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A origem da política social no Brasil: eugenia, questão social e a atuação de visitadoras, enfermeiras, nutricionistas e assistentes sociais
Gracyelle Costa Ferreira
Gracyelle Costa Ferreira
A origem da política social no Brasil: eugenia, questão social e a atuação de visitadoras, enfermeiras, nutricionistas e assistentes sociais
The origin of social policy in Brazil: eugenics, social issue, and the work of visiting nurses, nurses, nutritionists, and social workers at SAPS and LBA
O Social em Questão, vol. 1, núm. 61, pp. 61-88, 2026
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: A política social é resultado de reivindicações da classe trabalhadora, mas quem, de fato a define? Suas características tendem a ser moldadas pelas condições histórico-sociais de cada período e território, expressando as contradições entre capital e trabalho. No Brasil a “questão social” esteve profundamente atravessada pelo racismo, o que incidiu sobre a configuração da política social desde seu início. Este artigo tem como objetivo analisar a origem da política social brasileira, destacando a influência de concepções médico-sociais e jurídicas de matriz eugenista na formulação da legislação social e na implementação de serviços, benefícios e instituições voltadas aos trabalhadores e suas famílias. Para isso, examina a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPS, 1923-1926) e dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPS, a partir de 1933), além de duas instituições por eles financiadas: a Legião Brasileira de Assistência (LBA, 1942-1995) e o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS, 1940-1967), observando a atuação de mulheres como visitadoras, enfermeiras, nutricionistas e assistentes sociais. A análise baseia-se em pesquisa bibliográfica e documental.

Palavras-chave: Eugenia e política social, Serviço de Alimentação da Previdência Social, Legião Brasileira de Assistência e eugenia, Questão social e eugenia, Serviço social e eugenia.

Abstract: Social policy is the result of the demands of the working class, but who, in fact, defines it? Its characteristics tend to be shaped by the historical and social conditions of each period and territory, reflecting the contradictions between capital and labor. In Brazil, the “social issue” has been profoundly influenced by racism, which has shaped the configuration of social policy since its inception. This article aims to analyze the origins of Brazilian social policy, highlighting the influence of medico-social and legal conceptions of eugenic origin in the formulation of social legislation and the implementation of services, benefits, and institutions aimed at workers and their families. To this end, it examines the creation of the Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPS, 1923-1926) and the Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPS, from 1933), as well as two institutions financed by them: the Legião Brasileira de Assistência (LBA, 1942-1995) and the Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS, 1940-1967), observing the roles of visitors, nurses, nutritionists, and social workers. The analysis is based on bibliographic and documentary research.

Keywords: Eugenics and social policy in Brazil, Serviço de Alimentação da Previdência Social, Eugenics in Brazil, Legião Brasileira de Assistência, Social work and eugenics in Brazil.

Carátula del artículo

A origem da política social no Brasil: eugenia, questão social e a atuação de visitadoras, enfermeiras, nutricionistas e assistentes sociais

The origin of social policy in Brazil: eugenics, social issue, and the work of visiting nurses, nurses, nutritionists, and social workers at SAPS and LBA

Gracyelle Costa Ferreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
O Social em Questão, vol. 1, núm. 61, pp. 61-88, 2026
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Recepción: 01 Octubre 2024

Aprobación: 01 Diciembre 2024

Introdução

O presente artigo é parte de uma pesquisa mais ampla que analisa a origem da política social no Brasil. Portanto, não se parte, aqui, do princípio de que a política social no país teve início nos anos 1930-40, mas é inegável que ela se consolida e assume uma abrangência nacional nesse período. As bases da política social são anteriores e foram aprofundadas em estudos como Costa (2020) e Ferreira (2020; 2023; 2024). Esses trabalhos destacaram: 1) a presença de trabalhadores negros entre os segmentos (ferroviários, marítimos e portuários) que primeiro acessaram a política social oficial no Brasil por meio da Lei Eloy Chaves (1923-1926), que instituiu as Caixas de Aposentadorias e Pensões; 2) as formas próprias de proteção social e organização coletiva de caráter afro-diaspórico dos trabalhadores negros, pré e pós-abolição, em franco confronto com as propostas institucionalizadas pelo Estado brasileiro; 3) a análise da origem da política social no país, identificando legislações e instituições, e destacando sua relação com a eugenia e o projeto de nação racista implementado desde República Brasileira (1889) e consolidado no período Vargas.

Como revela Ângela Castro Gomes (2014) houve resistência inicial do patronato e do Estado brasileiro em instituir legislações sociais e trabalhistas pós-Abolição. Foi num contexto de grandes greves nacionais por melhores salários e condições de trabalho, que medidas no campo da previdência social, saúde, assistência e regulamentação do trabalho foram implementadas. A política social foi uma das respostas do Estado à “questão social”. Mas, embora seja resultado da reivindicação da classe trabalhadora, a política social não é necessariamente por ela definida, como Behring & Boschetti (2007) explicam.

No caso brasileiro, a política social constituiu-se com uma ênfase sanitária e moral desde a Primeira República (1889-1930). É o caso da Lei de Acidentes de Trabalho (1919), da Lei Eloy Chaves (1923-6), do Código de Menores (1927) e outras legislações sociais, tornando desde antes de 1930 a “questão social” no Brasil caso de política (social) e não só de polícia (repressão).

No período inicial em que Getúlio Vargas ocupou a presidência (1930-45), direitos sociais e as respectivas políticas sociais voltadas aos trabalhadores compuseram o que Gomes (1988) denominou "trabalhismo". Esse movimento fundamentou-se no corporativismo e na tentativa de conciliação de classes, em que o Estado autoritário posicionou os "trabalhadores do Brasil" como agentes do progresso nacional.

Esse é o terreno que o presente artigo pretende explorar, analisando a influência da eugenia na política social dentro de um projeto de nação no qual trabalho, raça e nacionalidade são elementos indissociáveis. No Brasil, a “questão social” é profundamente atravessada pelo racismo, produzindo tensões racializadas de classe, o que incidiu sobre a configuração da política social desde seu início.

