Resumo: O artigo analisa a escrita memorialística de Maria Esolina Pinheiro, uma das pioneiras do Serviço Social na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo é problematizar a construção da memória da assistência e do Serviço Social articulada à memória e à escrita de si. O artigo também explora os diferentes gêneros narrativos produzidos pela escrita de Pinheiro, como a memória histórica, a autobiografia e a narrativa literária.
Palavras-chave: Memória, Assistência, Serviço Social, Profissionalização feminina.
Abstract: The article analyzes the memorial writing of Maria Esolina Pinheiro, one of the pioneers of Social Service in the city of Rio de Janeiro. The objective is to problematize the construction of the memory of assistance and Social Service linked to memory and self-writing. The article also explores the different narrative genres produced by Pinheiro’s writing, such as historical memory, autobiography and literary narrative.
Keywords: Memory, Assistance, Social Work, Female professions.
Memórias de si, memórias de uma profissão: a escrita memorialística da assistente social e professora Maria Esolina Pinheiro (1903-1991)
Self memories, memories of a profession: the memorial writing of social worker and professor Maria Esolina Pinheiro (1903-1991)
Recepción: 01 Octubre 2024
Aprobación: 01 Diciembre 2024
OSQ_62_Art_5
Memórias de si, memórias de uma profissão: a escrita memorialística da assistente social e professora Maria Esolina Pinheiro (1903-1991)1
Ana Paula Vosne Martins2
Resumo
O artigo analisa a escrita memorialística de Maria Esolina Pinheiro, uma das pioneiras do Serviço Social na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo é problematizar a construção da memória da assistência e do Serviço Social articulada à memória e à escrita de si. O artigo também explora os diferentes gêneros narrativos produzidos pela escrita de Pinheiro, como a memória histórica, a autobiografia e a narrativa literária.
Palavras-chave
Memória; Assistência; Serviço Social; Profissionalização feminina.
Self memories, memories of a profession: the memorial writing of social worker and
professor Maria Esolina Pinheiro (1903-1991)
Abstract
The article analyzes the memorial writing of Maria Esolina Pinheiro, one of the pioneers of Social Service in the city of Rio de Janeiro. The objective is to problematize the construction of the memory of assistance and Social Service linked to memory and self-writing. The article also explores the different narrative genres produced by Pinheiro’s writing, such as historical memory, autobiography and literary narrative.
Keywords
Memory; Assistance; Social Work; Female professions.
Artigo recebido em outubro de 2024
Artigo aprovado em dezembro de 2024
“Sempre fui cismada com áureas de desafeto. [...]Tornando papeis velhos em novos, preservo a áurea de simpatia positiva” (Pinheiro, 1985, p. 4).
Com essas frases, Maria Esolina Pinheiro, uma das pioneiras da profissão e do ensino do Serviço Social no Brasil, iniciava seu livro de memórias familiares e pessoais, com a colaboração da sobrinha, a jornalista Nilce Pinheiro Miranda. O livro foi publicado pela Gráfica Vitória, no Rio de Janeiro, em 1985, quando sua autora estava com 78 anos de idade. O gênero memorialístico se apresenta já no título “Anos que passam, memórias que ficam”, inspirado num poema de seu primo, Sylvio da Fraga Pinheiro Primo:
Anos que passam, memórias que ficam.
Astutas ideias que se dedicam
A revolver as cinzas do passado (Pinheiro; Miranda, 1985, p. 5).
As memórias que ficaram e as lembranças do passado também se fazem notar na capa e na contracapa, com as fotografias, respectivamente, dos avós maternos, Duarte Luiz da Fraga e Luiza Gomes da Fraga, e um retrato de Maria Esolina ainda criança, entre seus pais, Joaquim Pinheiro de Souza Primo e Delmira da Fraga Pinheiro.
Esse livro não é citado nos estudos sobre Maria Esolina e as primeiras escolas de Serviço Social no Rio de Janeiro. Como são estudos acadêmicos, procuram colocar em evidência e compreender as ideias e o protagonismo de uma mulher que se dedicou à assistência social e à organização do ensino e de uma nova e necessária profissão frente aos grandes desafios da questão social num país tão marcado por profundas desigualdades e a ausência de políticas sociais até o começo da década de 1930. Portanto, um livro sobre memórias familiares não foi considerado relevante para uma abordagem, mesmo que histórica, de uma profissão e de uma pioneira3.
Este artigo não é de autoria de uma assistente social, mas de uma historiadora das mulheres, cuja pesquisa cruzou pelos caminhos de senhoras de caridade, filantropas, enfermeiras, feministas e as pioneiras do Serviço Social na cidade do Rio de Janeiro entre as décadas de 1920 e 1940. As trajetórias de diferentes mulheres pela questão social, algumas delas da elite carioca, outras das classes médias, podem ser analisadas por diferentes enfoques e abordagens, mas ao realizar a pesquisa documental e bibliográfica, as dificuldades colocadas pela escassez de registros e, principalmente, de informações biográficas sobre elas – e não foram poucas – suscitaram uma reflexão a respeito das relações entre o gênero, a memória e o esquecimento da ação e da assistência social. Muitas daquelas práticas foram, posteriormente, associadas ao controle social ou à reprodução de um modelo de feminilidade restrito aos sentimentos compassivos e à mitigação dos sofrimentos dos pobres (Martins, 2024).
A memória das pioneiras do Serviço Social foi objeto de pesquisas deste campo do conhecimento, com enfoque na formação, profissionalização e a contribuição que deram para o início da profissão. As pesquisas também se dedicaram às relações entre o protagonismo das pioneiras na constituição das áreas correlatas ao Serviço Social, ao desenvolvimento de metodologias do trabalho social e, não menos importante, à organização das primeiras escolas, associações profissionais e a produção do conhecimento social.
Maria Esolina Pinheiro deixou uma importante contribuição para a memória do campo e da profissão do Serviço Social, escrevendo sobre a história da assistência social promovida pela filantropia, pela Igreja Católica e também pela formulação das primeiras políticas sociais entre as décadas de 1930 e 1940, das quais ela foi não só testemunha, mas partícipe. Cabe destacar que Maria Esolina iniciou suas atividades profissionais entre 1936 e 1938 no Ministério da Justiça e numa organização filantrópica bastante destacada à época, o Serviço de Obras Sociais (SOS), criado em 1938 por enfermeiras da Saúde Pública e filantropas feministas atuantes na ação social na cidade do Rio de Janeiro, bem como por sócios do Rotary Clube. Mas, suas memórias não se restringem a um relato da assistência social de cunho filantrópico ou estatal, organizadas por uma linha temporal. Elas se cruzam com as suas memórias familiares e pessoais, como deixou registrado no livro “Anos que passam, memórias que ficam”.
