Resumo: O presente artigo analisa as alterações do trabalho decorrentes da intensificação do uso das TICs, a partir da incorporação do trabalho remoto e do teletrabalho como modalidades de atuação do Serviço Social na atenção multiprofissional à saúde do idoso em uma policlínica universitária durante a pandemia. Apresenta resultados de investigação autorizada pelo parecer nº 4.398.897/2020 do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), oriundos de pesquisa bibliográfica, documental e observação participante da pesquisadora responsável, analisados pelo método materialista histórico-dialético de investigação e exposição.
Palavras-chave: Teletrabalho, Trabalho remoto, Pandemia, Serviço social, Saúde do idoso.
Abstract: This article analyzes the changes in work resulting from the intensification of the use of ICT, based on the incorporation of remote work and telework as modali- ties of action by Social Work in multidisciplinar care for the health of the elderly in a university polyclinic during the pandemic. It presents research results autho- rized by opinion nº 4.398.897/2020 of the Research Ethics Committee of the State University of Rio de Janeiro (UERJ), derived from bibliographical and documentary research and participant observation by the researcher in charge, analyzed by the historical-dialectical materialist method of investigation and exposition.
Keywords: Telework, Remote work, Pandemic, Social service, Health of the elderly.
Teletrabalho, Trabalho Remoto e TICs: “heranças pandêmicas” em um serviço de atenção multiprofissional à saúde do idoso
Telework, Remote Work and ICT: “pandemic legacies” in a multidisciplinary health care service for the elderly
Recepción: 01 Junio 2023
Aprobación: 01 Agosto 2023
A Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ES- PII) em decorrência da COVID-19, declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020 e que se estendeu até 05 de maio de 2023, trouxe mudanças significativas na assistência à saúde, em todos os níveis de complexidade e de gestão. Ao longo desses três anos foram implementadas diversas ações para seu enfrenta- mento, tanto para prevenção do risco de contágio pela doença quanto para atenção à saúde das pessoas acometidas. Como, por exemplo, a incorporação do teletrabalho e do trabalho remoto que, com a mediação das tecnologias de informação e comunicação (TICs), passaram a fazer parte do cotidiano dos trabalhadores, inclusive dos profissionais de saúde, como assistentes sociais. Em que pesem as vantagens e desvantagens apontadas por ANTUNES (2020).
Todo esse processo exigiu aos assistentes sociais a reorganiza- ção da sua inserção no processo de trabalho coletivo, redimensio- nando as ações profissionais prioritárias para resposta às necessi- dades sociais e demandas neste momento de crise do capitalismo pandêmico, refletindo um esforço de reflexão-ação em sintonia com as orientações e normatizações das entidades representativas da categoria. Tal situação não foi diferente no Serviço de Geriatria Professor Mario Antônio Sayeg, da Policlínica Universitária Piquet Carneiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPC/UERJ). Assim, o presente artigo analisa as alterações do trabalho decor- rentes da intensificação do uso das TICs, a partir da incorporação do trabalho remoto e do teletrabalho como modalidades de atua- ção do Serviço Social na atenção multiprofissional à saúde do idoso em uma policlínica universitária durante a pandemia.
Apresenta resultados de investigação autorizada pelo parecer nº 4.398.897/2020 do Comitê de Ética em Pesquisa da UERJ, oriundos de pesquisa bibliográfica sobre a temática em produções recentes no campo das Ciências Sociais e, em especial, do Serviço Social; de
pesquisa documental, sobretudo de legislações nos níveis federal, estadual e municipal, normativas das profissões da área da saúde, dentre as quais o Serviço Social e de documentos da equipe do Serviço Social e da equipe multidisciplinar do referido serviço de saúde; e de observação participante da pesquisadora responsável, que atuava na condição de assistente social residente, sob a pre- ceptoria e orientação das demais autoras; analisados pelo método materialista histórico-dialético de investigação e exposição, pelo qual buscou-se apreender o movimento do real enquanto síntese de múltiplas e contraditórias determinações.