Para isso, analisou-se a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPS, 1923-1926) e dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPS, a partir de 1933), além de duas instituições mantidas com seus recursos: a Legião Brasileira de Assistência (LBA, 1942-1995) e o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS, 1940-1967), observando a atuação de mulheres como visitadoras, enfermeiras, nutricionistas e assistentes sociais. Inclusive, identificou-se de forma inédita, a presença de assistentes sociais no SAPS.

O material aqui apresentado é resultado de pesquisa bibliográfica e documental. Para o SAPS, foram analisadas publicações oficiais (Boletim do SAPS, Boletim Mensal e Revista do SAPS) e documentos internos, disponíveis na Biblioteca Nacional e no Rockefeller Archive Center. No caso da LBA, documentos e publicações oficiais da instituição, entre os anos 1940 e 1955, com foco na fase voltada ao cuidado materno-infantil, disponíveis em arquivo público.

A institucionalização da política social no Brasil na primeira metade do século XX

No Brasil, a Lei Eloy Chaves, instituída pelos Decretos-Lei n° 4.682, de 24 de janeiro de 1923 e n° 5.109, de 20 de dezembro de 1926, é apontada como um marco inaugural da política social oficial no Brasil. No entanto, essa interpretação não é um consenso (MALLOY, 1986), considerando iniciativas estatais anteriores apontadas também em Ferreira (2020).

A Lei Eloy Chaves estabeleceu, em nível nacional, a obrigatoriedade de Caixas de Aposentadoria e Pensões – CAPS para trabalhadores de empresas ferroviárias, portuárias e marítimas. As CAPS foram inspiradas na legislação da Argentina, que por sua vez, tomou como referência o modelo bismarckiano previsto na Lei de Seguros Sociais da Alemanha de 1883 (ibid.). Sob a lógica do seguro social, os recursos das CAPS subsidiavam serviços, benefícios e auxílios como socorros-médicos, pensões, aposentadorias, medicação etc. para trabalhadores impossibilitados de trabalhar, temporária ou permanentemente, assim como para suas famílias.

Cada empresa do ramo ferroviário, portuário e marítimo tinha sua própria Caixa, cujo financiamento era oriundo de contribuições obrigatórias de trabalhadores e empregadores. Ao Estado cabia, além da fiscalização das CAPS, a renúncia à parte de impostos contribuindo com o financiamento de forma indireta. A gestão de cada Caixa e a definição de suas normas, era realizada por um Conselho de Administração, composto por um superintendente ou inspetor geral da empresa – os únicos que poderiam ser presidentes do Conselho, desde que brasileiros – e mais quatro trabalhadores, sendo dois eleitos por seus pares e dois indicados pelo patronato.

Antes das CAPS, outra legislação social foi crucial para a trajetória da política social no país. O Decreto no 3.724, de 15 de janeiro de 1919, a Lei de Acidentes de Trabalho, estabeleceu a criação de um seguro obrigatório para indenização aos trabalhadores dos setores de transporte, de construção civil, da indústria e outros, em caso de acidentes. Posteriormente essa lei foi incorporada às CAPS. Tanto a Lei de 1919 quanto as CAPS compuseram o quadro de respostas do Estado brasileiro à onda de tensões, greves e mobilizações no país, como as de 1917 e 1919, além de responderem a acordos internacionais pós-tratado de Versalhes, apesar da resistência do patronato, como lembra Gomes (2014).

Mas foi com a ascensão do presidente da República Getúlio Vargas ao poder em 1930, via golpe de Estado, que a dinâmica da intervenção estatal nas relações de trabalho e na vida social se alterou e se ampliou. Logo em 1930, foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e em 1932, a carteira profissional de trabalho se tornou obrigatória para trabalhadores do setor urbano. Nessa década surgiram os primeiros Institutos de Aposentadorias e Pensões, os IAPS, alterando o padrão de proteção social institucional no país.

O Decreto n° 22.872, de 29 de junho de 1933 marcou a criação do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos – IAPM, o primeiro de muitos IAPs criados por Vargas, como o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários – IAPB, Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários – IAPI, Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários, Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas – IAPTEC e outros.

Os IAPS diferiam das CAPS no financiamento, organização, fiscalização, gestão de serviços e benefícios. Cada instituto tinha abrangência nacional e deste modo reunia todos os trabalhadores de uma categoria profissional. Com a Constituição Federal de 1934, os IAPS passaram oficialmente a obter financiamento tripartite advindo de contribuições de trabalhadores, empresas e Estado (SILVA; MAHAR, 1974). A gestão dos IAPS também passou a ser tríplice e, durante o Estado Novo (1937-45), período de perseguição e cooptação de líderes sindicais opositores ao regime ditatorial, o diretor de cada IAP passou a ser escolhido diretamente pelo Presidente da República, Getúlio Vargas.

Representantes de patrões e trabalhadores passaram a atuar virtualmente como “assessores” na gestão do Institutos. Portanto, o Estado manteve os IAPS (e as CAPS) sob seu controle e com isso, a gestão de um volume de recursos financeiros inigualável, que passou a ser utilizado, inclusive, para outras finalidades que não a própria política social, como demonstrado por Oliveira & Fleury (1985). Enquanto nas CAPS, o trabalhador tinha certa autonomia na gestão do recursos financeiros e estabelecimento de benefícios e auxílios, o mesmo não ocorria com os IAPS.

Cada IAP era regido por normas próprias e legislação específica, mas no geral ofereciam aos trabalhadores, aposentadorias, auxílio-doença, auxílio-funeral, auxílio-detenção (reclusão) e pensões, além de serviços de saúde como assistência farmacêutica, médico-hospitalar, reabilitação profissional. Gradualmente, as CAPS foram incorporadas aos novos IAPS, às vezes sem alteração de nome, e ambos ficaram subordinados ao Ministério do Trabalho (SILVA; MAHAR, 1974).