Este artigo tem como objetivo problematizar a construção da memória da assistência e do Serviço Social articulada à memória e à escrita de si, que no caso de Maria Esolina, não se apresenta como um registro do cotidiano, ou de fatos marcantes de sua vida pessoal ou profissional, como seria o caso da escrita de um diário. Ela produziu um registro engenhoso da memória familiar, da qual ela é parte, mas que a antecede, até um momento muito importante de sua vida pessoal, o ano de 1952.
Embora o registro da memória do Serviço Social seja bastante objetivo, a narração é de Maria Esolina, como personagem também daquele história, enquanto a leitura do livro sobre a memória da família e de si mostra as experiências de uma jovem mulher nas primeiras décadas do século XX e os enfrentamentos com as expectativas sociais de gênero nas cidades interioranas brasileiras que foram vividas por ela e por outras jovens mulheres de sua classe social. Nesse livro se misturam fatos familiares com o esperado destino para jovens como Maria (sua personagem autobiográfica) e suas irmãs - o casamento e a maternidade -, as dificuldades financeiras de uma família cujo passado foi próspero, o abandono paterno, o desejo de se dedicar às Letras, a busca de independência financeira pelo trabalho, um amor frustrado, um casamento fracassado, um trauma materno, mas também o sucesso profissional e o reconhecimento público como assistente social e professora. Uma vida marcada por ambiguidades e contrastes, como a de tantas outras mulheres de sua geração, nascidas no alvorecer do novo século, e que começaram a forjar um novo mundo de desejos, escolhas e caminhos bem diferentes de suas mães e de suas avós do século XIX.
Pelas linhas da memória e das lembranças, a escrita de Maria Esolina Pinheiro é o tema deste artigo, uma escrita que organiza e dá sentido para um conhecimento – conhecimento social – e uma profissão, a de assistente social, que se organizavam em diferentes países e no Brasil, mas também uma escrita que organiza a memória familiar e a memória individual. Uma escrita que se orienta pelo compromisso da diretora e professora aposentada com a verdade. A memória histórica da profissão é narrada como um relato histórico-documental, enquanto a memória familiar e pessoal recorre à narrativa literária do romance.
A escrita memorialística de Maria Esolina Pinheiro entrecruza os fios do tempo familiar, das mudanças sociais, culturais e econômicas do país, das novas oportunidades de independência e de profissionalização que começavam a se abrir no século XX para as mulheres, e da sua própria trajetória, feita de expectativas, frustrações, ambições e decisões – algumas ousadas para a época – de uma mulher que viveu seus anos de juventude e maturidade num país ainda muito refratário às pretensões de independência, autonomia e asserção individual e profissional para mulheres como ela e suas companheiras de profissão.
Nesse sentido, o artigo pretende problematizar duas formas de narrativa memorialística. Primeiro, uma narrativa mais convencional, cujo objetivo é fornecer uma cronologia e uma explicação histórica das origens e da organização do Serviço Social no Brasil, seus objetivos, instituições e agentes; uma narrativa histórica na qual Maria Esolina se inseriu e também foi uma das personagens principais. A segunda, de natureza familiar e individual, é escrita como se fosse um romance e, ao mesmo tempo, um relato autobiográfico, um exercício de escrita de si4. O que se defende é que apesar de serem dois registros bem diferentes, a convergência está na autoria das narrativas, no sujeito que narra, e também no seu protagonismo, na sua agência social, profissional e narrativa.
O ato de narrar pelo recurso da memória, especialmente pela narrativa autobiográfica, revela o trabalho intelectual e emocional de dizer sobre si (família, afetos, trabalho, engajamentos sociais e políticos), ou recorrendo a Contardo Caligaris (1998), ao falar e escrever sobre si, com 78 anos, Maria Esolina se produziu narrativamente, dando significado à história de sua profissão e à sua peculiar trajetória de vida.
Maria Esolina escreveu dois livros sobre a história do Serviço Social no Brasil, ambos publicados em 1985, mesmo ano da publicação do livro sobre suas memórias familiares e pessoais. O livro intitulado Serviço Social - Documento Histórico (1985b) é um registro das formas antigas de assistência e das origens do Serviço Social como profissão em países como Bélgica, França, Inglaterra e Estados Unidos. A autora dedica um longo capítulo para o Serviço Social no Brasil, incluindo as formas caritativas e filantrópicas, organizações assistenciais que antecederam o Serviço Social. Apesar de ser um relato de caráter descritivo, trata-se de uma contribuição relevante à história da assistência social e à história das mulheres, fornecendo um mapa do cenário da assistência desde o Brasil Colônia, com as Santas Casas de Misericórdia e seus Hospitais de Caridade, recolhimentos e orfanatos, como também das irmandades e sociedades religiosas e leigas, em especial aquelas que foram fundadas para acolher doentes, idosos, mulheres e homens escravizados no século XIX.
Boa parte do registro histórico organizado pela autora aborda a assistência no século XX, tanto a pública, quanto aquela promovida por instituições religiosas e filantrópicas leigas. No capítulo dois desse livro, em particular, Maria Esolina reconhece o papel importante que essas instituições desempenharam num país que ainda não contava com políticas de assistência social, pelo menos até a década de 1930. Mas, há um outro aspecto de sua narrativa histórica que merece destaque: a notável presença e agência das mulheres filantropas.
Nas décadas de 1970 e 1980, as interpretações históricas produzidas por profissionais do Serviço Social foram marcadas pela contundência crítica do aparato conceitual marxista ao analisarem as iniciativas caritativo-filantrópicas, mas também o trabalho profissional das assistentes sociais, ou o Serviço Social clássico, de acordo com Nidia Aylwin (1999). As práticas assistenciais voluntárias, majoritariamente femininas, e o trabalho das assistentes sociais pioneiras, na maioria das vezes em colaboração com a benemerência privada, foram interpretadas, pelo crivo crítico, como ideologia, como parte do processo de reprodução ideológica da exploração capitalista pelo assistencialismo e procedimentos normativos como ajustamento social e a harmonia social. Desta forma, o trabalho social realizado por voluntárias ou pelas primeiras assistentes sociais, seria mais um instrumento a serviço das classes dominantes e do capital, atuando para mitigar as dificuldades e os sofrimentos, e ao mesmo tempo criar as condições mínimas de existência com a finalidade de ocultar às classes trabalhadoras e aos que sequer pertenciam a elas, os fundamentos ou a realidade, históricos da exploração e da opressão nas sociedades capitalistas.
