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Feminismo maternalista e políticas sociais: a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e a construção de uma agenda política em defesa da maternidade e infância (1920-1939)
Ismael Gonçalves Alves
Ismael Gonçalves Alves
Feminismo maternalista e políticas sociais: a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e a construção de uma agenda política em defesa da maternidade e infância (1920-1939)
Maternalist feminism and social policies: Federação Brasileira pelo Progresso Feminino and the construction of a political agenda in defense of motherhood and childhood (1920-1939)
O Social em Questão, vol. 1, núm. 61, pp. 33-60, 2026
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Este artigo busca evidenciar a participação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino na construção de estruturas governamentais que fomentassem o debate e a implementação de políticas sociais voltadas à maternidade e à infância. Para tal, utilizaremos o conceito de maternalismo, que ressalta o papel das associações femininas e feministas na promoção de políticas materno-infantis. Ao questionarmos uma visão masculinista e economicista, buscamos desconstruir a persistente imagem das mulheres como beneficiárias da proteção social, edificando a figura da articuladora de políticas que, a partir de suas próprias experiências, impuseram novas demandas no campo das políticas sociais.

Palavras-chave: Estado de Bem-Estar, Políticas Sociais, Gênero, Associações Feministas, Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

Abstract: This article is intended to put in evidence the Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino (FBPF) and its part in the construction of governmental structures that promoted debates and implementation of social politics leaned towards motherhood and infancy. By questioning this masculinist and economicist view, we search to deconstruct the persistent image of women as beneficiaries of social protection, and in this way raise the figure of women as political articulators that from their own experiences imposed new demands in the field of social policies.

Keywords: Welfare State, Social Policies, Gender, Feminist Organizations, Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

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Feminismo maternalista e políticas sociais: a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e a construção de uma agenda política em defesa da maternidade e infância (1920-1939)

Maternalist feminism and social policies: Federação Brasileira pelo Progresso Feminino and the construction of a political agenda in defense of motherhood and childhood (1920-1939)

Ismael Gonçalves Alves
UDESC, Brasil
O Social em Questão, vol. 1, núm. 61, pp. 33-60, 2026
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Octubre 2024

Aprobación: 01 Diciembre 2024

Maternalismo e ativismo feminino na construção de políticas sociais

O conceito de maternalismo, organizou-se, na academia, concomitantemente aos ataques sofridos pelas reivindicações das mulheres no campo político e social. Essa foi uma clara tática dos movimentos feministas para encorajar o ativismo das mulheres ao mesmo tempo que buscavam constranger a classe política pelo desmonte das políticas públicas materno-infantis no final do século XX. Tal reformulação conceitual, adaptada às preocupações feministas, possibilitou o entendimento de que os diferentes tipos de políticas sociais, implantadas no século passado, não foram baseadas apenas no componente econômico ou de classe, mas também em normas de gênero.

Alvo de disputa acadêmica, o conceito de maternalismo demonstra ser conflituoso, gerando intensos debates dentro do próprio movimento feminista. Por se tratar de um feminismo relacional, que interpretava as necessidades das mulheres de maneira distinta, especialmente em defesa de um Estado em favor das mães, o maternalismo foi alvo de inúmeras críticas entre ativistas e pesquisadoras. De acordo com Seth Koven e Sonya Michel (1990), a rejeição à maternidade e consequentemente ao maternalismo, entendidos como incompatíveis com a emancipação das mulheres, levou as historiadoras e outras investigadoras das ciências sociais a minimizarem sua influência nas políticas sociais. Como movimento social, as maternalistas deram maior importância à elaboração do essencialmente feminino, ponderando as diferenciações sexuais por meio de um marco complementar entre homem e mulher, mais do que suas similitudes. Ao invés de perseguir sua inserção em uma sociedade dominada por homens, elaboraram uma extensa crítica à mesma e suas instituições, defendendo a construção de um Estado com capacidade de identificar e dirimir a negligência com as mulheres (OFFEN, 1991).

Ao utilizar o conceito de maternalismo, buscamos explicar a experiência de algumas mulheres como articuladoras de políticas sociais e, ao mesmo tempo, desconstruir a persistente imagem de beneficiária de programas estatais. Desta forma, definimos o maternalismo como um conjunto de ideologias e discursos que exaltam a capacidade das mulheres de serem mães, atendo-se à ideia de que a dedicação às tarefas de nutrição, cuidados e moralidade, as habilitavam a construir uma sociedade mais justa com base nos chamados valores femininos (KOVEN; MICHEL, 2013). De acordo com essa perspectiva, as mulheres atuariam na esfera política com base na sua “diferença”, alegando que a experiência com a maternidade consentia capacidades únicas e inestimáveis para arquitetar políticas de Estado que salvaguardassem as mães e crianças. Desta forma, o emprego do conceito de maternalismo nas investigações sobre o Bem-Estar possibilita mapear os pressupostos culturais, ideológicos e discursivos que sustentam a divisão sexual do trabalho, bem como as dinâmicas familiares, as estruturas burocráticas e as políticas governamentais que ancoram as políticas sociais no Ocidente.

Em suas vertentes, o feminismo maternalista tendia a defender a existência de uma cultura feminina baseada em diferenças indeléveis entre os sexos que deveriam ser preservadas em nome do essencialmente feminino (PULEO, 2004). Além disso, o maternalismo se assentava no pressuposto de que a maternidade não deveria ser considerada como um problema e sim uma condição unificadora e definidora de identidade feminina (BOCK, 1995). De modo geral, as maternalistas lutavam pelo reconhecimento dos direitos e necessidades especiais das mães, buscando difundir a ideia de que a maternidade era uma função social que deveria ser equiparada ao trabalho remunerado masculino. No entanto, ao exigirem direitos, recompensas e proteção para o que até então se considerava como um dever, as maternalistas não questionavam a divisão sexual do trabalho, mas a repartição baseada no sexo entre trabalho remunerado e não remunerado: “desde que foram lançadas estas ideias, o pagamento de subsídios para maternidade constituía uma estratégia para a liberação feminina e um meio de dignificação da maternidade” (ABAD; SECO, 2004, p. 317).