É importante ressaltar que tanto CAPS quanto IAPS se restringiam a trabalhadores urbanos com vínculo formal de emprego. O(a) trabalhador(a) segurado(a) e sua família também tiveram, através das CAPS e IAPS, amplo acesso à habitação, por meio de financiamentos e da Fundação da Casa Popular (1946); atividades de formação profissional, saúde e cultura etc., por meio do SESC e SENAC, além de serviços sociais e assistência alimentar, por meio do Serviço de Alimentação da Previdência Social, o SAPS (1940); e, da assistência social, com foco nas mulheres e crianças, por meio da Legião Brasileira de Assistência, a LBA (1942), instituições com forte influência da eugenia.

Criada por Francis Galton (1822-1911) no final do século XIX, a eugenia baseia-se na ideia racista, classista e capacitista de hierarquizar os seres humanos como superiores ou inferiores. A eugenia é frequentemente associada às práticas de esterilização da Alemanha nazista (1930-1940) durante o Holocausto ou às desenvolvidas nos Estados Unidos, como exemplificado pelo caso Buck vs. Bell (1927). Contudo, essas experiências representam apenas uma das vertentes da eugenia no século XX.

A “eugenia positiva”, por exemplo, promove a reprodução dos “aptos” e “desejáveis”, enquanto a “eugenia negativa”, explícita nas práticas de esterilização, visa impedir a reprodução dos “inaptos” para evitar a transmissão hereditária de caracteres considerados “indesejáveis”. Ambas influenciadas pelas teorias de Mendel e Lamarck. Já a “eugenia preventiva”, popular na América Latina e entre neolamarckianos, visou “melhorar” racial e moralmente a população por intervenções sociais e ambientais. Todas essas vertentes têm em comum a exaltação da branquitude e a imposição de hierarquias baseadas no racismo, classe, gênero e capacitismo (STEPAN, 2005; DIWAN, 2022; SOUZA, 2016; WEBER, 2018; FERREIRA, 2020).

Na primeira metade do século XX, eugenistas no Brasil buscaram o “aperfeiçoamento” populacional por meio de educação, saúde, higiene e moral, seguindo a cartilha da eugenia preventiva (STEPAN, 2005). Isso incluiu o esforço estatal para combater “venenos raciais” como alcoolismo e para promover campanhas de saúde pública com foco no sanitarismo e higienismo, serviços voltados para maternidade, nutrição e alimentação e assistência social.

As mulheres assumiram papel relevante nesse processo em nascentes profissões como enfermeiras, nutricionistas, assistentes sociais e visitadoras, fortemente impregnadas pelo saber médico-social, jurídico e científico da época. Nos anos 1940, o SAPS e a LBA são alguns exemplos de política social com inspiração na eugenia preventiva.

O SAPS – Serviço de Alimentação da Previdência Social

O SAPS, criado em 1940 – pleno Estado Novo varguista – e extinto em 1967, no auge da ditadura-civil militar, é um excelente exemplo de como a eugenia inspirou a política social brasileira. Marcela Fogagnoli (2010; 2017), Ana Maria Evangelista (2012) e Marlene Cidrack (2009, 2010) realizaram brilhantes pesquisas sobre o SAPS. Nenhuma, porém, se dedicou a investigar o caráter eugenista dessa instituição, tal qual aqui proposto.

O Serviço de Alimentação da Previdência Social, conhecido como SAPS, oferecia alimentação a preço popular para trabalhadores – vinculados às CAPS e IAPS – e suas famílias, seja por meio de refeições em restaurantes ou da venda de alimentos in natura em postos de subsistência. Além disso, promovia visitas domiciliares, consultórios de alimentação, cantinas, desjejum escolar, atividades culturais, bibliotecas, cursos profissionalizantes (como corte e costura para filhas de trabalhadores), encaminhamento a empregos e assistência social. Com o passar do tempo o SAPS chegou a ter granjas de produção, torrefações e até padarias.

As iniciativas do SAPS começaram na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal. Na Praça da Bandeira, o primeiro restaurante do SAPS oferecia até 8 mil refeições diárias, e a proposta logo se expandiu pela cidade e pelo país. Em novembro 1946, foi inaugurado um restaurante-escola do SAPS no Leblon, em espaço cedido pela Legião Brasileira de Assistência, a LBA. Em Recife e no Rio, os portuários tinham seus próprios restaurantes do SAPS3. Além disso, havia ao menos 31 (trinta e um) restaurantes ou refeitórios operando nas empresas no Rio, sob fiscalização do SAPS4. Até 1950, existiam unidades de SAPS em diversas cidades nos estados do Rio de Janeiro (Rio, Campos, Niterói, Petrópolis, Teresópolis), Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, São Paulo, Pará, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Goiás e Rio Grande do Sul.

Para colocar em curso todas essas atividades, o SAPS demandou pessoal especializado e para isso organizou uma seção de Ensino, oferecendo cursos técnicos de: auxiliares de alimentação; voluntárias de alimentação; médicos nutrólogos; nutricionistas (descritas pelo serviço como auxiliares de nutrólogos). Além de cursos de sala, copa e cozinha. O curso de Nutricionistas, como foi chamado, era destinado às pessoas com diploma de professora, de conclusão de Curso ginasial ou de enfermeira expedido por Escola Federal5.

Segundo o Decreto-Lei no 2.478, de 5 de agosto de 1940, o objetivo do SAPS era melhorar a alimentação do “trabalhador nacional” por meio da racionalização de seus hábitos alimentares, e, dessa forma, melhorar sua “resistência orgânica e capacidade de trabalho”. Subordinado ao Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, cabia ao SAPS “assegurar condições favoráveis e higiênicas à alimentação de segurados” dos IAPS e das CAPS. Na ocasião da reorganização do SAPS, em 1941, esses objetivos foram ratificados e a eles adicionado, como uma de suas finalidades “desenvolver na coletividade brasileira uma consciência familiarizada com os problemas de alimentação racional”6.