Mesmo escrevendo a sua história do Serviço Social na década de 1980, Maria Esolina passou ao largo do debate teórico da reconceitualização, um movimento intelectual e político de crítica aos fundamentos históricos da profissão de assistente social e de ruptura com práticas tradicionais de assistência, comprometido com a transformação social, que se organizou nos países latino-americanos entre as décadas de 1960 e 1970. (Netto, 2005) Sua leitura da história sobre instituições assistenciais e suas/seus agentes não se faz nos termos da crítica social, ou da ação política. Seu objetivo, como mostra o subtítulo do livro, foi tão somente documentar uma parte da história da assistência social no Rio de Janeiro, não estabelecendo um parti pris. Ao se comprometer com uma narrativa histórica documental, de cunho memorialista, Maria Esolina não julga, não avalia, nem entra no terreno das motivações políticas, ou ideológicas. Ao fazê-lo, transforma seu texto num instrumento de pesquisa, afinal como uma pioneira do Serviço Social, ela conheceu a maioria das instituições que apresenta no seu livro, fazendo um breve histórico, descrevendo suas finalidades e o público assistido, bem como dando destaque especialmente à atuação assistencial das mulheres. Mesmo sendo uma memória mais descritiva, é inegável que além do trabalho documental para o Serviço Social, Maria Esolina contribuiu com a história das mulheres numa de suas dimensões menos conhecidas no Brasil, que é a atuação pública na assistência social pela filantropia e seus caminhos cruzados com a saúde pública, a educação, o feminismo e as políticas sociais. (Martins, 2018)
Nessa direção, como um documento dos protagonismos femininos, Maria Esolina descreve onze instituições criadas e dirigidas por mulheres no Rio de Janeiro, e a Liga das Senhoras Católicas (LSC) de São Paulo, criada em 1922. Nem todas foram assistenciais, algumas foram instituições voltadas para ações culturais e educativas para meninas e jovens mulheres, mas o maior número dessas 13 instituições foi assistencial. Algumas delas mereceram uma análise mais detalhada, como o Serviço de Obras Sociais (SOS), criado em 1936, no qual ela atuou como professora e assistente social, além de ter participado do Conselho Diretor. Explica-se também esse cuidado descritivo com o SOS porque Maria Esolina foi muito próxima das filantropas que atuaram nessa instituição, bem como de alguns filantropos que participaram do Conselho Diretor, como o médico Olinto de Oliveira e outros rotarianos com quem Maria Esolina manteve amigáveis relações conforme foi se tornando uma profissional reconhecida na cidade do Rio de Janeiro.
O SOS também deu a oportunidade para Maria Esolina reconhecer o valor do trabalho assistencial das enfermeiras da Saúde Pública, entre elas, Edith Magalhães Fraenkel, professora e diretora da Escola de Enfermagem Anna Nery desde 1925, uma ardorosa defensora da profissionalização da enfermagem e também uma feminista atuante na campanha sufragista e no Conselho Nacional de Mulheres, fundado por outra filantropa e feminista, também do Conselho Diretor do SOS, Jeronyma Mesquita. Além dessas duas mulheres, Maria Esolina mencionou outra fundadora dessa instituição, Eugenia Dutra Hamann, com quem estabeleceu relações de amizade e ativismo social.
As outras instituições mencionadas com destaque para suas fundadoras e integrantes são as instituições católicas Missão da Cruz, Pequena Cruzada, Associação de Senhoras Brasileiras e a União Social Feminina. Entre as instituições não religiosas ou sem vinculação com a Igreja Católica, Maria Esolina ainda menciona o Lar da Criança, a Federação das Bandeirantes do Brasil, a Associação Cristã Feminina, a Pro-Matre e a Instituição Carlos Chagas, fundada pela ativista social e feminista Alice Tibiriçá.
Além de ser um interessante mapa da agência feminina na assistência social, educação, proteção à maternidade e à infância e da proteção às trabalhadoras, os destaques de Maria Esolina permitem ir além de um relato descritivo. A pesquisa histórica beneficiada com essas pistas documentais mostra como o protagonismo feminino na assistência social aproximou mulheres com motivações diferentes, católicas, espíritas, protestantes, profissionais liberais, feministas, escritoras, mulheres de elite e jovens mulheres de classes médias, como era então Maria Esolina, casadas, solteiras, algumas poucas desquitadas, todas mobilizadas pela ação social, mas também em defesa dos direitos das mulheres, que tiveram na assistência social a oportunidade de agência e de realizar um trabalho para além da mitigação e da reprodução das formas de exploração (Martins, 2023).
O segundo livro de memória histórica analisado neste artigo tem como título Serviço Social – uma interpretação do pioneirismo no Rio de Janeiro (1985a). No prefácio, o diretor da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Wilson Cardoso, ressalta o pioneirismo de Maria Esolina como assistente social, mas também como professora. Explica que a trajetória de Maria Esolina faz parte de um processo histórico do Serviço Social, que se fazia necessário conhecer naquele contexto de redemocratização da sociedade brasileira:
O Trabalho Social, notadamente a partir do seu processo de reconceituação, inspirado na expressiva contribuição de diversos grupos de profissionais da América Latina, vem se empenhando na busca constante de novos caminhos. [...] Assim é que resolvemos buscar nossas origens e, na tentativa de recuperação de nossa memória, fomos encontrar a Profa. Maria Esolina Pinheiro em plena atividade: remexendo papeis amarelados pelo tempo, consultando recortes de jornais, selecionando fotografias, revirando a sua pródiga e jovem memória, recolhendo, enfim, informações para o seu PIONEIRISMO DO SERVIÇO SOCIAL – DOCUMENTÁRIO. Foi nesse clima que a encontrou o grupo de professores, na primeira visita que lhe fizemos, quando se esboçou, mais concretamente, a proposta de recolher, pedaço a pedaço, os passos mais significativos de nossa História (1985a, Prefácio).
O diretor não faz nenhuma avaliação prévia e negativa da prática profissional do começo do século XX. Lembra que o currículo do curso de Serviço Social da UERJ contava com uma disciplina obrigatória de História do Serviço Social e que um novo projeto da área e da profissão não poderia ser pensado sem o conhecimento da história: “Não pode, certamente, descartar experiências anteriores, como se fossem meros rascunhos equivocados. Isso seria fechar os olhos ao próprio processo histórico e ao potencial transformador da prática social” (1985a, Prefácio).
Diferentemente do livro Serviço Social - Documento Histórico (1985b), nesse outro livro, além de ser a narradora, Maria Esolina é também personagem. Tal dualismo se verifica, inclusive, pelo uso cambiante da terceira e da primeira pessoa na narrativa. O livro Serviço Social – uma interpretação do pioneirismo no Rio de Janeiro é memória do Serviço Social, mas é memória de Maria Esolina Pinheiro, da jovem mulher que se tornou uma assistente social nos anos 1930, da professora que esteve à frente dos cursos de formação de assistente social desde 1936 e das escolas de Serviço Social, em especial a escola que ficou conhecida como a “Escola de Maria Esolina”, a Escola Técnica de Serviço Social Cecy Dodsworth, origem da Faculdade de Serviço Social da UERJ.
