Recepción: 01 Agosto 2023
Aprobación: 01 Octubre 2023
Resumo: Este trabalho tem como objetivo lançar luz sobre a tramitação da Lei nº 12.711/2012, cuja importância está no debate contemporâneo acerca da avaliação da Política de Cotas em âmbito federal. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, que utiliza procedimentos de revisão bibliográfica e documental. Dentre os resultados, destaca-se a origem da Lei a partir do Projeto de Lei (PL) 73/1999, que acelerou seu andamento após associação com o PL 3.627/2004. Depois de mais de treze anos de tramitação, considerando Câmara dos Deputados e Senado Federal, e sete audiências públicas, a redação final da matéria foi aprovada em 2012.
Palavras-chave: Ações Afirmativas, Tramitação legislativa, Educação Superior, Lei nº 12.711/2012, Lei de Cotas.
Abstract: This work aims to shed light on the processing of Law No. 12,711/2012, whose importance lies in the contemporary debate about the evaluation of the Affirmative Action Policy at the federal level. It is qualitative research that utilizes procedures of bibliographic and documentary review. Among the results, the origin of the Law from the Bill (PL) 73/1999 is highlighted, which accelerated its progress after association with PL 3,627/2004. After more than thirteen years of processing, considering the Chamber of Deputies and the Federal Senate, and seven public hearings, the final wording of the legislation was approved in 2012.
Keywords: Affirmative Actions, Legislative Process, Higher Education, Law nº. 12.711/2012, Quota Law.
Introdução
O (re)conhecimento da história da formação da sociedade brasileira, marcada por desigualdades e discriminações, permite ao Estado pensar em ações que visem à transformação nas relações sociais, arraigadas por preconceitos e disparidades. No final do século XX e início do século XXI, verificamos no Brasil o debate sobre a implementação e a posterior implantação de políticas educacionais orientadas para a promoção da equidade e da justiça social no âmbito das classes sociais, dos grupos étnico-raciais e da situação de deficiência. Como paradigma emergente, a concepção do necessário incentivo do Estado, com ações que promovam a democratização do acesso à Educação Superior, faz florescer Políticas Públicas de Ações Afirmativas como, na esfera das instituições privadas, o Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), e, no campo das instituições públicas, nos processos seletivos educacionais para o ingresso nas instituições públicas federais de ensino, o sistema de cotas sociais e raciais e mecanismos de bonificações na seleção para grupos específicos.
A implementação de Ações Afirmativas no Ensino Superior público, na modalidade de cotas, teve o pioneirismo das universidades estaduais do Rio de Janeiro. A Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro aprovou as leis n.º 3.524/2000, n.º 3.708/2001 e n.º 4.061/2003, aplicáveis à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), que, em sua configuração atual (Lei n.º 8.121/2018), estabelece a reserva de vagas para egressos de escolas públicas, negros, indígenas, pessoas com deficiência e filhos de policiais militares, civis e agentes penitenciários mortos em serviço.
Em 2002, o Conselho Universitário da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) inaugurou a adoção das cotas, apoiada na autonomia universitária, tornando-se vanguardista na inclusão não apenas na graduação, mas também na pós-graduação. No mesmo ano, o Estado do Mato Grosso do Sul, por meio de lei estadual, estabeleceu a reserva de vagas na Universidade do Estado do Mato Grosso do Sul (UEMS) para indígenas e, no ano seguinte, para negros. Em 2003, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (UnB) também atendeu ao sistema de cotas, inaugurando essas ações nas instituições federais de Ensino Superior. Nos anos seguintes, gradualmente, essas Políticas Afirmativas foram se concretizando em várias universidades de todo o país, por meio de leis locais ou por iniciativas das próprias instituições.
No âmbito federal, a decisão do governo brasileiro pelo sancionamento da Lei n.º 12.711/2012, Política Pública de Ação Afirmativa que padroniza a reserva de vagas nas universidades e nos institutos federais, consolida-se em uma conjuntura na qual o respaldo do Supremo Tribunal Federal (STF), na votação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, ajuizada pelo Partido Democratas (DEM), foi decisivo. Na ocasião, a constitucionalidade (ou não) das cotas raciais adotadas pela UnB trouxe ao STF a discussão sobre as Ações Afirmativas, especialmente as cotas raciais para ingresso em universidades, ponderadas a partir do princípio da igualdade material. Em abril de 2012, os ministros acompanharam por unanimidade o voto do relator, Ministro Ricardo Lewandowski, segundo o qual as cotas da UnB não se mostravam desproporcionais ou irrazoáveis e, além disso, incentivaram que outras instituições de ensino utilizassem, de maneira semelhante, a política de cotas da UnB, buscando superar a desigualdade histórica entre negros e brancos.
Em vista das considerações apresentadas, este texto trata do processo histórico de discussão e implantação da Lei de cotas das instituições públicas federais. O objetivo desta pesquisa é lançar luz no trâmite legislativo de aprovação da Lei n.º 12.711/2012, trazendo breves apontamentos sobre o cenário político e os atores envolvidos nessa ação. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, que toma por procedimentos a revisão bibliográfica e documental. Justifica-se este trabalho pela necessidade de compreensão do processo histórico de mais de 13 anos de negociação, com debates polarizados de crítica e defesa da política de cotas, especialmente as raciais, para a geração de subsídios ao exame da Lei de Cotas, na iminência da avaliação dessa política, após 10 anos de implementação, com a revisão inicialmente prevista para 2022.