Para tanto, o artigo está organizado em três seções: 1) o impulso ao teletrabalho, ao trabalho remoto e as TICs dado pelo “capitalismo pandêmico”, nos termos de Antunes (2020); 2) a segunda discute os impactos desse fenômeno no trabalho de assistentes sociais na saúde; e 3) a terceira aborda as mudanças no trabalho coletivo da equipe multiprofissional Serviço de Geriatria Professor Mario Antônio Sayeg da PPC/UERJ, com ênfase no trabalho das assistentes sociais. Por últi- mo, são apresentadas algumas considerações finais, que buscam re- fletir sobre o contraditório legado desse processo para os dias atuais.
As Normas Internacionais do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT) tratam sobre o “trabalho em domicílio”4, cujo con-teúdo não deve ser confundido com o “teletrabalho”, sem regulamentação internacional (OIT, 2020). Ainda que o Brasil não seja signatário da convenção que trata deste assunto, passou a prever o trabalho realizado no domicílio e à distância na Consolidação de Leis Trabalhistas (CLT), através da Lei nº 12.551/2011.
Anos mais tarde, promoveu uma contrarreforma trabalhista, atra- vés da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, que instituiu uma série de desmontes no que tange aos direitos trabalhistas adquiridos em anos de luta e resistência pela classe trabalhadora. De acordo com a
referida lei, foi permitido que acordos coletivos entre empregados e empregadores se sobrepusessem ao que está previsto na legislação, quando dispuser sobre: jornada de trabalho, banco de horas anual, teletrabalho, regime de sobreaviso, trabalho intermitente e remune- ração por produtividade, entre outros.
De acordo com Neto (2006), compreende-se que a flexibilização se estende para além das múltiplas tarefas, atingindo também a flexibilização dos contratos de trabalho, a forma como são remunerados e alocados os trabalhadores, sobretudo a partir do uso das TICs. Assim, mais recentemente, para satisfazer às exigências do “capitalismo pandêmico” (ANTUNES, 2020), foi acrescenta- do ao texto o trabalho remoto, a partir de 2022, através da Lei nº 14.442/2022, pela qual:
Art. 75-B. Considera-se teletrabalho ou trabalho remoto a pres- tação de serviços fora das dependências do empregador, de maneira preponderante ou não, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação, que, por sua natureza, não configure trabalho externo. (BRASIL, 2022).
No campo da saúde, uma das primeiras categorias profissionais a prever o teletrabalho foram os médicos, através da telemedicina5, cujo uso no país foi recentemente autorizado durante a pandemia pelo governo federal6. Mais recentemente, também em razão da pandemia de COVID-19, outras áreas criaram regulamentações, através de seus conselhos federais, como foi o caso da Enfermagem, Fisioterapia e Te- rapia Ocupacional, Nutrição, Psicologia (BRANCO, 2021)7.
Como destacado pelo CFESS (2020), o teletrabalho no Serviço So- cial era uma tendência que se delineava em empresas do setor pri- vado e em alguns espaços sociocupacionais do setor público. Mas, em função da pandemia, transformou-se subitamente em realidade para um contingente significativo de trabalhadores, muito embora não tenha significado a garantia de direitos e condições adequadas para o desenvolvimento de seu trabalho.
No serviço público, a regulamentação do teletrabalho e do traba- lho remoto tem sido conduzida por alguns governos e instituições sob a ótica da redução dos gastos públicos, a exemplo da experiên- cia do governo federal, cuja regulamentação foi inicialmente assumi- da como uma contingência da pandemia8 e, posteriormente institu- ída como um programa de gestão9, tendo em vista a economia de 1 bilhão de reais proporcionada por essa modalidade de trabalho entre os meses de abril e agosto de 202010. Contudo, revela o objetivo de diminuição de deveres e responsabilidades do Governo, mediante sua transferência das condições e os custos do trabalho aos traba- lhadores e a adoção de uma lógica essencialmente produtivista me- diante cumprimento de metas quantitativas.
Desse modo, nota-se que a exploração dos trabalhadores foi aprofundada pela pandemia de COVID-19 com o apoio de contrarreformas trabalhistas e políticas neoliberais. Segundo Antunes (2020), trata-se de um “capitalismo pandêmico”, no qual a expansão do capital e sua predatória relação com a natureza tende a provocar desequilíbrios e desastres naturais, incluindo as epidemias. Ou seja, um modo capita- lista de produção de doenças, como argumenta Wallace (2020).