Portanto, esse outro livro de 1985, mais do que um documento da assistência social, é um relato memorialístico de dois processos históricos convergentes, de dois movimentos, social e político, e o pessoal. A estrutura do livro é muito simples, dividido em sete partes, sendo a última composta por anexos que são recortes de jornais, legislação, documentos da Associação Brasileira de Educação, do Ministério da Justiça, correspondências oficiais para Maria Esolina, e outros registros sobre associações ligadas ao Serviço Social. A organização de cada parte do livro demonstra como ela seguiu um roteiro próprio, uma organização que espelha a “pródiga e jovem memória” da autora, conforme Wilson Cardoso. Os papeis amarelecidos pelo tempo estavam sob a guarda de Maria Esolina e quando ela recebeu os professores da Faculdade de Serviço Social, abriu seus arquivos pessoais e tornou papeis velhos em novos, pela memória de sua experiência, narrando uma parte da história da assistência social no Brasil e também de seu protagonismo nesse processo histórico.
Esse livro de Maria Esolina ainda carece de uma análise histórica mais cuidadosa, especialmente no que diz respeito às relações entre a autora, a narradora e os processos históricos que ela testemunhou e registrou pela escrita e pela reprodução da documentação histórica, ou seja, sobre o circuito autora, texto e contexto. Não é possível, nesse artigo, realizar tal análise, pois isso implicaria na ampliação documental, especialmente a imprensa, que deu uma atenção especial à assistência social, às filantropas e especialmente ao protagonismo profissional de Maria Esolina Pinheiro entre as décadas de 1920 e 19505.
A análise desse livro problematiza a construção da memória da assistência e do Serviço Social articulada à memória e à escrita de si; compreender como Maria Esolina se coloca nesse processo histórico não só como uma narradora imparcial e distante, mas como alguém que lembra, organiza o material da memória e ao fazê-lo, narra também a si mesma.
Maria Esolina conta como o Serviço Social se organizou no Brasil entre as décadas de 1930 e 1950, dando destaque ao governo de Getúlio Vargas. Explica que na origem, havia muito idealismo somado à criatividade das pessoas comprometidas com a questão social, sem técnica ainda, obra da intuição e da urgência. Ela escreve essa história como uma história de ideias e de instituições, mas também como uma história pessoal. Isso se deve às relações entre Maria Esolina e as filantropas do SOS, mas também às relações entre a filantropia e alguns políticos que exerceram funções governamentais em organismos que passaram a tratar da nascente política social no Brasil, como a atenção aos menores, à família, à maternidade, à infância, à educação das meninas de famílias sem recursos, aos mendigos e pessoas portadoras de deficiências, entre outras situações que compunham o vasto campo da questão social no país. Portanto, ao ser motivada a escrever sobre o passado de sua profissão, Maria Esolina não pode se manter distante, de fora. Sua escrita oscila entre uma voz narrativa impessoal e coletiva e a sua própria voz, usando com frequência a primeira pessoa: “Fui contratada”; “fui, então, nomeada”; ou “a fundadora e assistente social Maria Esolina Pinheiro, foi sua fundadora”; “Ausentou-se em 1953”; “Em 1964, aposentou-se”; “A leitura dessa história salienta bem a parte que nos tocou no desenrolar e crescimento de Serviço Social no Rio de Janeiro”.
Essas frases e tantas outras, demonstram que para Maria Esolina não era possível contar sobre um processo histórico sem contar sobre si mesma. Ela teve uma parte importante do “desenrolar e crescimento” do Serviço Social na cidade do Rio de Janeiro, mas também em outros lugares, como na Bahia, onde esteve em 1941 para ministrar cursos em Salvador e em outras cidades do Recôncavo Baiano, organizados pela Cruz Vermelha, outra instituição com a qual Maria Esolina manteve relações profissionais por bastante tempo.
A organização dessa memória se dá pela articulação entre a história de Maria Esolina e os espaços institucionais nos quais atuou. Esse é o caso da sua relação com o Juizado de Menores e o Laboratório de Higiene Infantil, do Ministério da Justiça. Essa narrativa histórica coloca no mesmo cenário os interesses governamentais em criar um curso de formação de assistentes sociais para atuar com menores infratores ou “desajustados”, no âmbito do Juizado e do Laboratório de Higiene Infantil. Maria Esolina faz uma rápida menção ao envolvimento da deputada federal Carlota Pereira de Queiroz, representante de São Paulo, médica, cuja área de atuação na Câmara, a partir de 1934, foi pela educação e a assistência social. Católica, Carlota foi próxima das primeiras assistentes sociais que participaram de um curso para formar trabalhadoras sociais em São Paulo, no Centro de Estudos e Ação Social, iniciativa da Igreja Católica, dando origem à Escola de Serviço Social, fundada em 1936 na capital paulista. Maria Esolina menciona as escolas católicas de Serviço Social, tanto a de São Paulo, quanto a do Rio de Janeiro, o Instituto Social, fundado em 1937. Quando menciona o Instituto Social o faz em uma página, para informar que a educação católica se dava nos moldes europeus, mais especificamente pelo modelo belga e francês do Serviço Social, tendo como principais representantes das escolas – diretoras e professoras - as religiosas da Sociedade das Filhas do Coração de Maria e as principais lideranças masculinas católicas do Rio de Janeiro, como Alceu Amoroso Lima. Também informa que era uma educação elitista e paga.
A história narrada, portanto, trata do Serviço Social no Rio de Janeiro a partir das instituições assistenciais e governamentais e das escolas onde Maria Esolina exerceu a profissão. Essa história se inicia em 1934 com o SOS, onde Maria Esolina começou a trabalhar como professora de educação física para crianças que viviam com suas famílias na Vila do SOS, no Caju, região portuária do Rio de Janeiro. Quando o Juizado de Menores criou o primeiro curso de formação de assistentes sociais, Maria Esolina foi aceita com a indicação das diretoras do SOS, sendo uma das 26 alunas que concluíram o curso. Esse curso abriu as portas para que ela ingressasse no serviço público como assistente técnica social no Laboratório de Biologia Infantil a partir de 1938. Nesse ano, o curso de formação deu origem à Escola de Serviço Social do SOS, com o apoio do Juizado de Menores, do SOS e do Rotary Clube. Maria Esolina foi professora e diretora dessa escola, que formou as primeiras profissionais do Serviço Social no Rio de Janeiro em escola não católica.
Figura 1 - Maria Esolina ao lado de Eugenia Hamann, com as crianças na Vila do SOS. Acervo do SOS, Rotary Clube de São Cristovão, Rio de Janeiro, sem data.
