Resumo: O trabalho propõe uma análise da apropriação conceitual por parte do Governo Federal e da empresa Vale da noção do risco ambiental no Brasil, a partir dos desastres que emergiram em 2019, com o rompimento da barragem em Brumadinho e com o derramamento de óleo na costa. A metodologia pautou-se em uma pesquisa hemerográfica. Concluiu-se que as palavras adotadas são utilizadas como forma de disputa pelo predomínio de uma determinada interpretação sobre os fatos, uma vez que se alteram mais em função dos sujeitos envolvidos e dos interesses em jogo e menos pelas consequências dos impactos para a população atingida.
Palavras-chave: Risco ambiental, Conteúdo do discurso, Políticas públicas.
Abstract: The work aims to analyze the appropriation conceptual by the Federal Government and the company Vale of the notion of environmental risk in Brazil, from the disasters that emerged in 2019, with the rupture of the dam in Brumadinho and with the spill of oil on the coast. The methodology was based on hemerographic research. It was concluded that the adopted words are used as a form of dispute for the predominance of a certain interpretation about the facts, since they change more depending on the subjects involved and the interests at stake and less because of the consequences of impacts on the affected population.
Keywords: Environmental risk, Content of speeches, Public policy.
Entre o óleo e a lama: a apropriação discursiva da noção de risco ambiental no Brasil
Between oil and mud: the discursive appropriation of the notion of environmental risk in Brazil
Recepción: 01 Octubre 2023
Aprobación: 01 Diciembre 2023
A questão ambiental emerge como um problema social e político no cenário global, a partir de meados do século XX, cuja história é curta e errática ganhando importância e atenção pública e política em momentos de crises sensíveis, mas que logo a seguir, são normalizadas e caem no esquecimento.
Neste artigo, busca-se refletir sobre o risco e sua apropriação discursiva como instrumento de poder nas disputas travadas no campo ambiental. Com base nos desastres que emergiram no ano de 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro na Presidência da República Federativa do Brasil, com o rompimento da barragem em Brumadinho, em janeiro de 2019, no estado de Minas Gerais, envolvendo a empresa Vale, e com o derramamento de óleo na costa, que teve início em agosto e se alastrou ao longo dos meses, sem um autor inicialmente conhecido, propõe-se a realização de uma análise dos conteúdos dos discursos, em especial dos representantes governamentais, sobre tais processos visando apresentar as estratégias pedagógicas utilizadas pela necropolítica (MBEMBE, 2018) para a neutralização e a normalização das narrativas de crimes ambientais.
Parte-se do entendimento de que as palavras e, de forma mais sistemática, os discursos adotados, materializam ideias, valores e concepções de mundo e são utilizados como forma de disputa pelo predomínio de uma determinada interpretação ou verdade sobre os fatos, o que se evidencia na medida em que esses se alteram mais em função dos sujeitos envolvidos e dos interesses em jogo e menos pelas consequências dos seus impactos para a população atingida. Assim, a análise dos discursos expõe as disputas e construções narrativas sobre fatos criando significações e ressignificações dos acontecimentos.
A metodologia adotada privilegiou um resgate teórico de categorias como risco ambiental (ACSERALD, 2002; VEYRET, 2007; PORTO, 2007; BECK, 2011; DOUGLAS & WILDAVSKY, 2012), meio ambiente e ambientalismo (MARTINEZ-ALIER, 2007; ALEXANDRE, 2015) e campo de disputas (BOURDIEU, 1994), seguida de uma pesquisa hemerográfica no jornal Folha de São Paulo (online), cuja escolha ocorreu em razão de ser um veículo de abrangência nacional e dos autores terem livre acesso ao seu arquivo de forma remota, considerando a pandemia da Covid-19 atravessado no período de realização da pesquisa.
Foram realizadas buscas com a palavra “Brumadinho”, no período entre 25 de janeiro e 25 de fevereiro de 2019, ou seja, durante um mês após o rompimento da barragem, e com as palavras “óleo” e “costa”, no período entre 1 de agosto e 31 de setembro de 2019, durante dois meses após a data de identificação das primeiras manchas de óleo nas praias brasileiras4. Esses períodos de coleta de dados hemerográficos foram escolhidos por reunirem grande quantidade de matérias, demonstrando a cobertura da opinião pública sobre o tema, especialmente no período da chamada crise aguda do desastre (VALENCIO, 2012).