Nesse contexto, o uso das TICs foi imposto aos trabalhadores, sem transição, preparação ou consulta prévia, imersos em novas moda- lidades de trabalho “sem” hora para finalizar ou começar e, literal- mente, sem separação entre o espaço-tempo público (de trabalho) e espaço-tempo privado (da vida pessoal), em um processo de in- tensificação do trabalho sem precedentes. Tal situação foi ainda mais dramática para as mulheres, cuja exploração historicamente se apoia na conciliação de duplas ou triplas jornadas de trabalho que incluem o trabalho doméstico não remunerado. A esse respeito, há que se considerar o papel desempenhado pelos aplicativos em dispositivos móveis, como celulares e tabletes que, uteis tanto para “assuntos de trabalho” como para “assuntos privados”, permitiram a realização do trabalho a qualquer hora e em qualquer lugar.
Além disso, grande parte dos trabalhadores passou a arcar in- tegralmente com as condições e os custos necessários à realiza- ção do teletrabalho e trabalho remoto, mediante uso de recursos próprios ou da aquisição de produtos e serviços, tais como equipamentos eletrônicos (computador, impressora, tablete e celular), mobiliário (mesas e cadeiras ergonômicas) e serviços (energia elétrica e internet), entre outros.
As transformações que o mundo do trabalho vinha experi- mentando ao longo dos anos foram intensificadas no contexto da pandemia de COVID-19, com impactos diretos para a classe tra- balhadora, dentre as quais assistentes sociais, que “vivemos as difi- culdades, temores e esperanças como os demais” (BOTÃO; NUNES, 2020, p. 254). Diversos foram os serviços considerados essenciais que contaram com assistentes sociais no seu quadro de trabalha- dores, nos quais foram impostas novas modalidades de trabalho não exercidas até o momento pela grande maioria da categoria, como o teletrabalho e o trabalho remoto.
As tecnologias de informação e comunicação (TICs) são largamen- te empregadas por assistentes sociais e devem ser reconhecidas en- quanto possíveis instrumentos/ferramentas de trabalho para o alcance dos objetivos definidos em uma ação profissional do plano de trabalho e/ou projeto de intervenção do assistente social (CFESS, 2020a). Con- tudo, a crescente adoção do teletrabalho e do trabalho remoto pelos assistentes sociais tem suscitado a discussão sobre o tema, conside- rando os desafios técnicos, éticos e políticos que tal modalidade de trabalho coloca no cotidiano de atuação profissional11.
Ao longo desses três anos de crise sanitária, foram implementadas diversas ações para prevenção do risco de contágio pela doença e para atenção à saúde das pessoas acometidas pela COVID-19. Rigoro- sas medidas de biossegurança e vigilância em saúde passaram a fazer
parte do dia a dia dos profissionais de diferentes campos disciplinares, considerando que as unidades de saúde são locais de maior exposição à carga viral e, consequentemente, com maior risco de contaminação. Medidas que exigiram readequação dos espaços de circulação e de atendimento para garantia de distanciamento social, adoção de novas práticas de higienização, paramentação com equipamentos de prote- ção individual dos trabalhadores, afastamento dos trabalhadores do grupo de risco com suspeição ou confirmação de infecção por Sars-
-Cov-2 etc. E, em consequência, inauguraram novas rotinas e proto- colos de atendimento à população usuária dos serviços de saúde bem diferentes daqueles até então vigentes.
As unidades básicas, de pronto atendimento e os hospitais gerais foram as mais diretamente impactadas pela demanda de atendimento às pessoas com COVID-19, tendo em vista o aumento do número de casos e a gravidade da doença e do cuidado exigido. Por outro lado, as unidades especializadas foram impactadas pela redução e, em alguns períodos, pela suspensão da capacidade de atendimento ambulatorial e hospitalar - consultas, exames e procedimentos eletivos, interna- ções em leitos de enfermaria e UTI -, a fim de evitar a sobrecarga do sistema único de saúde em seu conjunto.