A respeito de sua atuação no Juizado de Menores e no Laboratório de Higiene Infantil, ela reproduz cartas, ofícios e relatórios que dão uma ideia do trabalho que ela desenvolveu com os menores que estavam internados e que após autorização judicial podiam sair para aprender um ofício nos cursos ministrados pelo SOS. Sobre o trabalho com os menores ela assim se manifesta:
Já aí se aplicavam nossos métodos educativos, pois os menores tinham a liberdade de escolher e eram acompanhados pela Assistente Social que orientava os ensaios dessa transformação de um colegial de asilo em ser libertado. [...] Vários vêm mantendo, através dos anos, contatos com a Assistente Social, que lhes tem servido de madrinha de casamento para alguns, de batismo de filhos para outros (Pinheiro, ١٩٨٥a, p. 55).
Figura 2 - Maria Esolina atendendo crianças no Laboratório de Higiene Infantil. Acervo do Departamento de Serviço Social da UERJ, sem data.
O mesmo procedimento de narrar a história do Serviço Social e de sua história profissional está presente no relato sobre a criação da Escola Técnica de Serviço Social Cecy Dodsworth. Novamente, as mudanças institucionais e na trajetória profissional de Maria Esolina são parte de um mesmo processo histórico. Desde 1939 Maria Esolina passou a trabalhar na Secretaria de Saúde e Assistência da Prefeitura do Distrito Federal, a convite do secretário, o médico baiano Clementino Fraga, que pretendia criar uma escola municipal de Serviço Social no Rio de Janeiro. Com a guerra, os planos foram adiados, sendo a escola criada somente em 1944. Maria Esolina foi professora e diretora dessa que foi a primeira escola pública de Serviço Social do Rio de Janeiro. Sobre essa diferença, a autora narra em terceira pessoa:
A Diretora da Escola sempre defendeu a necessidade de uma Escola gratuita do Serviço Social a fim de permitir o aproveitamento de alunos provindos das classes menos favorecidas pela fortuna. [...] Propunha, então, e ainda propõe hoje dois níveis de curso, um “Superior” e um “Médio”, para atingir a um maior número de interessados na defesa dos próprios princípios aqui propostos (Pinheiro, 1985a, p.83).
Ainda outro aspecto importante a ser destacado nessa construção da memória histórica são as oportunidades de emprego para as mulheres no serviço público, mas também em empresas e instituições assistenciais como o SOS, especialmente nas décadas de 1940 e 1950. Em seu livro ela se refere aos espaços criados pela prefeitura do Rio de Janeiro, como os Centros de Assistência Social em alguns bairros da cidade que prestavam serviços de atendimento médico, educação infantil, cursos de trabalhos manuais, assistência às famílias pobres, atendimentos a casos individuais, fornecimento de refeições e “outras atividades determinadas pelas circunstâncias” (1985a, p. 85) Outro exemplo de locais para o exercício da profissão de assistentes sociais são os Parques Proletários, para atendimento das crianças e a “reeducação familiar”. A partir da década de 1940, outro importante espaço para o emprego de assistentes sociais foi a Legião Brasileira de Assistência (LBA), para a qual Maria Esolina também contribuiu na organização feminina do esforço de guerra, tendo atuado em colaboração muito próxima com Darcy Vargas (Barbosa, 2017).
Portanto, esse livro de história do Serviço Social é o resultado do trabalho de construção da memória da narradora. Narrar essa história implica em contar sobre a organização de instituições privadas, órgãos públicos e políticas sociais, mas, ao mesmo tempo, contar sobre si mesma, sobre seu protagonismo social e profissional como parte de um mesmo e articulado processo histórico. Uma memória pública e política, indissociável da memória do fazer-se como uma mulher profissional do Serviço Social e de uma profissão para tantas outras mulheres que Esolina não esqueceu de mencionar os nomes, todas, como ela mesma, pioneiras do Serviço Social.
Se os livros sobre a história do Serviço Social foram escritos para atender uma demanda institucional e intelectual, o livro “Anos que passam, memórias que ficam” atendeu a uma necessidade da própria autora, com 78 anos, em tornar pública a história de sua família e a sua história pessoal. Não é um livro tão fácil de classificar. À primeira vista, pode ser chamado de livro de memórias, pois trata-se disso, memórias históricas, de família e pessoal. Também tem características de uma biografia, de pessoas de sua família, avós e pais e também autobiografia, afinal boa parte do livro se refere à vida da autora. Nesse artigo o livro é definido com um registro da memória social dos séculos XIX e XX, da memória das famílias paterna e materna e da memória individual de Maria Esolina.
Entretanto, como livro de memória, há que se considerar a escolha narrativa da autora. Um livro de memórias pode ser escrito de maneira mais distanciada, geralmente em terceira pessoa. Esse livro é escrito, na sua maior parte, na terceira pessoa, no entanto, desde o primeiro capítulo, a narrativa distanciada é interrompida pela imaginação com a inserção de diálogos das personagens históricas e familiares, de situações e circunstâncias que a autora não presenciou, nem poderia ter acesso a um relato oral tão fidedigno, como se fosse possível colhê-lo na íntegra passados mais de cem anos.
Mas, o que transforma esse livro de memórias em outro gênero narrativo foi a escolha de Maria Esolina em dar à memória da família e de si um enredo de romance, criando diálogos, usando a voz narrativa em terceira pessoa e variando entre o discurso direto e o discurso indireto, recursos da escrita literária e ficcional. Portanto, trata-se de um registro de memória que dá à autora não só a organização dos fatos históricos, resultado de pesquisas documentais e entrevistas realizadas por ela e sua sobrinha, mas a possibilidade de ir além dos fatos, criando cenas, emoções, recriando diálogos, inclusive aqueles que ela mesma deve ter participado com pessoas que já estavam mortas há muito tempo no momento da evocação das memórias e da escrita do livro.
Ao se conceder essa liberdade com a memória e a narrativa, Maria Esolina desempenhou vários papeis: ela é a autora do livro em parceria com a sobrinha, mas no texto se divide entre ser narradora observadora, como memorialista, biógrafa, ou mesmo historiadora; é também a narradora personagem, Maria, a jovem que nasceu numa família tradicional da região cafeeira da Província do Rio de Janeiro, cresceu em cidades do interior fluminense e de Minas Gerais, depois acompanhou a família para a cidade do Rio de Janeiro com 18 anos, começou a escrever para a imprensa e a ajudar o pai num projeto de jornal cultural, namorou, frequentou bailes, casou, foi mãe, se desquitou, foi afastada da filha pequena, começou a trabalhar como professora para crianças de famílias pobres e, com mais de trinta anos, ingressou numa profissão nascente, considerada uma profissão adequada para mulheres, tornando-se conhecida e respeitada pela capacidade de trabalho, de estabelecer e participar de redes de sociabilidades, e pela contribuição que deu à assistência e ao Serviço Social também como professora. Nesse sentido, pode-se também dizer que Maria Esolina foi narradora onisciente, ou narradora testemunha, pois dessas histórias todas (familiar, social, pessoal, profissional) ela participou de boa parte delas e, aos 78 anos, podia contar com a objetividade propiciada pelo tempo histórico e pela experiência, podendo organizar uma narrativa da qual ela sabia, de antemão, o futuro, dando a quem lê esse livro, a confiança de ler um texto fidedigno e saboroso (Leite, 1997).
