Resumo: No Brasil, a Lei das Águas cria uma estrutura de governança pautada na descentralização e participação, proporcionando potenciais espaços para engajamento nos processos decisórios. Esta pesquisa busca analisar questões relativas à inserção de comunidades tradicionais, particularmente, os pescadores artesanais, na governança de recursos hídricos em regiões hidrográficas costeiras. A investigação é realizada a partir do estudo de caso de três Comitês de Bacia Hidrográfica do Estado do Rio de Janeiro. Constatou-se, entre outros, um ambiente político-institucional favorável à integração das pautas dessas comunidades, sobretudo em âmbito federal e significativas diferenças na inserção desses atores entre os Colegiados.
Palavras-chave: Comunidades pesqueiras, Governança de recursos hídricos, Regiões hidrográficas costeiras.
Abstract: In Brazil, the Water Law creates a governance structure based on decentralization and participation, providing potential spaces for engagement in decision-making processes. This research seeks to analyze issues related to the insertion of traditional communities, particularly artisanal fishermen, in the governance of water resources in coastal basins. The investigation is carried out from the case study of three River Basin Committees located in the State of Rio de Janeiro. Among others, a political-institutional environment favorable to the integration of these communities’ agendas was found, especially at the federal level, and also significant differences in the insertion of these actors among the River Basin Committees.
Keywords: Fishing communities, Water resources governance, Coastal hydrographic regions.
Comunidades tradicionais e gestão de recursos hídricos: há espaço para a pesca artesanal?
Traditional communities and water resources management: is there room for artisanal fishing?
Recepción: 01 Octubre 2023
Aprobación: 01 Diciembre 2023
Em todo o mundo, ao passo que novas experiências democráticas vêm transformando velhas formas de governar, espaços políticos para o engajamento público na governança se tornam cada vez mais comuns (CORNWALL, 2004). Os muitos benefícios alegados da participação das partes interessadas, em certa medida, impulsionaram sua ampla incorporação nas políticas nacionais e internacionais (REED, 2008; BODIN, 2017). Reed et al. (2018) definem a participação como um processo em que as partes interessadas, sejam indivíduos, grupos e/ou organizações, são envolvidas na tomada de decisões que os afetam - seja de forma passiva, por meio de consultas, por exemplo, ou ativamente com o engajamento no processo decisório. As partes interessadas (stakeholders), por sua vez, são aquelas afetadas ou que podem afetar uma decisão em um sistema de gestão do meio ambiente, diferindo-se da participação pública mais ampla (REED, 2008).
Ao passo que a participação se torna cada vez mais popular e argumentos a seu favor crescentes em diferentes campos, estudos sobre a inserção e engajamento das partes interessadas nos processos de tomada de decisão, proliferaram, utilizando referenciais teóricos diversos. Dois quadros conceituais se destacam por sua grande influência em tais estudos de participação. As contribuições de Arnstein (1969), em grande parte, para o desenvolvimento teórico desse campo de conhecimento e da Associação Internacional para Participação Pública (2014), para a prática (QUICK e BRYSON, 2016). Na literatura, a “escada de participação de Arnstein” (Arnstein’s ladder of participation) é, ainda, a base para a maior parte dos estudos que se propõem a analisar os diferentes graus de engajamento (COLLINS e ISON, 2006; REED et al., 2018). Elaborada a partir do entendimento de que se deve, necessariamente, evoluir da manipulação (base da escada) ao engajamento ativo (“citizen control”), a participação é vista em termos de acesso e níveis de poder. Apesar do seu amplo uso, a proposta de Arnstein apresentava limitações como metáfora organizadora da participação (COLLINS e ISON, 2006). A crítica principal repousa sobre a incapacidade de tal abordagem em capturar a complexidade, a dinâmica e a natureza evolucionária da participação (COLLINS e ISON, 2006). Muitos estudos mostram que mesmo processos participativos do “topo da escada” podem falhar por inúmeras razões (REED et al., 2018).
Superado o paradigma da participação como uma condição/imposição ou panaceia para todos os males da democracia - o que levou a desilusões e descrédito quanto aos processos participativos -, estudos e discussões se concentraram em avançar no entendimento dos desafios a serem superados, e das reais potencialidades da gestão compartilhada para o alcance de diferentes objetivos. Na literatura, são apontados inúmeros resultados positivos decorrentes da participação das partes interessadas na gestão dos comuns, variando desde a construção colaborativa de planos, estratégias, programas e políticas, até a implementação conjunta de soluções, ações concertadas, a aprendizagem social, entre outros (COLLINS e ISON, 2006; DE VENTE et al., 2016; TOTTI e THOMÉ, 2021).
Neste complexo universo das reflexões acerca das dinâmicas de participação, os pontos de partida para pesquisas são incontáveis. Particularmente, a noção de “espaço” é amplamente utilizada nas literaturas sobre poder, política, democracia e ação cidadã (GAVENTA, 2005), e pode ser uma lente interessante para analisar alguns dos aspectos relativos à participação. Particularmente, o conceito de “espaços convidados” - isto é, aqueles criados em decorrência de mudanças nas legislações (CORNWALL, 2004) -, mostra-se interessante ao oportunizar estudos acerca da existência desses espaços, dos termos de engajamento e inserção das partes interessadas nos processos decisórios. Ainda, para buscar compreender como esse potencial dos “espaços convidados” se traduz em mudanças reais na governança, o depende de uma série de fatores (CORNWALL, 2004).
As formas e os métodos de participação são tão variados nesses espaços, que a atenção dos estudos tem se voltado, também, para o quanto tais processos são bem delineados e implementados (SANDFORT e QUICK, 2013). Para De Vente et al. (2016), o alcance de resultados efetivos em processos participativos depende fortemente de alguns fatores, dos quais se pode destacar a adequada seleção dos participantes, e um delineamento que seja sensível, entre outros, ao contexto sociocultural, institucional e ambiental no qual esses são conduzidos (DE VENTE et al., 2016). Ainda, a existência de um ambiente político-institucional favorável a participação, de gestores abertos à participação e de espaços participativos com métodos adequados e objetivos claros são alguns dos fatores críticos para a efetividade da participação e, consequentemente, o alcance de resultados (CORTES, 1998; CORNWALL, 2002 apud ANDRADE, 2007; RIBEIRO e FORMIGA-JOHNSON, 2018).
Frente ao exposto, o presente estudo realiza uma investigação acerca da inserção dos pescadores artesanais na gestão dos recursos hídricos, a partir da perspectiva dos Comitês de Bacias Hidrográficas, colegiados deliberativos criados a partir da Lei Federal N° 9.433/97, como “espaços convidados”. Foram tomadas como área de estudo de caso, três bacias hidrográficas inseridas na Bacia Petrolífera de Campos (BC). A degradação ambiental dos ecossistemas aquáticos é um dos maiores fatores de pressão e conflito para a pesca artesanal (MORAES, 2004; TIMÓTEO e CAMPOS, 2018), sobretudo em bacias hidrográficas costeiras, onde há uma sobreposição de impactos, incluindo-se aqueles decorrentes das atividades petrolíferas. Reconhece-se que, por sua estreita relação com os ecossistemas aquáticos, os pescadores artesanais têm grande potencial de contribuir para uma melhor gestão das águas, sobretudo nas bacias hidrográficas costeiras. Esse tema, contudo, é pouco explorado na literatura.
Propõe-se, então, como primeiro passo para estudos de dinâmica de participação, um olhar para as oportunidades de inserção e engajamento de partes interessadas, por meio da análise do ambiente político-institucional, da criação dos espaços participativos, e dos termos de engajamento (normativas). Ao enxergar e evidenciar oportunidades e desafios nesse sentido, espera-se contribuir para o direcionamento de esforços de pesquisa e ação que venham a promover a inclusão de grupos tradicionalmente excluídos ou marginalizados nas políticas.
Assim, o presente artigo inicia-se discorrendo sobre o sistema de gerenciamento das águas no Brasil, e o papel potencial das comunidades tradicionais na gestão dos recursos naturais, em especial das comunidades de pesca artesanal na gestão dos recursos hídricos. Passa-se, então, a apresentação do referencial teórico do presente estudo, que têm como base principal a teoria dos “espaços convidados”, arenas de participação criadas por lei, nas quais as partes interessadas se inserem no processo decisório. Na sequência, é apresentada a metodologia adotada na pesquisa e a caracterização da área de estudo. Seguida dos resultados e discussões, divididos em blocos de análises. E por último, as considerações finais.