Breve percurso sobre a adoção das Ações Afirmativas na educação brasileira
No final da década de 1990 e início do novo milênio, consolidou-se a convicção e a valorização das Políticas de Ação Afirmativa como essenciais para romper as estruturas de relações econômicas, sociais e políticas enraizadas no sistema escravocrata que o Brasil vivenciou. Em relação à população negra, emergiu a ideia do racismo institucional3, que sustenta que o próprio tecido social é permeado por um racismo que se manifesta de forma sistemática em todas as estruturas da sociedade, resultando em práticas que favorecem determinados grupos em detrimento de outros (MACHADO, 2020). Nesse contexto, impulsionados por movimentos sociais e respaldados por pesquisas nacionais e internacionais, as relações raciais no Brasil passaram a ser amplamente discutidas, exercendo influência significativa no processo normativo e político de busca por reparação social.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988) se estabelece como um marco nesse processo ao abordar a questão racial de maneira mais abrangente do que nunca antes havia sido feito. Além da criminalização do racismo, a referida Constituição também estabelece as bases para a implementação de Políticas Afirmativas. No entanto, é a partir da virada dos séculos XX e XXI que o país dá início a um processo normativo de reparação, especialmente no que diz respeito às desigualdades educacionais. As disparidades no acesso à educação, notadamente no tocante à população negra, evidenciadas pelos indicadores censitários, juntamente com o combate ao racismo e às desigualdades sociais, ampliam a percepção do campo da educação como um caminho promissor para a emancipação social da população negra. Essa percepção se manifesta em reivindicações, como ocorreu em 1995 na Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em Brasília, que defendia a democratização do ensino, em especial o Ensino Superior. Nesse contexto, as cotas raciais ganham destaque no debate sobre a importância da educação para a população negra.
A Marcha Zumbi dos Palmares resultou na criação, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, do Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (MEDEIROS, 2005). Esse grupo tinha como objetivo propor ações integradas para combater o racismo, além de recomendar e promover políticas para fortalecer a cidadania da população negra brasileira. O grupo de trabalho foi pioneiro nas discussões sobre Ações Afirmativas no país e desempenhou um papel fundamental na formulação do Programa Nacional de Direitos Humanos, que estabelecia, entre outros pontos, a necessidade de desenvolver Ações Afirmativas para garantir o acesso de negros a cursos profissionalizantes, universidades e áreas de tecnologia de ponta. A partir desse momento, os debates sobre Ações Afirmativas tornaram-se mais frequentes. Em 1996, o Ministério da Justiça promoveu o Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo: O papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos, que contou com a participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, bem como líderes dos movimentos negros. Nesse evento, de forma inédita, o governo federal reconheceu a existência do racismo em nossa sociedade e a necessidade de pensar em políticas públicas focalizadas para a população negra.
As políticas compensatórias de promoção social e econômica para pretos e pardos, emergentes das discussões sobre antirracismo no Brasil, apresentou no ano de 2001 um outro marco histórico, por ocasião da Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada entre os dias 31 de agosto e 8 de setembro de 2001 em Durban, na África do Sul. A ativa participação do Brasil, não apenas com diplomatas, mas, também, com acadêmicos e representantes de movimentos sociais, debatendo estratégias de enfrentamento ao racismo, trouxe o relatório do evento estabelecendo a adoção de Ações Afirmativas como uma necessidade para a inclusão social de negros em países como o Brasil (FERREIRA, 2021).
As Ações Afirmativas podem ser compreendidas como políticas públicas que visam corrigir desigualdades socioeconômicas resultantes da discriminação enfrentada por determinados grupos. Essas políticas buscam promover a equidade entre os diversos grupos que compõem a sociedade por meio de um tratamento temporariamente diferenciado (MOEHLECKE, 2002). O objetivo principal das Ações Afirmativas é garantir igualdade de oportunidades, através de intervenções que buscam assegurar a diversidade e representatividade de grupos minoritários em várias esferas da atividade pública e privada. No contexto do acesso ao Ensino Superior, as Ações Afirmativas encontram respaldo no princípio constitucional da igualdade material, conforme destacado por Gomes (2005). Ao conceder vantagens competitivas a membros de determinados grupos, com o objetivo de reverter, em um prazo definido, a situação desigual, as Políticas de Ação Afirmativa buscam promover a justiça social e romper com os mecanismos de exclusão que persistem e não são tratados pelas Políticas Públicas universalistas (FERES JÚNIOR et al., 2018).
As Ações Afirmativas para o ingresso em instituições públicas de Ensino Superior, como cotas, bônus ou mecanismos similares, foram implementadas no Brasil desde o início dos anos 2000 (GODOI; SANTOS, 2021). O estado do Rio de Janeiro foi pioneiro nessa iniciativa, por meio de legislação estadual, ao estabelecer a reserva de vagas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (AMARAL, 2006). A Universidade de Brasília também se destacou, não apenas por ser a primeira a adotar essa política em âmbito federal, mas também por implementá-la utilizando sua autonomia universitária.
A partir de 2006, houve uma aceleração na ampliação dos programas de reserva de vagas em instituições federais e, conforme observado por Santos (2012), embora sejam atos normativos internos das instituições, o Poder Executivo exerceu forte influência nessas iniciativas por meio de dois mecanismos: incorporando os programas nos atos de criação de novas instituições e estabelecendo a expansão das políticas de inclusão como diretriz do Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Dessa forma, mesmo antes da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012 (BRASIL, 2012a), conhecida como Lei de Cotas, entrar em vigor, padronizando o ingresso nas instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação, as Ações Afirmativas para o acesso ao Ensino Superior na esfera pública já produziam um impacto significativo. Em 2012, cerca de 70 universidades públicas, estaduais e federais, adotavam programas de Ação Afirmativa (DAFLON; FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2013).
Diante do contexto descrito, é possível compreender as Ações Afirmativas na educação brasileira como uma resposta necessária às desigualdades sociais e raciais enraizadas no país. As cotas surgiram como uma demanda fundamental para a promoção da igualdade de oportunidades no Ensino Superior, se configurando como um marco importante na busca pela justiça social e no combate à exclusão, culminando na aprovação da Lei n.º 12.711/2012, da qual o trâmite legislativo abordaremos no próximo tópico.
O trâmite legislativo da Lei nº 12.711/2012
Como característica das Políticas de Ação Afirmativa, que apresentam necessariamente um caráter temporário, a Lei n.º 12.711/2012 determinou, em seu art. 7º, a realização da revisão do programa, prevista para ocorrer em 2022. No entanto, até o momento, a revisão ainda não ocorreu. Ao avaliar esta Política Pública de extrema relevância para o Brasil, considerando que as cotas ainda geram tensões, especialmente em relação à mensuração de seus resultados e ao aprimoramento de pontos sensíveis, é essencial ter conhecimento de todo o processo histórico de formulação dessa política, a fim de desenvolver ações alinhadas aos objetivos do programa e propor aperfeiçoamentos que busquem melhorias efetivas.