A relação com a escrita é uma das primeiras confissões desse livro. Na apresentação, Maria Esolina conta que desde a adolescência cultivava a escrita em cadernos pessoais, fazendo anotações do cotidiano, mas principalmente de acontecimentos e fatos familiares que presenciou, ou que ouviu de seus pais, avós e outros parentes. Nos cadernos anotava informações biográficas de seus antepassados dos séculos XVIII e XIX, mas também o que ela define como “aspectos sociais”, que vão aparecer nesse livro de memórias. Explica ainda que foi de algumas dessas histórias registradas nos cadernos que tirou personagens para suas crônicas publicadas mais tarde na imprensa, em jornais culturais como A Época e O Malho. Nota-se, portanto, que desde muito jovem, as histórias contadas na família, transmitidas pela oralidade, despertaram o interesse pela escrita ficcional, ou por registros de fatos pitorescos do passado.
Ainda na apresentação, Maria Esolina comenta que pensou em queimar os velhos cadernos, que a acompanharam até a velhice, pois não queria incomodar seus herdeiros com papeis tão antigos quando partisse, mas atendeu a sugestão da sobrinha Nilce e resolveu trazê-los à luz com a escrita do livro. Diz às leitoras/aos leitores que procurou esquecer o mal que seus antepassados possam ter feito e que sua escrita se pautou pela verdade no “retorno saudoso ao passado”. Esse compromisso com a verdade é tanto uma estratégia literária, ou seja, dizer que o texto não é uma invenção pura e simples, que a história contada tem relação necessária com a realidade de quem conta, mesmo que seja um romance ou uma novela. Mas, esse compromisso é também o que se espera de uma autora de memórias e de autobiografia, ao estabelecer com suas/seus leitoras/leitores um pacto de autenticidade, de revelação da verdade dos fatos, das personalidades das pessoas do passado e da própria vida da autora. Esse livro tem todas as características de uma narrativa autobiográfica: é escrito em prosa; é um relato retrospectivo de uma mulher, a autora, e das pessoas mais próximas a ela, como os familiares; trata da história de seus antepassados com a finalidade de explicar sua origem, seu laços com o passado da família, e também é um relato sobre momentos de sua vida até a maturidade, muito próximo a um romance de formação. Ainda, a autora coincide com a narradora e se constitui como a personagem principal. Configuram-se, assim, as principais características da escrita autobiográfica, segundo Lejeune. (2014:48)
Mas, há um elemento complicador nessa definição de pacto autobiográfico, devido à narrativa deliberadamente literária como estratégia da autora para criar um espaço para a imaginação, rompendo com a unidade da narrativa memorialística ou histórica ao inserir diálogos entre personagens que deslizam da realidade histórica para a imaginação literária e desta, novamente, para a realidade histórica. Para um/uma leitor/leitora que não conheça Maria Esolina, é difícil perceber essas imbricações narrativas, mesmo tendo lido a apresentação do livro. A narrativa cria um efeito de verdade devido as referências históricas, sociais e culturais, bem como a introdução de dados genealógicos dos antepassados da autora desde o século XVIII, apresentados numa tabela colocada logo após os agradecimentos. A voz narrativa reforça o afastamento das personagens históricas, como se fossem estranhos à autora/narradora, mas ela escreve sobre seus pais e avós. Ainda fica mais difícil, para quem não conhece Maria Esolina, saber que a autora é a personagem Maria, pois a narrativa em terceira pessoa estabelece o mesmo efeito de distanciamento, como se a autora não estivesse contando a sua história, mas de uma moça chamada Maria, que poderia ser uma antepassada da autora e não ela mesma. Essas peculiaridades e singularidades de um texto tão fortemente subjetivo requerem análises futuras mais detalhadas e articuladas por referenciais teóricos sobre escrita, memória e subjetividade, que não são possíveis de realizar nos limites desse artigo. De qualquer forma, a leitura do livro demonstra como Maria Esolina soube construir uma narrativa de si inseparável da memória familiar e da história das mudanças sociais promovidas pela modernização social brasileira, com impacto notável na trajetória da autora/personagem nos capítulos que passam a tratar da personagem Maria (Esolina).
Essa combinação de história, memória, autobiografia e ficção fica ainda mais provocativa pela estrutura do livro. Trata-se de um livro com 140 páginas. Tem um texto curto de apresentação, de 4 páginas, seguido dos agradecimentos. O livro é dividido em duas partes. A primeira tem o título do livro, “Anos que passam memórias que ficam”, seguido de um parênteses no qual está escrito, Biografia em 6 capítulos. A segunda parte contém duas poesias do pai da autora, Joaquim Pinheiro de Souza Primo e a transcrição editada de sete entrevistas com parentes dos dois lados da família, materno e paterno. Por fim, na última página, a autora apresenta uma lista de livros citados, direta e indiretamente sobre a história social, econômica e política e biografias, sendo uma delas de sua autoria, sobre o deputado estadual e federal José Monteiro Soares Filho, também uma das personagens do livro.
Chama a atenção que Maria Esolina coloque entre parênteses a informação que o fundamental de seu livro, desenvolvido na primeira parte, seja descrita como uma biografia em seis capítulos. Em vista da construção da narrativa e do lugar da autora como narradora e também personagem, conforme comentado acima, o que significa essa caracterização do livro por parte de sua autora? Maria Esolina foi uma mulher culta, com formação na cultura escrita e letrada e ela mesma autora de uma biografia. O uso dessa palavra não foi descuidado, nem acidental. Ensaia-se aqui uma explicação aberta a críticas e passível de revisão.
Retome-se uma das palavras chave dessa análise, memória. A escrita de Maria Esolina é uma escrita memorialística, seja do Serviço Social, seja de sua trajetória profissional. É a profissional aposentada, idosa, que lembra do passado e ao organizá-lo mentalmente e registrar as lembranças pela escrita, cria um espaço narrativo e permanente para a memória. Como já analisado, essa memória é da autora, mas inseparável da memória de suas relações familiares, afetivas, de amizade, de trabalho e da memória social. A biografia, esse gênero bem conhecido por Maria Esolina, é um gênero que não só pretende construir uma narrativa histórica sobre a vida de uma pessoa que, por diferentes razões, tenha se tornado merecedora dessa homenagem ou digna de memória, para ser lembrada, para não cair no esquecimento das pessoas ordinárias. Uma biografia nem sempre é uma homenagem, mas as biografias que ela leu e a biografia que escreveu foram homenagens a homens públicos. Portanto, pode ser crível que a palavra biografia, mesmo entre parênteses, tenha o significado de um trabalho de memória das pessoas que fizeram parte da vida familiar da autora e um registro de memória de si, pela escrita de si. Não por acaso, ao escrever sobre si ela o faz pela narrativa literária, e ao narrar-se, Maria Esolina escreve um livro que lhe parece ser uma biografia de si e dos outros.