A inserção e participação da sociedade nos diferentes fóruns e colegiados de gestão descentralizada, representa um marco e uma mudança na forma de gerir os recursos de uso comum. No Brasil, a estrutura centralizada de governo, a partir da Constituição Federal de 88, passou a dar lugar à governança, que traz elementos de colaboração, participação de múltiplos atores e novas instituições, objetivando garantir a sustentabilidade de tais recursos. A mudança de um modelo centralizado de gestão dos recursos hídricos para um formato mais inclusivo - e potencialmente mais responsivo às demandas sociais - foi uma escolha política consistente com as transformações experienciadas durante esse processo de redemocratização (LIBANIO, 2018).
A partir do marco legal federal (Lei n° 9.433/97), os recursos hídricos passam a ser formalmente geridos por meio de uma estrutura de governança pautada, sobretudo, na descentralização e na participação. A Lei das Águas materializa, naquele momento, a necessidade latente de novas formas de governar esse bem de uso comum, gerando uma mudança significativa na estrutura política e institucional nacional. A criação dos Comitês de Bacias Hidrográficas certamente é um dos pontos centrais desse novo sistema de gerenciamento das águas, pois cria-se uma nova arena de tomada de decisão. Algumas das responsabilidades e decisões que eram previamente o mais próximo de uma atribuição exclusiva do governo são, então, compartilhadas (STOKER, 1998).
A participação torna-se um fator crítico e princípio fundamental para a gestão dos recursos hídricos, sendo, em muitos casos, elemento central do conceito de governança das águas (RIBEIRO, 2016). Apesar da complexidade e das controvérsias acerca da participação, sua ideia central é a inclusão nos processos de tomada de decisão, daqueles mais afetados pelas intervenções ou políticas propostas (AGARWAL, 2001). Ao trazer outras perspectivas, interesses e filosofias fundamentais para o processo de tomada de decisão (DIETZ et al., 2003), a expectativa é que a participação possa favorecer a proposição de soluções antes não pensadas, criativas e mais ajustadas ao contexto social, ambiental e econômico, tendo assim maiores chances de ser efetiva no alcance dos objetivos pretendidos.
Assim, o Poder Público, a sociedade civil organizada e os usuários de recursos hídricos passam a atuar dentro dessas arenas, que potencialmente criam espaço para a resolução de conflitos e a tomada de decisões negociada objetivando a melhoria das condições ambientais das bacias hidrográficas. Os Comitês de Bacia, por sua vez, fazem parte de uma estrutura de governança mais ampla, os Sistemas Nacional e Estaduais de Gerenciamento de Recursos Hídricos, que incluem outros entes com papéis e responsabilidades na gestão das águas. Destaca-se aqui a figura das agências de água, braço de apoio técnico e operacional no nível da bacia hidrográfica, e dos órgãos gestores, ente executor da política em nível estadual. Por fim, a Lei das Águas cria instrumentos de gestão, como a cobrança pelo uso da água, que conferem sustentabilidade financeira ao sistema, e os Planos de Recursos Hídricos, que orientam as ações nas bacias hidrográficas.
Particularmente, experiências com a participação dos usuários dos recursos naturais nos processos de tomada de decisão têm colaborado para a construção de sistemas de gestão bem-sucedidos, como observado por diversos pesquisadores no mundo (VIEIRA et al., 2015). O conhecimento empírico dos usuários permite, monitorar, interpretar e responder às mudanças dinâmicas do ecossistema e dos recursos naturais de maneira mais adequada aos contextos nos quais estão inseridos (BERKES, 1999; BERKES et al., 2000). Ademais, devido sua intrínseca relação e interdependência com o meio ambiente e os recursos naturais, em eventos que impactam ou geram mudanças em seus ambientes as comunidades locais serão as primeiras a serem afetadas sendo, portanto, as mais vulneráveis (KAMBU, 2010; KISH, 2016). Os pescadores artesanais, de maneira geral, são sensíveis a mudanças sutis no ambiente em que trabalham e vivem (FULTON et al., 2019), e muitos tem uma quantidade relevante de conhecimentos contextual e experiencial sobre os sistemas sociais e ecológicos do qual eles são parte (STEPHENSON et al., 2016). Dada a essencialidade das águas, não apenas para o consumo humano, mas para as condições de trabalho e de subsistência econômica das famílias de pescadores artesanais, a degradação ambiental dos ecossistemas aquáticos é crítica para essas comunidades (TIMÓTEO e CAMPOS, 2018), sendo uma das principais fontes de conflitos (MORAES, 2004). E estão nestas áreas submetidos aos riscos ambientais, incluindo aqueles proporcionados pela indústria de petróleo e gás (SANTOS, 2019).
Atividade relevante socialmente, economicamente e ambientalmente, a pesca artesanal conceitualmente, se desenvolve quando o pescador sozinho, ou em parceria, participa diretamente da captura do pescado, utilizando instrumentos relativamente simples, tendo características bastante diversificadas, tanto em relação aos habitats que atuam quanto aos tipos de peixes que pescam (RAMIRES et al., 2002; TIMÓTEO, 2019). É uma atividade tanto de subsistência quanto de fins comerciais para os pescadores, podendo ser sua atividade principal ou sazonal, quando na maior parte do ano eles possuem outras atividades econômicas, como a agricultura (DIEGUES, 1995;WALTER, 2010; TIMÓTEO, 2019). Os pescadores artesanais são assim denominados em sentido amplo, apesar de internamente, se dividirem em múltiplas identidades a partir das modalidades de pesca que praticam (MORAES, 2004). As atividades de pesca artesanal contrastam com o cenário marcado pelo viés produtivista - apesar da ocorrência de práticas ilegais e predatórias, predomina aqui a utilização de um conjunto diversificado de técnicas eficientes e de baixo impacto sobre os ecossistemas marinho-costeiros (REBOUÇAS et al., 2006).
Os pescadores artesanais, se organizam de formas diversas com destaque para as Colônias de Pesca. As Colônias são resultado de um zoneamento costeiro, parte do Programa de Nacionalização da Pesca e do Saneamento do Litoral, a cargo da Marinha do Brasil, entre os anos de 1919 e 1923, que segundo Moraes (2004) foi uma iniciativa com o objetivo de controlar as comunidades de pesca e garantir a defesa do litoral. Moraes (2004) destaca que, ao longo do tempo, as Colônias sofreram os reflexos das diferentes conjunturas políticas, com intervenções, o que as impediu, em muitos casos, de serem exemplos de organização e representação autônoma dos pescadores. Ainda assim, elas funcionam como uma referência para os pescadores, os quais levam ali suas demandas, reclamações e denúncias e têm acesso a políticas públicas como o direito à recursos no período do defeso (MORAES, 2004). Em alguns locais, no entanto, foram criadas formas alternativas e autônomas de organização, por motivações diversas, sobretudo pela necessidade de enfrentar conflitos, ocasionando o fortalecimento de Associações e contribuindo para o esvaziamento das Colônias. Independentemente da representatividade da Colônia, foi através delas que se acumularam as denúncias contra os efeitos dramáticos das atividades das empresas de pesquisa sísmica na Bacia de Campos, por exemplo (MORAES, 2004).
Incorporar tais comunidades em arranjos de gestão participativa permite que haja um intercâmbio de conhecimentos entre os pescadores, cientistas, organizações da sociedade civil e governos, bem como possibilita o compartilhamento de responsabilidades e autoridade para o gerenciamento dos recursos (POMEROY, 1995; FULTON et al., 2019). Para tal, as comunidades locais precisam ter acesso facilitado à informação ambiental e à participação (KISH, 2016). Embora muitas comunidades pesqueiras organizadas ou mesmo aquelas que ainda mantêm algum nível de gestão tradicional por meio de sistemas informais, na maioria dos países, de maneira geral, há ainda pouco ou nenhum papel para os pescadores ou para as organizações de pescadores nos processos de gestão e planejamento (POMEROY, 1995; VIEIRA et al., 2015).
Reconhece-se que diferentes sistemas político-institucionais e contextos irão moldar a participação dos múltiplos atores (HUITEMA et al., 2009). Para De Vente et al. (2016), processos participativos bem delineados são, por definição, aqueles que são flexíveis e sensíveis aos fatores culturais, que potencialmente permitem um ajuste de tais processos aos mais variados contextos. Embora a criação de espaços de participação nas estruturas de governança da água seja crítica para a potencial inserção das comunidades pesqueiras, não é, necessariamente, uma garantia de que as partes interessadas - e impactadas - sejam devidamente engajadas nos processos de tomada de decisão. Ademais, como pontuado por Pereira (2014), colocar frente a frente em um mesmo fórum, com igualdade de expressão, governantes, usuários e outros setores, que inclui desde as companhias de abastecimento aos pescadores, além da sociedade civil e o poder público, uma enormidade de conflitos latentes ou não, haverão de vir à tona.