No caso de Brumadinho, foram encontradas 629 matérias e 91 sobre o derramamento de óleo. Entre as matérias estiveram notícias, reportagens, artigos de opinião e fotografias. Foram priorizadas as matérias com informações sobre o posicionamento dos representantes governamentais e da empresa Vale, para Brumadinho, relacionados ao tratamento destinado aos casos. Apesar da maior parte ter sido publicada em língua portuguesa, também foram encontradas matérias em espanhol e inglês. A análise foi realizada à luz de autores e categorias apresentados e discutidos na primeira parte do estudo.
O artigo divide-se em três partes, a primeira dedicada à reflexão sobre a emergência da questão ambiental como um problema social e político, a segunda ao debate sobre o risco ambiental como instrumento de poder, a partir das categorias mencionadas, e a terceira à apresentação e análise dos casos, tendo como base as notícias veiculadas nos jornais. Conclui-se com breves considerações sobre a necessidade de descortinar a lógica que envolve tanto a produção dos riscos como o tratamento destinado aos atingidos direta e indiretamente após os impactos, em função dos argumentos dos sujeitos sociais envolvidos.
O desenvolvimento econômico e os ciclos do capital vivenciados ao longo do século XX e nas primeiras décadas do século XXI têm como consequências, além da concentração da riqueza e da expropriação de trabalhadores, o aumento dos desastres ambientais. A diversidade dos produtos manipulados e a crescente aceleração da produção, são alguns dos fatores que tornaram os processos industriais mais complexos e perigosos. Em que pesem as fragilidades relativas aos registros de desastres, presentes, ainda que por razões distintas, tanto em períodos remotos quanto na atualidade, os levantamentos demonstram que seus impactos aumentaram em frequência e intensidade e, ainda, em gravidade de seus danos.
Ao adortar-se a mesma lógica que envolve a compreensão do surgimento da questão social, segundo a qual se trata de um processo que envolve tanto o aspecto econômico como o aspecto político (PASTORINI, 2007), para a compreensão da questão ambiental, é possível afirmar que ela surge no momento em que a problemática ambiental emerge como uma pauta de luta.
Nesse sentido, o processo de degradação ambiental, apesar de estar presente no Brasil desde a colonização, conforme identificado nos relatos de personalidades da história nacional e pertencer à gênese do sistema capitalista, como já demonstrado por Chesnais & Serfati (2003), Löwy (2013) Meszáros (2011), entre outros estudiosos, vai se tornar uma questão a partir de meados do século XX, quando segmentos da sociedade passam a apresentar a problemática da finitude dos recursos naturais e a preocupação com as futuras gerações de maneira mais consistente e organizada. Todavia, tais questionamentos só adquiriram um crivo anticapitalista, incluindo críticas ao tipo de sistema e aos rumos do desenvolvimento adotado, e passaram a ser permeados por aspectos que envolvem, além da classe, a questão de raça/etnia como aspecto determinante dos atingidos, no final do século XX, tendo o movimento de justiça ambiental nos EUA como um de seus principais motivadores (ACSELRAD, 2002).
Segundo alguns autores (MARTINEZ-ALIER, 2007; ALEXANDRE, 2015) o movimento ambientalista pode ser compreendido de acordo com suas fases: o Culto ao Silvestre, que representou um primeiro momento da constituição do ambientalismo, em que o discurso se fixava na perspectiva conservacionista de proteção da natureza, tomando o afastamento do ser humano com o meio natural como fator primordial para a preservação ambiental; a segunda fase é chamada de Evangelho da Ecoeficiência e se caracteriza pela aposta nos processos de gestão ambiental e nas normatizações enquanto mecanismos para uma pretensa “reforma” do modelo capitalista, numa tentativa de adequá-lo as variáveis ambientais, de modo a aumentar a eficácia, eficiência e produtividade do sistema; a terceira etapa se caracterizaria com o que Martinez-Alier (2007) chama de Movimento por Justiça Ambiental, que compreende a inserção de movimentos sociais, povos indígenas, populações tradicionais e grupos em situações de conflitos com suas reinvindicações, demandas e questionamentos. Com isso, o autor defende que existe um Movimento Ambientalista Internacional e que o pensamento ambientalista foi se transformando ao longo do tempo, na medida em que encontrava ressonância em diferentes espaços sociais.
