Resumo: Estudo sobre a proteção social para as pessoas atingidas pelo desastre socioambiental da Samarco/Vale/BHP Billiton no rio Doce, com o objetivo de analisar como se configura normativamente a proteção social para as comunidades atingidas e como ela se insere nos marcos do capitalismo brasileiro. Relacionaram-se, nessa análise, a estrutura de proteção social criada para as pessoas atingidas e os marcos teóricos neoliberais que servem de fundação para a atual política social brasileira. Concluiu-se que as marcas do sistema nacional protetivo (focalização, privatização e descentralização), combinadas ao controle das empresas poluidoras sob o processo de (suposta) reparação, exacerbaram, no caso analisado, as deficiências do modelo.
Palavras-chave: Desastre tecnológico, Proteção social, Mineração, Populações atingidas por barragens, Samarco/Vale/BHP Billiton.
Abstract: Study on social protection for people affected by the Samarco/Vale/BHP Billiton disaster on the Doce River, with the objective of analyzing how social protection for the affected communities is normatively configured (in its scope) and how it fits into the framework of Brazilian capitalism. In this analysis, the social protection structure created for the affected people and the neoliberal theoretical frameworks that serve as the foundation for the current Brazilian social policy were related. It was concluded for now that the marks of the national protective system (targeting, privatization and decentralization), combined with the control of polluting companies under the process of supposed restoration, exacerbated in the case analyzed the general deficiencies of the model.
Keywords: Technological disaster, Social protection, Mining, Populations affected by dams, Samarco/Vale/BHP Billiton.
Governança e (des)proteção social: um estudo sobre o desastre socioambiental da Samarco/ Vale/BHP Billiton no rio Doce
Governance and social (dis)protection: a study about the Samarco/Vale/BHP Billiton social and environmental disaster in Doce river
Recepción: 01 Octubre 2023
Aprobación: 01 Diciembre 2023
No dia 5 de novembro de 2015 rompeu, em Mariana/MG, a barragem do Fundão, pertencente à Mineradora Samarco S.A., uma joint-venture entre a brasileira Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton, que matou 19 pessoas e derramou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração. Esse é o maior desastre4 envolvendo barragens de mineração do mundo, considerando os registros iniciados em 1915 (BOWKER ASSOCIATES, 2015). No Brasil, foi considerado o maior desastre ambiental já documentado: atingiu 46 municípios, sendo 36 em Minas Gerais (MG) e 10 no Espírito Santo (ES) (ver Figura 1). Os rejeitos atingiram o rio Doce e, posteriormente, chegaram à costa atlântica no ES contaminando, portanto, o rio e o mar.
Figura 1: Municípios atingidos pelo desastre socioambiental da Samarco/Vale/BHP Billiton no rio doce
Fonte: Elaboração própria.
Nota: O desastre socioambiental atingiu 46 municípios, sendo 36 em Minas Gerais (MG) e 10 no Espírito Santo (ES). Em MG foram atingidos os municípios de Mariana, Governador Valadares, Barra Longa, Sem Peixe, Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado, Rio Casca, São Domingos da Prata, São José do Goiabal, São Pedro dos Ferros, Dionísio, Raul Soares, Córrego Novo, Pingo D´Água, Marileia, Bom Jesus do Galho, Caratinga, Timóteo, Santana do Paraíso, Bugre, Iapu, Coronel Fabriciano, Ipaba, Ipatinga, Belo Oriente, Naque, Periquito, Sobrália, Fernandes Tourinho, Alpercata, Tumiritinga, Galileia, Conselheiro Pena, Resplendor, Itueta e Aimorés. No ES foram atingidos os municípios de Baixo Guandu, Marilândia, Colatina, Linhares, Aracruz, Serra, Fundão, Sooretama, São Mateus e Conceição da Barra
A regulamentação das ações de reparação foi efetivada a partir da assinatura, em 02 de março de 2016, de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC)(IBAMA-TTAC,2016) entre o Estado brasileiro e as corporações envolvidas. Nesse instrumento foram previstos 42 programas para a recuperação, mitigação, remediação, reparação e indenização pelos impactos socioambientais e socioeconômicos, a serem executados por uma fundação privada (Fundação Renova5), mantida pelas empresas poluidoras e fiscalizada por um Comitê Interfederativo (CIF), com representantes dos entes públicos interessados. Esse modelo de governança prevê que os 23 programas que versam sobre aspectos socioeconômicos sejam agrupados em sete grandes eixos temáticos: i) Organização Social; ii) Infraestrutura; iii) Educação, Cultura e Lazer; iv) Saúde; v) Inovação; vi) Economia; e vii) Gerenciamento do plano de ações.
