo pertence propriamente ao progresso da racionalidade humana no exercício da função de apreender a lógica dos processos naturais.
Ainda que sejam produção histórica da espécie humana, faz-se importante situar que as TIC estão sob o controle de cada vez mais restrito número de empresas e proprietários privados, que dividem entre si os lucros provenientes da exploração da internet e de suas aplicabilidades (DANTAS et al., 2022). As TIC (autômatos, computadores, engenhos cibernéticos), conforme se desenvolveram, passaram a ser mediações mais complexas das relações sociais de produção de tipo capitalista, sendo por elas incorporadas, mas também nelas incorporando suas lógicas; elas vêm exercendo forte poder disruptivo ou de alteração céleres nas atividades do capital – permitindo-lhe maior fluidez em tempos de sua crise estrutural – e, consequentemente, nas contradições estabelecidas entre essas atividades e as classes nelas exploradas, que produzem a riqueza, mas apenas de parte dela se apropriam.
Os anos de 2022 e 2023 marcam a retomada do ensino presencial nas Instituições de Ensino Superior (IES) após o período de dois anos de crise sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, durante os quais os campi universitários se esvaziaram e atividades pedagógicas e administrativas migraram para o ambiente digital. As TIC também foram incorporadas a inúmeras atividades econômicas em meio à pandemia, no Brasil e no mundo, tendo-se como justificativa a necessidade de manterem-se as atividades econômicas - e, por consequência, os processos de acumulação e centralização de capitais –, a despeito da proliferação de casos e óbitos decorrentes da pandemia por Sars-Cov-2, principal e majoritariamente em pessoas oriundas da classe trabalhadora (ANTUNES, 2020).
Também durante os anos de pandemia se acentuaram as preocupações com os usos das TIC por assistentes sociais nos mais diferentes espaços de trabalho, mas também nos processos de formação. É esta constatação que motiva a presente reflexão. Uma vez constatada a acentuação do debate sobre TIC entre as temáticas discutidas pelo serviço social, passou-se à investigação de parte da produção intelectual a respeito, especificamente aquelas publicadas em periódicos da área. A partir da coleta e da organização dos dados, entretanto, nos deparamos com o fato de que a densidade e a extensão do material exigiriam uma separação da pesquisa em diferentes etapas. Por essa razão, nesse primeiro momento, no presente artigo, tem-se como objetivo realizar uma análise – ainda que parcial e aproximativa – acerca das interlocuções mais proeminentes estabelecidas pelos pesquisadores da área ao se desafiarem a refletir sobre o tema das TIC.
Neste sentido, os manuscritos aqui apresentados são constituídos por uma primeira abordagem na qual são explicitados os procedimentos e instrumentos metodológicos da pesquisa, momento no qual elucidamos ao leitor aspectos relativos à coleta e aos critérios utilizados para definir o recorte do objeto e a própria análise. Na seção seguinte, nos ocupamos especificamente em evidenciar quais são os principais interlocutores do serviço social na abordagem sobre o tema das TIC, expondo sinteticamente quais aspectos ou categorias de análise desenvolvidos por estes interlocutores fundamentam ou têm fundamentado as reflexões dos pesquisadores da área. Advertimos, contudo, que não se trata de uma avaliação sobre a “adequação” ou “apropriação correta” das análises feitas por esses interlocutores, tomadas como contributos pelos pesquisadores para colocar luzes sobre suas preocupações de pesquisa, mas apenas uma indicação dos fundamentos que têm orientado a produção do conhecimento sobre o tema, na área do serviço social. Ao final, apresentamos algumas considerações a título de conclusão, ainda que provisória, tendo em vista que a presente problematização se insere numa pesquisa mais ampla e em desenvolvimento.
Para cumprir o objetivo proposto, foram adotados basicamente três procedimentos de pesquisa: 1) coleta dos artigos em bases de dados e sites de periódicos da área; 2) leitura dos objetivos expressos nos respectivos resumos e respectivas palavras-chave; e 3) organização e classificação das referências bibliográficas listadas nas publicações selecionadas, em cujos conteúdos desenvolvidos nos artigos que nos serviram como fontes, foram identificados os aspectos e categorias de análise recorridos para a abordagem do tema.