O acionamento da noção de campo de poder de Pierre Bourdieu (1994) contribui para a compreensão desse processo. Nesse sentido, a questão ambiental é claramente um campo de disputa de poder político, econômico e produtivo, mas, também, semântico. Verifica-se que, nos excertos selecionados, a semântica das narrativas a respeito dos crimes de Brumadinho e do derramamento do óleo na costa brasileira parecem hegemônicas, o que revela um polo dominante que tem muito pouco incentivo a debater num ambiente público e não controlado. Ou seja, a questão ambiental é discutida e interpretada num campo de poder em que um dos polos tem muito poder e articula esse poder para controlar e ditar a semântica narrativa válida.
Nesse sentido, se a emergência de críticas no bojo do pensamento ambientalista não foi suficiente para garantir a alteração de visões e posicionamentos já consolidados no que se refere à sociedade e seu funcionamento, ao menos materializou um campo no qual existe uma disputa de narrativas. Ainda que marcado pela desigualdade entre as forças que o compõem, tendo em vista um atravessamento predominante das ciências naturais, pela técnica apreendida como sinônimo de neutralidade, pela suposta objetividade como direcionadora das decisões tomadas, a ideia de campo coloca em evidência as diferentes concepções de mundo, os interesses distintos e antagônicos, atravessados pelas histórias e trajetórias dos sujeitos concretos que nele se inserem.
O risco tem sido adotado por diferentes áreas de conhecimento ao longo dos séculos e constitui objeto de estudo de segmentos variados. Em linhas gerais, assiste-se a uma popularização do seu conceito (PORTO, 2007). No entanto, a sua compreensão, assim como das suas possíveis tipificações, está longe de ser considerada consensual.
Atribuído a situações distintas em diferentes momentos da história da humanidade, é no advento da sociedade moderna que a palavra adquire sentido negativo (LIEBER & ROMANO-LIEBER, 2002). Apesar da hegemonia da perspectiva objetivista, a ideia de que o risco não se fundamenta apenas em fatores objetivos e que constitui uma construção social tem avançado e encontra-se presente nas abordagens de Giddens (1991), Acselrad (2002), Porto (2007), Veyret (2007), Beck (2011) e Douglas & Wildavsky (2012), entre outros estudiosos do tema. Porém, ainda assim, as ramificações decorrentes desse entendimento são muitas.
Enquanto Beck & Giddens (1995) defendem a ideia de que a sociedade industrial foi substituída pela sociedade de riscos, em uma perspectiva de que o risco tem um caráter global, Douglas & Wildavsky voltam a atenção para o aspecto cultural dos riscos na medida em que enfatizam o papel da subjetividade na percepção, prevenção e resposta aos riscos.
Embora considere a tipologia dos riscos incompleta e esquemática, tendo em vista a interação inerente a eles, Veyret faz uso de uma classificação de riscos para abordar o tema. Ao tratar dos riscos ambientais, afirma que esses “resultam da associação entre os riscos naturais e os riscos decorrentes dos processos naturais agravados pela atividade humana e ocupação do território” (VEYRET, 2007, p. 63). A autora também aborda a importância do contexto histórico de produção de riscos, o qual envolve relações, espaço geográfico e modos de ocupação e chama a atenção para as distinções entre países ricos e pobres no tratamento e na vivência dos riscos, reconhecendo-os como indicadores de desenvolvimento desigual.
Mas é em Porto (2007) e Acselrad (2002) que a parcialidade e a intencionalidade presentes na ideia de risco tornam-se mais concretas. De acordo com Porto (2007, p. 83), “os riscos encontram-se impregnados tanto nos projetos dos sistemas tecnológicos e produtivos quanto nos modelos gerais de desenvolvimento que conformam determinada sociedade”. O autor propõe uma compreensão ampliada dos riscos, incorporando, entre outros aspectos, a relevância do movimento por justiça ambiental. Em seu entendimento, os riscos são multidimensionais e cíclicos e, para serem compreendidos torna-se necessário considerar os lugares, as pessoas e o tempo. Ao lançar luz sobre esses elementos, demonstra que a noção de risco está impregnada da ideia de poder, pois “são produzidos por decisões e ações tomadas em estruturas políticas e sociais de poder que desprezam o valor da vida dos que sofrem como o desenvolvimento econômico” (2007, p. 87).