É possível dizer que o SAPS se concentrava no campo da higiene alimentar. Coube ao SAPS, além de oferecer alimentos, divulgar, entre trabalhadores e suas famílias, os benefícios, as vantagens de uma alimentação racional. Para isso promovia, segundo o art. 2º do Decreto-Lei de 1941, tanto “uma ação educativa sistemática, especialmente junto às famílias dos trabalhadores, visando demonstrar os prejuízos decorrentes do atual sistema de alimentação” e também “orientando a coletividade sobre os processos de uma alimentação racional e econômica e dos seus benéficos resultados”, quanto “a propaganda da necessidade de novas diretrizes na alimentação racional e das suas profundas influências sobre a melhoria da raça”.

Ainda que nessa legislação raça possa ser interpretada como “povo”, a noção de melhoramento do “povo” brasileiro na primeira metade do século XX estava associada a concepções hoje compreendidas como racistas. O “melhoramento racial”, nesse contexto, se refere aos esforços de aprimoramento de um povo, do ponto de vista biológico e social. Esses fatores produziriam juntos interferências de ordem genética nas gerações presentes e futuras com a transmissão hereditária de doenças, deficiências e de fenótipos raciais “indesejáveis”.

Essas preocupações se somavam à dimensão “social” para promover a “melhoria da raça”, o que em geral, significava aspectos dos campos comportamentais e morais. Trabalhadores empobrecidos e suas famílias, ainda que brancos, tendiam a ser lidos como em si moralmente questionáveis quanto aos hábitos de higiene, saúde, alimentação e cuidados com as crianças. Se trabalhadores negros, essa lente era amplificada pelo racismo, porque a isso se associavam estereótipos raciais: sujeira, depravação moral, alcoolismo, vadiagem, malandragem, reprodução sexual indistinta, moradias compartilhadas e preconceitos contra “crenças” sobre alimentação, saúde e cura afro-brasileiros. Todas essas tradições foram alvo de repressão, inclusive via “educação”.

O SAPS foi inspirado na experiência do restaurante para trabalhadores do setor da indústria criado pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões de Industriários – IAPI, na capital federal, Rio de Janeiro. O IAPI, por sua vez, tomou essa iniciativa a partir de estudos científicos e da experiência de Paulo Seabra. Paulo Seabra, em 1935, criou no Rio o Laboratório Orlando Rangel, um restaurante com foco na alimentação de trabalhadores. Com essa experiência, o farmacêutico desenvolveu estudos sobre a importância da alimentação do trabalhador no local de trabalho (CIDRACK, 2010; EVANGELISTA, 2012; FOGAGNOLI, 2017).

Cinco anos depois, publicou os resultados, com o título “Cruzados da Alimentação” na Revista dos Inapiários – do Instituto de Aposentadorias e Pensões de Industriários –, e no Boletim do Ministério do Trabalho Indústria e Comércio. Essa relação foi fundamental para que o presidente do IAPI, Plínio Catanhede, construísse um restaurante para trabalhadores vinculados ao IAPI da cidade do Rio. O convidado para formar profissionais para trabalhar nesse projeto foi um dos médicos nutrólogo do próprio IAPI, Josué de Castro – que também era médico da primeira-dama, Darcy Vargas. Castro criou um Curso de Alimentação, do Serviço Central de Alimentação na Praça da Bandeira do IAPI, que formou inicialmente auxiliares de alimentação, em 19397.

No ano seguinte, em 1940, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio assumiu a iniciativa e a expandiu, transformando-a assim no SAPS, via Decreto-Lei no 2.478, de 5 de agosto de 1940. O primeiro diretor-geral do SAPS foi Hélion Póvoa. Josué de Castro, por sua vez, foi nomeado por Vargas como diretor do setor de Nutrição – responsável pela formação de profissionais na área (nutricionistas e nutrólogos) – e ficou por cerca de um ano no cargo, dando início ao primeiro curso de Nutrição do Rio de Janeiro (EVANGELISTA, 2012; FOGAGNOLI, 2017).

O médico nutrólogo e professor de dietética, Dante Costa foi outro nome de relevo no campo da Nutrição e nas políticas de alimentação no Brasil. Encarregado pela área de pesquisas do SAPS, foi um dos entusiastas na defesa da alimentação escolar, criando o desjejum para as crianças de trabalhadores na instituição. Essa preocupação se devia aos altos índices de mortalidade infantil, causadas – dentre outros – pela fome, subnutrição ou desnutrição. Na comparação com crianças de outros países, um desses fatores, para Dante Costa era a de ordem “racial”. Fogagnoli (2017) revela que Dante escreveu no prefácio da primeira edição de seu livro “Bases da alimentação racional: orientações para o Brasileiro” (1939), que: “... é pela alimentação racional que se faz a valorização eugênica do brasileiro”. Fogagnoli (ibid.), por sua vez, concorda que essa perspectiva eugenista era compartilhada por outros médicos nutrólogos.

As publicações de Técnicos do SAPS eram frequentes no Boletim do SAPS. O Boletim (Boletim do SAPS, Boletim Mensal e Revista do SAPS), foi publicado entre 1944 e 1950 e tinha como objetivo promover, entre trabalhadores sociedade em geral, ações da instituição pública e os benefícios da alimentação racional, ou seja, aquela orientada por princípios médico-científicos.

Nomes como as dos técnicos nutricionistas do SAPS, Dante Costa, João José Barbosa e José Paranhos Fontenele eram comuns no Boletim. Na coluna intitulada “Noções de Alimentação”, Barbosa, que também era professor de Nutrição Infantil e Dietética Infantil em Escola Técnica de Assistência Social Cecy Dodsworth, no Rio de Janeiro, – e provavelmente lecionava o curso de Nutricionistas do SAPS, fez recorrentes referências à eugenia. Fontenelle, também lecionou na Cecy Dodsworth (a disciplina sobre Higiene). Em 1918 ele publicou o livro Compêndios de Higiene e na segunda edição, de 1925, incorporou elementos sobre eugenia.