Para a historiadora Mary Nash (2010), o feminismo maternalista do início do século XX, tanto na Europa quanto na América, depositou um enorme valor positivo sobre a maternidade e por meio dela criticou o monopólio masculino sobre a política. Elaborando um conceito diferenciado de cidadania feminina, essas mulheres difundiram um ideal de feminilidade intrinsecamente ligado à domesticidade, aos cuidados e à identidade maternal. Esses discursos baseavam-se na existência de valores femininos provenientes da experiência materna dos cuidados, que, por sua vez, respaldavam moralmente todas as mulheres a interferirem na esfera pública, delegando a elas uma tarefa regeneradora e humanizadora na sociedade.

Formado em grande parte por mulheres brancas, bem-educadas e de classe média, o maternalismo estava intimamente conectado às reformas sociais e à noção complexa de pureza moral, articulando-se à ascensão das ideologias nacionalistas. Além destes pontos, a política maternalista destacava a existência de diferenças essenciais entre homens e mulheres; fomentava a preocupação humanitária com as condições de vida das trabalhadoras e das crianças pobres, além de promover uma interpretação mais engajada dos Evangelhos, incitando as mulheres a uma participação mais efetiva junto às camadas populares urbanas (KOVEN; MICHEL, 2013). A visão moral do feminino ligada à compaixão, benevolência, abnegação crescia pari passu com a importância da maternidade. Destarte, a exaltação destas qualidades morais foi adaptada com frequência às realidades políticas e econômicas, demonstrando o caráter plástico do discurso maternalista, que ora se convertia em um caminho viável para as reivindicações femininas, ora se transformava em um ponto de discórdia por defender certas posições abertamente conservadoras.

Apesar de na maioria das vezes difundir discursos da norma familiar burguesa, o maternalismo soube manipular em seu favor diversos pressupostos morais que pesavam fortemente sobre a conduta das mulheres no âmbito social, tais como a domesticidade e a caridade. Se, por um lado, as mulheres foram conclamadas a cultivar sua feminilidade dentro da esfera doméstica, assumindo todos os encargos com os cuidados, por outro lado, elas eram pressionadas pelos valores cristãos a praticar o trabalho da filantropia em sua comunidade e assim contribuir para o bem-estar dos mais necessitados. Desta forma, a maternidade tomava contornos privados e, também, públicos, pois a filantropia feminina não era antitética à natureza e nem à moral, e por esse motivo expandiu-se entre as mulheres de classe média brasileiras e hispano-americanas.

A tradição assistencialista, engendrada em boa parte dos países ocidentais a partir de meados do século XVII, tinha em suas raízes a ação conjunta de homens e mulheres abastados e fortemente influenciados pela moral cristã, que se dedicavam a diminuir o sofrimento dos mais pobres. Contudo, foram as mulheres que se envolveram mais intensamente com as atividades caritativas, num movimento coerente com os valores ideológicos que definiam “a assistência como um gênero de trabalho feminino que não atentaria contra a moral e a virtude das mulheres” (MARTINS, 2011, p. 22). Esta feminização histórica da assistência capacitou as mulheres como agentes políticos na formulação de leis de proteção, com especial atenção para as mulheres de baixa renda “nas quais reformadoras partiram dos pressupostos sobre a natureza feminina, para fundamentar estratégias políticas, proporcionando proteção social responsável para a mulher/mãe” (LARSEN, 1996, p. 05).

Fruto de intensas mobilizações estatais e filantrópicas, as políticas sociais voltadas para infância e a maternidade ganharam maior envergadura entre meados do século XIX e início do século XX, quando as nações industrializadas passaram a depositar nas crianças valor positivo, entendendo-as como o gérmen de seu futuro. Dentre as diversas problemáticas que envolviam esse estágio da vida, aquelas que desencadearam maior mobilização social foram os altos índices de mortalidade infantil e a suposta queda de natalidade existente em países com relativo grau de desenvolvimento industrial. Se um Estado realmente se importasse com seu futuro no contexto internacional, deveria prevenir a queda de natalidade, bem como combater com veemência as altas taxas de mortalidade entre a população infantil, pois os efeitos deste problema demográfico-social logo seriam sentidos na composição da mão de obra e no efetivo dos exércitos nacionais (MARTINS, 2004).

De acordo com Marcela Nari (2004), no século XIX, a população começa a ser apreciada como capital político, econômico e militar ao mesmo tempo em que aparecia como a medida da potencialidade de uma nação. O reposicionamento tanto da maternidade como da infância, nesse contexto sociopolítico, impeliu diferentes países a reorganizarem seus sistemas de assistência, priorizando a elaboração de leis de efetiva eficácia, construção de novas maternidades e hospitais, a instituição de cuidados pré e pós-natal, vacinação em massa, entre outros, como forma de debelar a sombra da morte que pairava sobre o conjunto da população infantil.