Acselrad (2018) vai afirmar que a irresponsabilidade organizada de classe orienta as escolhas, não aleatórias, sobre os locais nos quais os empreendimentos serão instalados. Segundo o autor, esse processo envolve o (mau) encontro entre fonte de risco, condição social e racial, decisões de localização de objetos e atividades e decisões conducentes a processos de valorização e desvalorização imobiliária e dos preços da terra.
Seguindo a perspectiva adotada por Acselrad (2018) é possível afirmar que a “irresponsabilidade organizada de classe” encontra-se presente também nas respostas relativas aos riscos já produzidos e não apenas nos processos que envolvem a sua produção.
Entretando, essa relação do risco com o poder nem sempre é visível. A hegemonia da perspectiva técnica, que configura o que Porto (2007) vai denominar “alienação epistemológica”, tendo em vista a ausência de incorporação de outros conceitos e saberes que contribuam para uma concepção mais ampla desse conceito, em sua perspectiva, vem acompanhada da ideia de perfeição. É como se as justificativas de tomadas de decisão, ao serem baseadas em cálculos objetivos, dessem conta de eliminar por completo as intencionalidades presentes nesses processos. Trata-se, portanto, de uma configuração perfeita para a inserção da busca de um culpado (PORTO, 2007), presente em muitos desastres ocorridos no Brasil, como verificar-se-á na análise de um dos casos que compõe o estudo.
Nesse breve resgate das concepções de risco, cabe mencionar que nem todos os pesquisadores voltados para a compreensão dos processos societários que envolvem impactos ambientais adotam o risco como uma perspectiva de análise. Quarantelli (2005), um dos precursores da Sociologia dos Desastres, entende que o foco deve estar nos desastres, entendidos como processos sociais que englobam os riscos, e não nos riscos propriamente ditos. Quarantelli argumenta que a ênfase nos riscos leva a atenção para os fatores físicos e não para a dimensão social que estrutura os desastres.
Em que pese a concordância com o posicionamento do autor, e também o distanciamento da ideia de risco como elemento estruturante da sociedade atual, a abordagem do risco como instrumento de poder configura-se como objeto de análise essencial para o estudo sobre como as crises agudas dos desastres são geridas pelo poder público após os impactos havidos, tendo em vista ser um dos componentes centrais nas narrativas em disputa no campo ambiental, como já mencionado, além de permanecer sendo produzido e afetando determinados segmentos da população.
Com a manutenção de aspectos limitantes presentes historicamente no tratamento dos desastres como a culpabilização dos pobres, a hegemonia das tecnicalidades, o alívio da responsabilidade das empresas e a individualização das demandas (ACSELRAD, 2018), a emergência de desastres de grande monta nos primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro traz novas nuances à forma como essa questão vinha sendo tratada em governos anteriores. O neoconservadorismo e a ascensão da ultradireita ao poder elevam à alta potência os desafios postos nesse campo. Como afirma Bocayuva (2020, n.p.), “a extrema direita combina fantasias, fantasmas e negações na sua compulsão por resolver os problemas e conflitos pelo acentuar da pulsão da morte, pela via do sacrifício suicida das populações ou do morticínio fratricida”.
Nesse sentido, a discussão sobre o conceito de risco como instrumento de poder é atravessada também pela assimetria entre quem detém as informações e quem as enuncia quando emerge um determinado desastre. Tal situação fica evidenciada, quando empresas e representantes governamentais se apresentam como os detentores do conhecimento e da informação e, em muitos casos, monopolizam o enunciado das narrativas acerca dos desastres. Tal condição confere a esses sujeitos uma posição extremamente desigual em relação aos atingidos.
Esta realidade foi evidenciada a partir da análise das matérias jornalísticas, as quais, juntamente com o aporte teórico apresentado, ofereceram os subsídios para a elaboração da próxima subseção.
No dia 25 de janeiro de 2019 ocorreu o rompimento de barragem de grandes proporções em Minas Gerais. A mina Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, se rompeu e a lama se deslocou arrasando tudo o que encontrava. Esse desastre causou a morte de 272 pessoas, sendo 3 desaparecidas. O caso segue o caminho das catástrofes causadas pelos grandes empreendimentos no Brasil, que produzem crimes contra a humanidade e o meio ambiente de maneira mais geral.