No eixo Organização Social está o Programa de Proteção Social (PPS), Cláusulas 54 a 58, cujo objetivo é “(...) promover a proteção social, por meio de ações socioassistenciais, incluindo ações socioculturais e apoio psicossocial, acompanhamento às famílias e indivíduos impactados pelo rompimento, priorizando os impactados com deslocamento físico” (IBAMA-TTAC, 2016, p.43-44). O programa é pautado em um protocolo integrado de atendimento com as redes socioassistenciais existentes nos territórios, direcionando ações aos atingidos em situação de vulnerabilidade e/ou risco social provocada e/ou agravada pelo desastre. A aprovação do escopo pelo CIF foi realizada em 2021 na Deliberação nº 533 (IBAMA-CIF, 2021b) e na Nota Técnica 49 da Câmara Técnica de Organização Social e Auxílio Emergencial (CTOS) (IBAMA - CTOS, 2021a).
No presente estudo, considera-se que o sistema de proteção social brasileiro se insere na perspectiva da matriz residual (PEREIRA, 2016), de modo que três tendências marcam o atual momento: (a) focalização, (b) privatização e (c) descentralização, cujas características também estão presentes no PPS do TTAC. Aquilo que o TTAC (IBAMA-TTAC,2016, p.44), em sua cláusula 57, considera proteção social remete às “regras e diretrizes” da assistência social brasileira e reporta a certos elementos presentes naquelas três tendências. Esses elementos do PPS/TTAC trazem, para as pessoas atingidas, os mesmos problemas que atingem toda a população brasileira, mas em grau ainda mais elevado, conforme será argumentado.
O objetivo deste artigo, portanto, é analisar o sistema de (des)proteção social criado para as comunidades atingidas pela Samarco/Vale/BHP Billiton no rio Doce por meio do PPS do TTAC (IBAMA-TTAC,2016), como forma de demonstrar que a estrutura criada é aderente às tendências neoliberais presentes nas atuais tendências da política social brasileira. A metodologia do estudo será de base documental e teórica, evidenciando a exacerbação da ótica neoliberal presente na proposta e execução de ações de (des)proteção social às pessoas atingidas a partir do TTAC, pesquisas, relatórios e notícias em diálogo com as categorias (ultra)focalização, privatização e descentralização.
Para atingir tal objetivo, o artigo se estrutura em três seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira seção dedica-se à (ultra)focalização, a segunda à privatização e a terceira à descentralização como tendências presentes no TTAC. O estudo conclui que as tendências da política social neoliberal, quais sejam, a focalização, a privatização e a descentralização, combinadas à delegação de controle sob o processo (supostamente) reparativos às empresas poluidoras, exacerbaram as deficiências gerais do modelo.
A legislação brasileira de proteção social aborda a realidade dos desastres de forma pontual e como um fator unicamente de risco social, produtor de vulnerabilidades e prevê a reparação integral. Não é toda a população atingida por um desastre que será merecedora da proteção, mas apenas aquela mais fragilizada à luz das disposições legais, o que deve ser feita de forma a atingir os “mais necessitados, temporária e comprometida com o mínimo” (PEREIRA, 2016, p. 133), mediante excessiva burocracia, por isso é focalizada.