A Escola Técnica de Assistência Social Cecy Dodsworth foi fundada em 1944 no Rio. Essa Escola formou nutricionistas e assistentes sociais sob a Secretaria de Saúde e Bem-Estar, vinculada à Prefeitura do Distrito Federal. Iniciada por Clementino Fraga, médico influenciado pela eugenia. A Escola visava moldar o “bem-estar” social segundo os princípios eugênicos, conforme registrado por uma das assistentes sociais pioneiras do Rio, Maria Esolina Pinheiro (1985). Esolina inclusive menciona que as medidas de amparo médico-social aumentaram naquele momento, com consultórios de pré-natais, institutos de puericultura e de higiene infantil. Além disso, as medidas educativas, como visitas domiciliares, passaram a ser necessárias para disseminar os princípios da eugenia e da puericultura.

As noções de fundo eugenista moldaram a política social no Brasil, e instituições que promoviam serviços ou benefícios à população trabalhadora, como o SAPS e a LBA, estavam impregnadas por tais noções, assim como a atuação de seus profissionais. Daí a dona de casa ter se tornado um dos alvos de “educação” na disseminação dos benefícios da “alimentação racional”, da puericultura, ou seja, do “cultivo” de crianças sadias, higiene do lar etc.

Em 1945, o chefe da Seção Técnica do SAPS, Luís de Brito, publicou um artigo no Boletim do SAPS, chamado “Alimentação do Trabalhador no Bairro do Rocha: resultado de um inquérito realizado pelo SAPS”. Para realizar inquéritos de educação alimentar, as visitadoras iam até a família do trabalhador e levantavam informações como nome, nacionalidade, idade, profissão, local de trabalho (da dona de casa e do “chefe de família”), número de filhos e a cor das pessoas8. Os dados coletados tinham grande relevância para as pesquisas do SAPS. Essas visitas aconteceram em diferentes bairros do Rio de Janeiro, como São Cristóvão, Rio Cumprido e Rocha, nomeado como bairro de famílias operárias9. No Rocha, por exemplo, foram entrevistadas mais de 400 famílias.

O levantamento com as famílias não acontecia em uma única visita, mas em pelo menos três, de modo a alcançar a confiança das pessoas entrevistadas, a maioria mulheres. Nas visitas, as visitadoras tinham também a chance de propor estratégias para alimentação racional e econômica das famílias. Havia uma preocupação em mapear as condições econômicas, higiênicas, habitacionais e alimentares da família. O chefe da seção técnica do SAPS, o médico Luís de Brito, destacava como a preocupação com a alimentação assumiu contornos de problema nacional10. Seja pela sua contribuição para o aumento da produtividade do trabalhador, seja pela compreensão da influência genética da alimentação. Essa influência genética poderia, portanto, repercutir na transmissão de caracteres a futuras gerações, algo próprio da eugenia preventiva.

Esse esforço de ordem patriótica e urgente fazia parte da tarefa de instituições e de profissionais, a exemplo da equipe do SAPS composta por médicos nutrólogos, nutricionistas, visitadoras, assistentes sociais etc. Mas outras instituições se somariam a essa cruzada em prol do futuro da nação, uma delas a Legião Brasileira de Assistência, a LBA.

SAPS e LBA: visitadoras, enfermeiras, assistentes sociais e nutricionistas na promoção da eugenia

Além do SAPS, outra instituição importante, também financiada pelas CAPS e IAPS, que arregimentou visitadoras e, posteriormente, assistentes sociais e enfermeiras, foi a LBA, Legião Brasileira de Assistência. A LBA surgiu em 1942, por iniciativa da primeira-dama do país, Darcy Vargas, para oferecer apoio material (e moral) às famílias de pracinhas (militares de baixa patente) convocados para II Guerra Mundial. Era um chamado às mulheres, sobretudo primeiras-damas e mulheres de classe média, a oferecer apoio a outras mulheres, as mais empobrecidas.

No Brasil dos anos 1940, o mercado de trabalho formal ainda era dominado por homens. Em 1940 havia pouco mais de 41 milhões de habitantes no país. Destes, apenas cerca de 12 milhões viviam nos centros urbanos. Da população economicamente ativa no país de 14 milhões de pessoas, somente 2 milhões eram mulheres, situação não alterada nos anos seguintes (IBGE, 1979, 2000).

Ana Paula Vosne Martins (2011), em suas notáveis pesquisas, têm apontado a LBA como um dos eixos para o exercício da chamada “cidadania feminina”. Este tipo de cidadania estaria assentado, por sua vez, na crença conservadora da utilidade social das mulheres em sua extensão maternal. Além do protagonismo das mulheres como “cuidadoras” da sociedade como um todo, tal perspectiva se alargava para a preparação de outras mulheres para o papel de cuidadoras.

Para as mulheres brancas de classe média e/ou alta, o exercício da filantropia passava a ser também incentivado pelas revistas como símbolo de status e modo de superação do ócio. Numa sociedade que se pretendia moderna, as obras sociais manifestavam-se como meios para a garantia do progresso tanto social quanto moral, quase um dever cívico designado às mulheres (FREIRE, 2009).

Símbolo do patriotismo feminino, a LBA reuniu uma multidão de mulheres voluntárias engajadas na causa patriótica: surgia a figura das legionárias. Vinculada ao governo federal, a LBA possuía uma estrutura organizacional complexa, articulando instituições públicas e privadas para fornecer desde roupas e alimentos até orientações às famílias dos pracinhas. Após a Segunda Guerra Mundial, sua atuação se expandiu, passando a focar na maternidade e na puericultura, afinal, as crianças eram o futuro da nação. Voltada às famílias de trabalhadores empobrecidos, a LBA não exigia vinculação às CAPS ou IAPS para oferecer atendimentos, auxílios e benefícios.

Michele Barbosa (2017) investigou à fundo a LBA e explicou que além disso, a LBA oferecia também cursos pré-nupciais a noivas. E revelou que, segundo o Estatuto da LBA (1942), nesses cursos as mulheres aprendiam sobre eugenismo; puericultura; alimentação e nutrição; doenças transmissíveis; hábitos de saúde do ponto de vista moral; físico e mental; econômica doméstica; os “problemas” da hereditariedade etc.