Uma forma potencialmente útil de caracterizar as novas arenas para participação pública é proposta por Cornwall (2004). Ao refletir sobre as ambiguidades das arenas de participação, a autora pontua que mesmo não sendo, necessariamente, novas ou democráticas, essas parecem guardar a promessa de renovar e aprofundar a democracia. Para tal, Cornwall (2004) lança mão do conceito de ‘espaço’ de Lefebvre (1991), sendo este rico como metáfora, assim como um descritor literal das arenas onde as pessoas se reúnem e que são limitadas no tempo e na dimensão. Diz ainda que:
um espaço pode ser vazio ou cheio, permeável ou selado; podem ser abertos, convidativos a fala ou a ação. Os espaços também podem ser fechados, desprovidos de significado ou despovoados à medida que as pessoas voltam sua atenção para outro lugar (Lefebvre, 1991).
Os ‘espaços’ são vistos como oportunidades, momentos e canais onde os cidadãos podem agir para afetar potencialmente políticas, discursos, decisões e relacionamentos que afetam suas vidas e interesses (GAVENTA, 2005). Esses espaços de participação, segundo Cornwall (2002) não são neutros, mas são eles próprios moldados por relações de poder, que tanto os cercam quanto os penetram (GAVENTA, 2005). Citando Lefebvre (1991),
o “espaço” é um produto social… não é simplesmente ‘lá’, um recipiente neutro esperando para ser preenchido, mas é um meio de controle dinâmico, construído humanamente, e, portanto, de dominação, de poder” (GAVENTA, 2005).
As relações de poder ajudam a moldar os limites dos espaços participativos, o que é possível dentro deles, quem pode entrar, com quais identidades, discursos e interesses (GAVENTA, 2005). Para Gaventa (2005), uma questão que devemos explorar ao examinar os espaços de participação é perguntar como eles foram criados, com quais interesses e quais os termos de engajamento.
Segundo Cornwall (2004), o termo “espaço” pode ser utilizado em estudos para evocar questões relativas à dinâmica de participação, mais concretamente, a dois tipos distintos de arenas - “espaços populares” (popular spaces) e “espaços convidados” (invited spaces). Gaventa (2005), acrescenta à proposta de Cornwall (2002), sugerindo outra terminologia, os “espaços fechados” (closed spaces), para caracterizar a falta de abertura político-institucional para a participação, que pode variar no tempo e no lugar. Os “espaços populares” são arenas em que as pessoas se reúnem por sua própria vontade – seja para protestar contra as políticas governamentais, para produzir seus próprios serviços ou por solidariedade e ajuda mútua -, podendo ser institucionalizados sob a forma de associações ou outros arranjos formais (CORNWALL, 2004).
O termo “espaços convidados”, por sua vez, é um rótulo que serve para transmitir a origem de muitas instituições criadas pelos governos em resposta à demanda popular, mudanças na política, entre outros. Tais espaços podem assumir diferentes formas, sendo alguns mais consolidados nas políticas e duradouros, como aqueles do tipo comitê (gestão participativa) ou grupos de usuários dos recursos, que proliferaram nos processos de reforma setorial. Os espaços convidados têm o potencial de reconfigurar as relações e as regras estendendo, assim, as práticas de democracia para além de interações pontuais. Em princípio, tais instituições devem prover as bases para novas parcerias entre os provedores de serviço, usuários de recursos e governos locais (CORNWALL, 2004).
Bois e Milagres (2021) defendem a complementaridade crítica entre o que Souza (2012) chama de ação direta e luta institucional. Tal perspectiva de complementaridade entre luta institucional - ocupação e uso de canais e instâncias de participação legalmente instituídos -, e ação direta - práticas conduzidas apesar do Estado, sem vínculo institucional ou econômico imediato -, proposta por Souza (2012), está presente na análise de Cornwall (BOIS e MILAGRES, 2021). Cornwall (2004) aponta que a ação coletiva de movimentos populares transita entre espaços onde os atores sociais são convidados pelo Estado a participar, e os espaços criados ou populares, onde os grupos ou movimentos sociais se organizam para tratar suas questões/pautas particulares.
Para Bois e Milagres (2021) os espaços de participação institucional são arenas de disputa que devem ser ocupadas pelos movimentos sociais de forma a promover avanços e/ou evitar retrocessos, sendo essa participação guiada por uma perspectiva crítica. Isto é, a partir do entendimento dos diferentes interesses em jogo e do desequilíbrio de poder na relação entre os diferentes atores. A existência de uma legislação facilitadora é crítica para o alcance do envolvimento das partes interessadas e fortalecer a eficácia dos processos participativos (GOETZ e GAVENTA, 2001 apud GAVENTA, 2005). Presença e representação envolvem institucionalizar um acesso regular para certos grupos sociais nos processos de tomada de decisão. No entanto, é importante ressaltar que as oportunidades de representação de tais grupos sociais nos fóruns políticos não se traduzem necessariamente em influência e poder real (GOETZ e GAVENTA, 2001 apud GAVENTA, 2005).
De acordo com Gaventa (2005), cada vez mais os estudos com ênfase sejam na participação e inclusão, nos direitos ou nas mudanças políticas também estão se conscientizando da necessidade de entender esse fenômeno chamado poder. Em sua abordagem, o autor argumenta que o poder deve ser entendido - entre outros - em relação a como os espaços para engajamento são criados, ocupados e moldados para facilitar e/ou dificultar a participação das diferentes partes interessadas. Apesar da ampla aceitação retórica da participação, dos direitos e formas aprofundadas de engajamento da sociedade civil, Gaventa (2005) ressalta que a simples criação de novos arranjos institucionais não os tornará reais e não resultará necessariamente em maior inclusão (GAVENTA, 2005). Nesse sentido, De Vente et al. (2016) falam da necessidade de delinear adequadamente os espaços participativos, de modo a promover uma efetiva participação e impactos positivos. Segundo o autor, a presença de elementos facilitadores da participação, como a confiança e a real colaboração na identificação e resolução dos problemas, por exemplo, superam inclusive questões relacionadas ao contexto.
A pesquisa tem como foco principal realizar uma investigação inicial acerca da inclusão e participação de partes interessadas - neste caso, as comunidades pesqueiras artesanais - em “espaços convidados”, sendo estes os Comitês de Bacia Hidrográfica. As comunidades pesqueiras artesanais são abordadas por meio de suas organizações (Colônias de Pesca, Associações, etc.), dada a característica legal do sistema de gestão de recursos hídricos, que apenas permite a participação por meio das organizações formais que os representam. Cabe ressaltar que, discussões mais profundas relativas à representação e representatividade nesses colegiados, estão fora do alcance do presente trabalho.
Para orientar a investigação proposta neste estudo, foram formuladas as seguintes questões norteadoras: (i) As políticas públicas (leis, planos, programas) de gestão de recursos hídricos criam o ambiente favorável para inserção e participação das comunidades pesqueiras artesanais? (ii) A estrutura interna e composição (atuais) refletem o contexto socioeconômico e ambiental das RHs? (iii) Em uma análise temporal é possível observar a dinâmica de criação e extinção dos espaços? (iii) Há espaço para a pesca artesanal? Esses espaços estão sendo ocupados? (vi) Como a ocupação dos “espaços convidados” - os Comitê de Bacia e suas instâncias - se traduz no atendimento às demandas da pesca artesanal?
Não se pretende, aqui, fornecer respostas a essas perguntas. Tais questões são tomadas como base para o desenvolvimento de um quadro analítico, apresentado na Figura 1. Os critérios de interpretação dos dados foram divididos em quatro blocos, a saber: o ambiente político-institucional, buscando analisar nas principais políticas públicas vigentes, relativas à gestão dos recursos hídricos, agendas específicas e oportunidades para participação dos pescadores artesanais; o delineamento do processo participativo e os espaços, sua organização e os termos de inserção/engajamento; e os resultados (outcomes), analisados aqui por meio das deliberações dos colegiados quanto a ações que impactam direta e indiretamente a atividade de pesca artesanal.