As pessoas atingidas enfrentam a batalha de se apresentarem como vulneráveis perante o Estado, numa espécie de meritocracia às avessas ou até de meritocracia por destituição. Por essa lógica, a assistência para desastres - entendida aqui como benefício eventual diante da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) (BRASIL, 1993) - não está prevista. Há margem para que os entes públicos orientem a elaboração de novos arcabouços, a depender das necessidades de cada caso, desde que apresente uma das seguintes situações fáticas: nascimento, morte, vulnerabilidade temporária (momentânea) e calamidade pública. Logo, o rol é relativamente aberto, principalmente diante das hipóteses de incidência elencadas no quadro normativo.
Por certo, em caso de destruição massiva e abrupta, como nos desastres, benefícios poderiam integrar uma política social mais ampla e de longo prazo e não excludente e pontual. Do contrário, a assistência social transitória acaba por se conformar na principal solução de problemas (SITCOVSKY, 2010). Faz-se necessário, pelo exposto, que experiências recentes, como os estragos causados ao redor dos rios Doce e Paraopeba, resultem em algo de caráter mais permanente, por exemplo o previsto na Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), Projeto de Lei nº 2.788-A/2019 (BRASIL, 2019c).
Situadas essas deficiências do quadro nacional vigente, percebe-se os vícios da proteção social brasileira no caso da Samarco/Vale/BHP Billiton no rio Doce. De forma geral, muitas das cláusulas do acordo seguem essa lógica: tornar a proteção social às comunidades atingidas a exceção dentro do excepcional. Nesta seção são elencadas seis características que conformam a (ultra)focalização do PPS/TTAC.
A primeira característica de focalização do programa é a própria delimitação da população-alvo. Para ser atendida pelo PPS, além de comprovar ser atingido pelo desastre, deve-se demonstrar situação de abandono (ou de falta de capacidades para superar a vulnerabilidade), mesmo no caso em que se enquadra numa definição monetária de pobreza. E mais: deve-se demonstrar “(...) a identificação dos agravamentos e/ou instalação de situações de vulnerabilidade em função do [desastre]” (FUNDAÇÃO RENOVA, 2021, p. 12). Logo, a pessoa tem que provar para a Fundação Renova que esse contexto não precedeu ao desastre.
A segunda característica da focalização é que o TTAC trabalha com duas classes de pessoas atingidas: umas mais merecedoras de reparação (as diretamente atingidas) e outras menos (as indiretamente atingidas). Dessa maneira, apenas foram atingidas/impactadas, “(...) as pessoas físicas ou jurídicas, e respectivas comunidades, que tenham sido diretamente afetadas pelo EVENTO (...)” (2016, p. 7). A intenção de atender apenas os mais vulneráveis dentre os vulneráveis está implicitamente inscrita na cláusula 01. Para a Fundação Renova, somente os atingidos diretamente pelos rejeitos poderiam ser atendidos pelo programa, ao passo que, para os agentes públicos presentes no CIF, havia margem para uma leitura mais abrangente (IBAMA-CTOS, 2018b)6. Para estes últimos, no pós-desastre era nítido o problema social agravado pelo evento que abalou as populações residentes nas margens do curso d’água poluído e aumento de atendimentos no SUAS (IBAMA - CTOS, 2019b).
Os prejuízos à economia e à sociedade eram claros, mesmo num cenário de crise no Brasil. Com efeito, os postos de trabalho celetistas do setor de Agropecuária, Extração Vegetal, Caça e Pesca na macrorregião atingida, tiveram redução de 519 postos em 2015 e de 1.826 em 2016 (IBAMA - CTOS, 2018e, p. 141). Ainda no CIF propôs-se pensar a fragilidade da população ribeirinha e a sua íntima dependência com o rio (ibidem, p. 149), bem como estabelecer um projeto de proteção social para as pessoas atingidas que contemplasse uma solução ampla, que dialogasse com outras iniciativas do TTAC e promovessem a recuperação das capacidades perdidas, por meio de políticas de enfrentamento à pobreza numa região marcada por uma economia de baixo dinamismo e elevada informalidade (IBAMA-CTOS, 2018c).