No Brasil, concomitante com as questões de cunho econômico e militar, a preocupação com a maternidade e a infância estava também vinculada à necessidade de povoar o grande deserto representado pelo interior brasileiro, pouco explorado e abandonado à sua própria sorte. Desde a época imperial existia uma grande preocupação entre as elites nacionais com as vastas extensões de terras desabitadas, que sem a devida ocupação ficaria à mercê de potências estrangeiras. Com o advento da República e o paulatino fortalecimento de um sentimento nacional, iniciou-se uma campanha de interiorização que só poderia ser completa com o fomento da natalidade, além de políticas que garantissem o pleno desenvolvimento das crianças brasileiras, retardado pelos altos índices de mortalidade infantil, como registrado na revista O Brazil-Médico, vinculada a Sociedade Brasileira de Medicina e Cirurgia e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro:

Em todos os paizes da Europa a mortalidade infantil preoccupa a atenção de hygienistas e, entre nós, deve fazel-o mais seriamente, por precisarmos de augmentar rapidamente a nossa população cuja a exiquidade contrasta com a vastidão de zonas extesissimas e inhabitadas. Accresce que, como é força confessar, no Brazil, a mortalidade das crianças é avultadissima e, proporcionalmente, maior que a da Europa (Sic.). (O Brazil-Médico. Assumptos de hygiene pública 28 de fevereiro de 1897, p. 57).

Foi neste movimento de grande preocupação com as questões populacionais que o feminismo maternalista passou a questionar as bases que sustentavam o domínio masculino, bem como a valorização física e moral do homem em detrimento das mulheres. Fazendo o uso racionalizado dos discursos acerca da maternidade, contrariando aqueles que transformavam as mulheres em alvos e objetos de um controle social massificador e homogeneizante, as feministas maternalistas trataram de aglutinar boa parte das mulheres em torno de sua capacidade reprodutiva. Para Patrick Wilkinson (1999), o movimento feminista da primeira onda desempenhou um importante papel na definição e no desenvolvimento do Estado de Bem-Estar nos países ocidentais, cujos efeitos podem ser vistos nos contornos das primeiras legislações sociais que tinham nas mulheres e na infância seu objetivo.

Formada por médicos e associações de mulheres, a assistência filantrópica desenvolvida no início do século XX no Brasil fazia parte de um projeto moralizador que buscava alinhar as camadas pobres urbanas às novas exigências do mundo burguês. De acordo com Maria Martha de Luna Freire (2009), ao esvaziar-se do caráter espiritual existente na caridade, a filantropia deslocou seu foco para o bem-comum, o progresso moral e social, reforçando seu vínculo com as novas sociabilidades urbanas. Para as mulheres das elites as atividades filantrópicas eram uma oportunidade de ingressarem de maneira mais efetiva no mundo público, sem com isso subverter as fortes amarras morais de gênero, que as colocavam em uma posição de subalternidade em relação aos homens. Para essas mulheres, os trabalhos assistenciais e de benemerência eram considerados extensões de suas atribuições na esfera do privado e estavam em total conformidade com sua suposta natureza feminina de dedicação à família e ao próximo (NASH, 1996).

Ao se enveredar pelo mundo dos necessitados as mulheres das classes abastadas projetavam diante da sociedade seus elevados atributos morais, sendo reconhecidas por sua sensibilidade, bondade e solidariedade com os sentimentos alheios, ou seja, uma extensão de sua função maternal: “o amor feminil não é no fundo senão um aspecto secundário da maternidade” (Jornal das moças, Ano 01, Nº 09, Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1914, p. s/p). Desta forma, foi a partir de uma norma de gênero que enclausurava as mulheres no espaço doméstico, que a filantropia surge como algo relacionado à feminilidade, definindo a assistência como um trabalho que não atentaria contra a virtude e a moral das mulheres:

Bemdicta, pois, seja a caridade feminina, feita de sorrisos, de flores e de gestos suaves. Bemdicta seja ella pela doçura que irradia e pelo consolo que irá levar aos desgraçados distantes [...] (sic). (GARDENIA, 1915. s/p.)

O discurso acima revela como o trabalho assistencial das mulheres era interpretado por sua natureza benevolente, quase transcendental, espelho de uma alma que refletia compaixão e doçura; um ser que guiado pelo coração e pelos bons sentimentos – e não pela razão – era capaz de colocar-se em segundo plano em favor do bem coletivo e dos sofredores. Praticada em grande medida pelas mulheres, a filantropia adquiria um caráter instrumental, na qual uma parcela da elite dirigia seu capital social, político e financeiro para abertura de obras sociais destinadas ao atendimento aos pobres e, que em última instância, estavam relacionadas a um projeto político que visava nacionalizar as mães e socializar a maternidade, amparando “as creancinhas desde a concepção [...],e bem como dar a pátria, no futuro, mãis carinhosas que a amem e braços fortes que a defendam” (O Paiz, Rio de Janeiro, 06 de Dezembro de 1918, p. 05). Assim, sensibilizadas pela maternidade e infância desassistidas, as associações de mulheres também ocuparam importantes espaços dentro dos sistemas filantrópicos de assistência. Oriundas das camadas mais abastadas, essas associações se proliferaram em diversas regiões e cidades brasileiras no começo do século XX.

No entanto, ao evocarem imagens tradicionais e naturalizadas de feminilidade como contrapartida às ingerências encampadas pela medicina e pelo Estado na vida cotidiana das mulheres, as ativistas acabaram optando por uma determinada imagem daquilo que deveria ser a verdadeira feminilidade, que por sua vez não correspondia à realidade da maioria das mulheres que suas organizações visavam atender e amparar. Esse perfil fortemente arraigado do movimento maternalista manifestava-se através da mulher branca, de classe média e com um determinado nível de educação formal, contudo esse modelo não correspondia à grande massa de mulheres que vivia nos bairros mais pobres dos núcleos urbanos e nos mais longínquos rincões, que desde sempre se dedicavam às atividades laborais com a finalidade de complementar a renda da família. Em nome da solidariedade feminina, da saúde familiar e da nação, as reformistas reivindicavam o direito de instruir e regular as condutas das mulheres da classe trabalhadora, que por sua vez não se adequavam ao modelo familiar baseado na norma e na respeitabilidade burguesa. No entanto, as reformadoras burguesas e de classe média, muitas vezes, alheias às realidades das mulheres que atendiam, minaram a possibilidade de realizar a tão sonhada solidariedade feminina.