Alguns anos antes, em 5 de novembro de 2015, a população de Bento Rodrigues, em Mariana/MG, foi surpreendida com o rompimento da barragem do Fundão, de responsabilidade da empresa Samarco. A lama avançou pelo rio do Carmo, desaguando no rio Doce. Foram 19 mortos, toda uma localidade destruída e danos ambientais incalculáveis. Foram encontrados metais pesados em Abrolhos, região situada no Sul do estado, reconhecida mundialmente pela sua diversidade marinha. Considerado o maior desastre socioambiental até então, o impacto provocado pela Samarco ocorreu no mesmo ano em que a empresa foi eleita pela 5ª vez a melhor mineradora brasileira pela Revista Exame (SALOMÃO & MELO, 2015)
A forma como a Vale e a Samarco lidaram com o desastre foi analisada por Dutra; Pereira & Pase (2021). As empresas divulgaram vídeos em cadeia nacional para comunicar à sociedade sobre o ocorrido. No caso de Brumadinho, o presidente da Vale, Fábio Schvartsman, foi seu protagonista e, de forma análoga ao que fez a Samarco em Mariana, afirmou que o acontecimento foi ‘um acidente, um evento isolado e imprevisível’. A diferença é que Schvartsman fez um pedido de desculpas e um lamento, inexistentes no vídeo gravado por Ricardo Verscovi, da Samarco, três anos antes.
A proximidade entre os impactos e a sua gravidade expressa uma aparente ausência de aprendizados por parte do setor de mineração e da empresa Vale, de forma mais específica, com o caso da Samarco. Relatos de técnicos, juristas e moradores denunciaram a rapidez e pressões no processo de licenciamento, a ausência de fiscalização, além da inexistência de alarmes antes do rompimento da barragem de Brumadinho. Acrescenta-se ainda a manutenção do refeitório dos funcionários e a própria sede da empresa à jusante da barragem, mesmo após a indicação sobre a possibilidade de serem atingidos, conforme descrito no plano de emergência da empresa (VETTORAZZO et al., 2019).
Todos esses aspectos demonstram, se não o excesso de confiança nas instalações conforme apontou o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Bruno Milanez ao afirmar “eles acreditam que barragens são seguras, de verdade. Se não acreditassem nisso, não colocariam o refeitório da mineradora embaixo de uma.” (AMARAL, 2019) ou a negligência em relação à vida de trabalhadores e trabalhadoras, moradores da região, em nome da manutenção das taxas de lucro da mineradora. Nesse sentido, a fala do então presidente da Vale, Fabio Schvartsman, mais de duas semanas após o rompimento, é emblemática. Em depoimento prestado na Comissão externa da Câmara dos deputados, em Brasília, Schvartsman definiu a mineradora como uma “joia” e que, portanto, não poderia “ser condenada por um acidente, por maior que tenha sido a tragédia” (BOLDRINI & MORAES, 2019)
O presidente Jair Bolsonaro, que se encontrava hospitalizado no dia do impacto e assim permaneceu por alguns dias seguintes, lamentou o ocorrido e afirmou que a maior preocupação era com o atendimento das vítimas.
Em 30 de agosto de 2019, em três praias do litoral paraibano, apareceram os primeiros sinais do que viria ser identificado como o maior derramamento de petróleo no litoral brasileiro. Uma vez que as manchas foram surgindo gradativamente em vários pontos do litoral, até 30 de setembro de 2019, a tragédia ambiental havia atingido 1.003 locais em mais de 127 municípios em 11 estados brasileiros. Segundo a Marinha do Brasil, as consequências finais ainda não conseguem ser dimensionadas (MADEIRO, 2020).
Na impossibilidade de identificação do responsável pelo desastre de forma imediata, o governo brasileiro passou a fazer insinuações aleatórias, conforme poderá ser verificado adiante. Em que pese a importância da responsabilização, o nível de especulação e a insistência na identificação de um culpado chamaram a atenção, o que remete às análises de Bocayuva e o modus operandi da extrema direita (2020).