No início do século XX, uma das preocupação de eugenistas no Brasil, como Renato Kehl, era a instituição da obrigatoriedade de exames pré-nupciais obrigatórios para nubentes. Médicos avaliariam o estado de saúde de ambos de modo a garantir “bem-nascidos”, uma medida profilática para o nascimento de “inadequados”. A preocupação com a transmissão hereditária de caracteres levou membros das Sociedades de Eugenia a apresentar projetos. Nesse sentido, eles foram apresentados à Câmara dos Deputados, pela Sociedade de Eugenia, tanto com foco em exames pré-nupciais quanto sobre o ensino de “higiene individual e higiene sexual”11.

Na ausência da obrigatoriedade dos testes, incentivou-se o ensino às mulheres, especialmente às mais pobres (maioria negra no Brasil), sobre a escolha de seus futuros maridos. Um esforço de enfrentamento da “questão social” a partir de pressupostos médicos-científicos sustentados pela eugenia.

A própria Constituição de 1934, no artigo 138, incluía entre as atribuições da União, Estados e Municípios o amparo aos “desvalidos”, por meio de serviços sociais, o amparo à maternidade e à infância e à juventude, o estímulo à educação eugênica, a adoção de medidas de higiene social, como o cuidado da higiene mental e a luta contra os “venenos sociais”. Toda a gramática da eugenia preventiva do neolamarckismo estava ali. O SAPS e a LBA com suas profissionais e voluntárias atuavam nesse contexto, com um forte papel educativo, através de figuras como as visitadoras.

No início do século XX, a figura das visitadoras já era comum no campo da saúde pública brasileira, sobretudo as “Enfermeiras Visitadoras”. Como explicam Peters (et al., 2024), em 1922 a Fundação Rockefeller iniciou a Missão Parsons (1921-31) com o objetivo de profissionalizar a enfermagem de saúde pública no Brasil, por meio da reorganização do serviço e da formação de profissionais. Ethel Parsons, enfermeira estadunidense veio acompanhada de outras colegas com essa tarefa. Ao chegar no Rio de Janeiro ela se deparou com “enfermeiras visitadoras” que eram treinadas por médicos para atendimento de pacientes em bairros pobres, para combater epidemias, “vícios” e oferecer orientações sobre higiene.

Em 1923 foi inaugurada a Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública. Logo, Parsons substituiu a figura das “Enfermeiras visitadoras” por “Visitadoras de Higiene”. Enfermeiras seriam apenas aquelas com formação específica de no mínimo 2 anos, inspirado no modelo anglo-americano. A ideia de um grupo de profissionais com formação inferior às enfermeiras visitando a população não era apoiada por Parsons que na sequência criou um curso emergencial de “Visitadoras Sanitárias” com sete meses de duração. Mas elas frequentemente eram convidadas a cursar Enfermagem (PETERS et al., 2024).

Em 1927, a Escola passou a se chamar Escola de Enfermeiras D. Anna Nery, sendo incorporada em 1937 à Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tendo como primeira diretora uma enfermeira estadunidense. Pacita Aperibense (2009) explica que Carlota de Queiroz, médica de São Paulo e primeira mulher eleita deputada federal, teve papel fundamental na integração da Escola Anna Nery à Universidade do Brasil. Na mesma década em que as mulheres tiveram direito ao voto, a parlamentar se tornou um pilar na profissionalização das três carreiras que seriam ocupadas inicialmente, sobretudo, por mulheres brancas de classe média.

A Escola Anna Nery, uma vez incorporada à Universidade do Brasil, em 1937 pela Lei 452, de 5 de julho de 1937, ficou responsável pelo ensino de Enfermagem e de Serviço Social. O pioneiro trabalho de Sheila Backx (2016) demonstrou que no curso de Serviço Social da Anna Nery, atual Escola de Serviço Social da UFRJ, constavam entre as disciplinas do curso de formação de assistentes sociais Anatomia e Fisiologia, Higiene do Trabalho, Moral, Nutrição, Puericultura etc.

Tais registros permitem hoje afirmar a influência da medicina social e de ideias eugenistas na formação de assistentes sociais no Brasil. A puericultura, por exemplo, teve grande ligação com a eugenia no Brasil e no mundo e fazia parte também do currículo em Serviço Social na Escola Técnica de Assistência Social Cecy Dodsworth. Disciplinas como Higiene, Higiene Mental, Economia Doméstica eram parte da formação em Serviço Social nessa Escola que também oferecia cursos de Nutrição, Educadora Familiar, Visitadora Social (auxiliares de assistentes sociais) e um curso exclusivo de Puericultura, como documentou Pinheiro (1985b).

O SAPS, por sua vez, admitia para o seu curso de Nutrição profissionais com diploma de enfermeira expedido por Escola Federal, sendo a Escola Anna Nery a única no Rio que atendia a esse requisito. Em 1948, a própria Escola Anna Nery começou a oferecer o curso de graduação em Nutrição. Josué de Castro, que havia implantado o curso de Nutrição no SAPS, foi convidado para tornar-se o primeiro diretor do programa de Nutrição da Universidade do Brasil, atual Instituto de Nutrição Josué de Castro da UFRJ.

Já o curso de Nutrição do SAPS, com a extinção da instituição em 1967, ficou sob responsabilidade do Ministério da Educação e Cultura. Posteriormente, foi assumido pela Federação das Escolas do Estado da Guanabara e, finalmente, em 1979, incorporado à atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a UniRio.

Na composição da divisão social do trabalho que marca o surgimento dessas profissões no país, há um elemento em comum: o suposto dom natural das mulheres para a maternagem e cuidado. Vistas historicamente como auxiliares de médicos e juízes, essa expectativa de gênero, raça e classe atravessou (e definiu) carreiras como as de visitadoras, assistentes sociais, enfermeiras, nutricionistas, pedagogas e outras, como majoritariamente femininas. As instituições clamavam por essas profissionais, importantes para a ordem e o progresso do país.