Além disso, mudanças nos atendimentos de emergência e internação, com a abertura de leitos exclusivos para pessoas com COVID-19, demandaram a reorganização de fluxos e protocolos para garantia do direito à informação em saúde, como também à visita e acompanhamento dos usuários hospitalizados. Invariavelmente, esse processo foi marcado por tensionamentos, alguns antigos, como a requisição dirigida aos assistentes sociais para comunicação sobre situação de saúde e óbito12, e outros novos, como as questões bioéticas presentes na autorização/suspensão de visitas e acompa- nhantes nas consultas e internações13.
Cabe destacar que o teletrabalho e o trabalho remoto com mediação das TICs não foram, necessariamente, escolha de assistentes
sociais ou de dados espaços sociocupacionais onde tais profissionais atuam. Em muitos casos, esta foi a única modalidade pela qual profissionais, inclusive na área da saúde, puderam desenvolver seu trabalho, considerando que parte significativa da categoria integra os grupos de risco para agravamento da COVID-19, como pessoas com doenças crônicas, gestantes e idosas.
Neste sentido, foram essenciais os apontamentos do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) para que tal debate contemplasse enquanto eixos de reflexão a “segurança do/a trabalhador/a e da população atendida; o dilema do acesso aos direitos pela população e a avaliação das condições éticas e técnicas no contexto do teletrabalho” (CFESS, 2020a, p.9). Ou seja, que a definição do plano de trabalho do assistente social, fosse ele presencial, remoto ou híbrido, com ou sem mediação tecnológica, considerasse as condições de vida e trabalho da população, o exercício dos seus direitos e o acesso às políticas sociais, inclusive do próprio assistente social enquanto trabalhador que participa do processo de trabalho coletivo em saúde.
Contudo, tais modalidades de trabalho trouxeram limites à plena execução do trabalho de assistentes sociais, como, por exemplo, a realização de uma entrevista social com todas as particularidades que envolvem esse processo. A entrevista social é um instrumento fundamental ao exercício profissional dos assistentes sociais, cuja realização é constituída de técnicas que só realizam plenamente de forma presencial, como o acolhimento e o silêncio sensível citados por LEWGOY e SILVEIRA (2007).
O contexto pandêmico se apresentou como um desafio para a con- tinuidade das atividades ambulatoriais do Serviço de Geriatria Profes- sor Mario Antônio Sayeg da PPC/UERJ, visto que os idosos pertenciam ao grupo de risco do COVID-19, podendo ter sérias complicações caso se contaminassem com o vírus Sars-Cov-2.
À frente desse quadro, equipe multiprofissional e coordena- ção do referido Serviço realizaram diversas reuniões tendo como propósito a discussão sobre qual seria a atuação para assistência à saúde dos usuários e de seus cuidadores familiares neste mo- mento. Assim, no início de abril de 2020, teve início o telemonito- ramento dos usuários, tendo como base documentos produzidos pela própria equipe, tais como “protocolos de pesquisa COVID-19”, “esquema para entrevista”, “modelo de banco de dados” com 80 questões, e o “questionário de pesquisa”.
Para tanto, cada membro da equipe seria responsável pelo atendimento de, em média, vinte usuários14, mediante telefonema realiza- do a partir da residência do profissional, durante o horário comercial. Houve a preocupação em disponibilizar dois telefones celulares, do laboratório de pesquisa (GeronLab) para os profissionais do trabalho presencial. Entretanto, como havia mais destes recursos para toda o restante da equipe, especialmente para os profissionais em trabalho remoto, a alternativa acionada foi o uso do próprio telefone celular.
A equipe de Serviço Social passou a integrar o telemonitoramento a partir de maio de 2020, aplicando o questionário, de forma remota, junto aos usuários que já se encontravam em acompanhamento. De início, havia algumas preocupações, como, por exemplo, de como se daria o uso do aparelho celular pelos usuários idosos, tendo em vis- ta possíveis dificuldades motoras e/ou cognitivas para manejo deste recurso. Por outro lado, usuários sem entrevista social ou encaminha- dos pela equipe multiprofissional, os quais apresentassem demandas complexas, seriam atendidos de forma presencial pela assistente social residente. As principais demandas que o Serviço Social atendeu no período do teleatendimento foram o acesso a medicamentos e insumos, bem como demandas relacionadas à previdência social.