Em que pese a contraproposta reformista, com acirramento a partir de 2017, prevaleceu a proposta das poluidoras (IBAMA - CIF, 2021b). Assim, o contingente de pessoas vulneráveis visado pelo PPS (Fundação Renova, 2021) representou, por exemplo, apenas um décimo do que previa o ES. O próprio CIF não concordou com o escopo delimitado pela Fundação Renova, tendo acatado a crítica da CTOS de que as definições adotadas são excludentes, não encontram amparo acadêmico e ofendem o acordo, bem como as leis e normas nacionais e internacionais (IBAMA-CIF, 2021b).
Na cláusula 06, VI, do TTAC, outro aspecto da focalização é a priorização, que estabelece que os projetos da Fundação devem priorizar “(...) os IMPACTADOS que tenham sofrido deslocamento ou que tenham perdido integralmente a capacidade produtiva e que satisfaçam os critérios estabelecidos neste Acordo” (IBAMA-TTAC, 2016, p. 18).
Logo, o acordo passa a adotar uma noção típica do discurso da escassez, ou seja, que os recursos seriam limitados frente à demanda, e, portanto, seria preciso fixar uma adicional gradação entre os atingidos. Em outras palavras, apenas aqueles que não possuem capacidades para a superação do desastre deveriam ter prioridade no atendimento. Tal delimitação não considera a noção de prioridade prevista em Lei (idosos, crianças, adolescentes, pessoas com deficiência), o que parece ter sido olvidado em prol de outros grupos. Isso marca a arbitrariedade do acordo no reforço da ideia de meritocracia às avessas (Pereira, 2016).
O quarto aspecto dessa focalização é a tentativa de delimitar, em escasso recorte temporal, as ações da proteção social. O acordo propôs que a filtragem de beneficiários deveria ser feita na temporalidade da cláusula 58 do TTAC (IBAMA-TTAC,2016): “(...) até 30 (trinta) dias da assinatura deste Acordo e (...) duração de 36 (trinta e seis) meses, a contar do seu início”. A perspectiva irreal – mitigada timidamente pelo parágrafo único dessa mesma cláusula, que previu a possibilidade de prorrogação por 12 (doze) meses – foi frustrada seguidas vezes.
Já a quinta característica, é a compreensão do campo de atuação de proteção social. Nas cláusulas do acordo que tratam do PPS (IBAMA-TTAC,2016, p.43-44), apesar de não haver conceituação, é delimitado um norte a ser perseguido, qual seja a promoção protetiva: “(...) por meio de ações socioassistenciais, incluindo ações socioculturais e apoio psicossocial, desenvolvendo o acompanhamento às famílias e aos indivíduos impactados pelo EVENTO, priorizando os IMPACTADOS com deslocamento físico” (ibidem, cláusula 54, p. 43). Dessa maneira, a título de exemplo, os temas da comunicação social (ibidem, cláusulas 59 a 72, pp. 44-46), da moradia para as pessoas desalojadas pela passagem do rejeito (ibidem, cláusulas 76 a 78, pp. 47-49), da educação (ibidem, cláusulas 89 a 94, pp. 52-53) e da cultura (ibidem, cláusulas 95 a 100, pp. 53-55), que entendemos serem pertinentes à proteção social não foram, assim, tratados pelo acordo no PPS, esvaziando, portanto sua abrangência.
Finalmente, como sexto elemento da focalização, o acordo trabalhou com uma fórmula que delimita o dever do programa de atender a população, mediante apoio aos serviços públicos essenciais, quando afirma que “(...) nos casos em que sua interrupção ou prejuízo no atendimento à população tiver decorrido do EVENTO” (IBAMA - TTAC, 2016, p. 7). Ou seja, o TTAC não adotou nem mesmo uma visão mais restritiva e consagrada de proteção, como constituída pelo tripé constitucional da seguridade social (saúde, previdência e assistência).