Figura 1- Quadro analítico da pesquisa
Para fins da análise do ambiente político-institucional, foram levantadas e analisadas as legislações nacional e estadual (Rio de Janeiro) relativas à gestão das águas, bem como os documentos dos Planos Nacional e Estadual de Recursos Hídricos, em suas últimas versões. A coleta dos dados se deu, também, a partir da análise documental dos CBHs Lagos São João, Macaé e das Ostras, e Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana, sendo realizadas visitas aos sítios eletrônicos dos três Comitês, nos quais foram acessadas as versões dos respectivos Regimentos Internos e suas alterações; o edital eleitoral e a composição atual dos Colegiados; e as Resoluções relativas às ações e investimentos deliberados desde sua criação. Para complementar o levantamento de dados e informações, foram realizadas pesquisas em periódicos buscando estudos que auxiliassem na caracterização e na identificação dos principais fatores contextuais. Foram também realizadas entrevistas não estruturadas com membros dos Comitês e de suas secretarias executivas (Entidades Delegatárias).
O presente estudo lança o olhar sobre três regiões hidrográficas costeiras do Estado do Rio de Janeiro, conforme o disposto na Resolução nº 107/2013 do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERHI-RJ): a Região Hidrográfica Lagos São João (RH VI), a Região Hidrográfica Macaé e das Ostras (RH VIII), a Região Hidrográfica Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana (RH IX).
A RH VI compreende as bacias do Rio São João, do Rio Una, da Lagoa de Araruama e da Lagoa de Saquarema, comumente conhecida como Região dos Lagos. Abrange 12 (doze) municípios, sendo 3 (três) parcialmente inseridos na área da bacia e outros integralmente situados em sua área.
As bacias hidrográficas do Rio Macaé, do Rio das Ostras e da Lagoa Imboassica, compõem a Região Hidrográfica VIII do Estado do Rio de Janeiro, e se localizam na faixa costeira central-norte do Estado. A RH VIII abrange seis municípios, dentre os quais se destaca o município de Macaé, que ocupa 82% do seu território, sendo o restante, distribuído por outros 5 (cinco) municípios.
A Região Hidrográfica IX compreende a região constituída por diversas bacias, como a dos rios Muriaé e Pomba, incluindo pequenas bacias da margem direita e esquerda da porção baixa do rio Paraíba do Sul, bacia da qual faz parte. A área de atuação do Comitê abrange integralmente, 17 (dezessete) municípios e, parcialmente, 5 (cinco) municípios, situados nas regiões norte e noroeste fluminenses do Estado do Rio de Janeiro.
A partir dessas três regiões hidrográficas, esse estudo focaliza a participação das comunidades pesqueiras nos comitês de bacia, principalmente, nos municípios abarcados pelo Censo PEA Pescarte (2016; 2022), conforme Figura 2.
Figura 2 - Localização das regiões hidrográficas do Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana; do Macaé e das Ostras, e; dos Lagos e São João
Apesar das particularidades de cada região hidrográfica, alguns pontos comuns podem ser destacados como a relevância ambiental dos ecossistemas aquáticos costeiros-marinhos presentes nas três regiões. Na porção costeira se destacam ecossistemas de características únicas como a Lagoa de Araruama, além de exemplares endêmicos da fauna e da flora, em alguns locais protegidos por unidades de conservação. A pesca artesanal, atividade relevante no Estado do Rio de Janeiro, é também de grande importância social, econômica e ambiental nessas regiões hidrográficas.
Por outro lado, os ecossistemas aquáticos, de modo geral, foram muito alterados, principalmente pelas obras hidráulicas executadas pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) na região na década de 1970. Muitos rios e riachos foram retificados, canais de drenagem foram abertos para secar as áreas de baixada e grande parte da vegetação florestal ribeirinha foi removida para dar lugar à agropecuária em alguns locais, e ocupações desordenadas, levando a urbanização de áreas naturais. A exploração de petróleo e gás também iniciada a partir dos anos 1970, teve grandes impactos nas regiões hidrográficas. Os impactos desses projetos e outras pressões no entorno têm promovido profundas transformações ambientais e no modo de vida, principalmente, das populações de pescadores artesanais.
Resultados e discussões
Análise do ambiente político-institucional
A pré-existência de um ambiente político favorável à participação de diferentes stakeholders nas tomadas de decisão é tida na literatura como condição crítica, pois pode contribuir para os processos de implantação da gestão compartilhada dos recursos naturais (GOETZ e GAVENTA, 2001; VIEIRA, 2015). Buscou-se, assim, identificar nas políticas públicas relacionadas à gestão de recursos hídricos, previsões legais que criem oportunidades para um engajamento efetivo dos pescadores artesanais na gestão dos recursos hídricos.
A Lei Federal n° 9.433/97, dispõe sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos, têm dentre suas diretrizes gerais (Art. 3°), a adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do País; e a integração da gestão das bacias hidrográficas com a dos sistemas estuarinos e zonas costeiras. Tais previsões são fundamentais, pois possibilitam que o delineamento do processo participativo seja adequado à realidade de cada bacia hidrográfica, podendo ser pensado e construído na perspectiva dos sistemas socioecológicos.
Os instrumentos de gestão previstos na Lei das Águas, são também críticos para a atividade de pesca artesanal, uma vez que foram criados visando garantir os múltiplos usos da água, sua qualidade e quantidade, o provimento de serviços ecossistêmicos e seu uso racional. Apesar de não haver menção direta à participação de comunidades tradicionais (à exceção das comunidades indígenas) ou mais especificamente das comunidades pesqueiras, a Lei é clara quanto à necessidade de envolver todas as partes interessadas na gestão.
A Lei n° 3.239/99, que de forma similar instituiu a Política de Recursos Hídricos do Estado do Rio de Janeiro, traz algumas previsões mais específicas como a consideração, como continuidade da unidade territorial de gestão, do respectivo sistema estuarino e a zona costeira próxima, bem como, a faixa de areia entre as lagoas e o mar; e a formação da consciência da necessidade de preservação dos recursos hídricos, através de ações de educação ambiental, com monitoramento nas bacias hidrográficas. No entanto, da mesma forma que a Polícia Nacional de Recursos Hídricos, a Lei Estadual não traz previsão legal específica para comunidades tradicionais de maneira geral, logo nem para a atividade de pesca artesanal. Importante destacar que, em 2005, foi criada a CTCOST (Câmara Técnica de Integração dos Recursos Hídricos com os Sistemas Estuarinos e Zonas Costeiras), no âmbito do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que teve sua atuação limitada e questionada devido a conflitos de domínio e competência; isto é, o que compete à gestão de recursos hídricos e o que compete ao gerenciamento costeiro (Loitzenbauer e Mendes, 2014).
O Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), instrumento de gestão previsto na Política Nacional de Recursos Hídricos, é o documento orientador de sua implementação. Ele dá também as diretrizes para atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), formado por instituições no nível federal, dos Estados e Distrito Federal e das bacias hidrográficas. O atual PNRH foi aprovado, por meio da Resolução CNRH nº 232/2022, tendo um horizonte temporal até 2040. Diversos Programas previstos em seu Plano de Ação têm interface com a atividade de pesca artesanal, visto que buscam garantir água em quantidade e qualidade e, consequentemente, o provimento de serviços ecossistêmicos, reduzir conflitos e assegurar os múltiplos usos da água. Especificamente o Programa 4 - Integração da Política Nacional de Recursos Hídricos com Políticas e Planos Setoriais, têm como objetivo principal integrar e articular com os diferentes setores governamentais e os usuários de recursos hídricos, buscando promover a compatibilidade com outras políticas e planejamentos para o aproveitamento múltiplo dos recursos hídricos de forma sustentável.
Para fins dessa integração, foi criado o Subprograma 4.1 - Interface do PNRH com as Políticas e Planos Setoriais, que considera os setores usuários relevantes, sendo a pesca um deles. No âmbito do Plano Nacional, a pesca é definida de maneira geral e inclui suas diversas modalidades (pesca profissional artesanal, pesca profissional industrial, pesca difusa e turismo de pesca). O Plano apresenta, ainda, uma definição do que chama de “Pesca Profissional Artesanal”, que consiste naquela praticada por pescadores que exercem a atividade da pesca legalmente com finalidade profissional comercial e associados a Colônias de Pesca ou Associações de Pesca.
A atividade de pesca é considerada como um uso não consuntivo da água. O Plano destaca que esse uso da água é pouco sensível aos parâmetros tradicionais de avaliação dos usos múltiplos, sendo que indicadores de massa salarial, número de pescadores e de colônias de pesca, número de empregados e renda direta e indireta são importantes para caracterizar a relevância local e regional desse setor usuário. No planejamento do desenvolvimento dessas atividades, o Plano também destaca a necessidade de identificação de áreas importantes para a manutenção dos estoques pesqueiros (desova e berçário).