As primeiras declarações do Presidente Jair Bolsonaro deixaram no ar o país culpado, assim como a possível motivação do vazamento. “O presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou nesta segunda-feira (7) que o governo já tem “no radar” um país de onde poder ter partido o óleo que atinge as praias do Nordeste brasileiro desde o início de setembro” (Fernandes & Pamplona, 2019) e que não descartava uma ação criminosa, uma vez que “É um volume que não está sendo constante. Se fosse um navio afundado, estaria saindo ainda óleo” (PAMPLONA, 2019)
Poucos dias depois, estudos das características do óleo, feitos pela Petrobras e pela Universidade Federal da Bahia, levaram os representantes do Estado brasileiro a acusarem a Venezuela. O petroleiro grego Bouboulina que passara próximo ao litoral brasileiro naquele período também foi alvo de acusação. Tanto a Venezuela quanto a empresa responsável pelo petroleiro grego negaram responsabilidade no caso. Barris da Shell encontrados em algumas praias também levaram a empresa a responder às acusações de responsabilidade, contudo, apesar da Polícia Federal ter concluído as investigações e apontar o navio de bandeira grega como responsável pelo vazamento, até o momento do fechamento desse artigo, a tragédia do derramamento de óleo no litoral brasileiro está impune.
Ademais, outros aspectos chamam a atenção. A excessiva preocupação em relação à busca de um culpado não veio acompanhada da preocupação em “atender eventuais vítimas desta grave tragédia” (CHOUCAIR, 2019), expressa por Bolsonaro no caso de Brumadinho. Nos materiais jornalísticos analisados não foram encontradas declarações dos representantes do poder público, como o Presidente Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão, tampouco do então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que estivessem voltadas para o impacto do óleo no mar para os pescadores, para a população local que vive do turismo, tampouco para os voluntários que atuaram na limpeza das praias, muitas vezes fotografados sem equipamentos de proteção individual para o trabalho realizado, apesar das declarações frequentes dos políticos sobre o caso publicadas na imprensa. Ressalta-se que a atuação do exército na limpeza teve início quase dois meses após o aparecimento das primeiras manchas de óleo. Sob a alegação de que não havia necessidade, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, justificou a atuação tardia. De acordo com Salles, “Não julgávamos ser necessário, mas, quando foi preciso, nós empregamos o Exército” (VALADARES, 2019).
Também merece destaque a falta de informações claras sobre o destino dos rejeitos de óleo retirados das praias. A ausência de informações sobre a quantidade, forma e local de armazenamento evidenciam a falta de condições de tratamento dos riscos e a ênfase nos impactos. No governo em questão, mascaradas pela busca de um culpado e pela supervalorização da economia. Bolsonaro chegou a levantar a hipótese de o vazamento de óleo ter sito provocado com o objetivo de atrapalhar o megaleilão de petróleo da cessão onerosa previsto para ocorrer no mês de novembro de 2019. “Coincidência ou não, nós temos um leilão da cessão onerosa. Eu me pergunto, a gente tem que ter muita responsabilidade no que fala: poderia ser uma ação criminosa para prejudicar esse leilão? É uma pergunta que está no ar.” (FONSECA, 2019).
No que esses casos se assemelham e se diferenciam? O caso de Brumadinho foi tratado, majoritariamente, como acidente, ou seja, como evento isolado e imprevisível, cuja narrativa foi reforçada por alguns representantes do governo brasileiro. Em reunião dos deputados federais de Minas Gerais, realizada semanas após o rompimento da barragem de Brumadinho, Romeu Zema (Partido Novo), governador de Minas Gerais, classificou o caso como um “incidente” (CHEREM, 2019). Discurso semelhante ao realizado em 2017, quando o Ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, tratou o desastre de Mariana como uma fatalidade, sobre a qual não se tem controle. Buscando eximir a responsabilidade do Estado, o Vice-Presidente, Hamilton Mourão, afirmou que ‘... essa conta não pode vir para a gente...’ (BRANDÃO, 2019).
Já o derramamento de óleo é permeado pelo espectro da intencionalidade, como algo provocado pelos inimigos do governo. Em uma análise sobre Mariana, local no qual a outra barragem de rejeitos se rompeu, no ano de 2015, Zhouri et al. (2016, p. 37) afirmam: “Através de uma análise enviesada do desastre, o Estado cria bases para suscitar uma elaboração interpretativa na qual a Samarco se torna uma entre as demais vítimas das circunstâncias”.