Com efeito, a saúde (ibidem, cláusulas 106 a 112, pp. 57-59) foi tratada à parte e a previdência não foi contemplada. O tratamento dado a esses dois temas trouxe consequências para as pessoas atingidas: a segregação da saúde levou à sobreposição da constituição dessa política protetiva. Na prática, houve retrabalho na atuação e repetição de embates a partir de noções que seriam comuns a todo o campo da proteção social (MARRA, 2021). Já no campo da previdência social, a ausência de endereçamento de uma política protetiva fez com que as comunidades atingidas – boa parte delas constituídas por trabalhadores autônomos e/ou integrantes da categoria previdenciária de segurado especial7 – ao se verem impedidas de praticar atividades laborativas, passam pela insegurança de não cumprirem as exigências legais para acessarem direitos, como a aposentadoria e o seguro-desemprego do pescador (seguro-defeso). Aliás, até mesmo o programa de transferência de renda que foi criado para as pessoas atingidas – o chamado Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), tratado nas cláusulas 137 a 140 do TTAC – não foi incluído na seção que se refere à proteção social8.
Na prática, pelo exposto, a (ultra)focalização levou a uma limitação no direito previsto na Constituição Federal Brasileira (1988, art. 225, § 3º) à reparação integral. O TTAC adotou uma prática (ultra)focalizadora, típico do neoliberalismo, aprofundando essa tendência da política social brasileira, podendo a população a manter-se no quadro de privações, o que fomenta a chamada armadilha da pobreza (BOSCHETTI, 2007). Na verdade, se mostrou suficiente aos anseios acumulativos do capital, motivo pelo qual se buscou torná-la ainda mais estreita e, de certa forma, inédita.
A privatização não se resume à alienação do patrimônio público em privado9, inserida no movimento de contrarreformas que teve início na década de 1990 (BEHRING, BOSCHETTI, 2011), pois perpassa também as formas em que a prestação de um bem ou serviço público sucumbe em favor do mercado. O Estado afasta-se, progressivamente, da sua função como ofertante de bens e serviços públicos que um cidadão pode acessar (proteção social, por exemplo), dando lugar ao mercado e à produção de lucro capitalista. Conforme Mota et al (2010, p. 182-183)
(...) Privatização e mercantilização de alguns serviços sociais, como a consolidação da figura do cidadão-consumidor de serviços, de que são exemplos os planos privados de saúde e o sistema de previdência complementar. Processo este que se dá concomitantemente à expansão dos programas sociais, de exceção, voltados para o cidadão-pobre, com renda abaixo da que é definida como linha da pobreza. Essa tendência pode ser indicativa do modo como o Estado, no leito do pensamento neoliberal, racionaliza o atendimento às demandas por proteção social que, num período de desemprego e precarização do trabalho, tendem a crescer. Ou seja: expulsa do acesso público os trabalhadores médio-assalariados, em face do sucateamento dos equipamentos, serviços e da redução de benefícios; e, sob o argumento da equidade, advoga a inclusão de novas frações da população. Seus rebatimentos recaem tanto na ampliação da Assistência Social como na redefinição das políticas de Saúde e Previdência, de que são exemplos o Programa Saúde da Família e a ampliação da contribuição previdenciária para os trabalhadores informais e por conta própria.
No que tange a proteção social – por exemplo, saúde, educação, moradia, previdência, saneamento etc. –, em geral, podem ser ofertadas pelo Estado, sem motivação direta de produção de lucro. Indiretamente, por sua vez, parte desses bens e serviços podem ser comprados pelo Estado via relações de mercado (licitação, por exemplo), com criação de mercados realizada pelo próprio Estado10. Além disso, parte desses serviços também podem ser executados de forma indireta, por meio da atuação do terceiro setor – Organizações Não-governamentais (ONGs), Organizações Sociais (OS) e Organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP). Neste caso, a criação do mercado é cultivada pelo próprio Estado, permissivo à atuação parasitária de interesses privados à custa do orçamento público.
O caso do rio Doce apresenta essas dinâmicas privatistas e nele ganham maior intensidade, por exemplo, a própria decisão de que a solução perpassaria a confecção de um acordo que transmitisse as responsabilidades e o controle à iniciativa privada, a Fundação Renova. O pressuposto é que o reconhecimento de que a própria justiça e os entes governamentais envolvidos não seriam capazes de resolver essa demanda social e garantir a reparação integral11.