O Programa 4 prevê, dentro de suas macrodiretrizes, apoiar a elaboração de estudos para identificação de áreas estratégicas para a manutenção dos estoques pesqueiros, com foco nas espécies migradoras e com importância para a pesca, e definir, com base nos resultados, áreas sujeitas a restrição de usos. Especificamente, o Subprograma 4.6 - Gestão de Recursos Hídricos nas Zonas Costeiras e Estuarinas -, tem como objetivo principal promover a integração da gestão dos recursos hídricos em bacias hidrográficas com a gestão dos sistemas estuarinos e das zonas costeiras.
A criação deste Subprograma se justifica, entre outros, pelo fato de que apesar da Política Nacional de Recursos Hídricos abranger a gestão de recursos hídricos em zonas costeiras e estuarinas, com a previsão da implementação dos seus instrumentos de gestão, e do Conselho Nacional do Meio Ambiente já ter definido condições e padrões de qualidade de água para o Enquadramento de águas salinas e salobras, o Plano destaca que pouco pode ser visto de efetividade, implementação e ações no âmbito da gestão nessas zonas.
Outro ponto de destaque são os apontamentos relativos às necessidades de aprimoramento da gestão dos recursos hídricos nas Zonas Costeiras e Estuarinas. O Plano aponta que é fundamental o desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre a dinâmica entre os corpos hídricos costeiros, os estuários e o ambiente marinho, entre as águas superficiais e subterrâneas em zonas costeiras e estuarinas e entre o uso e ocupação do solo e a gestão de recursos hídricos. Estudos nesse sentido podem fornecer informações e conhecimentos necessários para o aprimoramento da gestão nessas zonas. Outro aspecto fundamental, ressaltado para a gestão em zonas estuarinas e costeiras é a definição e formalização de linha de costa. A Lei nº 8.671, de 4 de janeiro de 1993, e decretos correlatos definem o traçado da linha de base, linha a partir da qual será medida a extensão do mar territorial, mas não trazem a definição da linha de costa.
O Plano aponta também a necessidade de apoio aos estados e municípios para a ampliação da implementação dos instrumentos da gestão costeira previstos no Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro II (PNGC-II), a citar: Plano de Gestão da Zona Costeira – PGZC; Zoneamento Ecológico Econômico Costeiro – ZEEC; Sistema de Informações do Gerenciamento Costeiro – SIGERCO; Sistema de Monitoramento Ambiental da Zona Costeira – SMA-ZC; Relatório da Qualidade Ambiental da Zona Costeira – RQA-ZC; Plano Estadual de Gerenciamento Costeiro – PEGC; e Plano Municipal de Gerenciamento Costeiro – PMGC.
É ressaltada, no entanto, a carência de definição clara das responsabilidades sobre a gestão e a pluralidade de escalas territoriais, políticas e de normativos no âmbito costeiro, o que fomenta a incidência de conflitos e dificulta a governança. Aponta-se como solução potencial a responsabilidade partilhada entre esses diversos atores, sendo chave para uma governança de recursos eficaz nos espaços costeiros e estuarinos. Com vistas a equacionar tais questões diagnosticadas pelo Plano, o Subprograma 4.6 apresenta as seguintes macrodiretrizes: i) Fortalecer a integração da gestão de recursos hídricos em zonas costeiras e estuarinas; ii) Considerar nas diretrizes e procedimentos para a gestão costeira a aplicação dos instrumentos de gestão, bem como a identificação de responsabilidades dos entes do SINGREH, incluindo compartilhamento de bases de dados comuns; iii) Construir e aprimorar instrumentos de monitoramento da qualidade da água, considerando as particularidades das zonas costeiras e estuarinas; iv) Fortalecer a participação cidadã na gestão integrada de recursos hídricos nas zonas costeiras e estuarinas; v) Considerar as zonas costeira e estuarinas no planejamento de recursos hídricos da bacia hidrográfica; vi) Considerar as peculiaridades das bacias hidrográficas brasileiras, definindo os critérios e as informações técnicas necessárias à identificação da base territorial de articulação entre a gestão de recursos hídricos e a gestão costeira no âmbito de cada bacia ou região hidrográfica que contenha trechos da Zona Costeira; vii) Apoiar o desenvolvimento de pesquisa para o aprimoramento e inovações dos instrumentos de gestão, incluindo certificações, pagamento por serviços ambientais e outros critérios econômicos; viii) Desenvolver estudo para avaliar correlação das questões de uso e ocupação do solo com o gerenciamento costeiro e dos recursos hídricos entre os representantes da gestão municipal, estadual e federal, dos Comitês de Bacia Hidrográfica e do Gerenciamento Costeiro; ix) Promover o desenvolvimento de pesquisas relacionadas à gestão de recursos hídricos, com ênfase nas zonas costeiras e estuarinas; x) Estimular o enquadramento das classes de qualidade para os trechos de corpos hídricos em zonas costeira e estuarinas, considerando suas especificidades.
Por fim, o Subprograma 4.6 prevê como ação desenvolver estudo para avaliar as interfaces entre as políticas de recursos hídricos e de gestão na zona costeira e propor estratégias de atuação na área, com ajustes nos instrumentos de gestão. Como metas de curto e médio prazo, espera-se Interfaces avaliadas entre as políticas de recursos hídricos e de gestão na zona costeira e estratégia proposta de atuação articulada da política de recursos hídricos em zona costeira; e proposta de diretrizes para orientação à aplicação dos instrumentos de gestão de recursos hídricos em trechos de zona costeira.
No âmbito estadual, o Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado do Rio de Janeiro (PERHI-RJ) teve sua primeira edição aprovada pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos em 2014. O PERHI-RJ conta com sete temas estratégicos para a gestão das águas do Estado, que nortearam a sua elaboração; e tem horizonte de planejamento até 2030, com um conjunto de 39 programas, projetos e ações. Destaca-se o Relatório 9, que trata das metas e estratégias para implementação dos cenários propostos, onde a pesca é citada no Eixo Temático 1.9 – Monitoramento de Qualidade e Quantidade da Água, Programa 1.9.3 – Estudo para Identificação de Áreas Prioritárias para o Monitoramento Qualiquantitativo; e especificamente no Eixo Temático 2.6 – Recuperação, Operação e Manutenção da Infraestrutura Hídrica Programa 2.6.1 – Operação e Manutenção dos Canais de Campos dos Goytacazes.
A partir da análise das legislações relativas à gestão dos recursos hídricos e sua interface com a atividade de pesca artesanal, foi possível observar, de modo geral, um ambiente favorável para inserção/participação dos pescadores artesanais. Constatou-se, no entanto, que apenas o Plano Nacional de Recursos Hídricos, recém aprovado, faz uma previsão mais específica quanto a estratégias de integração da gestão dos recursos hídricos com outras políticas setoriais, dedicando especial atenção à pesca artesanal. No entanto, o Plano Nacional apresenta-se como uma diretriz mais ampla, com caráter “top down”, que precisa ser complementada por uma visão “bottom up”, com diretrizes e ações dos Estados e dos Comitês de Bacia, partindo-se do princípio de que as políticas e planos nessas escalas e níveis reflitam as demandas da pesca artesanal. E que, idealmente, se articulem com outros sistemas de gestão já existentes, como a gestão da pesca, costeira, das unidades de conservação, entre outras que “coabitam” e se sobrepõem territorialmente.
Com o objetivo de traçar um panorama das oportunidades de inserção das comunidades pesqueiras nesses colegiados, procedeu-se à análise dos Regimentos Internos, e da atual Composição dos respectivos Comitês analisados. Quanto à sua estrutura e organização interna os Comitês são constituídos por diferentes instâncias, com objetivos particulares, a saber: a Plenária, na qual todos os membros ocupando cadeiras titulares e suplentes se reúnem e as decisões são deliberadas; a Diretoria Colegiada, composta por representantes dos três segmentos, que tem como papel principal a análise das matérias e encaminhamento ao Plenário; e a Câmara Técnica, que é criada para tratar assuntos técnicos e encaminhá-los à discussão e deliberação na Plenária. Podem também ser criados Grupos de Trabalho que se dedicam a discutir assuntos específicos e de caráter temporário. Alguns colegiados optam também pela criação de Subcomitês que abrangem sub-bacias ou um conjunto de microbacias com características particulares, que justificam tratar os assuntos em uma escala mais local. Não existe previsão legal que determine como os Comitês de Bacia devem se organizar internamente, cabendo essa decisão aos membros. Em tese, tal flexibilidade legal permite que a criação e organização das instâncias participativas internas venha a refletir o contexto no qual se inserem.