É possível avaliar que o acolhimento ao usuário, na sua integralidade, foi comprometido pelo uso da TICs, que se apresentou como uma barreira entre usuário e profissional, retirando o poder do contato face
a face e da avaliação de linguagem gestual, elementos que auxiliam na contextualização e identificação de subjetividades de uma forma mais evidenciada para que o profissional detenha de uma melhor compre- ensão da situação apresentada pelo usuário.
Muito embora seja possível identificar aspectos positivos que jus- tificam o teletrabalho com os idosos nesse contexto de pandemia, é possível destacar um conjunto de outros elementos que podem ser considerados desfavoráveis no teletrabalho. Um primeiro, foi a difi- culdade de contato telefônico com os usuários devido questões como, por exemplo: chamada direcionada à caixa postal, chamada sem res- posta, número de telefone inexistente, ou contato restrito a recados. Por outro lado, há que se destacar a possibilidade de realizar vídeo chamada com os familiares dos idosos, cada um em sua residência, o que no atendimento presencial por vezes costuma ser um fator de di- ficuldade para conciliar dias e horários porque as pessoas trabalham, residem distante, entre outros fatores. Sendo assim, neste aspecto, o recurso tecnológico foi um facilitador e seu uso bem-sucedido.
Houve situações delicadas em que se notou a falta do olho-no-
-olho durante o atendimento, enquanto discutia-se sobre a con- dição de saúde e de vida do usuário, refletia-se sobre possíveis encaminhamentos ou disponibilizava-se orientações sobre direi- tos e políticas sociais. Apresentou-se como um desafio conversar sobre situações delicadas, pois não havia a expressão facial para demonstrar, por exemplo, se o silêncio era de quem não compre- endeu o que foi dito, ou se era de quem se emocionou, ou porque vivenciava algum contexto de constrangimento, ou se por algum problema de manejo ou de conexão tecnológica.
A ausência do prontuário durante o teleatendimento foi outra questão que se colocou para a equipe, principalmente por dois motivos: o primeiro, porque estabelecer um diálogo com um usuário já acompanhado pelo ambulatório, sem qualquer informação e conhe- cimento prévio do seu caso, criava desconfiança no usuário sobre os
profissionais da PPC/UERJ mesmo após explicado o motivo de não ter acesso ao prontuário no momento, já que o profissional estava telefonando de sua própria residência e não seria recomendado o manuseio de tantos papéis na ocasião.
O segundo motivo, por não ser possível saber se o usuário já havia sido atendido pelo profissional para o qual fora anteriormente encaminhado, dada a ausência de registro que se pudesse ter acesso. Em uma equipe multiprofissional, o acesso aos registros de atendimentos de outros pro- fissionais permite compreender o usuário na sua integralidade, para além da questão específica que cada profissional está acompanhando.
A respeito das reuniões de equipe online, ao mesmo tempo que propiciou a manutenção das discussões sobre os casos e encaminha- mentos necessários, também foi uma novidade para todos. A grande maioria não tinha o hábito de realizar reuniões nesses moldes; sendo assim, havia profissionais que, no início, apresentavam dificuldades para se conectar e/ou utilizar plenamente este recurso.
Em síntese, compreende-se que a incorporação do teletrabalho e do trabalho remoto resultou na intensificação do trabalho. Esta mo- dalidade de trabalho deixou, a todos, acessíveis 24 horas por dia, tornando possível o envio e o recebimento de demandas de traba- lho em qualquer horário e, consequentemente, gerando ansiedade e expectativa nos profissionais em responder e solucionar as questões. Ao aumentar a quantidade dos compromissos em um único dia, não raro houve dificuldade de conciliar as agendas, sobreposição de com- promissos, reuniões atravessando horário do almoço ou se estenden- do para além da jornada de trabalho, o que seria impossível em um trabalho presencial. Parecia que tudo poderia ser encaixado na agen- da do dia, o que começou a tornar o trabalho remoto extremamente denso e cansativo, física e mentalmente. Desse modo, o teletrabalho e o trabalho remoto com mediação das TICs trouxe consigo elementos contraditórios, ora facilitadoras para trabalhadores e usuários, ora in- tensificadoras da exploração funcional ao capitalismo.