Os primeiros capítulos tratam da história social e econômica da Província do Rio de Janeiro no século XIX, mais especificamente das cidades de Vassouras e Valença. Seu enfoque é sobre a elite cujo poderio econômico e político se assentou na propriedade da terra e na produção da monocultura cafeeira para exportação, com exploração da mão de obra escravizada. A família paterna de Maria Esolina era dessa elite, mas explica que seu avô paterno, o coronel Fernando Pinheiro de Souza, foi apoiador da causa abolicionista. O pai de Maria Esolina, Joaquim Pinheiro de Souza Primo, estudou Odontologia na Corte e ao retornar para Valença conheceu Delmira da Fraga, com quem se casou e teve seis filhos, sendo Maria Esolina a primogênita.
A narrativa histórica, com descrições da vida social das fazendas de café e das duas cidades, demonstra como a autora procurou criar uma imagem nostálgica da Província. Ela recorre ao discurso sobre o valor da aristocracia rural e de seus homens ilustres, que tiveram notável protagonismo político tanto no movimento abolicionista, quanto no republicano, segundo as referências bibliográficas que a autora mobiliza nessa parte histórica do texto. Essa memória histórica das elites fluminenses de seus antepassados é ativada também para descrever seu avô rico, em momento algum chamado de avô, mas de pai de Joaquim. Dono de três fazendas, senhor de escravos, mas que aderiu ao abolicionismo, algo sempre lembrado pela narradora, foi do Partido Liberal.
A narradora se demora na descrição da fazenda de Fernando, da riqueza e da beleza do lugar e da casa, e de como eram realizadas as festas religiosas e de comemoração de aniversários, batizados, casamentos e de datas cívicas. A autora explica que os festejos nas fazendas e nas cidades do interior foram muito característicos da época e até o momento em que escreve o livro compunham os costumes brasileiros.
Interrompendo essa análise histórica e social da região de Vassouras e de Valença, a autora introduz a narrativa literária com os diálogos que poderiam ter ocorrido entre os jovens rapazes que voltaram da Corte para participar de um baile, ocasião em que Joaquim conheceu a jovem Delmira da Fraga, filha de um sitiante próspero da região, Luiz da Fraga. No baile, apesar das tentativas de aproximação de Delmira, ela mantinha-se arredia. Eis um dos primeiros diálogos inventados pela autora:
- Diga-me, por favor, se posso vir nos fins de semana para vê-la? Pois estou aqui por sua causa...
- Por minha causa? Como?
- Senhorita... Espero que me diga como...
- Nos conhecemos esta semana; não sei lhe dizer nada. Perdão se o molesto.
- Sinto-me desolado, mas virei deixando uma súplica – sua presença (Pinheiro, 1985a, p.31).
A autora passa a escrever um romance sobre o noivado de seus pais, as personagens Joaquim e Delmira, incluindo os planos dos pais dos noivos e descrevendo os passeios, os jantares, a beleza das fazendas e do sítio dos Fraga, como também dos objetos das casas grandes. A autora se demora nessas passagens francamente literárias como se estivesse preparando as/os leitoras/leitores para a dura realidade da vida, tão diferente dos sonhos e das promessas de amor.
A narrativa muda com o casamento de Joaquim e Delmira. A autora passa a narrar um longo processo de dificuldades no casamento dos seus pais personagens devido ao comportamento irresponsável de Joaquim. A autora constrói um retrato negativo de um homem que se envolve com outras mulheres, algumas casadas, que não é atencioso com a esposa, sendo muito frio e distante com a maioria dos filhos, dando atenção somente à filha mais velha, Maria. A autora elabora uma crítica aos costumes e à moral da época, condescendentes com maridos infiéis e irresponsáveis, e ao tratamento dado às esposas como Delmira, que tiveram que conviver caladas com esses comportamentos. Delmira é descrita como uma esposa companheira e mãe amorosa dedicada aos filhos e quando foi abandonada pelo marido, já vivendo distante de sua família no Rio de Janeiro, passou a trabalhar como costureira em casa, pois ainda tinha filhos que dependiam dela.
Essas memórias da família, do casamento dos pais, do abandono paterno e de mulheres que precisaram trabalhar para sustentar os filhos, devem ter sido reavivadas pela assistente social que desde o começo de sua trajetória profissional se dedicou às crianças e adolescentes, como também ao trabalho social com famílias desassistidas e mães em situação de pobreza a abandono. É notável a maneira como Maria Esolina organiza essas memórias familiares, especialmente a respeito do pai, com quem ela também trabalhou quando a família se mudou para o Rio de Janeiro, sendo secretária da tipografia que ele abriu para publicar um jornal cultural dedicado às letras, Album Jornal, que não durou muito tempo. Quando em viagem de férias no interior do Estado, Maria recebeu carta da mãe pedindo que retornasse logo, pois seu pai havia abandonado a família. Essa é a última frase que a autora escreveu a respeito de Joaquim, o pai e personagem.
Com a necessidade de trabalhar para ajudar a mãe, a personagem Maria teve que abandonar seus estudos e interesse pelas Letras, fazendo concursos públicos, mas também sendo pressionada para se casar. A narrativa envereda pela entrada de Maria na vida adulta. Conta de um primeiro namorado, ainda com 14 anos, morando em Vassouras, um jovem advogado e deputado estadual pela região, José Monteiro Soares Filho. Por motivos familiares e alguns deslizes do deputado, o namoro não foi em frente, mas foi seu primeiro namorado e, segundo ela narra mais ao final do livro, seu único amor. Aos 25 anos, Maria sentia o aumento da pressão para se casar e se casa com um militar, um tenente, cujo nome não é informado:
“Este me oferece uma felicidade sem contrastes. Não me perturbará a mente. A vida terá uma estabilidade militar, seja qual for a política. É um bom moço, posso realizar meus sonhos com o tempo...” (1985a, p. 94).