Sobre o Regimentos Internos dos três Comitês analisados, foi possível observar que, de maneira geral, tais instrumentos apresentam previsões legais similares, muito em virtude ao atendimento às legislações federal e estadual de gestão de recursos hídricos. Diferenças foram observadas, principalmente, quanto a customização da organização interna dos Colegiados, que criam diferentes instâncias de acordo com seus contextos particulares. Importante observar que não há previsão legal quanto ao arranjo interno dos colegiados. Sendo assim, cada Comitê define e cria instâncias participativas com base em divisões hidrográficas e ou diferentes temáticas. O que é interessante por um lado, por potencialmente ampliar as oportunidades de participação dos múltiplos atores, mas por outro, potencialmente aumenta os “custos” de participação e traz maior complexidade ao processo de tomada de decisões.
Identificou-se que o Comitê Lagos São João é o que possui maior número de instâncias de participação. Além da Plenária, composta por 57 membros - maior número de representações dentre os Comitês analisados -, o colegiado conta com uma Diretoria Colegiada, 4 (quatro) Subcomitês e 8 (oito) Câmaras Técnicas. O regimento prevê na representação do segmento usuários de recursos hídricos e vagas específicas para o setor de pesca (cinco). Esse setor possui o mesmo número de vagas que o setor de saneamento e/ou abastecimento público, enquanto os demais setores possuem um número menor de vagas, o que ressalta a relevância da atividade para este Comitê.
Considerando a última Composição em vigor (2021-2023), dentre as 18 (dezoito) vagas do segmento usuários, 2 (duas) são ocupadas por associações de pescadores artesanais, 3 (três) por colônias de pescadores e 1 (uma) por associação de aquicultores. Uma Colônia de Pescadores ocupa, também, vaga no segmento sociedade civil. No segmento Poder Público, destaca-se a representação da Fundação de Pesca do Estado do Rio de Janeiro - FIPERJ. Importante observar, ainda, que o representante da Colônia de Pescadores de Iguaba Grande - Z29, ocupa o cargo de Secretário Executivo na Diretoria Colegiada. Outro ponto que merece destaque é a existência da Câmara Técnica Permanente da Pesca Artesanal e da Aquicultura da Bacia Hidrográfica do São João, criada no ano de 2009, em funcionamento até os dias atuais.
O CBH Macaé e das Ostras prevê em seu regimento 27 (vinte e sete) vagas, divididas de forma paritária entre os três segmentos, tendo instâncias internas similares ao CBH Lagos São João, exceto quanto à existência de Subcomitês. Observou-se que o regimento não prevê a distribuição das vagas entre as entidades e setores de cada segmento, estando a representação em aberto. Ao analisar a composição do Comitê (Biênio 2021-2022), não foi possível constatar a representação do setor da pesca. Destaca-se ainda a existência da Câmara Técnica de Lagoas e Zona Costeira, criada para a gestão dos usos da água nas lagoas e zona costeira, que na composição atual, destaca-se apenas a representação da FIPERJ.
O CBH Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana prevê em regimento uma Plenária composta por 30 (trinta) membros, sendo 10 (dez) de cada segmento. As vagas previstas para os segmentos são distribuídas entre entidades e setores. Quanto a composição (Triênio 2021-2024), destaca-se a participação da FIPERJ, no segmento Poder Público, que neste Comitê ocupa a vaga de suplente. No segmento usuários, é destinada uma vaga que pode ser ocupada tanto pelo setor pesqueiro (artesanal/industrial), ou de transporte hidroviário, ou de turismo e lazer. No entanto, nenhuma organização relacionada à pesca artesanal ou industrial possui representação nesse segmento. Neste Comitê, destaca-se a ampla representação do setor agropecuário, o qual possui um histórico de conflitos com o setor pesqueiro pelo uso da água. Dos três Colegiados analisados, o CBH Baixo Paraíba do Sul é o que possui menor número de instâncias participativas, contando com a Plenária, a Diretoria Colegiada e uma única Câmara Técnica. Estudos anteriores já haviam constatado a existência de um vazio de representação das comunidades pesqueiras no CBH-BPSI, que culminou na inativação da Câmara Técnica da Pesca, prevista no regimento original de sua implantação (THOMÉ, 2018; TOTTI e THOMÉ, 2021).
A fim de complementar a análise quanto à inserção e participação das organizações relacionadas à pesca artesanal, foram também analisados os dados do Censo Pescarte (2016/2022), a partir do levantamento das associações e colônias de pescadores nos municípios da área de atuação do Projeto de Educação Ambiental - PEA Pescarte (Quadro 1). Em seguida, procedeu-se ao cruzamento de tais informações com a composição atual dos Comitês.
Quadro 1 – Levantamento das associações e colônias de pescadores nos municípios da área de atuação do Projeto de Educação Ambiental - PEA Pescarte, por região hidrográfica.
De todas as entidades levantadas, apenas a Colônia de Pescadores Z-04 do município de Cabo Frio possui representação no Comitê de Bacia Lagos São João, no setor sociedade civil (Composição 2021-2023). Entretanto, foram identificadas nesse Comitê representações de outras três Colônias de Pescadores (Colônia de Pescadores Z-24 de Saquarema, Colônia de Pescadores Z-28 de Araruama e Colônia de Pescadores de Iguaba Grande - Z29), além de duas Associações de Pescadores (Associação de Pescadores Artesanais e Amigos da Praia da Pitória e Associação dos Pescadores Artesanais da Praia da Baleia - município de São Pedro da Aldeia), uma de Aquicultores (Associação Livre dos Aquicultores das Águas do São João - ALA - município de Casimiro de Abreu), situadas em municípios fora da área de abrangência do Projeto PEA Pescarte, no segmento usuários.
Cabe destacar que, para a composição dos membros dos Comitês são realizados processos eleitorais, por meio de editais públicos que determinam quais as normas, a documentação a ser apresentada pelas organizações que desejem pleitear uma vaga, e o período de inscrição. O processo eleitoral é regido pelos respectivos estatutos dos Comitês, e pelas normas do Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Estado do Rio de Janeiro (CERHI-RJ), que dispõe, nas Resoluções n° 77, 78 e 79 de 2011, sobre as instituições que se enquadram em cada um dos segmentos - Poder Público, Sociedade Civil e Usuários. Os interessados apresentam sua intenção de preencher uma vaga no colegiado e devem atender a documentação exigida no Edital. Trata-se da documentação legal da instituição comprovando seu pleno funcionamento e atuação nos últimos 2 anos em atividades ligadas à defesa do meio ambiente e a gestão dos recursos hídricos. As inscrições são realizadas nas sedes das respectivas secretarias executivas dos Comitês (Entidades Delegatárias). Uma Comissão Eleitoral é formada por integrantes do Comitê, definidos em reunião Plenária, que acompanham e fiscalizam a realização do Processo Eleitoral. A primeira etapa do processo eleitoral é dedicada à análise documental, para fins de habilitação das entidades inscritas ou impugnação justificada das inscrições. Posteriormente são realizados Fóruns Eleitorais onde ocorre a eleição dos membros, sendo definidas a distribuição das vagas entre titulares e suplentes em cada segmento. De maneira geral, as composições correspondem a um período de dois anos (bianual), quando então novo processo eleitoral é realizado.
A análise inicial dos Regimentos Internos e Composições dos Comitês permitiu mapear a existência e criação de potenciais espaços de participação e a inserção das comunidades pesqueiras na gestão dos recursos hídricos nessas regiões hidrográficas. Entretanto, os regimentos e as composições disponíveis nos sítios eletrônicos dos Comitês de Bacia, refletem apenas a última versão e a gestão atual. Sendo assim, perdem-se os aspectos históricos, informações estas fundamentais para entender a dinâmica de inserção/participação das comunidades pesqueiras artesanais ao longo do tempo, bem como a evolução da previsão legal de instâncias participativas (criação e extinção, principalmente).
Outra linha de investigação deste estudo, refere-se a análise das deliberações dos Colegiados, por meio de suas Resoluções. O levantamento das resoluções nos sites dos CBHs teve como critérios de seleção as deliberações que tratavam de questões diretamente relacionadas a pesca artesanal (estudos, planejamento, criação de câmaras técnicas ou grupos de trabalho, fiscalização, monitoramento pesqueiro, etc.), bem como aquelas que de alguma forma impactam a atividade (monitoramento da qualidade da água, saneamento).