O contexto pandêmico impôs vários desafios para a assistência em saúde aos usuários e, especialmente às pessoas idosas, público-
alvo do Serviço de Geriatria Professor Mario Antônio Sayeg. O teletrabalho e o trabalho remoto se tornaram mais que uma realidade, mas também uma necessidade frente à impossibilidade do trabalho presencial naquele contexto.
As tecnologias mais utilizadas pela equipe do Serviço de Geria- tria foram, além do telefone, as plataformas de videoconferência, e os aplicativos de troca de mensagens, como o WhatsApp, para en- vio de avisos, de documentos e para atendimentos por vídeo. Todos foram essenciais para a reorganização da assistência em saúde neste período. Por outro lado, trouxe à tona o baixo investimento em TIC no âmbito institucional, o que fez com que os trabalhadores tivessem que utilizar os próprios telefones, aparelhos celulares, computadores e ar- car com os custos decorrentes.
A Policlínica Universitária Piquet Carneiro veio adequando a sua estrutura física e organizacional às recomendações sanitárias durante o período pandêmico e, a partir do ano de 2021, o trabalho presencial na PPC foi sendo retomado aos poucos, inclusive no Serviço de Geriatria. Finalmente, no dia 05 de maio de 2023 a Or- ganização Mundial da Saúde (OMS) anunciou o fim da ESPII em decorrência da COVID-19, o que não significou que a pandemia aca- bou ou que diminuiu sua ameaça à saúde global, considerando que as infecções pelo vírus continuam com quantitativo expressivo de óbitos pelo mundo. Assim, em 2023 os atendimentos presenciais às pessoas idosas encontram-se em plena capacidade.
Porém, é necessário salientar que o uso das TICs deixou “heranças” que foram incorporadas ao processo de trabalho coletivo em saúde no Serviço de Geriatria. Entre tais “heranças” tivemos a ma- nutenção das reuniões de equipe de forma online. Entendeu-se que esse formato garante a participação de maior número de profissio-
nais, com menos atrasos pelo deslocamento até a unidade e até a não participação na reunião. Além disso, esse formato tem permi- tido agregar profissionais convidados, inclusive de outros Estados, às sessões científicas, essenciais para o treinamento e a formação profissional da equipe multiprofissionais.
Os teleatendimentos foram suspensos, porém não descartados. Pas- saram a ser usados como recursos excepcionais, como nos casos de impossibilidade de atendimento da pessoa idosa no ambulatório por algum quadro agudo relacionado ao processo de adoecimento. Porém, sempre com a preocupação da equipe multiprofissional e, especialmen- te do Serviço Social, de buscar garantir a articulação com os serviços de saúde do território de moradia da pessoa idosa, como as Clínicas da Fa- mília e Postos de Saúde, de modo a garantir a manutenção do acompa- nhamento de saúde pela equipe de referência e inserção no programa de atendimento domiciliar ao idoso (PADI), quando necessário.
Houve o entendimento da equipe que a avaliação geriátrica ampla (AGA), como instrumento de diagnóstico multidimensional, requer um conjunto de avaliações clínicas, funcionais, cognitivas e sociais que não se adequam ao formato de teletrabalho, o que destaca a impor- tância do atendimento de saúde de modo presencial.
Por outro lado, alguns grupos se mantiveram no formato remoto, pois este recurso facilitou a participação dos usuários, considerando os desafios impostos no que se refere ao deslocamento dos idosos e dos cuidadores familiares até a unidade de saúde. Cabe ressaltar que o serviço presta atendimento a pessoa idosa com síndromes geriátri- cas que, pelo agravamento do quadro de saúde, encontra dificuldade no uso do transporte público, considerando a carência e precariedade do transporte urbano. Em decorrência disso, as famílias são oneradas pelo custeio de transporte particular de terceiros e de aplicativos de aluguel de veículos motorizados. Além disso, também temos pesso- as idosas que assumem a tarefa do cuidado do membro familiar com demência que, pela fragilidade de políticas públicas voltadas para o
cuidado, carecem de recursos financeiros e rede de suporte para essa tarefa, gerando sobrecarga e tornando o deslocamento até a unidade para a participação nas atividades grupais limitadas.