A análise dos casos desse estudo não se diferem muito da constatação da autora. Tanto no caso de Brumadinho, como do derramamento de óleo, a vitimização da Vale - empresa responsável pela barragem - e do Estado brasileiro está presente, deslocando o foco dos atingidos, das consequências e, principalmente, reforçando a negligência em relação aos riscos. Todavia, enquanto em Brumadinho as primeiras declarações sobre a necessidade de penalização da empresa vão dando lugar ao discurso sobre a importância de suas atividades para a economia, no apelo ao retorno à normalidade e ao esquecimento, no caso do derramamento de óleo, a busca pela isenção de responsabilidade governamental se entrelaça com as insinuações frequentes de responsabilização de petroleiros que passaram pelo litoral do país vizinho, a Venezuela, país cujo contexto político foi antagonizado e utilizado nas campanhas eleitorais do então presidente brasileiro.
Ademais, o uso político-ideológico não parou por aí. Se, por um lado, a oferta de serviços de médicos cubanos para atuarem em Brumadinho ficou sem resposta por parte do governo, apenas dois dias após o rompimento da barragem, notícias sobre o desembarque de uma equipe Israelense em território brasileiro para ajudar nas buscas já circulavam nas mídias, não obstante os questionamentos sobre a sua eficácia para atuação no caso. Já no caso do derramamento de óleo a atuação do governo foi mais incisiva no que se referiu à busca de culpados. A limpeza das praias, como já apontado, em muitos locais ficou por conta de voluntários, alguns também atacados pelo governo, como foi o caso do Greenpeace, acusado de ter relação com o derramamento de óleo.
Tais análise demonstram que os desastres de grande vulto que ocorrem internamente, envolvendo empresas privadas, são narrados como isolados, imprevisíveis, inexoráveis, portanto, neutros quanto à responsabilidade. Já o derramamento de óleo, no qual há a possibilidade de atribuição da culpa a inimigos políticos do governo brasileiro, é considerado um desastre internacional provocado.
Neste sentido, algumas interpretações clássicas e reconhecidas acomodam essa narrativa, como é a de Anthony Guiddens cujo argumento afirma que os riscos fazem parte do defeito do projeto da modernidade.
Segundo Alexandre (2000), a modernidade de Giddens é reflexiva em decorrência da produção de sempre novas informações ou em decorrência da necessidade dessas informações produzidas virem em socorro às consequências sociais imprevisíveis que são produzidas. Já a modernidade em Ulrich Beck deve ser reflexiva, ou seja, deve questionar o cheque em branco entregue à ciência para produzir exatamente os meios para se chegar a produção dessas consequências imprevisíveis.
A naturalização, imprevisibilidade e inevitabilidade que compõem a narrativa dos desastres internos se constituem como uma ontologia, que produz uma epistemologia perversa. Uma forma de compreender o fenômeno esvaziando a sua carga valorativa em troca da precificação da vida das pessoas e da natureza. Desse processo, faz parte a retirada da responsabilidade daqueles que agem / agridem o ambiente da forma como convém.
Sob esta perspectiva talvez seja possível concordar com Giddens & Beck (1995), pois se o projeto de modernidade é o projeto capitalista, sim, ele se apropria da ciência para a produção de lucro. Neste sentido, a própria especialização e compartimentalização científica facilita que interpretações sistêmicas sejam desconsideradas e a interdisciplinaridade interditada.
Outra compreensão importante é aquela sobre o “aprendizado” das empresas em relação à segurança de seus empreendimentos, cuja análise pode ser feita a partir de Pierre Bourdieu (1994). Sua teoria mostra que em qualquer área existe uma disputa de poder, em que a apropriação do capital valorizado decreta o vencedor da disputa, ou o poderoso, em determinado campo e, não menos importante, quem participa do polo vencedor desse campo.
Nos casos em tela um dos capitais mais acionados pelos vencedores é o cinismo político. É cínica a afirmação da Samarco que o desastre foi isolado e imprevisível. É cínica a teoria da conspiração, acionada pelo governo Bolsonaro, ao atribuir o derramamento de óleo a um petroleiro Venezuelano. Assim, o cinismo se torna uma estratégia político-pedagógica valiosa para ser utilizada à conveniência das situações e sob as quais novos critérios de verdade e novas narrativas vão sendo estabelecidas, reescrevendo os eventos e fatos de acordo com os interesses políticos e ideológicos hegemónicos. Pretende-se afirmar que quanto maior o estoque de cinismo, maior a capacidade de vencer a disputa de poder, seja ela discursiva ou mesmo jurídica.