Como investigado por Barbosa (2017), a LBA tinha suas próprias visitadoras, as visitadoras sociais. A visita domiciliar das legionárias tinha como ênfase orientações acerca de higiene, alimentação, manutenção do lar e comportamento. O trabalho das visitadoras era, em geral, voluntário e exigia formação em curso de curta duração oferecido pela própria LBA. Muitas eram incentivadas a se formar como assistentes sociais, curso superior. Na LBA, assistentes sociais diplomadas avalizavam as solicitações das famílias atendidas por visitadoras, por exemplo. As enfermeiras também passaram a atuar na LBA, especialmente quando a puericultura se tornou o centro das atividades da instituição nas diversas cidades.

A LBA, inclusive, contribuiu de forma ativa com a formação de quadros para o SAPS. Aliás, a relação entre as duas instituições foi estabelecida desde a inauguração do primeiro Restaurante Popular do SAPS, na Praça da Bandeira, em 1942. Em um momento de dificuldades de abastecimento de alimentos devido à II Guerra Mundial, a primeira-dama Darcy Vargas, foi anunciada como a que ofereceria o almoço aos trabalhadores do Brasil e suas famílias ao lado de Getúlio Vargas e de outras autoridades.

Inicialmente o SAPS oferecia um curso de 18 meses para a formação de Auxiliares de Alimentação, capacitadas para atuar em laboratórios, restaurantes e visitas domiciliares etc., mas em 1942, foi criado o curso de “Voluntárias de Alimentação”, uma parceria do SAPS com a LBA e a Comissão Brasileira Americana de Gêneros Alimentícios (Acordo Brasil-EUA)12. O curso, com duração de um mês, focou nas mulheres de convocados para o serviço militar, de modo que aprendessem noções sobre nutrição, preparo de alimentos saudáveis e com baixo custo.

Em um cartaz de janeiro de 1943, assinado pelo SAPS e pela LBA se lia: “Dona de casa: O Brasil talvez venha a precisar do seu marido ou do seu filho para levá-lo à vitória! Não esqueça que se os alimentar bem a senhora estará operando de maneira valiosa para o nosso esforço de guerra”13. Em 1945, o curso do SAPS em parceria com a LBA já ocorria também em Niterói, Fortaleza e em Belém do Pará. A relação SAPS-LBA foi adiante e se manifestou em campanhas de combate à mortalidade infantil, festividades de final de ano e, em 1946, foi inaugurado um restaurante-escola do SAPS no Leblon, em espaço cedido pela LBA14. Em uma publicação, Darcy Vargas foi nomeada como “a grande amiga dos pequenos e humildes” e sua generosidade em associar sua obra na LBA com a do SAPS foi exaltada15.

Do sucesso do curso de “Voluntárias de Alimentação”, parceria entre LBA, CBA e SAPS, surgiu o curso de “Visitadoras de Alimentação”. Embora a formação de nutrólogos e nutricionistas se concentrasse no SAPS da Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro, em 1944 foi inaugurada outra unidade de ensino do SAPS em Fortaleza (CE) para atender o Norte e Nordeste. A Escola de Visitadoras de Alimentação Agnes June Leith, vinculada ao SAPS, formava profissionais para atuar nas unidades do país. Exclusiva para moças e em regime de internato, a Escola teve forte influência dos EUA, do financiamento ao currículo, incluindo seu nome, em homenagem à dietista estadunidense responsável por sua implementação (CIDRACK, 2010; EVANGELISTA, 2012).

O SAPS foi influenciado e financiado por instituições norte-americanas, como a American International Association for Social and Economic Development (AIA) e a Coordination of Inter-American Affairs (CIAA). Fundada em 1940, a AIA era uma organização privada voltada para o desenvolvimento econômico e social em países periféricos da América Latina, África e Ásia, atuando em áreas como saúde, educação, agricultura e alimentação. A AIA foi dissolvida em 1944 e substituída pela CIAA (1944-1946), que se concentrou em promover a colaboração econômica, científica e de segurança entre os países das Américas. Nelson Rockefeller, uma figura central da Fundação Rockefeller nas décadas de 1930 e 1940, também foi diretor da AIA e coordenador da CIAA. Essa agência manteve sua relação com o SAPS mesmo após a presidência de Vargas, como explicam Silva & Andrade (2022).

Em 1945, a AIA forneceu $100.000 para o SAPS. Esses fundos foram destinados à criação de uma Escola de Serviço de Visitação Domiciliar, baseada no "Home Economics Extension Service", conhecido como Home Demonstration. O Home Demonstration foi criado em 1914 pelo governo dos Estados Unidos para fornecer orientação prática às famílias nos EUA. As Agentes de Home Demonstration ofereciam instruções, particularmente às mulheres, sobre temas como nutrição, cuidados infantis, dietética, trabalho social, higiene, culinária, costura e jardinagem, enfatizando métodos racionais para promover a saúde e o bem-estar. Incluía os clubes 4-H (Head, Heart, Hands and Health), no Brasil foram chamados de 4-E (Espírito, Educação, Esforço, Êxito)16.

O Home Demonstration foi inspirado pelo Home Economics. Na verdade, foi um tipo de modelo prático para aplicar o método do Home Economics, criado no final do século XIX nos Estados Unidos por Ellen Richards, uma química. Ela foi a primeira mulher a frequentar o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Segundo Danielle Dreillinger (2021), em seu livro The Secret History of Home Economics, Ellen Richards não condenava a eugenia. Na verdade, ela propôs sua própria interpretação para melhorar a raça humana no momento presente por meio do Home Economics, e não apenas no futuro. Ela chamou essa abordagem de "euthenics" (eutenia)17.

Essas técnicas foram importantes para o desenvolvimento de um foco em Visitação Domiciliar no SAPS voltado para orientações sobre nutrição, higiene e cuidados infantis. Cidrack & Bezerra (2009) apontaram que as ações das Visitadoras de Alimentação tinham como base noções sobre puericultura, higienismo e eugenia aprendidas durante o curso de formação.