Dito isso, reforça-se o objetivo desta pesquisa, que é lançar luz sobre a tramitação legislativa que culminou na sanção da Lei n.º 12.711/2012, relembrando as ações e as proposições que contribuíram para sua aprovação ao longo de um processo longo e polêmico de elaboração. Embora a Lei n.º 13.409/2016 (BRASIL, 2016) tenha atualizado a Lei n.º 12.711/2012 para incluir pessoas com deficiência como beneficiárias, neste trabalho, estabelece-se como limite temporal o processo legislativo que resultou na aprovação da Lei n.º 12.711/2012. Para rastrear a trajetória da proposta que se transformou na Lei Ordinária n.º 12.711/2012 utilizou-se o portal do Congresso Nacional (2022). Conforme mencionado, a iminência da avaliação, juntamente com a atualidade e importância do tema, justificam a análise do percurso histórico que permitiu a implementação de cotas padronizadas nas instituições federais de Educação Superior.
Constatou-se que a gênese da investigada Lei encontra-se na Câmara dos Deputados, na proposta de Projeto de Lei (PL) nº 734, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e estaduais e dá outras providências, apresentado em 24 de fevereiro de 1999 pela Deputada Nice Lobão (PFL-MA). Em seu art. 1º, estabelecia que as universidades públicas reservassem 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para serem preenchidas mediante seleção de alunos nos cursos de Ensino Médio, tendo como base o Coeficiente de Rendimento – CR, calculado através da média aritmética das notas ou menções obtidas no período, considerando-se o curriculum comum a ser estabelecido pelo Ministério da Educação e do Desporto. No PL 73/19995 não há nenhuma referência aos estudantes serem egressos do Ensino Médio de instituições públicas, recorte de renda ou racial, ocorrendo apenas no texto o apontamento de que a regulamentação disporá sobre os critérios de credenciamento das escolas de Ensino Médio para os fins previstos na Lei. Segundo Machado (2020)
[...] Sua proposta, então, seria a de manter metade do acesso às vagas no ensino superior por meio dos vestibulares e a outra metade reservada aos estudantes do ensino médio que possuíssem rendimento escolar satisfatório e mensurável. Importante ressaltar que essa versão inicial não possuía nenhum dos critérios de reserva de vagas utilizados na versão final da Lei de Cotas – critério social e racial, posteriormente incorporados (MACHADO, 2020, p.86).
Em conformidade com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados6, antes da deliberação do Plenário, ou quando esta for dispensada, as proposições serão apreciadas pelas Comissões de mérito a que a matéria afeta. Em março de 1999, o PL 73/1999 foi encaminhado para a Comissão de Educação, Cultura e Desporto (CECD) e para a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação (CCJR). Até junho de 2004, a tramitação ocorreu de modo lento, com apenas solicitações para apensar (e posteriormente para desapensar) a outros projetos, como o PL 1.447/19997, o PL 2.069/19998 e o PL 1.643/19999. Não houve avanços significativos nas comissões nesse período. Em junho de 2004 a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) foi agregada aos locais de tramitação da proposta. Vale ressaltar que a apensação é um instrumento que permite a tramitação conjunta de uma proposta com outra já em tramitação quando tratam de assuntos iguais ou semelhantes, sendo determinado pela Mesa da Câmara que a proposta mais recente seja apensada à mais antiga.
É a partir de 2004, cinco anos após a apresentação do PL n.º 73/1999, que surgem elementos mais densos no debate da proposta. Em 02 de junho de 2004, a Deputada Nice Lobão, requer a desapensação do PL 73/1999 do PL 1.643/1999 (do Senado Federal) e apensação ao PL 3.627/200410 (do Poder Executivo). Na solicitação há o apontamento de que o PL 73/1999 e o PL 3.627/2004, que institui sistema especial de reserva de vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior e dá outras providências, regulam matérias correlatas, não sendo justo nem regimental que tramite separadamente. Em 23 de junho de 2004 a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados atendeu ao requerimento.
Quanto ao teor do PL 3.627/2004, se estabelecia que as instituições públicas federais de Educação Superior reservariam, no mínimo, cinquenta por cento de suas vagas para estudantes que tivessem cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas, sendo que as vagas seriam preenchidas por uma proporção mínima de autodeclarados negros e indígenas e, além disso, o Poder Executivo promoveria, no prazo de dez anos, a contar da publicação da Lei, a revisão desse sistema especial de acesso.
Quanto a desapensação do PL 1.643/1999, de autoria do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), e apensamento do PL 3.627/2004, Machado (2020) aponta diferenças significativas entre as propostas em relação à implementação das cotas, sendo que a proposta do senador especificava que os beneficiários seriam estudantes que tivessem cursado todo o ensino fundamental e médio em escolas públicas, com as vagas reservadas nas Universidades Públicas, sendo a proposta do Poder Executivo menos específica, direcionando os benefícios para egressos de escolas públicas e considerando a discussão de raça e etnia na distribuição das vagas. Além disso, a proposta do Executivo abrangia todas as Instituições Públicas Federais de Educação Superior, incluindo centros universitários, institutos federais, centro federal de educação tecnológica e faculdades (MACHADO, 2020).
De acordo com Godoi e Santos (2021), embora Lei n.º 12.711/2012 tenha sido originada do Projeto de Lei n.º 73/1999, o conteúdo efetivo da Lei de Cotas baseia-se no projeto de lei iniciado pelo Executivo Federal em 2004. O conteúdo concreto da Lei nada tem a ver com o conteúdo daquele projeto de lei, o qual determinava que as universidades públicas estariam obrigadas a preencher 50% de suas vagas não pelo mecanismo tradicional dos concursos vestibulares, e sim com base nas notas obtidas pelos candidatos nas disciplinas cursadas no Ensino Médio (seja nas escolas públicas, seja nas escolas privadas), não existindo, a rigor, qualquer Ação Afirmativa, nem para atender a egressos de escolas públicas, nem para atender a minorias étnicas (GODOI; SANTOS, 2021).