No Serviço Social, o uso das TICs foi incorporado em algumas atividades como estratégia para facilitar os mecanismos de comu- nicação com os usuários e para auxiliar no processo de democra- tização do acesso a informações referentes à saúde e os direitos dos usuários. O grupo de apoio ao cuidador familiar, coordenado pelo Serviço Social, se manteve de forma remota. Os encontros presenciais sempre foram um desafio pelas mesmas circunstân- cias já apresentadas; entretanto, os encontros no formato remoto por videoconferência também enfrentaram desafios e dificuldades durante a pandemia da COVID-19, tendo em vista as barreiras rela- cionadas a adaptação e acesso aos recursos tecnológicos digitais, considerando que as camadas mais empobrecidas da sociedade carecem de uma política de inclusão digital.
Atualmente algumas estratégias foram acionadas, de forma a ex- perimentar outros formatos. O Serviço Social da PPC/UERJ passou a dispor de um tablete com WhatsApp institucional, tendo em vis- ta que essa foi uma ferramenta que facilitou muito a comunicação com os usuários, representando um ganho para o conjunto de as- sistentes sociais. Assim, foi mantido o grupo para socialização de informações e materiais informativos/educativos por WhatsApp, para auxiliar no processo de cuidado do idoso com demência com a socialização de fôlderes, cartilhas e vídeos, elaborados pela equi- pe multiprofissional e disponibilizados no Youtube, exclusivamente para acesso dos membros do grupo. Os encontros presenciais fo- ram mantidos de forma trimestral com metodologia voltada para a troca de experiências e vivências sobre o cuidado.
O atendimento remoto também vem sendo utilizado como estraté- gia para facilitar as reuniões familiares que se colocam como neces- sárias no plano de cuidados da pessoa idosa. Essas reuniões sempre
foram um desafio para se efetivarem por justificativas diversas: falta de disponibilidade de tempo dos membros familiares, dificuldade de vínculo afetivo entre os membros familiares, entre outros. O Serviço Social vem experimentando este formato de atendimento familiar por videoconferência nos casos em que os familiares apresentam limita- ções para o atendimento presencial, sendo obtidas até o momento respostas satisfatórias no que se refere a participação, interação e de- finição de responsabilidades no cuidado ao idoso.
Como pudemos verificar, as TICs possuem um grande potencial para facilitar os processos de socialização de informações e a co- municação no âmbito do trabalho coletivo em saúde. Entretanto, não podemos deixar de analisá-las sob a perspectiva da totalidade, considerando os elementos contraditórios do seu uso pelo traba- lhador. Pois as facilidades advindas também mascararam a nefasta intenção do capital de apropriação do desenvolvimento tecnológi- co como mecanismos de flexibilização e precarização do trabalho, de substituição de mão de obra,intensificação e extensão da jor- nada de trabalho, visando a maximização do lucro, e que, não raro, resulta no adoecimento do trabalhador.
No que se refere ao trabalho do assistente social no Serviço de Ge- riatria da PPC/UERJ, podemos verificar que a incorporação das TICs foi uma estratégia importante para a democratização do acesso à informação e aprimoramento de ferramentas comunicacionais com os usuários e com a própria equipe de trabalho. Mas é importante salientar que o uso dessas tecnologias precisa estar alinhado aos valores e princípios defendidos pela profissão, para que de fato não sirvam à lógica de precarização das relações e condições de trabalho. Veloso (2011, p. 72) informa que “o uso desse recurso pode tanto conservar e reproduzir aspectos do modo de produção capitalista quanto contri- buir para negá-los e superá-los”.
Não se pretende neste artigo concluir as reflexões sobre o tele- trabalho, trabalho remoto e o Serviço Social, pois compreendemos
que ainda há muito a ser analisado e debatido no âmbito da categoria profissional. Espera-se que este estudo e as reflexões aqui suscitadas possam contribuir para a discussão sobre o tema, assim como sobre a incorporação de forma crítica das TICs aos diferentes processos de trabalho coletivo nos quais se inserem as assistentes sociais.