Essa visão é predominante no entendimento jurídico brasileiro: os mecanismos de resolução de conflitos alternativos ao Poder Judiciário costumam ser alardeados como mais eficientes. Com efeito, no preâmbulo do TTAC, consta: “(...) a celebração deste acordo judicial visa pôr fim ao litígio (...), reconhecendo que a autocomposição é a forma mais célere e efetiva para resolução da controvérsia, não implicando assunção de responsabilidade pelo EVENTO” (IBAMA-TTAC,2016, p. 3).
O privatismo foi tamanho que, até mesmo, o dever legal de reparação ganhou ares voluntarismo, já que as poluidoras foram acolhidas como parte da correção do problema: “(...) manifestaram interesse legítimo e voluntário em celebrar o ACORDO com o fim de recuperar, mitigar, remediar, reparar, inclusive indenizar (...); (Ibidem, p. 7). No mais, entendeu-se que “(...) a gestão das ações acima mencionadas será feita de forma centralizada em uma fundação privada, sem fins lucrativos, com estrutura própria de governança, fiscalização e controle, visando a tornar mais eficiente a reparação e compensação (...)” (Ibidem, p. 7). E, assim, consta nos princípios do TTAC (IBAMA-TTAC, 2016, p.22): “(...) execução privada, sob a fiscalização e supervisão do PODER PÚBLICO na forma da lei e deste Acordo” (ibidem, letra “o”, p. 23).
A governança do acordo permite, às poluidoras, por meio da Fundação Renova, controle da aplicação de recursos na reparação. Primeiramente, a distinção entre o que são gastos administrativos (ou seja, de manutenção da estrutura da Fundação Renova) e gastos finalísticos (destinados à reparação do desastre) está nas mãos da executante e das empresas poluidoras que a financiam12. O controle está em suas mãos, pois, ainda que exista, na aparência, uma estrutura de freios e contrapesos, evidentemente encontra-se comprometida (MAURÍCIO, 2021). Portanto, a situação emergencial e as pressões públicas acabam favorecendo o agir rápido e autocrático por parte da Fundação, que, mesmo diante de documentos incompletos, acaba por ter suas contas referendadas em prol de uma celeridade nas ações. A fim de exemplificar esse quadro, está a discussão do orçamento da Fundação Renova para o ano de 2019, que acabou por ser referendada com ressalvas pelo CIF por meio da Deliberação nº 253 (IBAMA -CIF, 2019a).
Ademais, a própria interposição de um ente fundacional sem fins lucrativos entre a Samarco/Vale/BHP Billiton e a sociedade vitimada criou debates sobre temas como a tributação e a atribuição de responsabilização, principalmente quando foi decretada a recuperação judicial da Samarco (ANGELO, 2021). Dessa forma, apesar de ter um robusto orçamento (de cerca de R$ 17 bilhões em 2021), que convém à preservação da imagem “verde” das mantenedoras, a efetividade da reparação continua a ser questionada, na justiça e fora dela, por pessoas atingidas, por movimentos sociais e pelos poderes públicos.
Na redação do TTAC (IBAMA-TTAC, 2016), não há, a rigor, um quantitativo de recursos a ser destinado à proteção social, desde que sejam observadas as cláusulas 01, item XVIII e 06, item VII (IBAMA-TTAC, 2016). Logo, mesmo com a opção de privatização da alocação desses recursos, há margem interpretativa para que as populações atingidas tenham espaço na definição dos montantes necessários à sua proteção social. Porém, não foi o que ocorreu. A privatização apenas serviu para blindar as poluidoras, de modo a envelopar/conter as consequências negativas para a imagem e o patrimônio delas (DENEAULT, 2018).