Os artigos foram selecionados de acordo com os seguintes critérios de inclusão: 1) abordagem relacionada ao tema de pesquisa; 2) vinculação, por parte de autores (ou coautores) à profissão; e publicados no lapso temporal compreendido entre os anos de 2011 e 2022.
A primeira busca foi realizada por meio dos buscadores na base de dados da Scientific Electronic Library Online (SciELO), utilizando-se operadores booleanos, a partir de uma articulação das categorias previamente definidas5.
A partir dessa coleta, foram recuperados 812 artigos, que foram sistematizados com auxílio da plataforma Mendeley. Em seguida, foi feita uma busca manual nos artigos dos extratos Qualis A1 a B2 em Serviço Social, segundo a Classificação de Periódicos do Quadriênio 2013-2016 da Plataforma Sucupira, daí decorrendo a seleção de outros artigos não identificados por meio do procedimento anterior6. Por fim, adicionou-se à listagem novos artigos conforme novas edições de periódicos foram sendo publicadas ainda no curso desse levantamento, analisando-se sempre a relação com a temática e a observância dos critérios supracitados. Após este percurso de buscas foram selecionados 49 artigos que, na sequência, foram dispostos em uma lista e codificados.
Uma vez organizados os artigos, passou-se à realização de análises. Considerou-se todos os artigos que, respondendo à pergunta de pesquisa – quais têm sido os principais interlocutores do serviço social no debate sobre as TIC? - e ao critério de inclusão, estivessem publicados em periódicos situados entre os estratos A1 e B2, em edições a partir do ano de 2011 até aquelas publicadas em dezembro de 2022, considerando-se o tempo hábil para a análise e a produção dos resultados. A distribuição das publicações ao longo do lapso temporal definido é a apresentada no Gráfico 1.
Gráfico 1 – Artigos publicados por assistentes sociais sobre a temática da tecnologia, em periódicos da área (2011-2022)
Fonte: Elaboração dos autores.
O tema da tecnologia e, mais especificamente, o das TIC, é aderido ao conjunto de reflexões e preocupações existentes no serviço social, considerando um novo conjunto de complexidades, o qual passa a ser mais estudado conforme estabelece com a própria profissão e área do conhecimento novas e mais profundas relações. A proeminência de publicações a partir de 2020 coincide com o início da crise sanitária provocada pela pandemia do Covid-19, o que permite inferir que tal processo histórico foi decisivo para ampliar a relação do serviço social com as TIC, as quais passaram a mediar mais intensamente os processos de trabalho nos quais se inserem os assistentes sociais e a formação em serviço social de modo mais incisivo. Consequentemente, pesquisadores da área também passaram a se desafiar a compreender o fenômeno, considerando seus desdobramentos, inclusive, em esferas mais amplas da vida social, como o impacto sobre as condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora. Foi possível, nesse sentido, indicar três principais eixos de discussão entre os artigos recuperados, conforme indicado no Gráfico 2 que segue:
Gráfico 2 – Principais eixos de discussão identificados na análise dos artigos selecionados:
Fonte: Elaboração dos autores.
No primeiro eixo, foram situados os artigos cujos objetivos eram, em geral, compreender de que modo a formação de assistentes sociais tem sido alterada ou reorganizada com a intensificação do uso das TIC. No segundo eixo foram organizados os artigos cujos objetivos coincidissem com a preocupação com a incidência das TIC nos processos de trabalho nos quais se inserem os profissionais. Por fim, no terceiro eixo foram agrupados artigos voltados à problematização da questão social, dando-se ênfase aos impactos das TIC na realidade brasileira em sentido mais amplo – reorganização do mundo do trabalho e as implicações desse processo nos distintos setores da economia, por exemplo. Merece desde logo registro o fato de que, quanto aos eixos, todos os artigos recuperados que neles se inserem tem no cerne de suas preocupações alguma das dimensões da instrumentalidade do Serviço Social, nos termos definidos por Guerra (2014).
Uma análise mais aprofundada e cuidadosa das 49 produções selecionadas – bem como a elaboração de sínteses, críticas e reflexões – será por nós realizada em momento posterior, considerando os limites objetivos do presente artigo. Nos interessa, aqui, analisar quais as referências bibliográficas vêm sendo mais utilizadas por assistentes sociais para produzir suas próprias reflexões acerca da temática.