Em julho de 2004, é reiniciada a tramitação com o projeto remetido as Comissões de Educação e Cultura (CEC); Direitos Humanos e Minorias (CDHM); e, Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Em junho de 2005, é apensado ao PL 615/200311. Em agosto de 2005, o Relator da CEC, Deputado Carlos Abicalil (PT-MT), emite parecer pela aprovação do Projeto de Lei na forma do substitutivo, aprovado por unanimidade em setembro de 2005, seguindo para a CDHM. Apontamos que é a proposta substitutiva do Deputado Carlos Abicalil (PT-MT) que vai introduzir no debate a inserção da reserva de vagas para o ingresso de estudantes nas instituições federais de ensino técnico de nível médio.
Em novembro de 2005, o parecer da Relatora, Deputada Iriny Lopes (PT-ES), da CDHM, é pela aprovação do Projeto de Lei n.º 73/1999, com os PL 615/2003, PL 1.313/200312 e PL 3.627/2004 apensados, na forma do Substitutivo aprovado pela CEC, e pela rejeição de algumas emendas propostas ao PL 3.627/2004. O relatório da Deputada Iriny Lopes (PT-ES) apresenta o apontamento favorável à combinação dos critérios raciais e sociais na reserva de vagas para acesso ao ensino público superior, destacando, no entanto, que não se abandonam critérios relacionados ao conhecimento intelectual dos estudantes, pois são beneficiários somente os candidatos que demostrarem sua capacidade em concurso de seleção para ingresso nos cursos de graduação. Em dezembro de 2005 o parecer é aprovado por unanimidade e, assim, seguindo para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Nessa Comissão, em janeiro de 2006, o parecer do Relator, Deputado Luiz Alberto (PT-BA), foi pela aprovação do projeto. Em fevereiro de 2006 são publicados os pareceres das três Comissões.
Ainda em fevereiro, é apresentado pelo Deputado Alberto Goldman (PSDB-SP) - e outros -, um recurso, aprovado em março de 2006, contra a apreciação conclusiva do PL 73/1999. Na sequência temporal, além do requerimento de regime de urgência na apreciação do Projeto, destacamos que em abril de 2006, houve a solicitação, aprovada no mesmo mês, da Deputada Neyde Aparecida (PT-GO), pela realização de um seminário conjunto, da Comissão de Educação e de Cultura com a Comissão de Direitos Humanos, para discutir a matéria objeto do Projeto, a proposta de cotas no Ensino Superior. No período de tramitação do Projeto de Lei que culminou no sancionamento da Lei de Cotas, foram realizadas sete audiências públicas no Congresso Nacional, sendo quatro na Câmara dos Deputados e três no Senado Federal.
A primeira delas ocorreu em 13 de maio de 2004, com a participação de órgãos governamentais do Poder Executivo, o vice-reitor da UnB e vários parlamentares. Nessa audiência, foram discutidos temas como a judicialização das cotas, a expansão do Ensino Superior e a permanência dos estudantes cotistas. Em 15 de junho de 2004, a segunda audiência pública foi realizada, abrindo espaço para a participação da sociedade civil e visando o debate sobre a adoção de cotas raciais e étnicas nas universidades públicas. É importante destacar que em maio de 2004 o Poder Executivo havia apresentado dois Projetos de Lei: o da Lei de Cotas (PL 3.627/2004) e o do Programa Universidade para Todos - ProUni13 (PL 3.582/2004). Durante essa audiência, esses projetos foram amplamente discutidos. Sobre o ProUni, Lima e Campos (2020, p. 247) destacam que: "A finalidade do programa é conceder bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação, presenciais ou a distância, em instituições privadas de educação superior, oferecendo, em contrapartida, isenções de tributos".
Na terceira audiência pública, realizada em 25 de abril de 2006, conduzida pelos parlamentares presidentes das Comissões de Direitos Humanos e Minorias e de Educação e Cultura, pela primeira vez, as opiniões divergentes, quanto a reserva de vagas em instituições federais de Ensino Superior, são abertamente apresentadas. Além da apresentação das experiências de distintas universidades que já possuíam modelos de Ações Afirmativas em fase de implementação e monitoramento, opiniões contrárias foram expostas, destacando as cotas como uma medida que divide a sociedade brasileira em raças, apontando prejuízos para as gerações futuras. Enfatizamos, como apontado por Medeiros (2005), que se iniciava, então, uma batalha travava principalmente nos campos jurídico e da mídia, obrigando a elite intelectual brasileira a engajar-se numa discussão considerada incômoda e desconfortável, o debate de raça e racismo.
Acerca dos embates ocorridos no país na primeira década do século XXI, Lima e Campos (2020) reforçam os apontamentos anteriores ao destacarem que o período foi marcado por uma intensa polêmica em torno das cotas raciais, gerando debates em diferentes setores da sociedade, como academia, movimentos sociais, gestores públicos e estudantes universitários. Essas discussões foram amplamente divulgadas nos meios de comunicação, abordando desde manifestações de estudantes negros favoráveis às cotas até casos de discrepância na avaliação da identidade racial de estudantes gêmeos. Durante esse período, o governo Lula, apesar de inicialmente demonstrar apoio às políticas de cotas, acabou recuando em seu posicionamento, optando por um suporte mais sutil por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Todas as universidades federais que aderiram a esse programa apresentaram ao Ministério da Educação (MEC) planos de reestruturação, os quais contemplavam o aumento de vagas, a ampliação ou criação de cursos noturnos, o aumento da relação aluno-professor, a redução dos custos por aluno, a flexibilização dos currículos e o combate à evasão. Em contrapartida, essas instituições receberiam investimentos do governo federal para melhorias na infraestrutura e reposição do corpo docente. Assim como o Programa Universidade para Todos (ProUni), o Reuni também incentivava universidades a adotarem políticas de inclusão étnico-racial, tornando-se um importante promotor da disseminação das cotas no país, especialmente a partir de 2008 (LIMA; CAMPOS, 2020).