Em adição às visitas em moradias, os clubes 4-E (Espírito, Educação, Esforço, Êxito) foram parte importante do trabalho de Visitadoras de Alimentação no Brasil. Clubes para crianças e adolescentes, clubes de donas de casa para demonstrar o melhor uso de alimentos e de seu valor nutritivo, modos de higiene, como se portar à mesa, puericultura etc. Outra possibilidade eram os cursos, como os de artesanato ou de costura18.

Em 1949, um novo convênio do SAPS com a AIA, que revela a presença de Marietta Anderson, técnica americana de “Assistência Social”, que estaria trabalhando em diferentes estados junto ao Setor de Visitação Alimentar. Setor dedicado à educação alimentar, ensino de orçamentos domésticos, trabalho com donas de casa, crianças, adolescentes e outros, como “desenvolver, enfim, medidas práticas e objetivas tendentes a conquistar famílias de classe pobre para o caminho da saúde e do bem-estar, através da alimentação adequada e da observação da boa atitude em face da sociedade”19. Anos depois, em 1952, outra Escola para formação de Visitadoras de Alimentação foi criada em Belo Horizonte, o que facilitou o acesso ao curso para residentes da região Sul e Sudeste (CIDRACK, 2010; EVANGELISTA, 2012).

Importa ressaltar que o presente trabalho de pesquisa identificou, de forma inédita, a presença de assistentes sociais no SAPS — um aspecto até então não mencionado ou investigado na literatura sobre o Serviço Social ou nos estudos sobre a instituição. As assistentes sociais do SAPS atuavam na Sede do Rio, na Praça da Bandeira, na Sala João Vidal, que funcionava também como sala de leitura. Elas se dedicavam à orientação e ao encaminhamento para empregos, para o Juízo de Menores, hospitais, creches, asilos (como eram chamados os lares para idosos), emissão de documentos, entre outros, em colaboração com as visitadoras e com instituições como a LBA, além de entidades filantrópicas, como a S.O.S20.

A presença de assistentes sociais no SAPS pode também estar relacionada à atuação profissional prévia de assistentes sociais no Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários – IAPI, na década de 1940. Milhares de pessoas eram atendidas pelo setor da Assistência Social do SAPS, como registrado no Boletim do SAPS em 1945. Essa inserção profissional será aprofundada em publicações futuras.

Em um país como o Brasil, as relações estabelecidas entre o Estado, o patronato e os trabalhadores são historicamente fundamentadas pelo racismo. Logo, o enfrentamento à “questão social” recorreu a soluções como a eugenia. A eugenia como política social contribui significativamente para revelar este modus operandi. O SAPS, embora tenha sido imprescindível para a construção do direito à alimentação no país – inclusive para a implementação da merenda escolar, foi permeado por concepções eugenistas. De modo similar, a LBA, que proporcionou apoio a inúmeras famílias empurradas à miséria, também incorporou tais perspectivas em sua atuação institucional.

A relação entre o SAPS, por exemplo, como uma iniciativa eugenista foi confirmada por um de seus diretores pós-Estado Novo. Interessante observar que sua declaração se deu em 1950, após a II Guerra Mundial, em um momento em que, em tese, a eugenia deveria reduzir sua influência sobre os Estados nacionais. A condenação da eugenia como imprópria do ponto de vista ético e político não ocorreu, porém, de forma imediata. Em outubro de 1950, o militar diretor do SAPS, Umberto Peregrino, falou aos trabalhadores na ocasião da inauguração de um restaurante popular em Goiânia, no estado de Goiás, no Brasil. "Posso garantir que são muito poucos os administradores que entendem o alcance social, econômico e eugênico do trabalho do SAPS e estão interessados em obter seus benefícios para o campo administrativo em que trabalham"21.

Material suplementario
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Referências
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Notas
Notas
1 Este texto é resultado de pesquisa realizada durante o Estágio Pós-Doutoral na PUC-São Paulo e como pesquisadora visitante na Harvard University, nos Estados Unidos. Agradeço às instituições, ao Rockefeller Archive Center, e aos professores Carmelita Yazbek e Sidney Chalhoub pela oportunidade, assim como à Capes pelo financiamento por meio do Prêmio Capes de Tese.
2 Professora no Departamento de Política Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutora em Serviço Social na PUC-São Paulo, com doutorado e mestrado em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora visitante na Universidade de Harvard (2022-2023). Vencedora do Prêmio Capes Tese de 2021. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Sankofa. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6985-9807. E-mail: gracyelle@ufrj.br
3 Boletim Mensal do SAPS: ano 1, n.5, 1945; ano 3, n. 52-53, 1950.
4 Boletim Mensal do SAPS, ano 1, n.5, 1945. Revista do SAPS, ano 2, n.17-19, 23-25, 1946.
5 Boletim Mensal do SAPS, n. 9, ano 2, 1945.
6 Decreto-Lei No 3.709, de 14 de outubro de 1941.
7 Idem.
8 Boletim Mensal do SAPS, n. 10, ano 1, agosto 1945.
9 É válido observar que “operário” era um termo utilizado para nomear trabalhadores em geral.
10 Boletim Mensal do SAPS, n. 10, ano 1, agosto 1945. Grifos nossos.
11 Boletim de Eugenia, n. 1, 1929.
12 Decreto-Lei Nº 5.246, de 12 de fevereiro de 1943
13 Arquivo Nacional. BR RJANRIO EH.0.FOT, EVE.1050. Boletim Mensal do SAPS, n. 9, ano 2, 1945, p.39.
14 Boletim Mensal do SAPS, n. 2, ano 1, nov. 1946.
15 Boletim Mensal do SAPS, n. 2, ano 1, dez. 1944.
16 Boletim Mensal do SAPS.
17 Kehl usou esse mesmo termo para definir práticas semelhantes à eugenia preventiva.
8 Rockefeller Archive Center.
19 Boletim do SAPS. n. 31, ano 3. abr. 1949.
20 Sobre a S.O.S Cf. Martins (2023)
21 Boletim Mensal do SAPS. Número 53 (1), out. 1950.
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