Concluída a classificação dos artigos fontes de nossa investigação a partir dos referidos eixos, passou-se ao processo de análise das referências utilizadas, visando identificar as interlocuções mais frequentes, endógenas e exógenas ao serviço social, que a profissão, por meio de seus pesquisadores, vem estabelecendo para refletir sobre a tecnologia e sobre as TIC.
Ao todo, foram feitas menções a mais de 900 referências distintas, entre livros, artigos científicos, ensaios, leis, decretos, notas políticas por entidades representativas de distintas áreas do conhecimento como serviço social, medicina, enfermagem, psicologia, etc. Para a elaboração desse artigo, levando em conta as 49 produções bibliográficas que nos serviram de amostra, optou-se em considerar para a análise, apenas as referências com cinco ou mais menções, no conjunto da amostra. Com este critério, uma determinada referência (obra) precisou constar em cerca de 10% do total de artigos encontrados nas bases de dados e periódicos da área para ser considerada na análise. No quadro apresentado a seguir (Figura 1), tem-se a identificação das principais referências que vem sendo usadas pelos pesquisadores da área de serviço social para as abordagens sobre a temática.
Faz-se necessário situar a ausência de referências do próprio serviço social – cenário que seria modificado caso considerássemos quatro menções em vez de cinco. Portanto, ainda que referências bibliográficas do serviço social tenham aparecido, consistiu resultado significativo que, a partir dos critérios anteriormente descritos, todas as referências com cinco ou mais menções sejam, em alguma medida, “exógenas”7 ao serviço social.
Figura 1 – Referências bibliográficas citadas mais de cinco vezes, considerando a totalidade dos artigos selecionados:
Fonte: Elaboração dos autores.
Na seção que segue, o ponto de partida são as referências usadas pelos autores dos artigos identificados a partir dos critérios de seleção, com vistas a problematizar os seus objetos.
Serviço social e tecnologias: apontamentos sobre as interlocuções teóricas identificadas em produções da área
Antes de abordarmos a interlocução indicada, queremos, com auxílio de Álvaro Vieira Pinto (2005), demarcar nossa perspectiva de análise em relação às TIC. Alhures já as caracterizamos como um índice contemporâneo de como o modo de produção capitalista vem avançando no desenvolvimento de suas forças produtivas e, como neste mesmo processo, emergem e são engendradas contradições sociais. No corolário dessa interpretação, nos filiamos à concepção de que
[...] a técnica, em si mesma eticamente neutra, jamais poderia converter-se em devoradora [do ser social], em aniquiladora da riqueza espiritual. Se tal acontece, não se deve acusá-la, mas explicar essa observação pelo uso social dela. O esmagamento da personalidade, motivo de tanta preocupação para o pensamento simplório, deve ser imputado aos grupos que se aproveitam dos instrumentos da produção para vilipendiar o valor autenticamente humano, chamado espiritual, da imensa maioria [do ser social] (PINTO, 2005, p. 167).
Em outras palavras, como já afirmado anteriormente, as TIC são um produto histórico do processo de humanização da espécie humana (PINTO, 2005). No que concerne a relação entre o ser social e a natureza, mediada pelo trabalho, na sua processualidade, aquele ser desenvolveu historicamente o poder de confecção de meios cada vez mais complexos, estendendo quantitativa e qualitativamente o controle das propriedades da natureza para a objetivação de cada vez mais extensas e intensas finalidades previamente definidas (LUKÁCS, 2012; MARX, 2013). Contudo, uma vez que seus usos contemporâneos se dão em uma organização societária de tipo capitalista, suas lógicas incidirão neste ordenamento, mas elas serão sobretudo, em última instância, por ele determinadas – o que não quer dizer que não possam contribuir para superá-lo.
No contexto de crise sanitária provocada pela Covid-19, por exemplo, adensou-se a crise econômica e as contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção e reprodução da vida humana, e o uso das TIC não serviu para garantir a segurança da classe trabalhadora e o atendimento de suas necessidades básicas em meio à demanda por isolamento social. Ao contrário, conforme interpretou Antunes (2020. P. 29), as saídas para a crise sanitária davam materialidade a um “verdadeiro obituário para a classe trabalhadora” ao mesmo tempo que comprovavam que o avanço tecnológico “[...]serve aos desígnios inconfessáveis da autocracia do capital (ANTUNES, 2020a, p. 29, grifo do autor).