De acordo com Gwendolyn Mink (1996), iniciativas institucionais impulsionadas pelas ativistas maternalistas, como as pensões destinadas às mães, ofereciam às mulheres das camadas populares a promessa de vivenciar a maternidade com plena dignidade política e de cidadania, mas tudo isso a um preço exorbitante. Para adquirirem o direito de serem assistidas pelo Estado, elas deveriam aprender e interiorizar a forma maternalista de ser mãe. Com o poder de fiscalizar e aplicar os recursos financeiros destinados aos centros de atenção à maternidade e à infância, as maternalistas estabeleciam uma série de requisitos para que as mulheres obtivessem acesso aos benefícios sociais, além de uma rígida fiscalização da assistência. A ação maternalista promoveu, em nome do Estado e de uma moral de gênero, a uniformização cultural da maternidade e da vida familiar entre a classe trabalhadora, baseada na crença de que todas as mães poderiam, por sua natureza, cumprir com funções que supostamente eram próprias da vida feminina, devendo apenas aperfeiçoar e possibilitar seu desenvolvimento.

Apesar de sua grande importância em defesa dos direitos sociais femininos, o maternalismo não foi um movimento coeso, em suas fileiras agiam mulheres das mais distintas origens socioculturais, com aspirações e objetivos que ora coincidiam ora divergiam. Ao essencializar a maternidade como algo comum a todas as mulheres, as ativistas construíram uma imagem idealizada, como sendo a origem das habilidades especiais que capacitavam as mulheres a agirem na esfera pública. Sobrepondo à maternidade um forte discurso moral, as maternalistas pretendiam criar sobre todas as mulheres uma blindagem especial que as autorizava ascender em igual valor aos homens no mundo da política, como agentes capazes de criar, regular e fomentar políticas sociais dirigidas especialmente para as mulheres mães. No entanto, apesar de suas diversas conquistas no âmbito social, as ativistas maternalistas, ao utilizarem a maternidade como um elemento moral e natural aglutinador, idealizaram um determinado tipo mãe, que por sua vez, oriundo das classes médias, não correspondia à realidade social de outras mulheres, mas devido à sua força política acabou se impondo às demais – não sem discordância.

Federação Brasileira pelo Progresso Feminino: ativismo político-social em favor das mulheres e da maternidade

Na primeira metade do século passado, a condição da mulher brasileira, independente de sua classe social e etnia, era de limitada participação na vida pública devido a sua subordinação a normas de gênero que perpetuavam a condição de subalternidade. No entanto, assim como em alguns países americanos e nações europeias, as associações de mulheres do Brasil desempenharam um importante papel de acesso à esfera pública por meio do trabalho de filantropia que lhes colocavam em contato direto com os problemas da pobreza. As atividades desenvolvidas pelas associações femininas de camadas médias dirigiam-se, sobretudo, a prestar auxílio aos necessitados por meio da administração direta de instituições ou manutenção de obras assistenciais como asilos, creches, hospitais, escolas, postos de puericultura, maternidades, campanhas de saúde, entre outros. De acordo com Maria Lucia Mott (2001), durante muito tempo as atividades exercidas pelas associações femininas foram vistas como uma forma das mulheres das classes privilegiadas combaterem suas vidas tediosas, exercitarem seus talentos e despenderem suas energias como subterfúgio para adquirirem responsabilidades fora do lar. Ainda conforme a autora, tanto a historiografia tradicional quanto os movimentos feministas analisaram tal participação feminina como secundária e subalterna, voltada, sobretudo, ao levantamento de fundos por meio de festas e cerimônias frívolas, considerando ainda suas ações assistenciais como uma extensão dos interesses masculinos e de classe.

No entanto, mesmo que reforçassem normas de gênero consideradas tradicionais, as associações de mulheres de camadas médias criaram espaços de poder e, na medida do possível, alargando padrões e comportamentos considerados condizentes com seu sexo e classe social. Por meio das atividades de benemerência, as mulheres construíram esferas de atuação em que os problemas relacionados às mulheres assistidas eram tratados e administrados como prioridade, estabelecendo assim uma aproximação fraterna, vinculada, sobretudo, à condição materna. Ao erigirem esses espaços de poder, dedicados a discutir os interesses das mães, as mulheres benemerentes de camadas médias demonstravam ao restante da população toda a potencialidade de seu labor assistencial e a importância dos trabalhos de cuidados para a manutenção e complementação dos sistemas de ajudas institucionais. Ao elencarem as mães e as crianças como alvos preferenciais de suas ações assistenciais, as voluntárias, conforme aponta Maria Lucia Mott (2001), buscavam fornecer subsídios para que as mulheres pobres desempenhassem de maneira mais independente a função de mães de família, desvinculando algumas de suas necessidades da figura do homem provedor e do próprio Estado. Assim, foi por meio dessas experiências no campo assistencial, em defesa da maternidade e da infância, que muitas mulheres brasileiras se engajaram nas lutas políticas, exigiram novos direitos e contestaram o lar como sua única possibilidade de existência e cidadania.

Dentre os distintos movimentos de mulheres atuantes no século passado, buscamos destacar os trabalhos desenvolvidos pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), que por diferentes vias deu significativas contribuições para a organização da assistência às mães e crianças pobres em todo o país. Fosse por meio da militância política ou por sua efetiva inserção nas instâncias de poder, a FBPF conseguiu deixar suas marcas nas políticas públicas materno-infantis brasileiras.