Constatou-se nessa primeira prospecção que as ações e investimentos dos Comitês, que impactam direta e indiretamente a pesca artesanal, concentram-se nas áreas de monitoramento da qualidade da água, saneamento e criação de instâncias participativas internas para discussão de temas específicos.
Importante pontuar que os Comitês foram criados e iniciaram suas atividades em momentos diferentes. O CBH Lagos São João foi criado em dezembro de 2004 e teve sua primeira deliberação por meio de resolução no ano de 2005. Já o CBH Macaé e das Ostras foi criado em novembro de 2003 e aprovou sua primeira Resolução no ano de 2009. Por fim, o CBH Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana foi criado em março de 2009 (sendo a região do Itabapoana incorporada no ano de 2016). Sua primeira deliberação, por meio de resolução, foi no ano de 2010. A análise limitou-se à identificação das Resoluções de interesse, não sendo possível obter informações acerca da implementação dos projetos deliberados. Ademais, cada região hidrográfica possui um perfil de arrecadação dos recursos da cobrança pelo uso da água, que corresponde ao quantitativo de usuários pagantes. Portanto, não serão tratados aqui os valores investidos, nem realizadas comparações entre os Comitês, nesse sentido.
Destaca-se o Comitê Lagos São João, que além de possuir uma Câmara Técnica de Pesca Artesanal e Aquicultura desde 2009, possui o maior número de Resoluções aprovadas, sendo uma parte significativa dessas diretamente relacionadas com a Pesca Artesanal. Foram identificadas 56 (cinquenta e seis) Resoluções relacionados direta ou indiretamente com a atividade de pesca artesanal, de um total de 179 deliberações realizadas até o ano de 2023. Seja por meio de investimentos diretos em apoio aos pescadores em atividades de monitoramento, para fins de fiscalização, estudos e outras ações relevantes.
O Comitê Macaé e das Ostras possui 15 (quinze) Resoluções relativas a investimentos em saneamento, monitoramento e instâncias participativas internas com assuntos relevantes para a pesca artesanal; de um total de 163 Resoluções aprovadas até o ano de 2023. Entretanto, não foram identificadas deliberações específicas para a pesca artesanal. Vale destacar, a criação recente (2021) de um Grupo de Trabalho de Gestão Costeira, que conta com a representação do INEA, da FIPERJ, e de prefeituras municipais, no segmento poder público; representantes do setor elétrico e do terminal portuário de Macaé, no segmento usuários. E no segmento sociedade civil, destacam-se a Universidade Federal do Rio de Janeiro – Campus Macaé e o Movimento S.O.S Praia do Pecado, organização não governamental que atua na região. Entretanto não há representantes da pesca, seja artesanal ou industrial. Para além da criação dessa instância participativa, foram identificados investimentos em projetos pontuais voltados para o monitoramento da qualidade da água de maneira geral, e um estudo mais específico sobre tecnologias para cultivo de peixes e camarões marinhos.
O Comitê Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana teve uma Câmara Técnica de Pesca criada no ano de 2012, por meio de uma Resolução que, no entanto, foi revogada no ano de 2018, deixando, então, de existir como espaço de participação para esses atores. Ademais, seus investimentos principais são direcionados para o monitoramento e ações pontuais de saneamento. Sua estrutura de deliberação observadas nas Resoluções, se difere dos demais por, aparentemente, demonstrar pouco usar desse mecanismo para avançar pautas de interesse dos recursos hídricos.
Por fim, realizou-se a sistematização das resoluções que possuem potencial de impacto na pesca e ou comunidades pesqueiras, considerando a última gestão completa dos Comitês estudados. Os resultados são apresentados no Quadro 2. As ações empreendidas pelos Comitês foram divididas nas seguintes categorias: saneamento; planejamento, monitoramento e fiscalização; focalizada na pesca ou comunidades pesqueiras (impacto positivo); focalizada na pesca ou comunidades pesqueiras (impacto negativo); gestão territorial; e governança. As ações envolvendo a governança das águas, com impacto positivo e negativo, diz respeito às situações em que os pescadores estão presentes ou ausentes das instâncias de decisão (câmaras técnicas e grupos de trabalho).
Quadro 2 - Categorização e número de ocorrência das ações empreendidas pelos comitês a partir da análise de suas resoluções (último período de gestão completa).
Dados: *As ações envolvendo a governança das águas, com impacto positivo e negativo, diz respeito às situações em que os pescadores estão presentes ou ausentes das instâncias de decisão (câmaras técnicas e grupos de trabalho).
A análise das deliberações na última gestão dos Comitês, parece refletir tanto a relevância da pesca artesanal nos Colegiados, quanto a inserção desses atores em tais arenas. O Comitê Lagos São João mais uma vez se destaca dos demais, por deliberar em favor de pautas específicas para a pesca artesanal, o que se pode considerar estar relacionado com a existência de uma Câmara Técnica de Pesca desde o início de sua atuação até os dias atuais.
Conclui-se que ao propor e conduzir estudos de dinâmica de participação de comunidades tradicionais em sistemas de gestão participativa, uma investigação inicial acerca da existência de espaços convidados e sua inserção nos processos decisórios é fundamental para entender aspectos relacionados à luta institucional. Nesse sentido, o presente estudo contribui, ao buscar identificar tais espaços, potenciais sinergias entre os sistemas de gestão (pesca e recursos hídricos) e o quanto essas oportunidades se traduzem ou não em participação.
A análise do ambiente político-institucional apontou caminhos possíveis de inserção das comunidades pesqueiras na gestão dos recursos hídricos. A Lei Federal das Águas, e sua similar do Estado do Rio de Janeiro, de maneira ainda que genérica, enxergam as lagoas e a zona costeira como um contínuo ao território da bacia hidrográfica; sinalizam a necessidade de integração de políticas, e a importância da inserção e participação das partes interessadas na gestão. Apesar de não haver previsão legal específica para as comunidades pesqueiras, observa-se que há um potencial de ações colaborativas entre os sistemas de gestão da pesca e dos recursos hídricos, que, no entanto, precisa ser construído.
É esperado que as leis apontem os princípios, diretrizes e instrumentos para sua plena implementação, devendo estas serem complementadas por planejamentos e ações mais estratégicas em diferentes níveis e escalas. Na versão mais atual do Plano Nacional de Recursos Hídricos (2022), foi possível identificar diretrizes relativas à questão da pesca artesanal e à gestão das águas, ressaltando as potencialidades e oportunidades de integração e aprimoramento dos dois sistemas. Reconhece-se o papel e relevância dos, assim chamados, “pescadores artesanais profissionais”, vinculados a Colônias ou Associações de Pesca como partes interessadas a serem inseridas no processo decisório. Nos documentos disponibilizados do Plano Estadual (2014), por sua vez, não foi possível identificar uma diretriz ou proposta de ação específica para a pesca artesanal, apenas programas que tratam de assuntos que impactam direta ou indiretamente a atividade. Importante destacar que a pesca artesanal é uma atividade de extrema relevância para o Estado do Rio de Janeiro, e para as bacias aqui estudadas. Em vistas à atualização do Plano Estadual, e frente às contribuições do Plano Nacional, espera-se que oportunidades de inserção e participação mais efetivas possam vir a se concretizar. Para tal, os entes do sistema estadual de recursos hídricos precisam enxergar as potencialidades de arranjos colaborativos e, concomitantemente, as representações da pesca artesanal precisam estar mobilizadas para pautar suas questões nos planejamentos de bacia.
De maneira geral, o arcabouço legal analisado reflete e reforça a necessidade de integração de políticas e ações em bacias hidrográficas costeiras. Fato é que, apesar de transitar entre diretrizes mais gerais e previsões legais mais específicas para as comunidades pesqueiras, é possível afirmar que existe um ambiente político-institucional favorável à inserção e participação das comunidades pesqueiras na gestão dos recursos hídricos. É fundamental que as políticas, propostas e ações planejadas venham a se efetivar no âmbito dos Comitês de Bacia, na perspectiva destes como espaços convidados, traduzindo-se em efetiva inserção e participação das comunidades pesqueiras na gestão das águas. Nos limites do presente estudo, foi possível constatar que na escala das bacias hidrográficas, onde ocorre da gestão participativa por meio dos Comitês de Bacia, as oportunidades geradas pelo arcabouço legal não se refletem de forma homogênea nos colegiados analisados.