Maria conta que o casamento foi lindo, na Candelária, com homenagens militares, mas só durou dois anos e meio. Tiveram uma filha, Lília Maria. Sem nenhuma explicação, a personagem Maria conta que pediu o desquite e o militar concordou “porque o motivo era mais que justo” (p.94) Numa das visitas para encontrar a filha, Maria permitiu que a menina fosse à casa do pai. Ele e sua família raptaram a menina e ela não conseguiu reaver a filha. Maria conta que a sua filha tinha dois anos e meio. Foi enviada para um colégio de freiras em Itabira, Minas Gerais, sendo admitida como se fosse órfã. Conta que a menina cresceu sozinha, sem nunca ter recebido a visita do pai. “Sofreu injustiças, revoltas e solidão” (p.95)
Aos dezoito anos, a jovem exigiu da madre superiora que fosse enviada para a casa de sua avó paterna. Então, a freira, que sabia quem era a mãe de Lília, entregou a ela o material que ao longo dos anos juntou sobre sua mãe:
Havia tido o trabalho de pesquisar e colecionar recortes de jornais, retratos, entrevistas dela, críticas de seus livros impressos e a vida profissional de Maria como Assistente Social, Diretora da Faculdade de Serviço Social e, com muito jeito, chegou ao assunto, dizendo à jovem resoluta: Tome, leia. Sua mãe vive... É uma boa pessoa. É professora, escritora e fez bem a muita gente. Você deve conhece-la. Venho fazendo essa pesquisa há anos para lhe dar de presente um dia...” (1985a, p. 96).
Revela-se, assim, que a personagem Maria é a autora Maria Esolina, a assistente social e diretora da Faculdade de Serviço Social. A narrativa passa para o encontro de mãe e filha, e os detalhes que Maria conta sobre o quanto procurou a filha, tendo apoio de alguns conhecidos, que viajou para cidades onde moravam familiares de seu ex-marido; que conseguiu uma ordem judicial para procura-la em asilos e orfanatos, mas ninguém poderia imaginar que estivesse em outro Estado. Então, ela explica à filha como seu sofrimento materno a motivou a ser uma pessoa conhecida e a se dedicar à assistência e ao Serviço Social:
Depois de tudo isso, resolvi me tornar conhecida através de atividades públicas. A princípio, julgando que, por um milagre, alguém levasse a você, notícias minhas. Depois, por opção, fiz o curso de Assistente Social para lidar com crianças, já que não tinha você. O primeiro curso abriu-se no Rio em 1938. Matriculei-me, tirei o primeiro lugar e fui logo nomeada Assistente Técnica do Laboratório de Higiene Infantil do Ministério da Justiça e Juízo de Menores. Então, não parei mais. Dirigi muitos Serviços Públicos, especialmente realizei cursos, conferências, escrevi livros... Daí a Madre Superiora do seu Colégio tomar conhecimento das minhas atividades. O gesto de guardar as notícias para você, foi nobre. Não pode falar antes, por obediência de freira, o que sacrificou você.” (1985a, p. 100).
Maria (Esolina) conta à filha que após ter sido sequestrada e abandonada pelo pai, ela procurou o antigo namorado, deputado Soares Filho, que muito a ajudou tanto nos assuntos jurídicos decorrentes do desquite litigioso, quanto para tentar encontrar Lília Maria. Ambos iniciaram um relacionamento quando Maria (Esolina) estava com 30 anos. Todos os mais próximos sabiam desse relacionamento que então já durava 14 anos sem que houvesse alguma recriminação ou preconceito. Essa confissão de Maria Esolina sobre seu relacionamento amoroso com Soares Filho abre espaço para uma reflexão a respeito da flexibilidade moral das elites com as quais ela convivia, a começar pelas filantropas, mas também por suas colegas de profissão, numa época em que o estigma da mulher desquitada era bastante forte e mesmo prejudicial.
A narrativa conclui no ano de 1952, quando a mãe de Maria Esolina faleceu e uma semana depois, Soares Filho, seu primeiro namorado, seu companheiro de maturidade e o homem a quem ela tanto admirava como político dedicado às mesmas causas que ela, como a educação e a assistência social, também faleceu. Em 1955 ela escreveu a biografia de Soares Filho, publicada pela Câmara dos Deputados, com o título “O Líder Soares Filho”.
Agora, aos setenta e oito anos, deixa, para sua filha, filhos adotivos, netos e bisnetos, esta história de sua vida e da vida dos que a cercaram. Lembra seus antepassados com carinho e respeito através de pesquisas biográficas e entrevistas pessoais (1985a, p. 102).
Concluindo esse artigo, retomamos o ponto de partida, a análise da trajetória pessoal e profissional de uma das pioneiras do Serviço Social no Brasil e no Rio de Janeiro. Essa trajetória foi objeto da reflexão da própria Maria Esolina, tanto pelos livros históricos, nos quais colaborou para a construção da memória da assistência e do Serviço Social, sem esquecer das mulheres filantropas com quem conviveu desde o início de sua trajetória profissional, bem como as suas colegas de profissão, tão pioneiras quanto ela.
Mas, a análise da trajetória de Maria Esolina proposta nesse artigo, parte da agência não só pelos registros históricos como profissional e professora, mas pelo trabalho de narrar-se que Maria Esolina realizou ao escrever sobre a memória de instituições e agentes envolvidos com a assistência e o Serviço Social. Essa narrativa é de um processo histórico e social no qual Maria Esolina foi atuante, portanto a sua escrita memorialística é tanto do contexto quanto de sua atuação; da criação do Serviço Social, mas também do fazer-se assistente social.
Ainda se tratou aqui de outra dimensão do fazer-se pela escrita subjetiva que é a narrativa memorialística de sua família e de si mesma. Recorrendo à narrativa histórica e literária, Maria Esolina conta a história de sua família e dos despontamentos e decepções da sua mãe, mas também de seus dramas pessoais, talvez o mais terrível, que foi ter sido separada de sua filha pequena por um gesto de violência do homem com quem se casou. No entanto, ao narrar-se, Maria Esolina demonstra, num contexto muito conservador para as agencias femininas - como ter uma educação de qualidade, acesso a profissões e as decisões de terminar com um casamento abusivo e de manter um relacionamento amoroso sem estar sancionado pelo casamento -, que foi uma mulher muito corajosa e determinada em agir de acordo com sua vontade.
Os seus escritos, em particular o livro das memórias familiares e pessoais, revelam tanto as escolhas e as táticas de uma mulher moderna que esteve à frente da criação de uma nova profissão para mulheres de classes médias e populares, e também de alguém que compreendeu como as relações de gênero poderiam ser muito injustas e violentas para as mulheres. Esse conhecimento Maria Esolina teve na família, com seus pais e principalmente com a sua mãe Delmira, em sua vida pessoal e como uma profissional do Serviço Social, atendendo outra mulheres, crianças e adolescentes. Pioneira de uma profissão; pioneira de uma subjetividade inconformista e comprometida com a compreensão de seu tempo. Talvez essas afirmações só sejam possíveis porque Maria Esolina deixou registros de sua história e das conexões com as transformações sociais da quais foi testemunha e agente.
redalyc-journal-id: 5522