Ainda que consideremos as TIC como eticamente neutras (PINTO, 2005), as contribuições de Antunes (2020a) reforçam que os seus usos sociais é que devem ser objeto da crítica da economia política. Se, nos anos de pandemia, os usos delas nas mais diversas modalidades de trabalho se deram no sentido de garantir a reprodutibilidade do capital em detrimento das condições de existência da classe trabalhadora, não é porque as TIC ajam, per se, no sentido da produção e reprodução da sociabilidade do capital, mas porque foram programadas para essa finalidade pelas “corporações globais”, que o próprio Antunes (2020a) denuncia.
Apesar da ideia de atribuição de subjetividade às TIC, subjacente ao argumento de que elas sejam simulacros da inteligência humana, artificiais – ou que signifiquem, por si mesmas, um processo de intelectualização do trabalho –, essas tecnologias não são outra coisa senão resultado de um processo teleológico historicamente determinado que, enquanto tal, tem origem na práxis humana e não nas mediações que ela mesma cria para resolver os problemas com os quais se defronta. Assim, persiste sua essência como o continuum controle das propriedades da natureza e a colocação de suas legalidades objetivas no sentido previamente idealizado pela intelectualidade autenticamente humana (PINTO, 2005).
Se as TIC, como afirma Álvaro Vieira Pinto (2005), pertencem à linha de descendência das maquinarias que lhes antecederam, isso significa que as primeiras guardam, com as últimas, relações de rupturas e continuidades. Conforme indicam as referências utilizadas pelos artigos selecionados, os diagnósticos com relação a esse processo antecedem a pandemia e, considerando-o em seu desenvolvimento histórico, suas respectivas análises remontam a contribuições teóricas que datam da década de 1990 em âmbito global (LOJKINE, 2002; HARVEY, 1999).
Uma das contribuições relativamente recentes, no campo da sociologia do trabalho, no Brasil, erige da produção de Ricardo Antunes (2018). Em O Privilégio da Servidão (amplamente referenciado entre os artigos recuperados), o autor desenvolve a ideia de que “há uma nova morfologia da classe trabalhadora”, em que se “sobressai o papel crescente do novo proletariado de serviços da era digital” (ANTUNES, 2018, p. 32, grifo do autor).
A hipótese central desenvolvida na obra, segundo Antunes (2018, p. 44), é a de que, mesmo no âmbito do capital comercial, o trabalho imaterial cria valor, tornando-se por isso produtivo e, consequentemente, produtor de mais-valor. Contudo, o autor reconhece que a produção de mais-valor por meio do trabalho imaterial não constitui um momento predominante do modo de produção capitalista em escala global, mesmo no final da segunda década do século XXI:
Visto que o setor de serviços está cada vez mais totalizado e controlado pela lógica do capital e de seu processo de mercadorização ou comoditização, ele também se torna gradualmente mais partícipe das cadeias produtivas de valor, legando cada vez mais ao passado sua forma improdutiva para se converter em parte integrante do processo de geração (produtiva) de valor. As crescentes intersecções entre a indústria e a agricultura e os serviços, como na agroindústria, na indústria de serviços e nos serviços industriais, são emblemáticas do que estamos indicando. A introdução do trabalho on-line, que cresce intensamente desde os primórdios da reestruturação produtiva na década de 1970, com o seu instrumental tecnológico-informacional-digital, fez deslanchar essa processualidade, que se tornou incessante, convertendo a reestruturação produtiva em um processo permanente, da qual a denominada indústria 4.0 é a mais nova etapa (ANTUNES, 2018, p. 47-48, grifo do autor).
A imbricação dos setores da economia acima descritos, bem como a participação das formas materiais e imateriais de produção do valor, ganha nova complexidade com a internalização das TIC, as quais passam a ser inseridas em cada vez mais ramos da economia de diferentes modos, mediando desde a limpeza no ambiente de trabalho até o treinamento de novos funcionários, passando também pela manutenção das máquinas e pelo desenvolvimento do marketing das empresas e de suas mercadorias. Tais discussões, no âmbito do serviço social, apontam para o domínio e expansão de uma racionalidade técnica pautada em conceitos alinhados aos interesses de elevação da produtividade do trabalho (produtivo ou improdutivo), como o da eficiência e da eficácia que, ao mesmo tempo, exige dos assistentes sociais novas competências e atribuições controladas por sistemas ou processos informacionais.