As evidências são encontradas quando se percebe que as ações da Vale reafirmaram o conceito de desastre como acidente, conforme já havia sido feito pela Samarco, em Mariana, acionando a irresponsabilidade social, além de montar e acionar uma equipe multidisciplinar para acelerar a celebração de acordos individuais. A falta de aprendizado em relação aos desastres, aparentemente visível em Brumadinho, não se repete quando se trata de evitar ou diminuir os custos e o desgaste político da empresa.
No caso das reações do governo federal ao derramamento de óleo, o cinismo é seguramente a arma mais usada como mostra a insistência em acusações sem qualquer comprovação, estímulo à disputa de diagnósticos entre organizações do governo, como Petrobras e Marinha do Brasil, reação desinformada do Ministério de Relações Exteriores, entre outras.
Isto posto, entende-se que o estoque de cinismo compõe um importante capital dentro do campo de disputas entre fatos e versões sobre crises e desastres ambientais diluindo ou instrumentalizando o risco e as responsabilidades, conforme a necessidade.
Outra interpretação, a partir da necropolítica de Achille Mbembe, dirá que esses desastres são frutos de grandes empreendimentos que tem um objetivo principal, criação de meios para produzir bens e / ou serviços em forma de mercadoria que possa ampliar a acumulação de riqueza para alguns e a distribuição da pobreza, e do desastre, para muitos. Em alguma medida, essa interpretação remete a uma velha visão do capitalismo mediano, cuja variável meio ambiente era considerada infinita e inesgotável. Muito embora a ciência tenha avançado ao ponto de mostrar que a percepção registrada pelo Relatório Brundtland é verdadeira e científica, muitos agentes econômicos e políticos ignoram solenemente esses alertas (CMMAD, 1988).
Neste artigo partiu-se do pressuposto de que o ambiente, de forma mais geral, e os riscos, de maneira mais específica, constituem um campo de disputa, o que implica em conhecer e apreender as diferentes e contraditórias narrativas e discursos também relacionados à definição dos casos em questão e o tratamento a eles destinado. Esta opção epistemológica permite analisar com propriedade as linguagens e os capitais em disputa, o que se evidencia no risco ambiental, o qual constitui um potente instrumento de poder.
Entende-se que as verdadeiras causas dos desastres são decisões tomadas ou que deixaram de ser tomadas pautadas em uma forma de organização social na qual prevalece um tipo de desenvolvimento com ênfase nos aspectos econômicos e descolados dos aspectos sociais. Essa lógica vai produzir, conceber e tratar tanto os riscos ou, mais amplamente, os desastres, de forma a privilegiar determinados segmentos em detrimento de outros. O escamoteamento do discurso e da técnica e a busca da neutralidade ganham visibilidade ao se analisar como representantes do poder público e empresas responsáveis pelos impactos vão se comportar diante deles.
Portanto, a surpresa demonstrada no caso de Brumadinho, como se a sociedade estivesse diante de algo inesperado, e a procura por um culpado, no caso do derramamento de óleo, encobrem a ganância por produtividade e os lucros incessantes, os licenciamentos apressados, a falência da fiscalização, os acordos políticos e, principalmente, a desconsideração com a vida de homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras e com a natureza.
Ambos os casos nos remetem a crimes ambientais. E esse é um aspecto fundamental que vai na contramão da lógica predominante. De acordo com Siqueira et al. (2018), crime pressupõe penalidades, acidentes muitas vezes deixam omissos problemas relacionados ao licenciamento ambiental, à fiscalização, à análise de riscos e, especialmente, às medidas a serem tomadas junto à população. Contudo, a responsabilização deve ser buscada considerando as relações de poder e não um viés ideológico que atenda aos anseios das classes dominantes, no caso de uma prisão apressada de trabalhadores, como ocorreu em Brumadinho; ou da opinião pública mais conservadora, que tem a Venezuela como inimigo a ser combatido. Ademais, é necessário que ela ultrapasse essa questão e adquira um caráter mais profundo, que sirva para repensar a racionalidade e criar focos de resistência.
Nesse sentido, entender as disputas de narrativas e os processos pedagógicos que são produzidos em contextos de desastres torna-se algo fundamental para desarmar as armadilhas da invisibilização, mas também de culpabilização desses crimes premeditados. Evidenciar o estoque de cinismo como estratégia político-pedagógica das disputas de narrativas que emergem de situações que expõe o projeto da necropolítica é, portanto, um imperativo para uma sociedade verdadeiramente comprometida com a vida das presentes e futuras gerações.