Ainda na Câmara dos Deputados, a quarta audiência pública ocorreu em 18 de novembro de 2009, data na qual o Projeto de Lei analisado nesta pesquisa já tramitava no Senado Federal. Nessa audiência, destaca-se que todos os apontamentos foram favoráveis as cotas raciais, com o intuito de acabar com o racismo e a discriminação. Ressalta-se ainda que essa audiência ocorreu meses após a apresentação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 ao Supremo Tribunal Federal, na qual o Partido Democratas interpõe ação contra as cotas raciais na Universidade de Brasília, fato citado na maioria das falas.
Retomando nossa análise da tramitação na Câmara dos Deputados, em outubro de 2006 a Coordenação de Comissões Permanentes encaminhou o projeto à republicação. Em maio de 2007 a Comissão de Educação e Cultura requereu a apensação do Projeto de Lei n.º 373/200314, e o seu apensado, PL n.º 2.923/200415, ao Projeto de Lei n.º 73/1999, deferido pela Mesa Diretora no mesmo mês. Em junho de 2007, o PL 1.330/200716, de autoria do Deputado Edio Lopes (PMDB-RR), e em agosto de 2007, o PL 1.736/200717, de autoria do Deputado Neucimar Fraga (PR-ES) e o PL 14/200718, de autoria do Deputado Dr. Pinotti (DEM-SP), foram apensados ao PL 73/1999. Em setembro de 2008 foi solicitada a apensação do PL 3.913/200819 ao PL 73/1999.
Em 20 de novembro de 2008 uma sessão extraordinária leva ao Plenário a discussão do projeto em turno único. Na tramitação em Plenário há a aprovação da Emenda que estabelece que, dos beneficiários da reserva de vagas, 50% sejam estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita. Ressalta-se que, o documento apreciado traz como critério que os beneficiários sejam estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas e, sobre a seleção, ocorreria com base no Coeficiente de Rendimento – CR, calculado através de média aritmética das notas ou menções obtidas no período.
No mesmo dia, é votada a Redação Final do Projeto, que “Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e estaduais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências”, assinada pelo Relator, Deputado Fernando Coruja (PPS-SC), estabelecendo ainda que o Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República seriam responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do programa e, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da publicação da Lei, o Poder Executivo promoveria a revisão do programa especial para o acesso de estudantes. A matéria foi encaminhada ao Senado Federal (PL 73-C/199920) com a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados enviando a remessa, por meio de ofício, em 25 de novembro de 2008.
Ao chegar ao Senado Federal a proposta da Câmara dos Deputados ganha um novo número, tramitando como o Projeto de Lei da Câmara n.° 18021, de 2008, sendo em 25 de novembro de 2008 encaminhada às Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania; de Direitos Humanos e Legislação Participativa; e de Educação, Cultura e Esporte. Em 03 de dezembro de 2008 é distribuído à Senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), para emitir relatório da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, recebendo no mesmo mês a aprovação da Senadora que, em reunião ordinária realizada em 10 de dezembro de 2008, é retirada de pauta para aguardar a realização de audiência pública, requerida pelos Senadores Demóstenes Torres (DEM-GO), Paulo Paim (PT-RS), Cristovam Buarque (PDT-DF) e Senadora Serys Slhessarenko (PT-MT).
A primeira audiência pública no Senado Federal é realizada em 18 de dezembro de 2008. O aspecto dessa audiência que mais merece destaque é a presença de atores institucionais e representantes de organizações sociais. Além disso, as manifestações contrárias de algumas organizações, acerca das cotas raciais, e a preocupação estratégica dos favoráveis à proposta, para sua aprovação sem alterações, visto que a modificação de mérito implicaria no retorno do projeto à Câmara dos Deputados, demandando mais tempo de tramitação, se destacam nessa audiência (MACHADO, 2020).
Em 11 de março de 2009 a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, aprova outro requerimento de audiência pública, de iniciativa dos Senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Francisco Dornelles (PP-RJ) e o termo aditivo ao requerimento, de autoria da Senadora Ideli Salvatti (PT-SC) e do Senador Cristovam Buarque (PDT-DF), para instruir a matéria. Em 18 de março de 2009 ocorre a 2ª audiência pública no Senado Federal, sendo que o principal conflito exposto foi a instituição das cotas raciais e, contraponto a primeira audiência realizada no Senado Federal, nessa os senadores debateram a matéria, expondo suas dúvidas e considerações. No mesmo dia, a Comissão aprova o requerimento, de iniciativa dos Senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), Antonio Carlos Júnior (DEM-BA) e da Senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), para a realização da 3ª audiência pública para instruir a matéria.
Em 01 de abril de 2009, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania realizou sua terceira audiência pública com o propósito de instruir a matéria em discussão, sendo importante destacar as argumentações contrárias que foram apresentadas, abrangendo desde a negação do racismo até a consideração dos desafios que pessoas brancas poderiam enfrentar no acesso ao Ensino Superior, caso a Lei fosse aprovada (MACHADO, 2020). Dentro dessa perspectiva, vale destacar o apontamento de Reis (2013), que enfatiza que queremos uma sociedade em que as características raciais das pessoas se mostrem socialmente irrelevantes e, assim como não queremos a sociedade racista, tampouco queremos a sociedade que oprime minorias (ou maiorias), e aspiramos igualmente a neutralização, tanto quanto possível, dos efeitos da desigualdade de oportunidades que decorre da estrutura de classes da sociedade capitalista.
Porém, rememorando que as cotas emergem na agenda brasileira como resultado das discrepâncias vivenciadas entre brancos e não brancos no espaço universitário, a demanda pelas cotas raciais almejava “tornar o corpo discente universitário mais representativo das características sociodemográficas da população e de reconhecer e valorizar identidades étnicas” (DAFLON; FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2013, p. 323). Nesse contexto, Miranda (2021) salienta que:
Esse movimento levou as ações afirmativas no ensino superior para duas esferas. De um lado as universidades começaram a adotar a política de forma exponencial. De outro, a grande mídia e alguns intelectuais se mostraram totalmente contra a esse processo. [...] Nesse sentido, apesar da ação afirmativa poder ser mobilizada para qualquer grupo minoritário que esteja com dificuldade de acesso a algum bem público, a discussão na esfera pública se expandiu a partir das discussões sobre desigualdade de raça. Do mesmo modo, independente de apresentar diversas modalidades, como bônus, vagas suplementares, bolsas e empréstimos, a polemica se centrou na modalidade reserva de vagas que ficou popularmente conhecida como ‘cotas’ (MIRANDA, 2021, p. 87-88).