Criada em 1922, na cidade do Rio de Janeiro, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino foi uma das entidades feministas brasileiras mais atuantes até 1937, quando o golpe do Estado Novo trouxe uma nova dinâmica ao contexto sociocultural do país. Formada em grande parte por mulheres das camadas médias e por profissionais das camadas populares como datilógrafas, comerciárias e professoras, a FBPF foi um marco na luta pelo direito das mulheres brasileiras, principalmente, na sua valorização como mães e como partícipes na elaboração e execução de políticas públicas assistenciais para a maternidade e a infância (MOTT, 2001). Assim como suas congêneres europeias e norte americanas, uma parcela expressiva das integrantes FBPF estavam envolvidas com as atividades filantrópicas que as colocava em contato direto com o discurso maternalista de defesa da condição feminina. Em um período no qual reinavam fortes normas de gênero, que definiam o feminino a partir das figuras da boa filha, esposa e mãe, o trabalho assistencial representou uma brecha para vivenciarem suas próprias vidas de maneira mais autônoma, atribuindo-lhes conhecimentos específicos sobre gestão, administração e comunicação, que futuramente serviriam de base para a profissionalização.

Tendo como fundadora e principal expoente a cientista Bertha Lutz, a Federação agrupou em torno de si um elevado número de mulheres insatisfeitas com a condição feminina brasileira, pois nesse período o status social, político e econômico da mulher nacional era de extrema dependência da figura masculina. Para dar conta de arregimentar o maior número de afiliadas e estender sua influência para fora da capital federal, criaram-se escritórios regionais encarregados de organizar o movimento feminista local e levar reivindicações ao escritório central, que as articulava em forma de exigências políticas, culturais, econômicas e sociais, que eram encaminhadas às autoridades públicas.

Diferentemente de suas congêneres do norte do globo, as ativistas da Federação não eram adeptas de movimentos grevistas e à militância política nas ruas, como fizeram as suffragettes inglesas. Apesar de certo afastamento do movimento europeu e norte-americano, suas convicções de emancipação política e econômica eram as mesmas, principalmente, a crítica estabelecida ao status civil da mulher casada junto ao Código Civil de 1916 e a proibição do voto feminino.

Com o mesmo convencimento com que defendiam a igualdade econômica entre homens e mulheres, a ampliação dos diretos políticos e a liberdade de exercer uma profissão independente do estado civil, as mulheres da Federação também defendiam a unidade doméstica como sendo o núcleo básico da sociedade, como fica claro no discurso proferido por Bertha Lutz na ocasião de sua posse na Câmara dos Deputados:

É dentro desse credo que eu aqui faço, hoje, Srs. Deputados, minha profissão de fé. O lar é a base da sociedade, e a mulher está sempre integrada ao lar; mas o lar não cabe mais no espaço de quatro muros – o lar também é a escola, a fábrica, a officina (sic). (Anais da Câmara de Deputados. Rio de Janeiro (DF), quarta-feira, 29 de Julho de 1936, p.14512-14513.)

Sem romper de forma contundente com as normas de gênero, apregoando a conciliação entre a esfera privada e a vida pública e defendendo o entrelaçamento das identidades femininas com as de esposa e mãe, as feministas da FBPF alicerçaram um espaço de discussão que transbordava as reivindicações de igualdade e de direitos políticos, englobando também a necessidade de políticas sociais sólidas que protegessem e valorizassem as mulheres enquanto mães.

Realizando pronunciamentos públicos, utilizando-se fartamente dos meios de comunicação e aproximando-se de importantes lideranças políticas, as militantes da FBPF formaram fortes grupos de pressão que buscavam angariar apoio de parlamentares, da imprensa e da opinião pública em favor da causa feminista. Sempre por meio de um discurso moderado, talvez utilizado de forma tática, as integrantes da Federação pouco a pouco galgaram um espaço social privilegiado na defesa dos direitos femininos, conseguindo trazer para a sua causa inúmeros simpatizantes que se identificavam com o discurso menos agressivo e de exortação das supostas qualidades femininas.

O feminismo triunfará, mas seu triunfo não será devido às militantes que procuram alcançá-lo pela violência, será antes a recompensa das que se tornaram esforçadas pioneiras nas artes e nas ciências, das que se dedicam ao trabalho intelectual e manual, das que para ele se preparam, das que pela educação que dão às suas filhas lhe sugerem as mais nobres aspirações, que pela reverência que inspiram aos seus filhos lhes ensinam a venerar a mulher, finalmente das que com seu amor esclarecido, abrem ao homem novos horizontes, cheios de harmonia e de luz (LUTZ, 1919, p.14).

Apesar dessa corrente feminista ter sido rotulada por outras feministas como elitista e reprodutora de normas de gênero tradicionais, sua atuação política em defesa da maternidade e da infância foi excepcional e com efeitos duradouros até os dias atuais. Chamado também de feminismo maternalista, essa corrente enfatizava os direitos das mulheres principalmente por sua capacidade de engendrar e criar a vida, apoiando-se na ideia de que possuíam qualidades especiais que poderiam contribuir de forma mais efetiva para o bem-estar da sociedade (LEWIS, 1994).

Esse sentimento de responsabilidade baseado na existência de certas qualidades femininas é encontrado também no discurso de posse de Bertha Lutz na comissão encarregada de elaborar o anteprojeto da Constituição de 1934, em que tais pressupostos foram utilizados como eixos norteadores na elaboração de uma legislação positiva com relação às mulheres:

Admitindo-nos ao cenário político, o que procuravam os homens em nós? Imitadoras das suas paixões políticas, rivais igualmente empenhadas em fazer carreira; Não.

Em todos os momentos difíceis o homem se volta para a mulher, procurando na alma feminina, as qualidades que nelas se sublimaram através dos séculos: a ternura, a tolerância, a generosidade, o bom senso, o espírito de sacrifício, a capacidade de renuncia de si própria em benefício comum.