No cenário vigente, de completa desagregação e crescente sucateamento do Estado, o setor privado se impõe como o mais eficiente para promover alocação de recursos escassos (embora volumosos). Livre das amarras legais e dos controles democráticos, a fundação pode alocar recursos ao bel prazer, ao passo que o Estado passa por burocráticos controles de contas públicas, processos licitatórios, disputas eleitorais, embates com a opinião pública, entre outros. Contudo, tal efetividade da privatização pode ser questionada. Por exemplo, conforme análise da consultoria Ramboll Brasil (2019), contratada pelo Ministério Público Federal, em novembro de 2019, de R$ 78,13 milhões, apenas R$ 6,3 milhões (8,06%) do orçamento planejado para a proteção social haviam sido gastos. Essa mesma consultoria anotou pouco avanço do PPS, atrasos e recusa no compartilhamento de informações (RAMBOLL BRASIL, 2020, p. 5–6).
A proteção social, é um componente dificultoso e paradoxal da esteira da reprodução capitalista. A sua consecução está intimamente ligada à capacidade estatal de impor os interesses gerais da acumulação aos capitalistas. No desastre do rio Doce o que se viu foi que o grupo capitalista conseguiu estipular um roteiro que fez com que seu interesse pautasse o Estado capitalista. Os empenhos do orçamento bilionário da Fundação Renova parecem se desligar dos objetivos expressados no TTAC e se ligar a outros externos correlatos à viabilidade do negócio minerário.
Assim, a transferência da execução de uma política de proteção a um particular diretamente vinculado à atividade econômica responsável por criar a necessidade dessa mesma política protetiva foi capaz de conduzir a um grau mais alto, na verdade, de inefetividade. Tanto é assim, que a execução do PPS é uma das mais atrasadas em todo o plexo de programas previstos (MARRA, 2021; MAURÍCIO, 2021).
A descentralização da proteção social ocorre quando o Estado sai do centro do controle dos recursos do fundo público, relegando-o para o controle privado13. Nesse caso, o Estado assume o lugar de mero gestor de uma rede financiada e pautada em bens e serviços prestados por terceiros (ONG, voluntários, segmentos empresariais). A descentralização favorece a disputa entre diferentes territórios nacionais e se conforma como essencial às características anteriormente debatidas (focalização e privatização), pois aumenta o espectro da atuação privada. De outro modo, pode ser entendida como “(...) uma transferência de responsabilidades para entes da federação ou para instituições privadas e novas modalidades jurídico-institucionais correlatas” (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 156).
A forma com que o neoliberalismo no Brasil impôs uma ordem generalizada de descentralização da política social, a qual também orientou a confecção do TTAC, trouxe três consequências particulares à governança das medidas de reparação do desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton. As duas primeiras permeiam o modus operandi do acordo, ao passo que a última é específica da proteção social para as pessoas atingidas. A transferência do potencial fundo público para a Fundação Renova14 torna o Estado apenas um fiscalizador de planilhas e indicadores produzidos e apresentados pelas empresas poluidoras ou pelo terceiro setor por elas criadas.
A primeira característica foi a mudança na lógica de agir dos atores envolvidos, por meio de sua segregação, focalização e pouco articulação. No caso dos agentes públicos, de forma pouco articulada, tiveram que defender os interesses públicos junto ao CIF ou por meio de negociações diretas com as empresas, opção que tende a envolver ainda mais concessões por parte do poder público. Essa mesma forma de agir também pautou as comunidades atingidas, focalizadas, que dependeram da boa vontade da Fundação Renova. Nessas negociações, as empresas poluidoras são alçadas a uma posição de vantagem, pois são tomadas como players com maior força negocial, o que desperta, justamente, a segunda característica.
Com a vantagem negocial, ela pôde, então, testar os limites da vontade política de diversos atores envolvidos. A ação coordenada lhes permitiu utilizar diferentes leituras do momento para direcionar o discurso de maneira mais favorável15. Por exemplo: eventuais erros de estratégia eram imputados a apenas uma das entidades da estrutura privada – de modo a negar vinculação das demais com uma contraparte. Assim, a Fundação Renova possuía o recurso, mas teria, para utilizá-lo, de obedecer aos seus procedimentos internos, a partir da decisão do seu conselho curador. Conselho esse comandado na época pelas poluidoras (IBAMA - CIF, 2018f, l. 241–259). Há que se considerar, igualmente, a pluralidade de atores extra-CIF, a começar pela capacidade de sempre levar as discussões ao Poder Judiciário – solução que foi, em diversas ocasiões, favorável aos seus interesses e frustrante para as populações atingidas (STROPASOLAS, 2021).