Para acessar esses espaços convidados, são lançados editais públicos com vistas a composição dos Comitês de Bacia, e apesar da relativa simplicidade, demandam que os pescadores artesanais estejam organizados em Colônias ou Associações, que precisam estar regularmente em funcionamento. É imprescindível que os pescadores estejam instrumentalizados e articulados para poderem fazer cumprir seus direitos de participação nas arenas formais (VIEIRA et al., 2015). O levantamento das entidades de pesca artesanal nos municípios inseridos nas regiões hidrográficas estudadas, aponta para uma diversidade enorme de arranjos associativos, sendo necessário complementar tais informações com o status de funcionamento delas, para se obter um real cenário de atuação-ação. Torna-se crítico, também, entender a natureza de tais entidades, isto é, para que e por quem foram criadas, quem elas de fato representam, e se de algum modo elas se articulam entre si para lidar com suas demandas comuns. Ainda, entende-se que não necessariamente todas as entidades relacionadas à pesca artesanal, devem ou serão inseridas formalmente na gestão dos recursos hídricos. É preciso, também, um olhar crítico acerca desta questão. Pode ser mais relevante ter clareza dos pontos de intersecção, isto é, onde os esforços podem se somar efetivamente, para promover mudanças ou reverter cenários de degradação ambiental.
As normativas de funcionamento dos Colegiados, dispostas em seus Regimentos Internos, apresentam-se, de modo geral, de forma similar, com diferenças na distribuição de vagas para os setores. Nos Comitês de Bacia Macaé e das Ostras e Baixo Paraíba do Sul e Itabapoana, não há previsão de vagas específicas para esses atores, que têm que disputar vagas com outros setores e atores mais organizados e com mais tempo e recursos financeiros para participar. Ao analisar as Composições dos Comitês de Bacia, a representação das entidades de pesca artesanal não é homogênea nos Colegiados estudados. Apesar de o Comitê de Bacia Lagos São João se destacar sobremaneira dos demais colegiados analisados, quanto à criação de instâncias participativas, inserção das organizações de pesca artesanal, capilaridade na composição, ele possivelmente não reflete a realidade das bacias costeiras do Estado e, possivelmente, do Brasil.
Fica evidente que a existência dos espaços convidados, no âmbito da gestão dos recursos hídricos, não garante a participação dos pescadores artesanais nesse arranjo de gestão compartilhada. É importante pontuar que algumas questões se apresentam como limitantes para a efetiva inserção e participação desses atores, apesar da existência de um ambiente político-institucional favorável. Primeiramente, é preciso que as comunidades pesqueiras venham a enxergar esses espaços como oportunidades para reivindicar suas demandas, que possam de fato contribuir para a melhoria das condições socioambientais dos locais onde vivem e trabalham. Na pesquisa conduzida por Vieira et al. (2015), por exemplo, os autores buscaram identificar arranjos institucionais na legislação brasileira que possibilitam a participação dos pescadores artesanais nas tomadas de decisões. Interessante notar que o sistema de gestão dos recursos hídricos não foi identificado como um espaço de gestão compartilhada para inserção e participação dos pescadores artesanais, que potencialmente poderia contribuir - diretamente ou indiretamente - para a gestão da pesca costeira.
Ainda assim, mesmo tendo conhecimento da existência desses espaços, e atendendo às condicionantes para inserção no sistema de gestão dos recursos hídricos, os pescadores artesanais podem julgar ser mais interessantes que a luta institucional aconteça em outros espaços. Frente às possibilidades reais de inserção, é relevante olhar para um aparente desinteresse ou mesmo um esvaziamento desses espaços. O fenômeno da não participação pode relacionar-se diretamente com as regras de recrutamento dos participantes, com o formato da participação, o desenho institucional ou a falta de crença na efetividade do espaço institucional (EMPINOTTI, 2011; MARTINS, 2015). Ademais, frente aos inúmeros espaços participativos, relativos à outras pautas importantes (saúde, educação), como se organizar, se dividir e se manter atuante frente a essa e a outras tantas complexidades do participar?
Apesar dos desafios que se apresentaram, como bem colocado por Bois e Milagres (2021), a atuação crítica junto ao Estado, ainda que possua limites, é crucial para fazer as agendas e demandas avançarem. Costa e Brito (2019), ao analisar a incorporação da comunidade pesqueira artesanal em ações políticas e refletir sobre os desafios da participação popular na gestão pública do meio ambiente, tem a convicção que a população afetada por empreendimentos - como os petrolíferos - deve participar dos processos decisórios. É fundamental reconhecer, no entanto, que tais comunidades devem ser qualificadas para inserir-se nessas negociações. O amplo predomínio dos conhecimentos e da terminologia técnica nas plenárias dos Comitês responde por um efeito colateral significativo para a gestão participativa, ao criar e reproduzir desigualdade social (MARTINS, 2015). Estudos sinalizam desigualdades relativas às diferenças de conhecimento no interior das instâncias de governança das águas, e o predomínio das elites em negociações específicas no âmbito de Comitês de Bacias, mesmo não sendo maioria na representação (ABERS et al., 2009; MARTINS, 2015).
Ainda, questões relativas à capacidade de auto-organização e autogestão dos movimentos/organizações e as questões político-partidárias que os permeiam em muitos casos, precisam ser superadas (BOIS E MILAGRES, 2021). Trazendo para a realidade desta pesquisa, essas questões se mostram verdadeiras para muitas entidades de pesca, o que pode interferir na ocupação desses espaços convidados não permitindo uma participação crítica e com visão de longo prazo, capaz de consolidar propostas junto à política institucional.
Ainda, como bem pontuado por Quick e Bryson (2016), o entendimento sobre quem participa e os processos de representação introduzem tensões sobre diversidade e acesso a esses espaços participativos. Questões relacionadas à representação - isto é, quem fala por quem e como as reivindicações de representação são feitas e negociadas - emergem, e acabam por minar a legitimidade das organizações comunitárias (CORNWALL, 2004). Cornwall nos lembra que a criação dos “espaços convidados’’ e a participação são parte de um cenário mudança institucional recente, logo a maneira como as pessoas percebem e se envolvem com a governança ainda está se enraizando. Assim, ao discutir o tema é fundamental fazer reflexões acerca do que constitui uma participação “útil” e legítima; das relações da diversidade com representação e inclusão; da natureza e o papel apropriado dos diferentes tipos de conhecimentos e experiências na participação; e do desafio de delinear processos de participação bem adaptados ao contexto (DE VENTE et. al, 2016; QUICK e BRYSON, 2016). Para Costa e Brito (2019), um dos desafios principais é operar uma desconstrução de um “jeito” de olhar para as comunidades tradicionais, a fim de reconstruir com elas uma relação social mais democrática e equitativa: que contemple, no caso das comunidades pesqueiras, a diversidade dos territórios pesqueiros, a heterogeneidade da pesca artesanal, as diferenças de gênero, as experiências já acumuladas pelas comunidades. Para Reed (2008) é mais provável que diferentes níveis de engajamento sejam apropriados em diferentes contextos, dependendo dos objetivos e da capacidade das partes interessadas de influenciar os resultados.
Por fim, entende-se ser fundamental avançar e transpor a visão de que participar é somente ter os “espaços” criados e ocupados, e focar em aspectos mais relacionados à qualidade e impactos mútuos. Tanto para quem participa quanto no aprimoramento dos processos decisórios, para um efetivo alcance de resultados diversos: isto é, deve-se buscar que a participação fomente a aprendizagem social, agregando aos processos participativos a retroalimentação (feedback) e adaptação como elementos de ajustes às mudanças e incertezas inerentes aos sistemas socioecológicos. Isto é, assim como as pessoas e os ambientes nos quais estão inseridos mudam, os processos participativos devem também evoluir e se adaptar, de modo que não percam sua razão de existir, sua força, e venham a ser esvaziados.
Apesar da reconhecida importância da participação das comunidades pesqueiras na gestão das águas - o que é demonstrado pelo caso do Comitê Lagos São João -, muitos são os desafios nesse sentido. Nos demais Comitês analisados, a questão da pesca artesanal não possui mesma relevância e espaço. Pouco se sabe, também, das motivações, histórico, limitações e efetividade da participação dessas comunidades na gestão dos recursos hídricos. A simples existência dos espaços, sejam eles específicos ou sensíveis às pautas da pesca artesanal, não é sinônimo de inserção e participação. Cabe, assim, a continuidade da investigação para compreender em quais espaços convidados os pescadores artesanais estão realizando sua luta institucional. Por fim, entende-se ser fundamental ocupar, resistir e lutar contra estruturas de poder que operam dentro de espaços convidados, que deveriam na verdade se configurar meios de consolidação da democracia. Fica aqui a pergunta: como transformar a inserção em efetiva inclusão?