Si os homens de nossa terra nos chamam, é porque a Patria estremecida necessita de nós. São as qualidades eternas de nosso sexo que devemos trazer para a comissão elaboradora do ante-projeto da Constituição (sic) (LUTZ, 1932, s/p).

Baseadas nestes princípios, as feministas da FBPF elencaram sete objetivos básicos que deveriam ser perseguidos por todas as associadas para que as mulheres brasileiras fossem completamente integradas às dinâmicas político-sociais da nação: 1 – promover a educação da mulher e elevar o nível de instrução; 2 – proteger as mães e a infância; 3 – Obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino; 4 – auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-las na escolha de uma profissão; 5 – estimular o espírito de sociabilidade e de compreensão entre as mulheres e orientá-las pelas questões sociais e de alcance público; 6 – assegurar à mulher os direitos políticos e prepará-la para o exercício inteligente desses direitos; 7 – estreitar os laços de amizade com os demais países americanos a fim de garantir a manutenção perpétua da Paz e Justiça no hemisfério ocidental (CARVALHO, 1930, p.08).

No que tange à proteção à maternidade e infância, as militantes da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino foram extremamente ativas, propondo uma série de iniciativas que visavam melhorar as condições de vida das mães e das crianças pobres ao mesmo tempo em que buscavam maior valorização da mulher e da maternidade junto às instituições estatais. Ao evocarem direitos de cidadania balizados na existência de uma suposta natureza feminina e na maternidade, as maternalistas exigiam recompensas econômicas e sociais por um trabalho até então invisível, desvalorizado e exclusivo da esfera privada. Dessa forma, tais mulheres não estavam questionando somente o status quo, mas defendendo que o trabalho reprodutivo feminino possuía valor agregado e deveria ser reconhecido e recompensado como tal.

Para as feministas da Federação, a maternidade garantia às mulheres uma cidadania diferenciada por sexo, devendo o Estado assumir a responsabilidade de salvaguardar as mães, amparando e reconhecendo o ato de gerar a vida como uma das maiores contribuições das mulheres para a nação. Ainda de acordo com suas ideias, a capacidade das mulheres serem mães e criarem seus filhos deveria ser aproveitada pelo Estado em funções públicas direcionadas à proteção das famílias, da maternidade e da infância, conforme apresentaram as militantes em um suplemento especial sobre a FBPF publicado pelo jornal Correio da Manhã: “O futuro mostrará que em se occupando dos serviços públicos a mulher – mãe de família – graças ao seu instincto maternal e ao senso de responsabilidade, será sempre fiel guardiã do lar” (CARVALHO, 1930, p.08).

A importância política da FBPF para o contexto feminista nacional e internacional expressou-se pela realização, em 1931, na cidade do Rio de Janeiro, do II Congresso Internacional Feminista, que reuniu militantes de diversas nacionalidades a fim de discutir a situação político-social das mulheres em todo o mundo. “Dentre as inúmeras discussões estabelecidas pelo Congresso, destacou-se a falta de medidas assistenciais por parte dos governos nacionais para que protegessem a maternidade e a infância, pois, na grande maioria desses países, tais iniciativas estavam a cargo dos serviços privados e da filantropia.”

No que tange à proteção das mulheres, das crianças brasileiras e à valorização da maternidade, destacamos dois pontos centrais deliberados pelo Congresso. O primeiro era a necessidade de se criar um Bureau da Mulher e da Criança, que deveria ter por finalidade a fiscalização do trabalho feminino e infantil, a formulação de políticas assistenciais para as mulheres e crianças pobres. O segundo ponto, prontamente atendido, consistia na criação do Dia das Mães, conforme vinha sendo comemorado em outras nações, com o intento de celebrar e homenagear essa tão importante contribuição feminina para o país (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 de Junho de 1931, p. 05).

De acordo com a moção redigida pela feminista e filantropa Alice de Toledo Tibiriçá, enviada ao presidente Getúlio Vargas, o segundo domingo do mês de maio deveria ser reservado para os festejos em comemoração às mães, fazendo com que todos os brasileiros lembrassem “da ternura amiga de suas devotadas mães, vivas ou mortas” (TIBIRIÇÁ, 1931, p. 01). Atendendo ao pedido da Federação, em 05 de Maio de 1932, Vargas sancionou o Decreto-lei 21.336, que estabelecia no Brasil, assim como já vinha ocorrendo em alguns países da América Latina e nos Estados Unidos da América, o Dia das Mães brasileiras.

Durante o Governo Provisório, as feministas da FBPF conseguiram se aproximar de forma significativa de Getúlio Vargas, tendo este inclusive acolhido o nome de Bertha Lutz, presidenta da Federação, para a comissão que elaboraria o anteprojeto da Constituição de 1934. Essa suposta simpatia de Getúlio Vargas pelas militantes da FBPF, talvez, estivesse relacionada com a forma como elas agiam, pouco dadas a grandes agitações públicas e por difundirem ideias moderadas, sem romper com as normas de gênero. Em discurso transcrito pelo jornal Diário Carioca, Getúlio Vargas assim se referia às militantes da Federação durante o II Congresso Internacional Feminista:

Todas as idéas pleiteadas pelo elemento feminista do Brasil, são bellas e devem ser acolhidas com sympathia. Estamos para isso preparados e atravessando um momento excepcional para a sua aceitação, tanto mais quanto no Brasil verificamos que o feminismo continua integrado na tradição da família. (Diário Carioca, Rio de Janeiro, 20 de Junho de 1931, p. 01)

No âmbito legislativo, a FBPF também ocupou lugar de destaque na política nacional, apresentando diversas proposições de leis que buscavam alterar o status social feminino a partir da ideia de que a maternidade era a fonte geradora de direitos e por isso deveria ser amparada pelo Estado. Durante o período que compreendeu os estudos técnicos sobre o anteprojeto da Constituição, as associadas da Federação constituíram uma comissão especial que seria responsável por receber as reivindicações feministas. Mesmo reunidas em torno de um ideal comum, esse não foi um processo harmonioso, em diversos pontos as feministas discordavam entre si, como foi o caso do serviço militar obrigatório para as mulheres. A fim de evitar o desgaste político entre as militantes, temas polêmicos e de pouco consenso foram evitados, concentrando os esforços apenas para temáticas que interessavam exclusivamente às mulheres (LÔBO, 2010).