Na mesma data da 3ª audiência promovida no Senado Federal, 01 de abril de 2009, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania devolveu à Secretaria Geral de Mesa o Projeto que é encaminhado ao Plenário. Destaca-se que foi solicitado no mês de março de 2009, pelo Senador Marconi Perillo (PSDB-GO), o trâmite do Projeto de Lei do Senado (PLS) n.º 344/200822 em conjunto com o Projeto de Lei da Câmara (PLC) n.º 180/2008, por versarem sobre a mesma matéria, seguindo ao exame das Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania; de Direitos Humanos e Legislação Participativa; e de Educação, Cultura e Esporte. Em 06 de abril de 2009 o relatório da Senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) apresenta voto pela aprovação do PLC n.º 180/2008 e pela rejeição do PLS n.º 344/2008. Após outros requerimentos de apensação, em 14 de abril de 2009, passam a tramitar em conjunto as seguintes matérias: PLC 180/2008; PLS 215/200323; PLS 344/2008 e PLS 479/200824, reencaminhadas às mesmas três Comissões. Em 27 de abril de 2009 o relatório da Senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, apresenta voto pela aprovação do PLC n.º 180, de 2008, e pela rejeição dos PLSs n.º 215/2003, n.º 344/2008 e 479/2008.
Em 25 de fevereiro de 2010 a Senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) solicita a tramitação em conjunto do Projeto de Lei da Câmara n.º 180/2008 (já apensado ao PLS 215/2003, PLS 344/2008 e PLS 479/2008) com o Projeto de Lei da Câmara nº 12925, de 2009, por versarem sobre matérias correlatas. Em 23 de março de 2010, o PLC n.º 129/2009, perde o caráter terminativo e passa a tramitar em conjunto com o PLC n.º 180/2008, sendo reenviados as Comissões já citadas.
Em 04 de fevereiro de 2011, a Presidência do Senado comunica ao Plenário que, o Projeto de Lei do Senado n.º 215/2003, foi arquivado e os Projetos de Lei da Câmara nºs 180/2008 e 129/2009; e os Projetos de Lei do Senado n.os 344 e 479, de 2008, continuam a tramitar em conjunto, sendo desapensados do Projeto arquivado e encaminhados às Comissões pertinentes. Em 03 de março de 2011 é distribuído à Senadora Ana Rita (PT-ES), da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, para emitir relatório. Em 30 de setembro de 2011 é devolvido pela Senadora Ana Rita (PT-ES), atendendo à solicitação da Presidência do Senado Federal, requerendo tramitação autônoma do PLC n.º 129/2009. Em 04 de outubro a Senadora Ana Rita (PT-ES), solicita o desapensamento do PLC nº 129/2009, atendido em 20 de outubro.
A Senadora Ana Rita (PT-ES), da CCJC, emite em 01 de novembro de 2011 voto contrário aos Projetos de Lei do Senado n.º 344 e n.º 479, de 2008, e favorável ao Projeto de Lei da Câmara n.º 180, de 2008. Em 06 de junho de 2012, a CCJC aprova o relatório da Senadora26. Na mesma data é encaminhado à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, para prosseguimento da tramitação, avocado por seu presidente, Senador Paulo Paim (PT-RS), em 11 de junho de 2012.
Para contextualizar as próximas ações no Senado Federal, cabe lembrar que foi ajuizada em 2009, perante o Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, proposta pelo partido político Democratas (DEM), com o escopo de obter a declaração de inconstitucionalidade do sistema de cotas raciais adotado pela UnB. O julgamento da ação, concluído no dia 26 de abril de 2012, resultou na improcedência da arguição, por unanimidade e nos termos do voto do relator, Ministro Ricardo Lewandowski. Nesse julgamento, foi sustentado que a política de cotas raciais garantiria uma reparação histórica aos negros.
Em 25 de junho de 2012 a matéria é devolvida pelo Senador Paulo Paim (PT-RS), com relatório concluindo pela aprovação do PLC 180/2008, com as emendas adotadas pela CCJC e outras duas por ele apresentadas, e rejeição dos Projetos de Lei do Senado de nº 344 e 479, de 2008. O parecer da Comissão, emitido em 28 de junho, segue os apontamentos do relator. Na mesma data é encaminhado para o Plenário do Senado o requerimento de urgência na tramitação do Projeto. Esse pedido parte do entendimento dos aliados, favoráveis as cotas, de que o contexto nacional, após votação da ADPF 186, tornaria o cenário apto para aprovação da matéria. Em Plenário, em 03 de julho de 2012, é realizada a leitura dos seguintes pareceres: n.º 819/2012 – da Comissão de Constituição e Justiça, relatora Senadora Ana Rita (PT-ES); e n.º 820/2012 – da Comissão de Direitos Humanos, relator Senador Paulo Paim (PT-RS). Sobre isso, Valentim e Pinheiro (2015) enfatizam que:
As cotas sociais e raciais são parte de uma política de ação afirmativa mais ampla, que parte do princípio de que é urgente e necessário criar as condições para que se efetive a inclusão educacional, a justiça curricular, a permanência, o sucesso acadêmico e a realização educacional do maior número possível de brasileiros, de modo a atenuar uma inegável desigualdade e desmascarar os discursos vazios da democracia racial brasileira (VALENTIM; PINHEIRO, 2015, p. 13).
Em 07 de agosto de 2012, é aprovado o projeto, ressalvadas as emendas, com o voto contrário do Senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP). Ficam prejudicados os PLS 344/2008 e PLS 479/2008, que tramitavam em conjunto, sendo aprovada a redação final da matéria. Sobre a versão aprovada, Feres Júnior e Campos (2016) analisam que:
Nesse sistema, é impossível que algum candidato se beneficie de uma cota somente pelo fato de ele ser preto, pardo ou indígena, pois é necessário ainda comprovar, no mínimo, ter cursado o ensino médio em escolas públicas. Além disso, o percentual final reservado aos grupos raciais incidirá somente sobre metade das vagas, evidência de que o critério racial não é o mais relevante para a lei. Tudo isso apenas corrobora a conclusão geral de que as ações afirmativas raciais brasileiras mantiveram uma relação bastante ambivalente, para não dizer distante, de princípios de justiça multiculturalistas (FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2016, p. 279).