De acordo com Antunes (2018), o arsenal tecnológico que adentra as unidades produtivas e aparece como substituto do trabalho humano em absoluto, mesmo no âmbito do capital comercial, persiste dependendo dele e estabelece relações com a produção material do valor, do qual não pode prescindir o modo de produção capitalista. Esta produção material do valor ocorre em toda a complexa cadeia produtora da qual a internet e suas aplicabilidades dependem para se manterem conectadas (HUWS, 2014 apud ANTUNES, 2018). Dito de outro modo, sem toda a produção de energia, cabos, computadores e outro produtos que exigem extração de matéria-prima da natureza “[...] a internet não poderia ser sequer conectada” (ANTUNES, 2018, p. 50).
A interconexão entre terminais de computação de dados, princípio básico da internet e das TIC em geral, passou a fazer parte do capital industrial, dinamizando o fluxo das matérias-primas entre as partes do contemporâneo sistema de maquinaria até a consecução das mercadorias; também sistematizou a informação nos escritórios dos complexos fabris, auxiliando na gestão de pessoas (LOJKINE, 2002). No que tange ao serviço social, esse processo demarca as requisições no sentido de contribuir para a mediação do desempenho de equipes de trabalho, auxiliando, assim, os níveis gerenciais das instituições empregadoras ou corroborando com o controle do uso de recursos aportados nas diferentes políticas sociais públicas, cada vez mais submetidas aos ajustes fiscais.
Avançando em nossa abordagem, podemos afirmar que essas tecnologias densificaram a reestruturação produtiva, em curso desde a década de 1970, repercutindo tanto na estrutura produtiva em geral, como também nos espaços superestruturais, como o do Estado. Do mesmo modo que na manufatura era possível encontrar, de acordo com a época analisada, distintas disposições de força de trabalho e ferramentas conjugadas, também com o desenvolvimento da indústria a cooperação e a disposição das máquinas foram índices do estágio de desenvolvimento do sistema de maquinaria, processo caracterizado como “cooperação simples” por Marx (2013).
No contemporâneo sistema de maquinaria é, contudo, possível observar operando as TIC conjugadas às ferramentas mecânicas anteriores, de modo que o comando operacional dessas últimas passou a ser programado pelos trabalhadores por meio de interfaces digitais (ANTUNES, 2020b). No que tange o capital comercial, as TIC vêm sendo incorporadas não apenas como mediadoras do ato de realização do mais-valor (M’-D’), a partir do desenvolvimento da internet comercial de uso pessoal, mas também no âmbito do que Antunes (2018) caracteriza como os serviços industriais8 e a organização em escala do processo de redução do tempo de curso das mercadorias (MARX, 2014).
Quanto ao dialético desenvolvimento das forças produtivas e as contradições entre esse processo e as relações sociais de produção e suas expressões contraditórias em nossa época, cabe destacar, com auxílio de Antunes (2018), a coexistência de formas de empregabilidade da força de trabalho para além do padrão de contratação por meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com o qual passam a concorrer a terceirização, a pejotização, o trabalho intermitente (ANTUNES, 2018). Resgatando Guerra (2014), reforça-se que o modo de produção capitalista produz as rupturas necessárias com particularidades que lhe são intrínsecas, mas em alguma medida excrescentes, para que permaneçam aquelas legalidades objetivas que o estruturam e garantem sua produção e reprodução, como imperativos categóricos. Nesse sentido, as múltiplas formas contratuais da força de trabalho que afetam também intensamente os profissionais de serviço social, constituem índices jurídico-políticos da sociabilidade capitalista contemporânea. Nesta, a forma predominante de organização da produção da vida humana no decorrer da maior parte século XX, convencionada como “taylorismo-fordismo”, passa a coexistir com novos métodos de organização da produção e reprodução humana, os quais decorrem da “reestruturação produtiva” e têm nas TIC uma força disruptiva, principalmente a partir da década de 1990, a que se convencionou dar outros nomes, como “acumulação flexível”, “toyotismo”, e da qual fazem parte fenômenos mais recentes, como a “uberização” (ANTUNES, 2018; 2020b; SLEE, 2017).