O resultado de tais discussões foi apresentado à comissão do anteprojeto com o título de 13 princípios básicos: suggestões ao Ante-Projecto da Constituição: racionalização do poder; organização da economia; dignificação do trabalho; nacionalização da saúde; generalização da Previdência; socialização da instrução; democratização da Justiça; equiparação dos sexos; consagração da liberdade; proscrição da violência; soerguimento da moral; flexibilidade do direito; dinamização da lei.

Grande parte de seus dispositivos relativos às mulheres foram aceitos pela Assembleia Constituinte e incorporados à legislação brasileira. A exemplo disso, os itens que abordavam a temática da maternidade foram acolhidos, alguns com pequenas alterações, e transformados nos artigos 121 e 138 da Constituição de 1934.

O artigo 121 previa assistência médica e sanitária à gestante, assegurando descanso, antes e depois do parto, sem prejuízo de salário e do emprego; a instituição de uma previdência a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e a garantia de que serviços de amparo à maternidade e à infância, os referentes ao lar e ao trabalho feminino, assim como a fiscalização e a orientação respectiva, seriam desempenhados preferencialmente por mulheres habilitadas. Já o Artigo 138 garantia o amparo estatal à maternidade e à infância; o socorro às famílias de prole numerosa; a proteção à juventude contra toda forma de exploração, bem como contra o abandono físico, moral e intelectual, e a adoção de medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a mortalidade infantil.

No âmbito legislativo, após a posse de Bertha Lutz como deputada em 1936, ocasionada pela morte do deputado Cândido Pessoa, a Federação apresentou diversas propostas que visavam modificar a condição social da mulher brasileira, das quais destacamos duas em especial por estabelecer estreitos laços com a proteção da maternidade e da infância: a criação do Estatuto da Mulher e a organização do Departamento da Mulher.

O Estatuto da Mulher tinha a intenção de revisar toda a legislação brasileira a fim de encontrar os dispositivos legais que mantinham as desigualdades entre homens e mulheres, e substituí-los por uma legislação mais equitativa. De acordo com a justificativa apresentada por Bertha Lutz no anteprojeto, a elaboração de um estatuto especial para as mulheres se fazia necessário, pois mesmo que a nova Constituição tivesse inserido dispositivos que igualavam os direitos entre os sexos, como queriam as próprias militantes da FBPF, uma série de leis mais antigas ainda mantinham relações de subalternidade entre homens e mulheres, tais como o Código Civil e o Penal (“Projeto N 623/1937” in: Câmara dos Deputados, Comissão Especial do Estatuto da Mulher, 1937).

De maneira geral, o que queriam as feministas da Federação era garantir maior autonomia político-econômica para as mulheres na sociedade conjugal e equipar seus direitos e obrigações com os do homem. Essa iniciativa era uma forma de garantir direitos legais para a mulher mãe, pois a partir do momento em que contraía matrimônio ela ficava completamente à mercê das vontades do marido, dependendo dele para fixar residência, exercer uma profissão, adquirir e desfrutar do patrimônio, além de não poder exercer com plenitude o pátrio poder. Dessa forma, assim justificava Bertha a necessidade de mudanças nas relações de poder dentro da família:

A garantia da família não reside no predomínio de um cônjuge tirano sobre um cônjuge vítima. O alicerce do lar não é a autoridade, mas, sim, a afeição. Suas colunas mestras são a colaboração recíproca e o respeito mútuo entre o homem e a mulher (“Projeto N 623/1937” in: Câmara dos Deputados, Comissão Especial do Estatuto da Mulher, 1937, p. 43.873).

Uma das novidades apresentada pelo Estatuto da Mulher foi a inserção de gêneros gramaticais claros, como: pai e mãe, homem e mulher, filho e filha; o que dificultava manobras políticas e dupla interpretação sobre a referida lei, que muitas vezes foram utilizadas para impedir a concessão benefícios políticos para as mulheres, por não constarem de forma explícita na legislação vigente. Além disso, os avanços instituídos pelo estatuto seguiam em outros sentidos, como, por exemplo, designar mulheres capacitadas para os quadros diretivos e participação em igual condição aos homens nos organismos governamentais responsáveis por criar políticas públicas de trabalho, cultura, previdência, saúde e educação.

Em seu Artigo 27, proibia a dispensa de mulheres por motivo de gravidez ou casamento, enquanto no Artigo 30 previa pela primeira vez a remuneração do trabalho reprodutivo das mulheres: “À dona de casa que administra o lar e não tem emprego remunerado, são assegurados dez por cento da renda da família em consideração ao seu labor”. O Capítulo IV foi elaborado inteiramente em torno das reivindicações feministas sobre a maternidade e a proteção às mulheres grávidas. Os artigos contidos no referido artigo foram fruto de antigas exigências médicas e do movimento feminista maternalista que consideravam a maternidade fonte de direitos e deveres, como ficava expresso pelo próprio artigo 6º do Estatuto: “A maternidade é fonte de direitos e obrigações para a mulher; garante-lhe assistência médico-sanitária, previdência social econômica e pátrio poder”.