Superadas essas duas primeiras consequências da descentralização destrutiva em discussão, a relevância do controle que a Fundação Renova tem sobre todo o processo merece destaque. A terceira característica é que essa entidade privada corporifica a operacionalização do TTAC. É ela que dá vazão às deliberações do CIF e a outras orientações provenientes das forças sociais com que lida. É ela, também, quem decide quem é ou não atingido e quais os direitos correspondem às pessoas em cada caso. Por fim, é ela quem tem a palavra final, haja vista a postura omissa do Estado perante essa forma de conduzir a reparação, especialmente no que tange ao PPS (FUNDAÇÃO RENOVA, 2021, p. 13).
Ainda segundo o escopo do PPS aprovado pelo CIF: “Nos casos em que a família vulnerável não for elegível, cabe ao programa manter interlocução com o poder público para acompanhamento, de forma a ter monitorada a sua vulnerabilidade - uma vez que essa é uma situação mais processual do que pontual.” (ibidem, p. 27). O controle do fluxo não é apenas o da capacidade de negar ou conceder um direito, é a possibilidade de definir quando esse reconhecimento ocorrerá, de que maneira será feito e quais os requisitos que devem ser cumpridos. Muitas pessoas atingidas e até mesmo comunidades inteiras ainda aguardam atendimento sem qualquer perspectiva de prazo. Por exemplo, até o momento da redação deste manuscrito, a Renova confessadamente não atendia no PPS quem vivia nas regiões da costa capixaba, reconhecidas como atingidas pelo CIF na deliberação 58 (IBAMA- CIF, 2017b) (GOBBO, 2020). Isso após essas mesmas pessoas terem sido submetidas a minucioso escrutínio no chamado “processo de cadastro”, que é feito através de uma linguagem complexa e com alta exigência de documentos comprobatórios.
Em suma, a descentralização, que transforma a proteção social em um negócio, traz uma faceta ainda mais grave no caso do rio Doce, visto que a terceirizada que recebeu a incumbência estatal é intimamente ligada às principais interessadas, as poluidoras.
No contexto do desastre, a ideia de proteção social aqui adotada traz a percepção de que a solução perpassa diversas dimensões sociais. Enfim, o que fosse necessário à criação de um ambiente em que o ser humano pudesse conviver segundo suas faculdades e o melhor interesse da sociedade (e não apenas como uma engrenagem de mercado).
Discutiu-se que no Brasil os desastres tecnológicos são ainda apontados como eventos pontuais, cujas formas de reparação serão discutidas caso a caso. Seria esperado que a governança da proteção social frente aos desastres não se esgotasse em casuísmos passageiros que buscam corrigir um mero caso fortuito, desde que não obste o processo de acumulação de capital.
Parte das consequências do desastre derivam de escolhas políticas e econômicas que atuam no território, na qual a proteção social está obstada. O princípio que impera é exatamente aquele que está na causa do desastre: a continuidade da acumulação capitalista. A reconstrução é, portanto, do mercado e para ele, conforme os rumos e a velocidade por ele ditados. Foi o que parece ter sucedido no rio Doce.
Contudo, na medida em que desastres socioambientais ganham visibilidade e se multiplicam, a ponto de arranhar a imagem e os ganhos econômicos dessas corporações, torna-se mais relevante para elas, fazer avançar o controle também ao processo posterior de reparação, como forma de blindar os rumos do empreendimento de influências externas e garantir previsibilidade e segurança jurídica aos investidores (COUMANS, 2018; GAVIRIA, 2018; HÖNKE, 2018; PINTO, 2019). Portanto, constitui-se um sistema de governança (ultra)focalizado, privatizado e descentralizado, esvaziando o próprio conceito de proteção social no capitalismo contemporâneo, como se viu no caso estudado.