Nessa esteira, a análise da alegação, muito propalada, de que tenhamos realizado uma passagem à pós-modernidade, à “sociedade pós-industrial”, torna-se relevante uma vez que lhe subjaz a afirmação da perda da centralidade do trabalho. Em outras palavras, a sociedade pós-moderna é aquela em que o trabalho deixou de ser a categoria fundante do ser social e, portanto, a condição última para agregação das relações estabelecidas pelo gênero humano consigo mesmo e com as formas de existência que lhe antecedem – o ser natural, inorgânico e orgânico. Não é coincidência que a alegada transição à pós-modernidade, entre as décadas de 1960 e 1970, seja coetânea à assunção, pelo capital financeiro9, da condição de instância determinante da vida econômica e política no plano mundial nessa mesma época (ANTUNES, 2016; HARVEY, 1999).
Um dos argumentos fundamentais para justificar a superação da sociedade fundada no trabalho é a de que os trabalhadores estariam sendo substituídos em absoluto pela capacidade do moderno sistema de maquinaria de articular, por conta própria, os comandos necessários ao processo produtivo das mercadorias, processo e estrutura a que se convencionou chamar de “automação” (LOJKINE, 2002). A apropriação crítica deste debate pelos assistentes sociais é indispensável, haja vista que cotidianamente, têm vivenciado processos de subsunção real em face das inovações tecnológicas no desenvolvimento do trabalho, implicando uma transferência de capacidades, saberes e práticas dos sujeitos profissionais para ferramentas tecnológicas que, ao serem alimentadas com dados e informações, traduzem decisões em conformidade com as diretrizes previamente definidas no âmbito das instituições, mas cujas orientações observam a racionalidade ou a lógica do capital.
Ao desempenhar as funções anteriormente executadas pela força de trabalho humana, a máquina apresenta suas diferenças com relação a essa última porque conjuga em si distintas ferramentas e porque extrapola seus limites orgânicos. Num primeiro momento, segundo Marx (2013), a Revolução Industrial engendra a maquinaria apenas como substituidora do trabalho humano com relação à máquina-ferramenta, mantendo-a na função de força motriz. Contudo, “[a] criação das máquinas-ferramentas é que tornou necessária a máquina a vapor [força motriz] revolucionada”, mais potente e consistente do que o trabalho humano (MARX, 2013, p. 449, grifo nosso). Faz-se importante mais uma vez reiterar que é uma condição sine qua non do modo de produção capitalista o contínuo “revolucionamento” das forças produtivas, uma vez que as leis gerais de acumulação “forçam os capitalistas a procurar mudanças tecnológicas e organizacionais que melhorem sua lucratividade com relação à média social, levando todos os capitalistas a saltos de inovação dos processos de produção” (HARVEY, 1999, p. 102). Esses saltos são coetâneos às crises, as quais constituem o modo de produção capitalista e não podem, como indica Mandel (1985), ser explicadas como se dependessem de um único fator. Dada sua importância para pensar a instrumentalidade do serviço social na dinâmica da acumulação capitalista, o tema da crise do capital tem sido recorrente na produção da área.
As crises se explicam, indica Mandel (1985), por um grande conjunto de determinações, como a composição orgânica de capital nos setores econômicos específicos, bem como na economia em geral; a relação entre as partes do capital constante (quanto é gasto em maquinaria e quanto é gasto em matéria-prima, p. ex.) nos setores específicos e na economia em geral; o tempo de rotação do capital (quanto tempo D precisa para se tornar D’, isto é, para que a mercadoria seja produzida e se realize na circulação); o desenvolvimento das taxas de mais-valor (proporção entre o valor transformado em salários e o valor que retorna ao controle das classes capitalistas, tanto no sentido de seu consumo produtivo quanto improdutivo); bem como as taxas de acumulação (quanto de D’ é retornado produtivamente e quanto não). Por fim, explica Mandel (1985), as flutuações nas taxas de lucro são índices históricos da luta de classes e, portanto, da resistência das classes trabalhadoras ao ímpeto de ampliação da exploração por parte das classes capitalistas. (MANDEL, 1985).