Partindo dessa premissa, ficavam assegurados às mães, funcionárias públicas e privadas a licença maternidade de três meses com garantias de salário e manutenção do emprego; licença idêntica em caso de aborto; amparo médico e sanitário para a maternidade e a infância; direito às trabalhadoras de dois turnos de meia hora destinados à amamentação e a instalação de creche nas fábricas; a concessão de dois dias mensais para que as trabalhadoras braçais e de balcão pudessem faltar e, por fim, a organização e administração por parte das mulheres de um sistema de seguro maternal e serviços congêneres em departamento subordinado ao Ministério do Trabalho, ou em secretaria de Estado.

A ideia de se criar um Departamento direcionado à fiscalização e implantação de políticas relacionadas às mulheres era uma antiga reivindicação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, sendo apresentado formalmente pela primeira vez durante o II Congresso Feminista Internacional (1931) e reafirmado pelo III Congresso Feminino Nacional (1936). Seguindo o modelo norte-americano do Women’s Bureau, o Departamento Nacional da Mulher funcionaria como um órgão fiscalizador do trabalho e Bem-Estar feminino.

Com sede na Capital Federal e presente em outros Estados da federação por meio de delegacias, as atribuições legais do Departamento da Mulher constituiriam em estudar os assuntos sobre o trabalho feminino e o amparo à maternidade, infância e ao lar; proteger a juventude feminina contra o abandono físico, moral e intelectual; fiscalizar a aplicação dos dispositivos legais relacionados às mulheres; formular e implementar políticas sociais com objetivos de salvaguardar a infância. O Departamento Nacional da Mulher ainda previa o trabalho conjunto entre funcionárias e funcionários públicos com associações femininas legalmente organizadas em todo território nacional.

A ideia de criar um Departamento direcionado especialmente às mulheres ia ao encontro das reivindicações maternalistas de valorização social da maternidade. Cuidadosamente inseridas no meio político, as feministas maternalistas pretendiam ocupar espaços de poder nas estruturas governamentais, para formular e difundir políticas sociais deliberadamente dirigidas às mulheres. Fossem como funcionárias públicas ou como integrantes de associações civis, as ativistas não buscavam “tornar a mulher uma beneficiaria passiva do Estado, mas concorrendo para que ella seja um collaboradora do progresso do Paiz” (“Projeto N 623/1937” in: Câmara dos Deputados, Comissão Especial do Estatuto da Mulher, 1937, p. 43.873).

No entanto, cabe ressaltar que ambas as iniciativas – Estatuto da Mulher e Departamento Nacional da Mulher – nunca chegaram a efetivar-se. Apesar de sua ampla aceitação entre os legisladores, recebendo inclusive diversos pareceres positivos para sua implementação, o sonho político das feministas da FBPF de criar uma cultura governamental em defesa dos direitos femininos foi barrado pelo Golpe de 1937, que dissolveu o Congresso e junto com ele todas as iniciativas políticas em tramitação. Com o novo regime instaurado em 1937, as ideias emancipacionistas das feministas da FBPF foram reprimidas em favor de uma “nova” ideia de feminilidade difundida pelo Estado Novo. No entanto, é importante destacar que mesmo com uma estrutura estatal altamente centralizada e masculinista, as feministas brasileiras da FBPF continuaram articuladas e distribuíram-se em diferentes grupos que exerciam fortes pressões sobre o parlamento e os burocratas em favor das mulheres. A experiência da Federação e de seu feminismo maternalista alicerçou as bases para o surgimento de diversas correntes feministas que, nas décadas posteriores, paulatinamente, modificaram as condições de cidadania da mulher brasileira.

Considerações Finais

Por meio da discussão proposta foi possível evidenciar a crescente importância e participação do feminismo maternalista brasileiro na elaboração de políticas sociais voltadas às mulheres e às crianças na primeira metade do século XX. Criticando contundentemente a ordem social vigente, esse movimento reivindicou a presença constante das mulheres nas estruturas do Estado, buscando criar um padrão de política social que valorizasse o “essencialmente” feminino, que, por sua vez, seria capaz de criar uma sociedade mais solidária e aberta a repensar o trabalho reprodutivo das mulheres. Com um discurso balizado em pressupostos maternalistas, que priorizavam acima de tudo os direitos sociais, exaltando a capacidade das mulheres serem mães e de agirem na esfera pública por meio da maternidade, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino conseguiu constranger os gestores públicos e chamar a atenção da sociedade para o descaso com que as políticas materno-infantis eram tratadas, impelindo as administrações públicas a se posicionarem com relação as mulheres.

Assim, é importante salientar que, mesmo refreado por um governo autoritário, o discurso maternalista da FBPF teve importante papel na articulação de políticas estatais elaboradas até 1937, pois, por meio de um discurso de valorização das mulheres, as ativistas conseguiram propor uma série de mecanismos que visavam melhorar a condição das mães a partir da própria experiência materna. Apesar de não questionarem a responsabilidade das mulheres na criação e educação dos filhos, as ativistas da FBPF reclamaram por direitos sociais e reformas políticas que as valorizassem enquanto mães, capacitando-as a vivenciar essa experiência com dignidade jurídica, política e social. A importância da maternidade, para essas mulheres, não se reduzia exclusivamente à sua acepção como uma simples função tradicional, mas o que se reivindicava constantemente era o seu reconhecimento social.

Material suplementario
Información adicional

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Referências
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Notas
Notas
1 Doutor em História (UFPR); Mestre em História (UDESC); Bacharel e Licenciado em História (UNESC). Professor do curso de História, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (UNESC) Orcid nº 0000-0003-3580-9101. E-mail: iga@unesc.net
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