Em 13 de agosto de 2012 o ofício do Senado Federal nº 1.693, de 09 de agosto de 2012, é remetido à Ministra de Estado Chefe da Casa Civil, encaminhando a Mensagem SF nº 175/12 à Excelentíssima Senhora Presidente da República, Dilma Vana Rousseff (PT), submetendo à sanção. O sancionamento ocorre em 29 de agosto de 2012, mediante Lei n.º 12.711 de 2012. Cabe apontar que o Decreto nº 7.824, de 11 de outubro de 2012 (BRASIL, 2012b) regulamentou a Lei n.º 12.711, de 29 de agosto de 2012, e, posteriormente, o Decreto n.º 9.034, de 20 de abril de 2017 (BRASIL, 2017) promoveu alteração nesse Decreto ao dispor também sobre a reserva de vagas para as pessoas com deficiência, em conformidade com a atualização promovida pela Lei n.º 13.409/2016 (BRASIL, 2016).
Dessa maneira, a análise revela que nenhum partido político teve exclusividade na promoção de proposições das Ações Afirmativas. Contudo, o histórico das tramitações pelas Comissões e os debates instaurados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, até chegar à sanção presidencial feita pela presidenta Dilma Vana Rousseff, evidencia o movimento histórico e político de 2004 até 2012, durante o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), como fundamentais para um diálogo com a sociedade civil na elaboração e promulgação da Lei de Cotas. Destaca-se também que, apesar do protagonismo dos movimentos negros e dos aliados antirracistas na inserção dessa temática na agenda nacional, nenhuma das propostas apresentadas abordava diretamente as cotas raciais, ficando vinculadas a outros critérios primários.
É importante ressaltar que, dentre os projetos apensados ao PL 73/1999, as cotas para indígenas, idosos e pessoas com deficiência chegaram a ser pautas principais, enquanto a maioria dos projetos se concentrava nos estudantes de escolas públicas. Diante da inegável necessidade de estabelecer cotas como medida para mitigar a exclusão social e racial nas universidades brasileiras, mesmo enfrentando resistência, optou-se por descartar o recorte exclusivamente racial, uma vez que o protagonismo dos movimentos negros não foi suficiente para garantir a restrição apenas nessa dimensão na Lei. Ressaltamos que, se a Lei de Cotas é motivo de comemoração, haja visto a transformação promovida na composição do corpo discente das universidades federais, de acordo com Senkevics e Mello (2019)
[...] Um programa nacional de reserva de vagas de tamanha envergadura não pode passar despercebido e, em conjunto com análises específicas em âmbito institucional, necessita ser investigado com abrangência nacional e regional, com o intuito de subsidiar o acompanhamento da execução, dos resultados e dos impactos de tal legislação, bem como sua eventual reformulação visando a potencializar os objetivos esperados (SENKEVICS; MELLO, 2019, p. 206).
Dessa forma, a longa tramitação da proposição e o formato final das cotas nos mostram a força interpretativa da suposta neutralidade e imparcialidade na elaboração das leis, revelando também a persistência do racismo institucional em nossa sociedade. A contextualização histórica da formulação da Lei de Cotas evidencia as complexas relações presentes na sociedade, em particular no cenário educacional brasileiro. Durante o processo legislativo, observou-se uma notável disparidade na celeridade de aprovação entre o Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Projeto de Lei 3.627/2004, ambos enviados pelo Poder Executivo no mesmo período. Enquanto o ProUni foi sancionado em Lei em menos de um ano, a padronização das cotas nas instituições públicas federais enfrentou uma tramitação mais lenta. Essa diferença de tratamento revela uma dinâmica complexa, na qual se percebe uma certa complacência com os benefícios que o ProUni proporcionava aos empresários ricos e a perpetuação da elitização nas universidades públicas.
Nesse contexto, a aprovação de uma lei que visa inserir os menos privilegiados nesse espaço de poder não era do interesse de todos os atores envolvidos. Essa realidade demonstra a resistência e a necessidade contínua de se enfrentar as desigualdades e superar as barreiras para a efetiva implementação das políticas de inclusão e igualdade material.
Considerações finais
Retomando o objetivo desta pesquisa, de apresentar o trâmite legislativo de aprovação da Lei n.º 12.711/2012, é importante destacar que, embora a origem da Lei remeta ao Projeto da Deputada Nice Lobão, a versão final da matéria difere significativamente do PL 73/1999. Foi a partir de 2004, com a apensação do Projeto de Lei n.º 3.627/2004, enviado pelo Poder Executivo, que o debate começou a tomar forma e o processo caminhou com maior celeridade, com um conteúdo mais próximo ao da Lei aprovada. Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei tramitou por mais de nove anos, passando por três comissões: Comissão de Educação e Cultura, Comissão de Direitos Humanos e Minorias e Comissão de Constituição e Justiça. Foi aprovado em 20 de novembro de 2008 e remetido ao Senado Federal. No Senado Federal, o projeto tramitou por quase quatro anos, sendo despachado para as Comissões de Constituição Justiça e Cidadania, Direitos Humanos e Legislação Participativa, e Educação, Cultura e Esporte. Tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, devido a solicitações de apensação, ocorreram várias retramitações pelas comissões, totalizando mais de 13 anos de tramitação para a aprovação da Lei.
Nesse período, ocorreram quatro audiências públicas na Câmara dos Deputados e três no Senado Federal, nas quais foram promovidos debates e exposições de opiniões favoráveis e contrárias, especialmente em relação ao critério racial da matéria. Durante esse processo, houve intensos debates sobre a adoção de cotas raciais ou sociais, envolvendo a mobilização de intelectuais pró e contra as cotas. É importante destacar a influência do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, que apontou que as cotas da Universidade de Brasília (UnB) não se mostravam desproporcionais ou irrazoáveis. Esse julgamento teve grande repercussão e influenciou a tramitação final da matéria.