Se antes as forças do capital, em suas crises cíclicas, encontravam meios para a retomada das condições de acumulação, marcadamente após a década de 1970 o modo de produção capitalista passa a conviver com sua crise estrutural, em que seus agentes lançam mão de toda capacidade destrutiva que constitui o “sistema sociometabólico do capital” (MÉSZÁROS, 2011) para manterem as condições de sua produção e reprodução, como a destruição ecológica sem precedentes, decorrente da “taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias” (conhecida como a obsolescência programada), o aprofundamento da destruição das condições de produção e reprodução da força de trabalho, bem como a subordinação cada vez mais extensa e intensa dos setores produtivos de capital ao “aventureirismo financeiro”, com ampla complacência do aparelho estatal dos mais distintos Estados nacionais, como demonstrou a crise de 2008 iniciada a partir do mercado imobiliário estadunidense (MÉSZÁROS, 2011). A crise do capital tem como síntese ou efeito deletério a precarização das condições de vida e de trabalho da classe trabalhadora e por isso, constitui categoria analítica de primeira grandeza para que os assistentes sociais orientem seu trabalho à luz de fecundas problematizações da questão social e de suas renovadas formas de manifestação, aspecto comumente identificado nas produções selecionadas.
Anteriormente, com auxílio de Antunes (2018), tratou-se da imbricação dos setores da economia e do papel das TIC na articulação entre eles. Afirmou-se também, com auxílio de Vieira Pinto (2005), que o uso dessas tecnologias pelas classes capitalistas não serviu e nem serve, de modo algum, para que aliviem as condições de existência das classes trabalhadoras. Do contrário, a assim chamada “plataformização do capitalismo” acaba expulsando-as de posições produtivas em cadeias de valor menos instáveis, porque protegidas por alguma legislação trabalhista, para o enquadramento em condições mais precárias, porque terceirizadas, “uberizadas”, intermitentes. Essas condições a que estão subjugadas as massas produtoras da riqueza social, entretanto, não estão isoladas no contexto mais geral da produção e reprodução ampliada do “sociometabolismo do capital”, mas constituem um quadro mais geral da crise capitalista que perdura porque é estrutural, isto é, deixou de ser uma legalidade particular, temporal, desse modo de produção (MÉSZÁROS, 2011). Eis, pois, a importância da apropriação crítica do serviço social sobre os processos contemporâneos de uso e controle da força de trabalho e, neste âmbito, os avanços e inovações tecnológicas, haja vista que na condição de trabalhador assalariado, o assistente social está duplamente implicado: a) pela complexificação do seu trabalho em face das requisições e demandas profissionais que se apresentam neste contexto; b) pelos impactos dessas inovações nas suas próprias condições de trabalho.
Nas linhas iniciais da reflexão aqui apresentada, destacamos nosso acordo com a compreensão de Vieira Pinto (2005) de que as TIC constituem um índice contemporâneo do desenvolvimento das capacidades humanas de apreender as propriedades objetivas da natureza para orientá-las no sentido de resolver seus próprios problemas existenciais, isto é, da complexificação do processo de trabalho. Contudo, pelas exigências históricas e estruturais do modo de produção capitalista, as TIC transformam-se em instrumento de aprofundamento da subjugação das classes produtoras da riqueza social, conferindo novas complexidades às relações sociais, ainda que essas últimas se façam como uma dança diante do abismo – a que alguns chamam “barbárie”. O trabalho é, portanto, o fio condutor das referências proeminentes solicitadas pelas/os assistentes sociais que vislumbram compreender e explicar o fenômeno e suas implicações para a profissão, seu trabalho, sua formação – enfim, sua instrumentalidade.
Como não poderia ser diferente, a aparição significativa dos debates marxianos, nos artigos que compuseram a amostra da presente abordagem, significa que os assistentes sociais, ao discutirem as TIC, recorrem esta perspectiva para subsidiarem seus posicionamentos em torno da temática e das suas implicações para e no serviço social. A obra de Marx é fundamental para que se compreenda a gênese, o desenvolvimento e a atualidade do capitalismo, mas precisa ser enriquecida com todo arcabouço teórico da tradição marxista para que seja possível compreender a atualidade da crise em que se encontra esse modo de produção, bem como as condições de sua superação. As interlocuções mais proeminentes realizadas pelos autores dos artigos que nos serviram de amostra, considerando-se os critérios anunciados, demonstram isso tanto pelo conteúdo apresentado nas próprias produções, como também e, sobretudo, pelo conteúdo desenvolvido nas obras dos autores referenciados. Tem-se assim, até o momento, indicativos de que o debate das TIC, no âmbito do serviço social, tem se localizado no campo da teoria social crítica e afinado com o projeto ético-político da profissão, o que não significa isento de insuficiências e equívocos, questões que merecem aprofundamento.