Reforça-se que, diante das tensões e conflitos políticos, as cotas raciais foram adaptadas ao modelo possível, priorizando a efetiva inclusão social. À medida que avançamos no debate, torna-se crucial destacar a relevância da revisão da Lei e o desenvolvimento de políticas públicas efetivas para garantir a permanência dos estudantes beneficiados. Nesse sentido, reconhecemos que a autodeclaração como único critério apresenta limitações para assegurar que a Lei beneficie genuinamente os candidatos negros, o que demanda a regulamentação da etapa de heteroidentificação como complemento à autodeclaração. Além disso, é necessário examinar cuidadosamente o critério de renda em uma cota que visa principalmente à vulnerabilidade social, avaliando se o critério estabelecido na subcota social não limita sua efetividade. Por fim, reforçamos a importância de estabelecer diretrizes que atendam às demandas dos estudantes que ingressaram por programas de Ação Afirmativa, garantindo recursos para apoio pedagógico e atividades acadêmicas-culturais que ampliem as vivências dentro das instituições.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. (Feminismos Plurais / coordenação Djamila Ribeiro).
AMARAL, Shirlena Campos de Souza. O acesso do negro às instituições de ensino superior e a política de cotas: possibilidades e limites a partir do caso da UENF, 2006. 244 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Sociais) - Centro de Ciências do Homem, Universidade Federal do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Campos de Goytacazes, RJ, 2006.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Imprensa Oficial, 1988.
BRASIL. Decreto nº 7.824, de 11 de outubro de 2012. Regulamenta a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. 2012b. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7824.htm . Acesso em: 24 set. 2021.
BRASIL. Decreto nº 9.034, de 20 de abril de 2017. Altera o Decreto n º 7.824, de 11 de outubro de 2012, que regulamenta a Lei n º 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9034.htm . Acesso em: 24 set. 2021.
BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. 2012a. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 30 ago. 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 28 maio 2021.
BRASIL. Lei nº 13.409, de 29 de dezembro de 2016. Altera a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, para dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 29 dez. 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Lei/L13409.htm. Acesso em: 24 set. 2021.
CONGRESSO NACIONAL (Brasil). Projeto de Lei nº 73/1999. Matérias Bicamerais. Brasília, DF. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-73-1999. Acesso em: 12 out. 2022.
DAFLON, Verônica Toste; FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico. Cadernos de Pesquisa, [São Paulo], v. 43, n. 148, p. 302-327, jan./abr. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/cp/v43n148/15.pdf. Acesso em: 22 out. 2022.
FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto. Ação Afirmativa no Brasil: Multiculturalismo ou justiça social? Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 99, p. 257–293, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452016000300257&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 23 out. 2022.
FERES JÚNIOR, João; CAMPOS, Luiz Augusto; DAFLON, Verônica Toste; VENTURINI, Anna Carolina. Ação afirmativa hoje. In: Ação afirmativa: conceito, história e debates [online]. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2018, p. 91-104. Sociedade e política collection. Disponível em: http://books.scielo.org/id/2mvbb. Acesso em: 20 out. 2022.
FERREIRA, Renato. Uma história afirmativa. As cotas raciais 20 anos depois. Revista da ABPN, v.13, n.38, p. 422–442, 2021. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1327. Acesso em: 27 jun. 2023.
GODOI, Marciano Seabra de, SANTOS, Maria Angélica dos. Dez anos da lei federal das cotas universitárias Avaliação de seus efeitos e propostas para sua renovação e aperfeiçoamento. Revista de Informação Legislativa, ano 58, n. 229, jan.-mar. 2021, p. 11-35. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/229/ril_v58_n229_p11.pdf. Acesso em: 12 out. 2022.
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. A recepção do instituto da Ação Afirmativa pelo Direito Constitucional brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto dos (org.). Ações Afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação: Unesco, 2005, p. 47-82.
LIMA, Márcia; CAMPOS, Luiz Augusto. Apresentação: Inclusão racial no ensino superior: impactos, consequências e desafios. Novos Estudos - CEBRAP, v. 39, n. 2, p. 245–254, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/3FkB7JMFqyTbxNkLZnXLxZf/?lang=pt. Acesso em: 28 jun. 2023.
MACHADO, Vanessa. Lei de Cotas no ensino superior e racismo institucional: conhecendo o trâmite legislativo da Lei 12.711/2012. 1ª edição. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2020.
MEDEIROS, Carlos Alberto. Ação Afirmativa no Brasil: um debate em curso. In: SANTOS, Sales Augusto dos (org.). Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas. Brasília: Ministério da Educação: Unesco, 2005, p. 111-139.
MIRANDA, Luma Doné. Do movimento negro à escola pública: como as ações afirmativas foram pensadas pelos parlamentares do Congresso Nacional. O Social em Questão, v. 24, n. 50, p. 83–106, 2021. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/5522/552266675019/html/. Acesso em: 2 jul. 2023.
MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: História e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 197–217, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000300011&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 2 jul. 2021.
REIS, Fábio Wanderley. O mito e o valor da democracia racial. Terceiro Milênio: Revista Crítica de Sociologia e Política, v. 1, n. 1, p. 20–32, 2013. Disponível em: https://revistaterceiromilenio.uenf.br/index.php/rtm/article/view/57. Acesso em: 23 out. 2022.
SANTOS, Adilson Pereira dos. Itinerário das ações afirmativas no ensino superior público brasileiro: dos ecos de Durban à Lei das Cotas. Revista de Ciências Humanas, v.12, n. 2, p. 289-317, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/RCH/article/view/3445. Acesso em: 2 jul. 2021.
SENKEVICS, Adriano Souza; MELLO, Ursula Mattioli. O perfil discente das universidades federais mudou pós-Lei de Cotas? Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 49, n. 172, p. 184- 208, abr./jun. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/198053145980. Acesso em: 12 out. 2022.
VALENTIM, Silvani dos Santos; PINHEIRO, Karine Libanhia Matias. Ações Afirmativas de base racial na educação pública brasileira. Educação & Tecnologia, v. 20, n. 1, 2015. Disponível em: https://periodicos.cefetmg.br/index.php/revista-et/article/view/712. Acesso em: 5 jul. 2022.
Notas
Notas de autor